Sob as asas do mistério: ensaios sobre o imaginário Kátia Mendonça, Amanda Mesquita Cristo, Helio Figueiredo da Serra Netto, Jose Leandro Gomes de Souza, Jones da Silva Gomes, Jorge Oscar Santos Miranda, José Maria Guimarães Ramos, Valber Oliveira de Brito, Mônica Lizardo de Moraes
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Sob as asas do mistério: ensaios sobre o imaginário
Katia Mendonça et al.
1ª. Edição
Belém- Pará Editor: Kátia M.L.Mendonça 2017
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Capa e design gráfico: Kátia Mendonça Fotografia: Kátia Mendonça (O Anjo da Soledade) Revisão: Mônica Lizardo de Moraes M534a Mendonça, Katia. Sob as asas do mistério; ensaios sobre o imaginário / Katia Mendonça...[et al.]. Belém, Pará: edição do autor, 2017. 161 p. ISBN: 978-85-922534-0-0 1.Imaginário. 2. Ética. 3.Arte. 4.Cinema. 5. Fotografia. CDD:300 CDU:301
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EL ÁNGEL Que el hombre no sea indigno del Ángel cuya espada lo guarda desde que lo engendró aquel Amor que mueve el sol y las estrellas hasta el Último Día en que retumbe el trueno en la trompeta. Que no lo arrastre a rojos lupanares ni a los palacios que erigió la soberbia ni a las tabernas insensatas. Que no se rebaje a la súplica ni al oprobio del llanto ni a la fabulosa esperanza ni a las pequeñas magias del miedo ni al simulacro del histrión; el Otro lo mira. Que recuerde que nunca estará solo. En el público día o en la sombra el incesante espero lo atestigua; que no macule su cristal una lágrima. Señor, que al cabo de mis días en la Tierra yo no deshonre al Ángel. Jorge Luis Borges
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Este livro apresenta alguns frutos da pesquisa Imagem, Arte, Ética e Sociedade, vinculada ao Grupo de Pesquisa do mesmo nome, pertencente ao PPGSA – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. A referida pesquisa teve apoio do CNPQ-Conselho de Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Bolsa de Produtividade, Apoio à Participação em Eventos no Exterior e Bolsa PIBIC), da CAPES – Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Apoio à Participação em Eventos no Exterior).
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SUMÁRIO
SOBRE A PERSPECTIVA DESTE LIVRO
Kátia M.L.Mendonça
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WIM WENDERS E O IMAGINÁRIO DA PAZ: ENTRE O SAGRADO E O DIÁLOGO
Amanda Mesquita Cristo
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MORADAS ETERNAS, MORADA DOS VIVOS: UM OLHAR SOBRE O CULTO DOS MORTOS NO CEMITÉRIO DA SOLEDADE Helio Figueiredo da Serra Netto e Jose Leandro Gomes de Souza
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A COMUNIDADE E SEU ANJO: IMAGENS DA DEVOÇÃO À SÃO MIGUEL ARCANJO NA VILA DE BEJA ANDREI TARKOVSKI E O APOCALIPSE
Jones da Silva Gomes
Kátia M.L.Mendonça
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O TEMPO EM QUE A NOTÍCIA MUDA: É CÍRIO OUTRA VEZ! Pág.104
Jorge Oscar Santos Miranda. TESTEMUNHAR MILAGRES: UMA PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
José Maria Guimarães Ramos
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“EU ESPERO”: GABRIEL MARCEL E A EXPERIÊNCIA EXISTENCIAL DO MISTÉRIO DA ESPERANÇA Valber Oliveira de Brito
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OS ANJOS DO TAPETE VERMELHO
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Mônica Lizardo de Moraes
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Sobre a perspectiva deste livro Diante da profunda crise espiritual e social do mundo contemporâneo, marcado por relações mediadas pela imagem, cabe às ciências humanas buscarem novas bases epistemológicas para a compreensão do dos fenômenos decorrentes dessa sociedade tecnoimagética cuja produção de imagens chegou a um nível nunca antes alcançado por seres humanos espiritualmente imaturos para tal. Filhas do iluminismo e do positivismo, a sociologia e a antropologia veem esgotadas suas possibilidades explicativas, e, o que é pior, sem condições de apontarem novos rumos ou soluções para a sociedade. O porque deste fracasso reside na própria base positivista e cartesiana sobre a qual se constituíram essas ciências que, em negando qualquer transcendência embarcaram em uma espécie de morte da antropologia porque a própria noção de homem se perdeu. Assim, tais ciências, embora se digam humanas, se ancoram sobre a negação mesma do homem. Obviamente que, se perdidas foram as raízes antropológicas da humanidade e das disciplinas que a estudam, nada mais resta do que um campo aberto para a criação de ideologias, com vestimenta de ciência, que concorrem, cada vez mais para a destruição da sociedade e assim para a paradoxal destruição do objeto de estudo dessas ciências. Foi tendo isso em vista que, buscando um novo sentido epistemológico para as ciências humanas nos voltamos para a imagem pretendendo compreender em que medida e de que modo as imagens estéticas e ou midiáticas têm impacto sobre o desenvolvimento espiritual e social contemporâneo. Para isso desenvolvemos o projeto de pesquisa Imagem, Arte, Imagem, Ética e Sociedade, vinculada ao Grupo de Pesquisa do mesmo nome. Sobretudo podemos apontar que nossa direção vai contra o secularismo vigente no mundo ocidental, com toda a carga de destruição, travestida de liberdade, que carrega. Podemos nos dar o luxo de questionar isso pois em termos geoestratégicos, econômicos e políticos estamos na periferia de uma civilização que se crê avançada e desenvolvida, mas que parece caminhar em passos largos para o abismo. Somos da Amazônia, terra do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a maior procissão mariana do planeta. Logo, nossos olhares e, logo, nossos horizontes hermenêuticos, ainda não foram, ou pelo menos resistem a tal, totalmente contaminados pela perspectiva do desencanto, diagnosticado por Weber, celebrado pelas Ciências Sociais, mas não vivenciado, ainda, de forma plena, por nós. Este livro apresenta alguns frutos iniciais dessa pesquisa e nos capítulos seguintes teremos vários ensaios, em larga medida conduzindo um diálogo da arte com a sociologia e a antropologia do imaginário. O fio condutor aqui e que é o norte dos ensaios deste livro, é a crença de que a imagem e o imaginário, mais do que meros elementos da cultura, abrem as portas para uma realidade supra-sensível, para aquilo que Henry Corbin chamou de mundus imaginalis. Realidade essa que pode ser angélica ou, o seu contrário, diabólica. Do ponto de vista da ética das relações humanas e também da vida espiritual, a imagem pode abrir as portas para o mistério do Bem e para o igualmente misterioso Mal. Daí que não se pode, sob esta perspectiva, conceber a imagem como meramente algo solto no ar, fruto da imaginação, sem nenhuma implicação ética, sem consequências na vida material e espiritual da humanidade; Pelo contrário, imagens violentas abrirão portas para mundos espirituais violentos que se expressarão no mundo material, imagens celestiais, ou angélicas, abrirão portas para mundos semelhantes. Em um mundo que prega a morte da imagem, seja pela iconoclastia, seja pelo excesso imagético presente no espetáculo propiciado pela tecnologia na qual está mergulhada a sociedade, certamente que essa proposição far-nos-á pensar sobre que imagens construímos, com que imagens nos relacionamos e que imagens recebemos e transmitimos em nosso cotidiano. Com isto enfatizamos que as dimensões estéticas, éticas e espirituais não são separadas. Cabe a nós do século XXI levarmos adiante Pág.8
essas formulações que cineastas como Tarkovski e Wim Wenders deixaram como um alerta, mas que têm um alcance que, talvez, não tenha sido percebido à época pelos mesmos, qual seja o de que mundos espirituais violentos e diabólicos ou pacíficos, harmoniosos e celestiais, se abrem a cada imagem que construamos, que recebamos ou que compartilhemos. A imagem materialmente visível é porta de entrada para o invisível. Assim a imagem foi e permanece sendo um mistério, no sentido de Gabriel Marcel, algo que não podemos nos apropriar objetivamente, que não é um problema reduzível a cálculos racionais, mas que está vinculado a nosso ser, à nossa existência. Como esta é determinada pelo invisível, é de fundamental importância destacar que as imagens midiáticas ou artísticas abrem portais para o indizível. Principalmente em uma sociedade midiática e imagética como a nossa, devemos ter claro o fato de que as imagens nos abrem portas para dimensões insuspeitadas, seja a imagem pornográfica, seja o ícone religioso, ou a pintura sacra, ou ainda a imagem cinematográfica. Isso é bastante evidente na concretude das relações sociais contemporâneas onde a proliferação de imagens violentas é seguida pelo correspondente aumento da violência em todos os níveis da vida dos homens e destes com da natureza. Talvez, mais à frente, outros ramos da ciência, como a física, comprovem isso. Por ora fica, se quiserem, como uma hipótese, recebida por muitos com um sorriso irônico, é certo, porém, queiramos ou não, acreditemos ou não, o efeito espiritual das imagens sobre a humanidade ainda está por ter sua história escrita. Nesse contexto, a arte segue sendo, a nosso ver, um canal privilegiado de abertura da percepção do homem para o mundo espiritual. Este pequeno livro congrega ensaios dos alunos sob nossa orientação e de pesquisadores e professores do Grupo de Pesquisa. O ensaio de Amanda Mesquita Cristo, Wim Wenders e o imaginário da paz: entre o sagrado e o diálogo, aborda o tema da paz no cinema de Wim Wenders. Este diretor parte da busca de uma paz visível que move relações de quietude aos corações para o encontro com o eterno, em meio a pequenos momentos de silêncio, da disponibilidade para o encontro e para o diálogo, na qual se tem a responsabilidade ética, ou melhor, no olhar o outro, que move gestos de comunhão escondida na ternura e no sagrado. O artigo busca compreender como é possível no clamor dos tempos vislumbrarmos uma linguagem moral e visual na busca de uma paz visível em meio a profusão imagética. Assim, se realizou um exercício de hermenêutica dos filmes de Wenders tendo como foco os temas da paz, do sagrado e do diálogo a partir do olhar de seus personagens anjos. Em Moradas eternas, morada dos vivos: um olhar sobre o culto dos mortos no cemitério da Soledade, Hélio Figueiredo da Serra Netto e José Leandro Gomes de Souza abordam o imaginário construído em torno do Cemitério da Soledade. Fundado, provavelmente, em 1850, desativado em 1880 e tombado em 1964 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é o mais antigo cemitério da cidade de Belém do Pará. Nele, como nos demais cemitérios da cidade, todas segundas-feiras, pessoas de diversos matizes – de classes, cor, idade e credos – peregrinam em busca de graças, pagamento de promessas e oração no chamado “Culto das Almas”. Em meio às árvores e às estátuas da belle époque, o ensaio literário-fotográfico revela um imaginário religioso marcado tanto pela sacralidade quanto pela beleza estética dos monumentos. Em A comunidade e seu Anjo: Imagens da devoção à São Miguel Arcanjo na Vila de Beja, Jones da Silva Gomes pretende investigar o imaginário dos anjos e sua expressão no catolicismo popular na Amazônia, em particular a devoção à São Miguel Arcanjo na comunidade da Vila de Beja, no Pará. Neste itinerário, ele se permite tentar um reconhecimento; descrevendo as imagens da comunidade de fé que se reúne em torno da epifania do anjo. Estas imagens que são partilhadas pelos devotos e se exprimem num tempo cíclico da cultura popular, nos dão indícios da história de um afeto que se consubstancia em um diálogo com o sagrado. Pág.9
Em Andrei Tarkovski e o Imaginário do Apocalipse abordamos a questão do imaginário dos grandes ciclos cósmicos, encontrado em várias tradições religiosas, atribuindo novos significados à história e se articulando em duas vertentes: a do tempo cíclico (mito do eterno retorno) e a do tempo finito (mito do fim do mundo). É nesse solo que brota o Apocalipse de São João, obra que irá influenciar fortemente a tradição artístico-literária russa. O artigo, em diálogo com as teorias do imaginário, abordará a questão do Apocalipse no cinema de Tarkovski, em especial em Stalker e em O Sacrifício onde a narrativa apocalíptica se faz mais explícita revelando a visão que o próprio Tarkovski nos deixa, profeticamente, acerca dos tempos atuais. Saindo do campo da imagem estética e ingressando no da imagem midiática temos o ensaio “O tempo em que a notícia muda: é Círio outra vez!” de Jorge Oscar Santos Miranda, onde o autor mostra o outro lado da vida profissional dos jornalistas que constroem as matérias sobre violência urbana para os jornais impressos, quando ocorre uma quebra na rotina da produção imagética da violência: é o Círio de Nazaré, quando esses jornalistas renovam suas esperanças de dias melhores para a cidade, momento onde o contato com a imagem da Virgem de Nazaré contribui para religar ao Mistério aqueles profissionais até então mergulhados no terrível trabalho de captar a violência urbana pelas imagens e certamente, mesmo sem querer, replicá-la. Testemunhar milagres: uma perspectiva hermenêutica de José Maria Guimarães Ramos, aborda a interminável e importante discussão dos caminhos hermenêuticos da compreensão do testemunho, em particular dos testemunhos dos milagres, esse campo do mistério, no sentido marceliano, de difícil e complexa apreensão, mas em um mundo como o atual, de necessário e urgente diálogo. Em “Eu espero”: Gabriel Marcel e a experiência existencial do mistério da esperança, Valber Oliveira de Brito retoma a urgente questão da esperança em Gabriel Marcel, soterrada durante décadas por um pensamento marcado pela negação do mistério e da presença de um “outro lado” o qual somente se alcança pela fé, irmã da esperança. Finalmente, o ensaio fotográfico de Monica Lizardo de Moraes, Os Anjos do Tapete Vermelho, tematizando o mesmo Círio de Nazaré aponta para o maravilhoso mundo da fé de um povo ainda encantado e que resiste em cair no destruidor secularismo do Ocidente. Em todos os ensaios se expressa, em maior ou menor grau, uma relação com o mundo espiritual, esse mistério que tange a realidade material e que, não sendo material no sentido em que experienciamos a matéria na terra, ainda assim é real. A imagem, seja estética ou midiática, seja angélica ou demoníaca, é e sempre será a porta de entrada para esse mundo. Profa.Dra. Kátia Mendonça
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Wim Wenders e o imaginário da paz: entre o sagrado e o diálogo1
Amanda Mesquita Cristo2
Cada qual vê a sua realidade, com os seus próprios olhos. Vemos os outros, sobretudo as pessoas que amamos, vemos as coisas à nossa volta, vemos as cidades e as paisagens em que vivemos, vemos também a morte, a condição mortal dos homens e a efemeridade das coisas, vemos e experimentamos o amor, a solidão, a felicidade, a tristeza, o medo; em resumo: cada qual vê, por si mesmo, a vida. (Wim Wenders)
O cinema, por ser portador de um dinamismo espiritual, é o mecanismo perfeito para expressar a fusão entre o imaginário e a arte. Por esse caminho Wim Wenders reinventa uma linguagem visual e moral para a paz através de meios éticos, espirituais e sagrados, no intuito de revelar ao outro a noção de paz e de como olhamos para o mundo em meio a tanta violência e sofrimento, marcada cada vez mais pelo distanciamento e pela não-dialogia dos comportamentos frios e da relação Eu-Isso (Buber, 2003). O tema da paz em Wim Wenders parte da busca de uma paz visível que move relações de quietude aos corações para o encontro com o eterno, em meio a pequenos momentos de silêncio, da disponibilidade para o encontro e para o diálogo, nos quais se tem a responsabilidade ética, ou melhor, no olhar o outro, que move gestos de comunhão escondida na ternura e no sagrado. Pretendeu-se, assim, compreender como é possível no clamor dos tempos vislumbrarmos uma linguagem moral e visual na busca de uma paz visível em meio a profusão imagética. Neste artigo, o exercício de interpretação hermenêutica dos filmes, em torno do tema da paz, do sagrado e do diálogo, parte do tema do olhar por meio dos seus personagens anjos. Sendo assim, optamos por analisar as imagens dos filmes Asas do Desejo (1987) e Tão, longe, tão perto (1993) de Wim Wenders por conta da sua busca a uma nova linguagem visual e moral para a paz. Com efeito, a proposta de uma hermenêutica sociológica, tem se apresentado como importante instrumento de análise fílmica por proporcionar momentos de autorreflexão para aquilo que se tornou a noção de paz – se vemos a violência em todos os lugares ancorada na ausência de percepção do outro como dotado de sacralidade. E por isso esta pesquisa focaliza o imaginário da paz na arte cinematográfica de Wim Wenders como um meio de reflexão das relações humanas.
Wim Wenders e a Imagem É por meios sagrados, éticos e espirituais, um estilo próprio e único em demonstrar uma abordagem para o sentido da paz que o cineasta Wim Wenders reinventa uma nova linguagem visual. Nesse sentido pretende-se nesse imaginário recuperar o olhar cinematográfico para a dimensão sagrada do homo religiosus Pág.11
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que se mantêm na sociedade moderna, mesmo que soterrado por diversos símbolos e práticas sociais degradadas. Wim Wenders, nasceu em Düsseldorf em 1945, cresceu em meio as imagens da guerra e do horror, que provocou um profundo estranhamento da sua “alma alemã” no mundo moderno. Muitos de seus temas são ideias para se refletir acerca do distanciamento do homem contemporâneo. A reflexão do papel da arte, especificamente o cinema, é importante para o campo da sociologia e pode subsidiar o estudo das relações sociais orientadas por uma responsabilidade ética. Os grandes filmes da história do cinema caracterizavam-se como verdadeiros meios de meditação sociais ou espirituais em que seus realizadores apreendiam por meio da linguagem fílmica. E é o que confirma Agel (1972):
O enquadramento, os planos, a montagem, o som, o cenário e a luz não são instrumentos de um pensamento que quer exprimir-se no ecrã; são as próprias roupagens deste pensamento, as modalidades da sua encarnação, a sua própria substância. Nas mãos de um bom realizador, a cor desempenha o mesmo papel que as ideias e os valores espirituais, na medida em que os encarna. (Agel, 1972, p.218)
Wenders pretende passar ao seu público o valor imagético e simbólico da cidade constituída de imaginações e de símbolos da vida social. Em seus filmes redimensiona o sagrado na tela pelo aprofundamento estético, filosófico e teológico da imagem. Já que é pela imagem que “a alma humana representa com maior exatidão ainda as virtudes da santidade” (Durand, 1998, p.19). Num mundo marcado pela profusão de imagens, pelo espetáculo e pela cegueira ética que norteiam as relações sociais Wenders propõe que o único desafio imposto é o de (re)imaginar o mundo por meio da cultura imagética. Como um genial observador do “thêmata” (Durand, 1998), das imagens do mundo, viajante, captou numerosas paisagens urbanas. Como grande observador da paisagem tem a cidade como cenário de seus filmes, por constituir marcas de uma época perdida no tempo e que de alguma forma criavam condições para a paz. Daí seu fascínio pelos objetos arquitetônicos signos de uma vida social (Wenders, 2013). Em seus filmes as imagens são memórias de uma história. E o cinema é fruto dessa representação do mundo, do universo imaginário, em que a “sétima arte é capaz, como nenhuma outra arte, de apreender a essência das coisas, de captar o clima e os fatos do seu tempo, de exprimir suas esperanças, suas angústias e seus desejos numa linguagem universalmente compreensível” (Wenders, 1994, p.181). No sentido que contar histórias por meio das imagens é captar a essência das coisas em meio a diversos símbolos e práticas sociais degradadas que dessacralizaram aquilo que há de mais importante para o homem religioso – a dimensão espiritual das ações humanas. Para Wim Wenders (1994), a cidade confere o seu valor imagético e simbólico. Os títulos de suas obras, por si só revelam um cenário de descobertas ou intimidade com os elementos do cosmo: “Asas do desejo”, “Tão longe, tão perto”, “ O céu de Lisboa” entre outros que simbolizam a mistura duma atmosfera de realidade e ficção em seus filmes. Os filmes Asas do desejo (1987) e Tão longe, tão perto (1993) apresentam a temática do olhar dos anjos. Podemos supor que o tema do olhar do anjo nas imagens tenha vindo da própria leitura de Pág.14
Wenders quanto aos poemas Rilke de quem é um grande apreciador, pois em quase tudo que o poeta escreve está presente a figura do anjo.
As produções cinematográficas de Wenders a partir de 1987, introduzem a temática da paz e de como podemos imaginá-la em meio a tanta violência. No seu livro Inventing Peace: a dialogue on perception (2013), ele nos dá uma amostra de como podemos imaginar a paz e que condições a ela conduzem. O livro por meio de um diálogo que mistura poesia, filosofia, arte e cinema na busca por uma paz visível foi um projeto que se iniciou a partir de uma profunda amizade entre Wim Wenders e Mary Zournazi. O cineasta e a filósofa, ao longo de uma década, reuniram nesse livro histórias e cartas que trocaram em viagens ao redor do mundo, na qual buscavam reinventar uma linguagem para a paz em um mundo multiplicador de imagens (Wenders, 2013). Alves (2004), nos diz que o filme deve ser entendido como um “pré-texto” de reflexão da sociedade, capaz de propiciar uma compreensão hermenêutica e de plena dialogia:
A atitude hermenêutica supõe uma tomada de consciência com a relação às nossas opiniões e preconceitos que, ao qualifica-los como tais, retira-lhes o caráter extremado. [...] ela é uma meditação estética capaz de propiciar ao sujeito-receptor um momento de auto reflexividade crítica. (Alves, 2004, p.14)
Sobre o Sagrado e o Diálogo Para Wim Wenders recordar o passado para construir um futuro de paz é recordar gestos orientados por valores coletivos imersos no espaço. Todas as nossas relações são movidas por gestos que empregam relações éticas, onde vemos o outro como dotado de sacralidade. No entanto, a ausência dessa percepção é fruto do distanciamento dos humanos nas relações sociais. Ora, o tema da sacralidade é que encontramos em Eliade (1992) para quem o homem religioso perdeu a sua capacidade de se relacionar, de viver conscientemente no mundo sagrado, transportado para o mundo profano. O homem do mundo profano é fruto dessa “dessacralização da existência humana” que ainda assim conserva vestígios do comportamento do homem religioso:
“O homem religioso teria perdido a capacidade de viver conscientemente a religião e, portanto, de compreendê-la e assumi-la; mas, no mais profundo do seu ser, ele guarda ainda a recordação dela” (Eliade, 1992, p.102).
Buber (2003) concebeu a noção de Eu e Tu que para Wim Wenders é essencial para o entendimento da paz. Produzir a paz em seu trabalho, como cineasta, é dissolver as fronteiras entre as pessoas e, assim, ele, como cineasta, busca em tornar visível a paz num mundo multiplicador de imagens (Wenders, 2013), ou seja, propiciar através da arte a ocorrência de relações dialógicas no sentido buberiano. A dissolução das fronteiras se dá quando o indivíduo é capaz de se relacionar com o próximo em terPág.15
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mos de relação Eu-Tu, por meio do movimento dialógico no voltar-se para o outro, que “aparentemente trata-se de algo que acontece toda hora, algo banal; quando olhamos para alguém, quando lhe dirigimos a palavra, é com um movimento natural do corpo que a ele nos voltamos” (Buber, 1982, p.56) No cinema de Wenders (1990), quase todos os filmes têm a ver com a percepção e com pessoas, quase todos se ocupam da visão, pois, o olhar, que em muitos de seus trabalhos foi enfatizado, é um olhar que tenta ressaltar esse movimento dialógico do contemplar o tempo eterno e efêmero das relações humanas. Nesse sentido, compreender o universo do homo religiosus como uma realidade sagrada que transcende o mundo é avançar no conhecimento de que o “tempo sagrado, mítico, funda igualmente o tempo existencial, histórico, pois é o seu modelo exemplar. Em suma, graças aos seres divinos ou semidivinos é que tudo veio à existência. A ‘origem’ das realidades e da própria Vida é religiosa” (Eliade, 1992, p.47) Portanto, recuperar o olhar cinematográfico para a paz, em Wenders, é reconstruir uma nova linguagem visual e moral que relacione o sagrado e o diálogo das relações sociais. E que deva partir da percepção da vida cotidiana, da forma como olhamos e interagimos no mundo, na qual precisamos aprender a ver a paz por meio do alimento da vida humana: a Arte.
Asas do desejo (1987) Este filme é a revelação do desejo próprio de Wim Wenders em representar o mundo por meio das suas imagens. É uma representação que usa o espaço cinematográfico de forma inteligente e criativa na busca de uma paz visível em meio à profusão imagética. A paz para o cineasta envolve todos os sentidos, em que Buber (1982) chamaria de um verdadeiro “diálogo genuíno” construtor de um ato ético que envolve conhecer as pessoas e aprender a estar com elas em meio às rachaduras da humanidade. O filme começa com o fundo preto-branco e revela a atmosfera da Berlim dividida. O enredo se passa do lado ocidental da Berlim, no sentido que o telespectador é convidado a percorrer os espaços urbanos pelo olhar dos anjos. A metáfora do olhar, em que o público vê o mundo através dos olhos dos anjos, é uma das mais extraordinárias metáforas de Wim Wenders que apresenta o anjo como filósofo que nos revela o sofrimento do mundo.
A paisagem urbana em suas cenas confere esse valor imagético e simbólico e representa o real no qual “consequentemente, toda e qualquer imagem, ao mesmo tempo produto e produtora do imaginário, passa a ter o caráter de sagrado, devido à sua universalidade” (Laplantine, Trindade, 2003, p.5). Como afirma Eliade (1992), o sagrado é o real por excelência que, no entanto, foi dessacralizado e apresenta-se desprovido de significado espiritual em meio a um mundo multiplicador de imagens e que reverte assim o real significado da arte como promotora da paz. Segundo Debord (1997) a imagem é a principal produção da sociedade atual conformando a realidade e as relações sociais no que chama de sociedade do espetáculo, que diz respeito a relações sociais entre pessoas mediadas pela imagem. Porém, a produção estética como espetáculo se perde no chão das banalidades, deixa de ser arte e consequentemente representa a perda da unidade do mundo e revela o aprisionamento do homem que só consegue ver o seu próprio mundo: Pág.18
O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo o sistema ideológico: o empobrecimento entre o homem e o homem. (Debord, 1997, p.138)
Em Asas do Desejo há a introdução da temática do olhar e as cenas se desenrolam em uma paisagem cinzenta, embora a cor surgisse em determinados momentos, em que os protagonistas principais, os anjos Dammiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) percorrem livremente os espaços da cidade. Destinados a cuidar dos humanos, veem e ouvem a corrente de pensamento do cotidiano dos humanos. E a cidade tem esse papel, para Wenders, o de proporcionar esse diálogo existencial dos humanos, uma das pré-condições para a paz. A câmera que passeia sobre Berlim simboliza o olhar do anjo no papel do espectador que a tudo assiste. Os anjos são invisíveis aos olhos dos adultos, porém visíveis aos olhos da criança, do olhar puro em contraste ao olhar do adulto que nada vê. Eles, os anjos, misturados entre os humanos retratam o cotidiano da vida urbana por meio de reflexões internas dos humanos, a representatividade do distanciamento entre os seres.
Nesta narrativa, povoada de anjos, Wenders descreve a história de Dammiel, um anjo apaixonado deixa sua condição celestial, para o único desejo de amar a sua amada, para juntos construírem uma história, o sentido da vida. E o importante na vida é o ato de contá-las. Como anjo, não conhece os sentimentos, os cheiros, os sabores, daí seu desejo em querer amá-la, de tocá-la e de experimentar simples ações que perderam valor nas relações sociais e que para Wenders são valores importantes para o estabelecimento da paz (Wenders, 1990).
Tão longe, tão perto (1993) Tão Longe, Tão Perto, é sequência de Asas do desejo e, apesar de histórias distintas, apresenta a “metamorfose” dos anjos em humanos. Nele Wim Wenders continua com a temática dos anjos que circulam livremente entre os humanos. Na atmosfera sombria da Berlim cinzenta, Cassiel se transforma em humano pelo único desejo de proteger, bem diferente do anjo de Asas do desejo que se transforma pelo desejo de amar.
O desejo de proteger e o desejo de amar são momentos de felicidade, uma das condições para estabelecer a paz visível na ternura do encontro dialógico:
O que Buber chama de dialógico não é apenas o relacionamento dos homens entre si, mas é o seu comportamento, a sua atitude um para com o outro, cujo elemento mais importante é a reciprocidade da ação interior” (Buber, 1982, p.8).
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Para Wenders (2013), a paz é um ato ético estabelecido entre o Eu-Tu em termos de Buber (2003), ou seja, no espaço que existe entre os seres humanos para perceber a singularidade do outro dotado de sacralidade. É um diálogo que envolve conhecer as pessoas, aproximar-se delas, para assim florescer a paz. No filme a passagem da condição de anjo a humano ocorre na cena que Cassiel salva uma criança de cair do alto de um prédio. E já na condição de humano vê-se com a menina nos braços numa dimensão colorida do filme. O dualismo entre os dois mundos é enfatizado por Wim Wenders pela forma como mescla o preto-branco com o colorido que numa análise rústica expressaria respectivamente a visão dos anjos e dos humanos.
No entanto, por se tratar da questão da imagem na busca de uma paz visível, Wenders redimensiona o sagrado na possibilidade de redescobrir os valores morais e espirituais perdidos nas relações sociais, no intuito de exprimir o mundo por meio da arte, uma arte que evoque imagens para a paz. Portanto, a sua arte cinematográfica em preto e branco simboliza o olhar para aquilo que é reservado ao mundo sobrenatural, próprio da ficção, do desejo de evasão, o que é bastante nítido no personagem Cassiel, da sua crise existencial condenado a observar o cotidiano dos humanos.
Nesse sentido, o filme por meio do olhar do anjo pretende passar a ideia de que a banalização da imagem tomou conta das relações sociais. Uma banalização da arte e perda da sua característica aurática (Benjamin, 1987); da perda da relação Eu-Tu em detrimento de uma relação Eu-Isso, na visão de Martin Buber (2003), onde os valores já não importam mais aos humanos. Talvez, isto resida no fato da grande inflação de imagens eletrônicas que recebemos, que nos “parece existir tão pouca coisa digna de ser recordada que temos que nos perguntar se não deveríamos preferencialmente regressar à velha tradição dos poetas e pintores” (Wenders, 1990, p.117). Para finalizar, esclarecemos que Wim Wenders utiliza muitas metáforas que indicam a banalização da arte, do próprio tempo que se banalizou e onde tudo, sob o império do relativismo, depende de nossas motivações e interesses pessoais e de nossos modos de viver e de ver. Para além da crítica que ele tece, é importante retermos que Wenders nos faz repensar o papel do cinema e da fotografia no cotidiano das nossas relações sociais e perceber as suas potencialidades artísticas como promotores da paz.
Referências bibliográficas AGEL, Henri. O Cinema. São Paulo: Livraria Civilização, 1972. ALVES, Giovani. Cinema como experiência crítica: uma hermenêutica do filme. Tela Crítica, 2004.Disponível em https://renatoathias.wordpress.com/leituras/cinema-como-experiencia-critica-uma-hermeneutica-do-filme/ .Acesso em 20.10.2014. BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica. Arte e Política. V.1. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.165-196. BUBER, Martin. 1982. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva. Pág.22
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Filmografia ASAS DO DESEJO. 1987. De Wim Wenders. Alemanha (Berlim). Cor e P&b. 128 mim. Título original: Der Himmel Uber Berlin. TÃO LONGE, TÃO PERTO. 1993. De Wim Wenders. Alemanha (Berlim). Cor e p&b. 144 min. Título original: In Weiter Ferne, So Nah!
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Moradas eternas, morada dos vivos: um olhar sobre o culto dos mortos no cemitério da Soledade
Helio Figueiredo da Serra Netto3 José Leandro Gomes de Souza4
Ainda que a técnica se desenvolva ao seu mais alto nível a natureza nunca se desvela ao homem. A morte em sua sutileza – ou sem nenhuma – sempre se faz presente e nos espreita em nossa caminhada diária, mas onde ela nos encontrará? Em Belém do Pará, todas segundas-feiras, pessoas de diversos tipos – de classes, cor, idade e credos – peregrinam nos cemitérios da cidade em busca de graças, pagamento de promessas e oração no chamado “Culto das Almas”. Um evento do catolicismo popular com fortes características da religiosidade amazônica (Maués, 1995), onde santos, caboclos, encantados e pessoas comuns se revestem de uma aura de sacralidade que transcende a materialidade e lança mão de uma relação que intermedia o mundo e o além-mundo. Santos populares, exus, novenas e oferendas fazem parte deste tímido, mas não menos importante acontecimento da cidade, e que encontra no famoso cemitério da Soledade uma importante expressão da relação das pessoas com o espaço urbano. Embora ocorra em outros cemitérios da cidade, para este ensaio, direcionamos exclusivamente ao cemitério da Soledade, que é conhecido por se situar no centro da cidade e por se constituir como uma importante expressão arquitetônica, além de ser uma pérola da cultura imaterial local. Nele se encontram não só as imponentes esculturas e mausoléus – com tons da arquitetura neoclássica e neogótica – herdados de um dos períodos históricos mais prósperos, a chamada belle époque, mas também diversas expressões do imaginário popular. Em meio a esses monumentos, no terreno do cemitério, encontramos frondosas e imponentes mangueiras que, junto com a vegetação local, denunciam a presença amazônica na constituição dessa paisagem com tonalidades europeias. A umidade e a opulência solar, tão característica do clima amazônico, fazem dessas esculturas penitentes o arauto do descaso público diante do patrimônio, e sobrevivem – a maior parte do tempo – pela simples solidariedade dos anônimos que frequentam o local. Frente a invisibilidade do Estado, este local sobrevive, em grande parte, de doações de pessoas que reformam determinada lápide em sinal de promessa, bancos para a capela, cruzeiros para a disposição de velas e doações para que os túmulos e mausoléus possam ser limpos – sendo a maioria uma contribuição pública, já que destas pessoas que ali jazem, poucos descendentes são reconhecidos vivos – com exceção de algumas famílias. Mesmo em meio a solidariedade o local padece diante da ação do tempo, o mato toma conta do local e as pessoas precisam, cuidadosamente, se equilibrar para acessar aqueles locais mais difíceis. Mas isso parece não ser um empecilho: pessoas idosas, com dificuldades de locomoção, se impõem diante desses obstáculos para acender suas velas, realizarem suas orações e oferendas. Contudo, o grande destaque não está no esplendor arquitetônico – fruto de nosso processo colonial – ou no descaso imposto pelo poder público. O que desperta a imaginação local é justamente aquilo que não passa pela materialidade. O imaginário local é composto por diversos tipos de manifestações e se constitui Pág.24
como um importante patrimônio “imaginal” da cidade, pois para nós ele está além do “imaterial”. Um notório historiador de nossa região compilou diversas histórias que compunham o imaginário da cidade de Belém e as apresentou em seu livro “Visagens e Assombrações da Cidade de Belém” (Monteiro, 1993), nele estão contidas algumas das narrativas que constituem esse imaginário do cemitério – que perpassam pelos santos populares, os ritos, as orações e as manifestações espirituais. Dentro da teoria de Mircea Eliade o cemitério se constitui como o “centro do mundo”, já que literalmente surge em meio ao “ ‘caos’ da homogeneidade e da relatividade do espaço urbano” (Eliade, 1992. p.17) e torna um veículo de comunicação entre “os três níveis cósmicos – Terra, Céu e Regiões Inferiores” (Idem, 1992. p.24). Em nosso imaginário as regiões inferiores podem ser compreendidas como o mundo dos “encantados”. Os doces “Menino Cícero” e “Menino Zezinho”, a poderosa “Raimundinha Picanço” e a benevolente “Preta Domingas” figuram, entre outros, como ilustres habitantes e como dos mais milagrosos e cultuados santos populares que compõem este local. Placas, velas, novenas, oferendas, fotografias e outros objetos são deixados, em um ritual semanário, em sinal de agradecimento. Muitas são as graças alcançadas – o que faz com que diversas pessoas venham peregrinar nessas sepulturas em sinal de agradecimento ou em tom de súplica – e todos são unânimes em nos contar o poder dessas personalidades. De tom visivelmente sincrético, conjuntamente com as orações são depositadas velas, “santinhos” com orações, placas em sinal de agradecimento, fitas de santos, fotografias, imagens de santos – católicos e das religiões de matriz africana-- e oferendas – como refrigerantes, bombons e pipoca. Destes santos populares, o “Menino Zezinho” (também encontramos no mesmo cemitério outras crianças que se tornaram santos populares, como o Menino Cícero), em especial, ganha um destaque maior, não só por se situar na entrada do cemitério – que o torna mais visível, inclusive por quem passa pelo lado externo –, mas também por possuir ao lado de sua sepultura uma estátua de um menino, que periodicamente é vestida pelos populares com roupas de crianças. O culto ao “Menino Zezinho” é uma das mais frequentados desse cemitério e é comum as pessoas amarrarem, nesta estátua, fitas bem como depositarem sacos com pipocas, doces e refrigerante, segundo os frequentadores do local este é um dos santos mais poderosos e milagrosos. Contam os populares que o menino faleceu por volta dos sete anos de idade por pneumonia e ao ser enterrado ele foi colocado de bruços – para alguns ele foi enterrado vivo e teria tido um longo suplício até sua a morte – e por isso não teria conseguido alcançar o descanso no mundo espiritual. Assim, nos contam que ele apareceu diversas vezes em sonho para sua mãe e pediu para que ele fosse virado em seu caixão. Após algumas semanas tendo o mesmo sonho, a mãe decidiu pedir a abertura de seu caixão para averiguar o ocorrido e encontrou o corpo de seu filho do jeito que ele relatava em sonho. Tendo realizado o seu pedido e começado uma forte corrente de oração, para que sua alma descansasse em paz, diversas pessoas começaram a relatar diferentes milagres que ocorreram em nome do menino, então, a partir disso, começou uma grande devoção ao menino Zezinho. O cemitério se constitui como um enclave em meio ao caos urbano, as buzinas dos carros nos engarrafamentos no trânsito são docemente abafadas pelo canto dos pássaros, pelo som das folhas e dos galhos soprados pelo vento e, principalmente, pela ferocidade das chamas que consomem as centenas de velas espalhadas pelo local. Na entrada do cemitério encontramos um cruzeiro ao qual as pessoas realizam suas orações e dispõem as velas que queimam às centenas e promovem um cheiro e um som peculiar que ajudam a compor a paisagem do local, ao lado das principais sepulturas também encontramos as velas que queimam ao longo de todo o dia. Além do cheiro e do som das velas outros elementos são indispensáveis a esta paisagem, como Pág.25
é comum em grande parte dos cemitérios católicos, as imagens angélicas estão em todos os cantos e nos sugerem a fragilidade desta tênue linha que separa a vida da morte, algumas destas imagens nos apontam para o céu ou surgem como elementos protetivos que nos recordam a função desses seres celestiais. Alguns desses anjos aludem a um tom de súplica e de misericórdia, o que nos faz remeter aos grandes temas do cristianismo – a serenidade presente em suas expressões atua como um tipo de conforto frente à dor da perda. Essas imagens são como um consolo frente ao nosso fatídico destino. Não são meras esculturas de pedras, são aberturas para o sagrado que nos permite perceber que existe algo mais além, que a terra não é o limite. É como “ler o Invisível no visível, a Presença na aparência”. (Leloup, 2006. p. 15) Portanto, as imagens nesta paisagem não são meros elementos do espetáculo (Debord, 1997), ou fatídicos objetos “coisificados”, mas são, para aqueles que ali frequentam, um canal de ligação com o sagrado, tanto nas figuras angélicas que constituem o lado arquitetônico, quanto nas fotografias depositadas pelos devotos nas lápides. São imagens que intermediam nossa relação com a transcendência. Ali, em nada nos lembra as imagens soltas e sem referências que lidamos em nosso dia-a-dia secular e racionalizado. Em cada canto, em cada gesto, o sagrado nos espreita e nos apresenta o caminho que nos aguarda, é como se elas nos olhassem. Leloup (2006) nos diz que é o ícone que nos olha e não o contrário. Os mortos tornam-se íntimos dos vivos, as moradas eternas abrem suas portas e se tornam uma espécie de sala de visita onde os vivos adentram e realizam sus orações e oferendas – em algumas tumbas podemos visualizar internamente esta interação. “Santinhos” com orações, velas, espelhos, objetos pessoais e fotografias são os elementos que intermediam esta relação entre os vivos e os mortos e se fazem presente nessas moradas. Facilmente podemos perceber, em meio aos rituais individuais, uma pequena capela situada no centro do cemitério, castigada pelo tempo e pela invisibilidade pública, onde um padre – que esbanja uma simplicidade visível – realiza ao longo do dia orações do terço e abençoa as pessoas e seus objetos que passam pelo local. Antes do padre iniciar seus rituais as pessoas o aguardam conversando, ou lendo, em um pequeno banco – doado por populares – situado na entrada da capela, pela forma como ele trata as pessoas, se evidencia uma certa intimidade com os populares. Aqui as pessoas peregrinam, conversam, se sentam, leem e desfrutam de um ambiente ameno em meio à dinâmica urbana. Tudo parece diferente do que está lá fora, a velocidade é diferente, a natureza é diferente, nós sentimos que algo nos tornou diferente. É em meio a esta vivência que somos invadidos pelo cheiro das velas que se alastram pelo local e que nos fazem lembrar da nossa fatídica e humana fragilidade diante da morte; é indescritível nossa sensação de paz.
Sobre as imagens fotográficas
Para compor esta paisagem que aqui descrevemos não utilizamos somente o recurso literário, mas também lançamos mão de dois olhares criados a partir da fotografia. Para este nosso projeto é importante que se esclareça que também compreendemos essas imagens como textos, e por isso iremos lhe atribuir um tratamento específico, que aqui iremos esclarecer. Para entendermos um pouco das fotografias é necessário que façamos um breve parêntese para entenPág.26
dermos um pouco sobre sua autoria e importância para este trabalho. Todas as imagens que aqui estão compondo nosso artigo são de mesma autoria que o texto, no entanto, embora o texto seja escrito em conjunto, as imagens, como é de se esperar, foram captadas de forma individual. Assim, para identificar os autores é necessário percebermos alguns detalhes. Após a realização das fotografias, na parte da edição das imagens, cada autor deu o seu toque pessoal a elas, o que diz muito sobre o olhar de cada um. No momento em que preparávamos esse texto e selecionaríamos as imagens, que o iriam compor, percebemos que existia uma clara diferenciação entre elas. As imagens de Helio Netto todas foram editadas em preto e branco, enquanto as de Leandro Souza estão coloridas. Para Helio o preto e branco diz respeito a forma como ele constrói o seu olhar, e como concebe o mundo a partir da variação da escala de cinza, e entende que a poética construída nessa variação de cores contribui para ressaltar as imagens que são evocadas sobre o lugar aqui descrito. Diferentemente de Helio, Leandro Souza optou por deixar as suas fotografias coloridas e dar o seu toque pessoal as imagens, que dizem também sobre o seu olhar e atribuem personalidade às suas imagens. Suas nuances de cor ganham um destaque mais saturado e atribuem às cores azuis e vermelho uma característica bem peculiar que se evidencia nas imagens. Embora importantes, não caberá aqui pormenorizar essas diferenciações de olhares, pois nos estenderíamos demais, todavia, acreditamos que essa diferenciação em relação às cores sejam suficientes para delimitar a autoria das imagens. Neste texto em especial, optamos por dispor as fotos de uma maneira diferente, não as colocamos ao longo do texto, mas deixamos por dispô-las no final, contudo, isso não diminui o valor que buscamos agregar as imagens, não queremos que elas sejam vistas como um tipo de anexo textual, mas assim optamos com o intuito de buscar uma pausa entre a confluência das imagens literárias e as imagens fotográficas. E ainda que tenhamos a intenção de promover essa pausa, não gostaríamos que elas fossem concebidas de forma descontínua, mas que fossem entendidas como complementares e que as imagens que foram evocadas antes, em tom literário, cresçam e adquiram outros contornos a partir da imagem fotográfica. Por opção, as imagens fotográficas que iremos dispor não serão acompanhadas de legendas, diante da construção textual, achamos desnecessário utilizar este tipo de recurso, deixaremos o leitor livre para interpretá-las. A partir de diferentes tipos de imagens buscamos construir uma paisagem específica, que com base em uma perspectiva do imaginário podemos concebê-la como uma paisagem imaginal (Corbin, 1958), na medida em que buscamos nos introduzir nessa lnha tênue que perpassa a noção na nossa experiência de vida e morte.
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A comunidade e seu Anjo: Imagens da devoção a São Miguel Arcanjo na Vila de Beja
Jones da Silva Gomes5
Introdução
Muito se fala nos anjos, afinal, eles compõem imagens ligadas a quase todos os textos sagrados e se apresentam geralmente como os mensageiros dos Deuses ou de Deus. Estas imagens são antes de tudo devocionais e atingem seu ápice, na civilização ocidental, com a arte Sacra, em particular a barroca, expressão da tradição católica, que as fazem chegar às Américas, no seio das comunidades amazônicas, constituindo-se em lugares do imaginário ribeirinho que permitem ler a relação do homem com o sagrado. Na Grécia antiga Hermes era uma espécie de mensageiro dos Deuses, o anjo Gabriel do novo testamento é personagem central no sim de Maria, ele aparece também na condição de revelador a Maomé no Alcorão; o Arcanjo Miguel, é, por sua vez, não só um mensageiro, como também, o chefe guerreiro dos anjos nas batalhas do bem contra o mal. Seu nome aparece em eventos singularizados em Daniel e no Apocalipse6. Considerado defensor das causas justas, destrói Satanás e suas milícias. Nossa investigação perpassa o imaginário dos anjos, em especial a imagem de Miguel e sua singularização na comunidade da Vila de Beja na Cidade de Abaetetuba. Contaremos ao longo deste texto, como se construiu o afeto da comunidade pela imagem do Arcanjo Miguel, explicitando, sobretudo, sua expressão religiosa e artística, caracterizando um estudo das narrativas míticas e performances estetizadas pela cultura popular (ladainhas, pinturas, esculturas, arquitetura, música e poesia). Neste texto, envolvemos três questões norteadoras; a) o cenário histórico e cultural da Vila de Beja e sua expressão nas comunidades católicas da região, b) o imaginário dos anjos como acesso metodológico à compreensão de uma comunidade de fé e sua relação com o sagrado (anjo), c) as experiências no campo da fé e suas expressões na cultura popular; na imagem da Igreja, do anjo, das ladainhas e das procissões. Sou sensível a proposta da Professora Kátia Mendonça (2012) que procura compreender a arte pela ótica da ética, e, deste modo, aproximar-se da noção de religiosidade, tão bem desenvolvida por Georg Simmel (2006). Esta tarefa sinaliza, neste caso, para o lançar-se sob as asas dos anjos – Miguel – observando a comunidade de crentes que se reúnem no diálogo com Ele através da percepção estética. Ora, em se tratando de arte, vai dizer Tolstoi (2002) que a mais simples de todas as artes religiosas é a mais bela, porque vai provocar o contágio, a comunicação e a fraternidade. São nestes sentimentos que uma ideia compartilhada se eleva com estas imagens do divino; movidos que somos pela cura e salvação, empreenderemos na arte de devotar uma busca do belo, ele próprio como manifestação do sagrado revelado aos mais simples pela arte popular – lembremo-nos da aparição do anjo aos pastores de Belém, e entendamos um pouco mais dessa interlocução. Neste sentido, as imagens dos anjos pertencem ao universo simbólico da elevação e enquanto tal são janelas para o sagrado, e dizem muito destas Pág.69
relações interpessoais de caráter religioso.
Vila de Beja: Uma comunidade para Miguel
A cidade de Abaetetuba tem sua formação étnica, econômica, religiosa e mítica na comunidade da Vila de Beja. Recentes descobertas arqueológicas realizadas pelo Museu Goeldi apontam para a presença de comunidades indígenas na região do rio Arapiranga de Beja (LOPES e CANTO, 2009), num período entre 1500 a 1000 anos atrás. O Mapa etnográfico dessa pesquisa aponta para área de influência dos índios Tupinambás. Muito tempo depois da ocupação indígena os frades capuchos de Santo Antônio, após fundarem o Convento do Una em Belém no ano de 1617, percorreram as terras onde habitavam os índios remanescentes da tribo Mortiguar (REIS, 1969) que segundo Reis (1962) migraram da ilha do Marajó para atual vila do Conde e nesse território construíram um aldeamento, e logo depois vieram a se fixar em Beja. A influência dos índios Mortiguais – povo nômade que migrou do Marajó - desencadeou o evento da fundação da aldeia que deram o nome de Sumaúma7. No texto abaixo lemos a narrativa sobre esses índios que, com sua engenhosidade nômade, foram os pioneiros nas terras vizinhas ao Marajó, porto de sua épica chegada. Emigrados dos verdes campos marajoaras, quer pela pressão exercida por tribo maior e mais poderosa, quer pelo caráter nômade do indígena brasileiro, uma tribo pequena, a Mortiguar, localizou-se às margens da baía do Marajó, originando a vila Mortiguar, hoje conhecida por Conde e daí seguindo o curso da praia, vieram para mais aquém, onde os padres capuchos os conseguiram aldear, formando assim um aglomerado que denominaram de Samaúma, hoje Beja, assim batizada pelo padre Francisco Mendonça. (REIS, 1969, p. 23).
Sabe-se que a expressão Mortiguar em tupi-guarani, significa: aqueles homens que andam em igualdade, em bando, e repartem o que produzem como solidários viajantes. Eles são à base da formação dos aldeamentos das vilas do Conde e de Beja, importantes referencias do domínio português da região na época. Por isso, Beja vem a ser uma singela homenagem a cidade portuguesa da região do Alentejo. A aldeia de Samaúma, era conhecida como freguesia de São Miguel Arcanjo de Beja, lar dos frades capuchos de Santo Antônio que lá permaneceram até 1653, e foram substituídos depois pelos padres jesuítas. Estes, por sua vez, chegaram à região através do padre alemão Aluízio Conrado Pfeil, que já catequizava a tribo dos índios Abaetés e passou a desenvolver com eles, plantação de milho e mandioca, além de um pequeno monumento de pedras às margens do rio Arapiranga, com vistas a dar suporte para a atividade da pesca (REIS, 1969). O ano de 1785 na pequena vila é registrado nas memórias do bispo Dom Frei Caetano Brandão: “A vila é pequena, consta de 300 almas, quase todos índios, está bem situada, poucas casas, em cobertas de Pág.70
palha, conforme costume geral dos índios, sem exceção da Igreja (REIS, 1969). Em meados do século XVIII, com a entrada dos colonos e dos negros na foz do rio Amazonas; temos a consolidação do domínio luso na capitania do Grão-Pará. Isto contribuiu decisivamente para a presença de vilas e cidades as margens dos rios e a concomitante mudança na paisagem dominada pelas populações indígenas. Conforme descrito no mapa acima, precisamente no ano de 1753 (LOPES e NASCIMENTO, 2009) as missões jesuítas de Mortiguara, Samaúma, e Jaguarari, situadas à margem direita do curso do rio, formavam aldeamentos. Por ocasião da política de aldeamento e colonização do Marquês de Pombal este retirava dos jesuítas o poder sobre os índios e redimensionava o projeto civilizatório idealizado inicialmente pela coroa. Vejamos a descrição de Gazza: A missão de Mortiguara teve seu esplendor. A vila, em localidade pitoresca, é colocada no belíssimo litoral da baía do Marajó. Esse esplendor teve a duração de aproximadamente um século. Depois o tempo em Conde parece que parou. Aconteceu que em 1758, quando os jesuítas foram expulsos pelas já mencionadas leis de Pombal. (Gazza, 1997, p. 53).
No ano de 1838 conforme relata Baena em seu ensaio ( REIS, 1969), a vila de Beja já contava com 886 moradores livres (índios e mamelucos) e 148 escravos, com 39 casas de palhoças e a Igreja consagrada a São Miguel. Com a partida do padre jesuíta, substituiu-lhe o padre Antônio Ekel, que deu início à construção de um templo concluído em 1874 pelo padre Francisco Manoel Pimentel (Reis, 1969). Começa aqui a história de uma comunidade de fé, que reunirá em torno da imagem do Arcanjo Miguel, elementos típicos de uma devoção católica, marcada pelo sincretismo e pela expressão da comunidade na condução da religiosidade na Amazônia, como vai afirmar o Professor Heraldo Maués (1995). Beja que em 1839 deixou de ser uma vila para se tornar um distrito do município de Abaetetuba, sendo anexada ao seu território, vem completar a travessia dos Mortiguais ao encontro dos Abaetés, fato este que ecoará numa história do afeto a São Miguel. Esta celebração é uma das raras manifestações de Santo no município de Abaetetuba, que leva o nome de um Arcanjo, marcando a trajetória da comunidade e de seu anjo, das asas de um povo que se eleva na imagem da luta do bem contra o mal, da saudação às forças do sagrado e de sua celebração. Festejar o sagrado é uma das características das nossas comunidades encantadas também pelos Santos, tal como, observou Galvão (1955). É sobre esta manifestação estética e religiosa da cultura popular- a festividade de São Miguel de Beja- que iremos notar o movimento contagiante de uma comunidade de fé em sua arte do diálogo com o sagrado. Desta forma, o mesmo Deus que abençoa e protege seus filhos, traz dias bons de colheita e vem em auxilio pelas asas e pela espada do arcanjo, que ao interceder também perdoa.
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Os Anjos e o imaginário religioso na comunidade da fé
O imaginário religioso é simbólico por natureza, e se expressa pela necessidade que temos de nos comunicar com o sagrado, ou de nos religarmos a ele, daí o sentido da “Religião”. Em Martin Buber8 a relação dialógica, própria da religiosidade = conceito que se amplia para além dos dogmas – marca o evento sobre o qual reconhecemos a ação do transcendente em nós, e, fazemos isso, verbalmente, gestualmente, cotidianamente, como também, por meio das imagens e sons. Ora, todas as civilizações não abriram mão da representação do sagrado, e grande parte delas assim o fizeram por meio de imagens angelicais .O cristianismo, influenciado pela narrativa hebraica do antigo testamento foi o que mais aproximou o tema da religião nas artes plásticas e musicais. Quando visualizamos o catolicismo popular e sua miscelânea de Santos e Anjos, da Santíssima Trindade e dos Apóstolos, das aparições de Maria e dos Mártires, das passagens bíblicas e dos mistérios de Jesus, nos damos conta da importância das imagens na condução de uma comunidade de fé. Para Martin Buber (1987 e 2001) a comunidade de fé vem a ser a união de seres humanos em nome de Deus, numa instância viva de realização do mundo messiânico, este gesto que está para além da ajuda mútua e dos laços de sangue, diz respeito à vivência da religiosidade no cotidiano: “Todo espirito autêntico anseia por religião, não por sentenças de fé ou receitas, mas por uma saudação comum a Deus por homens que nesta saudação encontram-se e salvam-se mutuamente na imediaticidade do dar e do receber...”. (BUBER, 1987, p.47) No desafio de entender como se processa o diálogo dos anjos com a comunidade de fé, através do fenômeno do homem religioso, como queria Eliade (2006), é que iremos traçar uma hermenêutica da imagem do Arcanjo Miguel nos textos Bíblicos9. Ora, sabemos que os anjos são seres espirituais, intermediários entre o céu e a terra e comunicam os projetos de Deus, lutando pelos Seus propósitos. São símbolos de ascensão espiritual, com exceção de Satanás que sempre foi descrito como um anjo do mal, decaído. Os anjos aparecem na iconografia artística, sendo presentes, principalmente, na arte da Idade Média, Clássica, Gótica e Barroca. As imagens dos Santos e Anjos nas Igrejas do mundo, marcaram o período da contrarreforma, representando a resistência do imaginário frente ao movimento iconoclasta. Gilbert Durand (1989) analisa os anjos como arquétipos localizados no regime diurno do imaginário, na condição de símbolo ascensional e aponta para o fenômeno da verticalização; as asas, por exemplo, significam elevação e perfeição dos seres, já que: “A fantasia da asa, de levantar voo, é experiência imaginária da matéria aérea, do ar – ou do éter! – substância celeste por excelência...O que a mitologia conserva é a asa do falcão ou do escaravelho, que liga a imagem da potência: querubim, anjo ou arcanjo S. Miguel”(DURAND, 1989, p.93). Para Henry Corbin (1995) os anjos vão atualizar a unidade arquetípica no mundo imaginal, que é o mundo intermediário: “entre lo sensible y lo inteligible puro, que es propiamente el mundo de lo Imaginal, mundo de las ideas de lo individual, es decir, de la actualización de los arquetipos en sus indivíduos”. Aqui a unidade da alma com seu anjo, abre as possibilidades da ascensão espiritual do indivíduo. Este mundo imaginal do qual se refere Corbin, vem ser o encontro do homem. Poderíamos destacar outras características dos anjos. A cor branca, símbolo da pureza e da Pág.72
divindade, a luz quase sempre presente em suas representações, significa a força geracional dos astros principais, tais como, o sol, que ligado está à Miguel, símbolo da justiça que na Grécia foi representado por Apolo. Talvez por isso Miguel apareça nos textos bíblicos como o “anjo principal”, sugerindo que seja o único arcanjo da legião de anjos, já que sua ocorrência sempre se dá de forma singular – ao contrário do Anjo Gabriel (amigo da humanidade). Miguel - que significa “ninguém é como Deus”, ou “semelhança de Deus”, é considerado o príncipe guardião e guerreiro, defensor do trono celeste e do povo de Deus. Fiel escudeiro do Pai Eterno, chefe supremo do exército celeste de Deus. É o arcanjo da justiça e do arrependimento, costuma ser de grande ajuda no combate contra as forças maléficas. É citado três vezes na Bíblia Sagrada. Primeiro no capítulo 12 do livro de Daniel, onde lemos: “Ao final dos tempos aparecerá Miguel, o grande Príncipe que defende os filhos do povo de Deus. E então os mortos ressuscitarão. Os que fizeram o bem, para a Vida Eterna, e os que fizeram o mal, para o horror eterno”. No capítulo 12 do Livro do Apocalipse encontramos o seguinte: “Houve uma grande batalha no céu. Miguel e seus anjos lutaram contra Satanás e suas legiões, que foram derrotadas, e não houve lugar para eles no céu. Foi precipitada a antiga serpente, o diabo, o sedutor do mundo. Ai da terra e do mar, porque o demônio desceu a vós com grande ira, sabendo que lhe resta pouco tempo”. Na carta de São Judas, lê-se: “O Arcanjo Miguel, quando enfrentou o diabo”, disse: “Que o Senhor o condene”. Na maioria das imagens consagradas a São Miguel o arcanjo é mostrado atacando o demônio. Dizem alguns hermeneutas, que o cargo de arcanjo se relaciona com Jesus, quando fala sobre o Ressuscitado – Senhor Jesus Cristo, em 1 Tessalonicenses 4:16, São Paulo diz: “O próprio Senhor descerá do céu com uma chamada de comando, com voz de arcanjo.” A voz de Jesus é descrita aqui como a do arcanjo. Outra caracteristica ligada a Miguel é a de ser um Líder militar. Lê-se então: “Miguel e os seus anjos batalharam contra o dragão. . . e os seus anjos”. (Apocalipse 12:7). De modo que Miguel é o líder de um exército de anjos fiéis. O Apocalipse também se refere a Jesus como líder de um exército de anjos fiéis. (Apocalipse 19:14-16), já o apóstolo Paulo menciona especificamente o “Senhor Jesus” e “seus anjos poderosos”(2 Tessalonicenses 1:7) como os vitoriosos sobre satanás e o imperio do Mal. Portanto, a Bíblia fala tanto de Miguel e “seus anjos” como de Jesus e “seus anjos”. (Mateus 13:41; 16:27; 24:31; 1 Pedro 3:22). Podemos inferir do exposto algumas caracteristicas que serão retomadas nas imagens propularizadas do arcanjo na religiosidade dos moradores da vila de Beja: a) Intermediário entre o Céu e a Terra – intercessor dos homens, b) Guerreiro Celeste que combaterá o Dragão, o exército de Satanás e c) Sinal de Redenção. Estes elementos encontrar-se-ão na base do imaginário do culto aos Santos católicos, que por sua vez, reunirão em torno de si, as comunidades de fé que logo expressarão em imagens a história de uma devoção. Voltando a Buber (1987) notamos que o fenômeno da comunidade de fé deriva do mesmo sentimento de vinculo total com o sagrado que Corbin descreve com o nome de mundo imaginal. Mas, Buber não se limitará ao plano do imaginal e definirá tais comunidades no âmbito do aqui agora, das micro relações sociais concretas. Por isso, a imagem do sagrado vem ganhar visibilidade nas ações humanas com o nome de fraternidade: Se a união entre os homens acontece sobre o signo da terra, surge a comunidade da vila que administra a solo comum; se a união acontece sobre o signo do trabalho surge a cooperativa que se dedica à obra comum; se a união acontece sobre o signo da ajuda, Pág.73
surge a camaradagem que aspira em comum à realização pela educação mútua; se a união acontece sobre o signo do espirito, surge a fraternidade que evoca em comum o absoluto, o proclama e o celebra (BUBER, 1987, p.47)
Pensar o imaginário dos anjos pelo prisma da comunidade de fé, numa significação que gira em torno de uma imagem central – o sagrado, ainda é um desafio para as Ciências Sociais e Humanas, já que a base dessas Ciências do Espirito, como queria Dilthey (1989), não conseguiu superar os modelos materialistas e cartesianos, que as reduzem a uma hermenêutica da suspeita. Portanto, trata-se aqui de desenvolvermos um diálogo entre a comunidade e aquilo que eles consideram como sendo seu sagrado. Registrando os indícios do sagrado, que se encarna na história e na cultura pelo homo religiosus.
Notas sobre a devoção à São Miguel Arcanjo da Vila de Beja – PA
O culto aos santos católicos é comunitário em forma e conteúdo, embora, seja também pessoal. Emanuel Mounier (1967) vem nos ajudar a entender este personalismo comunitário e cristão, que muito influenciou a América Latina em método e reflexão no interior das questões postas pela Igreja através das suas CEBs. Mas, foi nas práticas devocionais, que remontam aos primeiros séculos do cristianismo na região, que este modelo já se institui. As comunidades católicas resultarão de um sincretismo (colonos, padres, Índios, tapuias e negros) que foi sendo sucedido por gerações, uma base social para os cultos ganharem ilhas e rios, centros e colônias, bairros e vilas das cidades ribeirinhas. O professor Heraldo Maués em sua tese: “Padres, Pajés, Santos e Festas” (1995), aponta para um sincretismo religioso impulsionado pela expansão da fé cristã na Amazônia, tal como, nas práticas religiosas de curandeiros, pajés, padres e das devoções aos santos. Ora, é indiscutível que o imaginário cristão influenciou em muito as culturas ribeirinhas; contudo, a Igreja se via obrigada a conviver com outros tipos de crenças. Ora, isso tudo não se deu sem conflitos ou segregações, por outro lado, ajudou a reorganizar os laços de comunidade. Uma dessas expressões é demonstrada na tênue separação entre o sagrado e o profano, entre processos mais ou menos romanizados e elementos indígenas de pajelança, traduzindo novos rumos aos processos religiosos na Amazônia, que segundo Maués são homólogos: santificação e encantamento – ambas refletem sobre os lugares sagrados e de seus habitantes Divinos.
Os processos de santificação e de encantamento são homólogos, como homólogos são essas entidades que ocupam posições simetricamente inversas no mapa cognitivo e no esquema cosmológico dos praticantes. Todavia, a maior relevância dos Santos no esquema cosmológico das populações rurais do Salgado não é sem razão e não pode ser explicada somente pela consideração de hegemonia que o catolicismo exerce na região. (MAUÉS, 1995, p. 258).
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A matriz imagética dos mitos – que Eliade (1992) vai entender a maneira de modelos, são para nós: a). As imagens dos Santos – modelo romanizado – tendo sua expressão máxima na arte sacra no ápice da Idade Média. b) A imagética da Natureza pelo modelo dos encantados – seres da floresta e do fundo dos rios – que causam grande fulcro na oralidade ribeirinha, marca dos lugares entre rios das margens das cidades da Amazônia. Resultado disso vem a ser uma orgânica relação de comunidade reordenada pelos primeiros frades até a contemporaneidade, base da tentativa de fazer uma Igreja ainda mais próxima dos pobres e humildes, por isso, a disseminação de missões, congregações, prelazias e dioceses, pelo trabalho de jesuítas, capuchinhos, franciscanos e depois xavierianos, na extensão de cidades à beira dos rios, que vem à tona uma história de fé que culminará nas atuais comunidades. Ora, o território destas comunidades era um entre os obstáculos à evangelização, já que em Abaetetuba trata-se de 72 ilhas na região e 36 colônias. Assim, com essa fragmentação os padres quase não se fixavam, foi o que, paradoxalmente, permitiu a condução do catolicismo popular pelo protagonismo das comunidades de fé da Amazônia. Os ecos dessas trocas simbólicas ouvem-se até hoje na expressão: “ Nós vamos fazer a Festa do Santo” ou “Nós Vamos construir a Igreja”, ou “Nós Vamos fazer as Orações”. Outro elemento marcante na forma de devoção será o recurso ao imaginário da festa como parte da religiosidade praticada nas margens dos rios e estradas, muito presente nas celebrações de Santos padroeiros do interior das cidades ribeirinhas, o que tende a diminuir as fronteiras entre o sagrado e o profano, resultando daí o protagonismo da comunidade. O ritual geralmente segue um roteiro: reza-se com ladainhas, depois guarda-se o santo e, começa-se a música, com comidas e bebidas, geralmente a família anfitriã é responsável por toda organização e custeio. No conto “Artesão de sonhos” de Neuza Rodrigues (2002), é possível olharmos para esta comunidade ribeirinha de Abaetetuba atravessada pelo imaginário da festa de Santo: Quando a cara do sol avermelhou, derramando sangue sobre a linha do horizonte, e uma revoada de papagaios barulhentos procurava acomodar-se nos galhos das seringueiras mais alta da margem do rio, o pipocar dos foguetes, tombou Ave-Marias sobre as águas do Campopema, anunciando que o santo estava chegando. Era hora de abreviar os afazeres: varrer o salão, colocar rosas no oratório, enfiar as velas nos castiçais de barro, correr para o porto e encerrar o banho em três mergulhos. A distância da procissão era medida pelo barulho dos fogos, que já rebentavam na boca do rio Abaeté. (RODRIGUES, 2002, p. 47-48).
A festa é um interessante ponto de partida para se pensar a devoção aos Santos no Brasil. Celebrar o Santo consiste numa arte de fazer. O “Nós vamos Fazer” – expressão comum para essas ocasiões que significa estar disponível a realizar o festejo. Michel de Certeau (2003) compreende estas artes de fazer como práticas do homem ordinário visto em sua forma produtiva e inventiva. Vai dizer Certeau: “Essas maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produPág.75
ção sócio cultural” (CERTEAU, 1994, p. 41) Esta reapropriação diz respeito à realização cotidiana das práticas culturais que lhes são próprias, no alcance de uma forma de percepção do mundo. Por exemplo, conduzir uma tradição como a festa de Santo nas comunidades amazônicas; no limiar do mundo contemporâneo dinamizado pela ausência de fé e pelas e imagens várias, faz destas comunidades um cosmo de trajetórias que congregam táticas de resistência, o que garante a imagem do local no mundo global. Portanto, dificilmente não associamos a Vila Beja à imagem de São Miguel, isto significa que os Santos têm papel fundamental nas comunidades, são o centro da imagem do sagrado no lugar. Ora, se a Cruz nas Américas foi o resultado da luta pela hegemonia dos símbolos sagrados, mencionamos aqui Gruzinski (1991), ao mesmo tempo, as festas de Santos Populares (GALVÃO, 1955), como resultado sócio cultural deste processo explicado por Maués (1995) são ainda sinais do sagrado ligados ao catolicismo nas práticas religiosas e nas imagens coletivas das muitas comunidades como Beja. Os cultos são notadamente lugares da relação: santo e devoto-comunidade. A comunidade de fé vista nas ladainhas, novenas, ex‐votos, santinhos, promessas, orações, cartazes, simpatias, visitas, ofertas, são expressões dos vínculos e emoções que envolvem a imagem de São Miguel. O arraial na vila de Beja, por exemplo, é caracterizado por práticas culturais festivas atreladas ao sagrado, todo o entorno da Igreja se congrega aos símbolos religiosos numa relação profícua com o profano. Missas, manifestações artísticas, entretenimento: fogos, brinquedos, artesanatos, comidas típicas; marcam um ciclo de homenagens aos Santos. Em Beja essas experiências são seculares e contribuem para a reunião da comunidade, são sinais de uma emoção compartilhada voltada para agradecimentos, pedidos, sonhos e esperanças, elas aparecem nas experiências com: a Igreja, a imagem do Anjo, as ladainhas e as Procissões, sendo, por isso, percursos do imaginário que se materializam nas práticas culturais da comunidade, reatualizando um fazer, uma crença, um ato de fé, uma resistência.
a) Uma igreja para Miguel
As catedrais (Igrejas Cristãs) são para os católicos do mundo todo espaços da fé, locais da manifestação do Cristo e adoração de seus mistérios. Para Mircea Eliade (2002), elas dizem respeito a um simbolismo do centro, onde: “O centro representa um ponto ideal, pertencente não a um espaço profano, geométrico, mas ao espaço sagrado, e no qual pode-se realizar a comunicação com o Céu ou o inferno; em outros termos, um Centro é o lugar paradoxal da ruptura dos níveis, o ponto em que o mundo sensível pode ser ultrapassado”. (ELIADE, 2002, p. 72) Neste sentido, as Igrejas e todos os outros objetos presentes na eucaristia e nas imagens, são hierofanias – objetos (pontos fixos) que revelam outra coisa, a presença do outro mundo nas imagens do sagrado. E, se sagrado e profano são duas modalidades de experiências, eles sintetizam fronteiras do agir ético. A consagração de um lugar em todas as culturas religiosas, diz respeito a repetição da cosmogonia, surgimento de Pág.76
uma determinada crença onde torna-se possível a comunicação (abertura) ao sagrado. Desta maneira: “O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”, e, acrescenta “Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso, a manifestação de algo diferente – de uma realidade que não pertence a nosso mundo – em objetos que fazem parte do nosso mundo natural, profano” (Eliade: 1992, p.15). Olhar pelo “ponto fixo” é tentar ver a Igreja de São Miguel Arcanjo da Vila de Beja, como expressão de um simbolismo central gerado nas imagens da comunidade, onde o sagrado faz sua história pela devoção. A comunidade da fé que se reúne no centro da Igreja, leva-nos ao limiar do acesso a compreensão da vida religiosa em sua particularidade, naquilo que ela desvenda no campo do vivido, como expressão de um diálogo. A poesia conectada que está com este diálogo, é um instrumento de percepção desta imagem num movimento que se consubstancia nas relações sociais, da qual o poeta Adenaldo Cardoso (2002), também se coloca presente.
Cheira à poesia, pelos ares desta terra. Voam aves Marias Quando o sol no rio se enterra Correm montarias Guajará não te espera Morre mais um dia Na Igreja o sino berra. (CARDOSO, 2002, p.07)
Do ponto de vista da arte, este diálogo está eminentemente relacionado ao registro do turbilhão de imagens sacras. Os Santos que no caso de Beja – inicialmente foram sendo trazidos por padres capuchos e jesuítas – que ocuparam a região do ano de 1617 a 1653, e, logo depois, no século XVIII por colonos e agentes do Estado, e tomaram proporções fantásticas no interior dos rios da Amazônia, constituindo o que Baczko (1985) chama de comunidade de imaginação (BACZKO, 1985). Do templo original para adorar Miguel Arcanjo, temos o registro de sua reforma em 1874, ao estilo Barroco e traços arquitetônicos bem comuns à província do Grão-Pará. Neste mesmo estilo veremos a Igreja de São Francisco em Vila do Conde, de São João Batista na cidade Velha em Belém. Muito ilustrativa para quem observa de longe, fica a cúpula de Zinco que abriga os dois sinos – um mediano e outro pequeno, cujo antigo tocador10 morreu recentemente, a cúpula também conta com quatro janelas laterais e, em seu interior, uma estrutura de madeira com alto falantes, que atualmente anunciam as missas, encontros, homenagens e convites. Pág.77
No extremo da cúpula que é geometricamente estilizada pela cruz transparente, tudo é sustentado pelas colunas, que vão do chão acima numa larga espessura, ao mesmo tempo, que demonstram a simplicidade dos traços que logo subtraem um singelo traçado barroco em suas extremidades. Atualmente a fachada é pintada em cor de pêssego e cerâmica, a sua frente é possível identificar três grandes janelas com vitrais que representam as cenas bíblicas do Arcanjo Miguel, e logo abaixo, três largas portas em madeira, que dão acesso ao seu interior. A catedral tem mais de quatro séculos, sendo a mais antiga do município de Abaetetuba, segundo alguns moradores e os próprios documentos históricos; ela possui um sino secular, além de uma belíssima praça à sua frente com jardins e a imagem de São Miguel esculpida em bronze. É o que nos mostra a fotografia registrada por ocasião de trabalhos do grupo coletivo fotográfico11, que vem no decorrer do ano de 2015 registrando as construções de Igrejas católicas ao longo das margens do município de Abaetetuba. A Igreja é acompanhada de uma casa paroquial, ao lado as casas de moradores da rua São Miguel, com lindas mangueiras centenárias, a praia por si só já é um atrativo natural. O olhar pode também alcançar facilmente o coreto histórico, a quadra de esporte, a escola e o cemitério, que demarcam o centro histórico da vila. Esta outra imagem retirada do altar no interior da Igreja, revela as recentes modificações que houve, como no piso e nas paredes que ganharam modelagem nova. As pinturas das imagens do evangelho ao longo das paredes e as imagens de Santos em madeira, juntamente com flores adornando o altar e bancos também em madeira, dão um colorido a cena eucarística que se ritualiza à medida que vamos compreendendo o sentido e os lugares dos objetos. A Igreja é também a única a abrigar duas imagens de São Miguel em estilos diferentes, mas do mesmo período, ambas vindas de Portugal, uma ficando fixa no altar, e outra sai de ano a ano nas procissões de devoção ao santo. No ano de 2015 reconhecendo toda a importância histórica para a comunidade católica da região, a Vila de Beja transformou-se em Paroquia sobre a direção do Padre João Raimundo. Fato que vem congregar as várias comunidades ribeirinhas das ilhas e estradas próximas à vila, tais como: São Sebastião, São Francisco e Nossa Senhora de Nazaré. b) A imagem de Miguel: no limiar do fantástico
O culto a imagem do Arcanjo é muito antigo no Oriente e se deu pela colonização grega e influência bizantina, passou para Itália, onde é venerado desde o século V, no célebre Santuário do monte Gargano ao Sul. A gruta onde se deu a aparição do Arcanjo a um grupo de pastores, no dia 8 de maio de 495, foi transformada em Igreja, sendo um dos mais antigos santuários de S. Miguel, juntamente com a célebre abadia do Mont Saint-Michel, na Normandia, fundada em 709, que se tornou lugar de peregrinação. A festa a S. Miguel – a que a última reforma litúrgica associou S. Gabriel e S. Rafael – desde o século V é comemorada no dia 29 de setembro, data em que o papa S. Leão Magno dedicou a Chiesa di San Michele, em Roma em sua homenagem. Mas, nossas influências vêm de Portugal, já que as imagens da Igreja de Beja têm sua origem lá. As imagens originais são obras sacras em madeira, trazidas de Portugal, uma delas fica permaPág.78
nentemente no altar e foi confeccionada no século XVIII, mostram as duas representações de São Miguel. Na imagem abaixo o santo é visto como pescador de almas, trajando uma túnica azul clara um manto vermelho e tendo em uma das mãos a lança que perfura a boca do diabo; na outra uma balança onde pesa as virtudes e os defeitos das almas. Os principais atributos de S. Miguel aparecem na imagem, a balança símbolo da justiça, segurada em uma das mãos e a espada na outra, que representam sua liderança na milícia celeste, além de uma túnica curta ao longo dos braços que combina visualmente com sua espessa armadura. As suas asas, ao fundo, demonstram sua qualidade de ser espiritual, em cor de vinho, amarelo e azul claro, destoa das representações usuais em cor branca presente na imagem mais popularizada. A arte sacra difere da arte religiosa, por sua iconografia e singularidade já que foi uma arte desenvolvida para as adorações, com funções ecumênicas e pedagógicas. Neste sentido o anjo é apresentado como um dignitário da corte dos anjos, o diabo é o dragão lançado por terra e dominado pelo pé do Arcanjo. Por isso, Miguel está no imaginário como protetor e padroeiro dos esgrimistas, policiais, comerciantes, merceeiros, droguistas, farmacêuticos, fabricantes de balanças, etc. Invocado para uma boa morte. A outra imagem de São Miguel, a peregrina, encontra-se na casa paroquial e sai somente no Círio dedicado ao santo, que veremos logo abaixo. É talhada em madeira, o rosto cheio e rosado, com cabelos bem pretos e lisos em traços indígenas. Sendo a imagem mais popular, é adornada com cores como o vermelho, o azul celeste e o verde no manto, além do branco das asas que se destaca em um contraste com o preto que simboliza o mal. Nela o anjo se apresenta como o guerreiro em sua cena clássica na qual vence o dragão infernal.
c) As ladainhas: arte de orar nas noites de Beja.
As ladainhas compõem parte de um cerimonial dedicado a um Santo, são importantes registros estético-cultural do imaginário religioso, e convidam sempre a pensarmos as práticas culturais dos ribeirinhos da Amazônia que hoje, é certo, entram em um processo de desconhecimento. O padre João Felipe Bettendorf, autor da obra intitulada “História” (REIS, 1969), em um relato específico, menciona o processo educacional implantado pelos jesuítas em vista de iniciarem os índios na catequização a partir do Nheengatu12. Nesse período na missão de Sumaúma, os índios foram catequizados tanto pelos padres capuchinhos quanto por jesuítas e foram violentados em sua língua materna. Por outro lado, não só assimilaram, mas imprimiram ritmos e linguagens próprias, que foi se conformando na triádica raiz da cultura amazônica. Estes encontros comunitários percorrem as casas dos moradores, que recebem o santo no dia marcado, como forma de agradecimento e pedido de graças. As ladainhas ainda fazem parte da tradição oral da vila, constituindo uma resistência cultural no âmbito do catolicismo popular, contudo, é vista em raras apresentações, e de certa forma não mais feitas à maneira dos antigos frades e caboclos, quando: “A ladainha consistia de três capitolões e os rezadores que respondiam atrás em coro e método gregoriano. No início da ladainha tinha um Deus Dominó Jotório ô Deus, Senhor, dorminé, gloria ao padre, é, do filho, é do espírito san-na-to” (BETTENDORF apud GAZZA, 1997 p. 97). Pág.79
Por outro lado, o latim que os “caboclos” conseguiram aprender ouvindo os velhos frades capuchinhos que se instalaram na região ainda é reproduzido em algumas ocasiões. Dos poucos grupos de ladainhas na cidade de Abaetetuba, permanecem hoje o de São Sebastião e o de São Miguel Arcanjo da Vila de Beja e outras comunidades de ilhas e colônias. Como dissemos está prática ligada inicialmente a catequização, foi sendo abraçada pelas comunidades e popularizadas em encontros que antecedem aos festejos de santo, são práticas de oralidade e musicalidade, teatralizadas com fins de devoção. Os músicos e cantadores de ladainhas são fundamentais neste processo, compõe, nisto também, o grupo de promesseiros devotos (que levam os donativos e ofertas) e, geralmente, a família que receberá o Santo. A comunidade passa a chegar por volta das dezoito horas, num passado próximo o candeeiro e as lamparinas faziam parte do cenário, velas ou mesmo motor a diesel, hoje em algumas comunidades como Beja a energia elétrica já é uma realidade. O ritual das ladainhas começa com música e orações feitas em latim vulgar em homenagem ao santo – em alguns lugares – depois segue a guarda do santo no oratório, a refeição é oferecida aos músicos, depois aos convidados e, somente ao final, à família. A antropologia insistentemente nos relatou rituais religiosos feitos pelos nativos acompanhados de consumo de bebidas e alimentos. O poeta Adenaldo Cardoso, por sua vez, atrela novamente este desfecho, chamando atenção para o gosto de rezar que agradece a colheita de sempre, que dá vida um ciclo alimentar marcado pela vigência da boa colheita – a base de manufaturados como a farinha e os frutos da floresta como açaí, que vai bem com qualquer peixe e carne silvestre, razões de ser da dieta camponesa nestas margens, ouçamos: Aqui temos farinha Procissão e ladainha O povo gosta de rezar Rezemos pra nossa senhora Jesus a toda hora Pro açaí não acabar. (Adenaldo Cardoso)
Nos últimos anos a perda das referências de músicos e oradores dos antigos grupos de folia e ladainha, como os de São Miguel de Beja13, causou impacto as ladainhas cantadas nas casas – no caso de Beja ainda assistimos na casa de D. Doralice e D. Neide. Ou em festejos de santos no campo – ramal do Abaetezinho na rodovia Dr. João Miranda Abaetetuba – que a exemplo de Beja também adora a São Miguel. A ladainha acontece geralmente na casa do Sr. Ângelo Barreto Palheta (70 anos) que a faz em latim vulgar a 50 anos. Hoje parte das ladainhas passa a congregar outras homenagens, e ocorrem nas próprias Igrejas, tais como, os ritos do rosário e das novenas. Tanto que as adaptações foram acontecendo, quando se retirou o latim vulgar, e os versos foram sendo estilizados à maneira de outras homenagens de santos, o que provocou também a retirada dos instrumentos Pág.80
originais de acompanhamento, como o banjo, a tuba, o tambor, o cavaquinho e o violão. Na ladainha abaixo, que consta no folheto de cantos do Ano de 2015 da festividade de São Miguel, percebemos essas modificações que de certa forma representam rupturas com a tradição.
Ladainha de São Miguel Arcanjo
Senhor, tende piedade de nós. Jesus Cristo, tende de piedade de nós Jesus Cristo, ouvi-nos Jesus Cristo, atendei-nos Deus pai celestial, tende piedade de nós Filho redentor do mundo, tende piedade de nós Trindade Santa que sois Deus, tende misericórdia de nós, Trindade Santa que sois Deus, tende misericórdia de nós. São Miguel, Santo dos humildes, espelho dos vencedores, terror dos infiéis. São Miguel, amigo dos lutadores, defensor da inocência, vencedor do dragão. São Miguel, alegria da corte celeste, patrono de seus devotos, restaurador da paz. São Miguel, Luz da comunidade, Santo dos promesseiros, médico dos enfermos. São Miguel, príncipe celestial, príncipe das batalhas, príncipe dos vencedores. São Miguel, lutador invencível, vencedor das injustiças, vencedor das malicias. São Miguel, protetor dos devotos, que lutou contra os demônios, vencendo os infiéis. Todos: Rogai por nós Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo (3 vezes) Todos: Perdoai-nos Senhor Todos: Ouvi-nos Senhor Todos: Tende misericórdia de nós. Oração Final
Ó piedosíssimo Deus, que ilustraste com inefáveis esplendores, vosso servo São Miguel Arcanjo, concedeinos benigno, que por sua intercessão, alcancemos eficazmente, o que cheio de bondade e confiança, vos pedimos por seu merecimento. Por Cristo nosso Senhor. Pág.81
Amém. São Miguel Arcanjo, padroeiro da nossa comunidade. Todos: Rogai por nós.
A novena é outro evento dentro da celebração ao Santo, e, diz respeito a um ritual litúrgico oferecido pela comunidade, geralmente seguida de orações, hinos de louvor, leitura das passagens do evangelho, comentários e pedidos, compreende grande parte das noites dos festejos do santo, dão-se nos espaços da Igreja ou em casa de moradores. Vejamos um hino de louvor14 feito pelos moradores, que é cantado tanto na novena como na procissão:
Hino de Louvor
Irmãos devotos louvemos ao Arcanjo São Miguel Que lutou contra o demônio e venceu o infiel. 1- Satanás no céu querendo ter acento igual a Deus pôs em campo sua tropa, de malvada ação deu. Deu sinal, tocou trombeta, pôs-se em forma de batalha; levantou a bandeira que tinha escrito “fornalha”. 2- No primeiro batalhão vinham só os cavalistas, altos, néscios,charlatões e trapaceiros legistas. Vendo isto São Miguel ergue-se com brevidade e clamou com energia dando ciência e verdade. 3- O demônio já pensava ser senhor do céu e da terra. Tendo por si sua tropa fez com que Deus fizesse Guerra. Satanás precipitou-se lá do céu abaixo ao chão. São Miguel o amarrou com forte e duro grilhão.
Ora, os elementos imagéticos contidos nestes versos musicalizados, recorrem no geral ao imaginário do Arcanjo, sobre o qual nos debruçamos no início deste texto, o elemento da luz atrelado à condição de realeza que transfigura em São Miguel como o príncipe das batalhas, o faz reconhecer como protetor da comunidade, promotor da justiça e padroeiro das almas.
d) A procissão: nas asas do Arcanjo
Procissões são práticas culturais recorrentes nas comunidades das cidades ribeirinhas da Amazônia. Acompanhar o santo no dia de sua consagração é um gesto de afeto e respeito, ao mesmo tempo, que se refaz simbolicamente os mistérios da fé e se reúne a comunidade em torno de festejos, brincadeiras e orações. Por isso, a procissão é outro elemento simbólico da adoração ao Santo, é o desPág.82
locamento sacrifical do sagrado no mundo profano, assim como, foi o percurso de Jesus para a Cruz; percorre-se com o Santo o caminho que leva ciclicamente ao mesmo lugar do sagrado. O festejo que acontece no dia 29 é o final de um ciclo de adorações, preces, sacrifícios, sonhos e partilhas dos moradores da vila. Nele pode-se intermediar uma paisagem de respeito ao sagrado, nas cores, cheiros, movimentos, objetos, ritmos e traços. Como também o comportamento festivo que brota no cotidiano da praia. Tudo isso não passa despercebido aos olhos do poeta que registra este clima ancestral: Rola marola na beira, desafoga o igarapé, o velho coqueiro se embala ao vento que vem do mar, o teu perfume exala cantigas de Mortiguar, o estalo do carvão no preparo do café, o beiju de tapioca o beijo dessa mulher. Bem cedinho, bem cedinho, chega gente de Abaeté, vai passando passeando procissão de São Miguel. (Adenaldo, CARDOSO)
Ao longo do período que antecede a festa de São Miguel, muitas visitações e homenagens vão sendo feitas pelos moradores, como a tradicional homenagem do mastro que é colocado na Praça, que ocorre dias antes, sempre saindo da casa do senhor Manuel Sena. Atualmente, agregou-se a essa tradição o Auto de São Miguel, também como espetáculo estético-religioso, envolve moradores antigos, jovens, adolescentes e criança. Por outro lado, da mesma forma que a Igreja, a imagem peregrina é um modelo que garante a renovação do sacrifício e da devoção. A imagem que nos referimos acima é aquela que vem às ruas a cada setembro realizar sua função simbólica e sociológica. A procissão (Círio) vem a ser, então, o principal evento de todos os já registrados em homenagem ao Santo. A alegria de termos encontrado a fotografia abaixo, registro da procissão de 2009, quando da passagem do Santo na rua principal da vila, que lembra a experiência mítica da primeira devoção, fez-nos partilhar da mesma emoção dos moradores. Afinal, Miguel é conhecido na vila como um justiceiro, capaz de transformar as atitudes humanas e sua presença sempre causa admiração. Aqui se eterniza na mão do fotógrafo, a reatualização do mito pelas ruas da pequena vila.
Vislumbramos, então, a epifania de Miguel na comunidade de Beja, envolto em muitas cores, numa emoção coletiva que se torna festiva (ALVES, 1980). A fotografia em si, já é uma “festa Pág.83
do olhar”, o que vem expressar o colorido de uma fé ribeirinha recortada pela paisagem natural em adereços ao sagrado, nos gestos dos devotos que levantam as mãos e baixam as cabeças em sinal de respeito, sugere-se aquele pedido em silêncio, ou aquela graça alcançada. A musicalidade muito presente na procissão através dos cantos, onde se aglutinam os sons das bandas musicais ou aparelhos eletrônicos, que se misturam as orações e preces ao santo. O nome de São Miguel é constantemente lembrado, a cada estação (parada de homenagens em casas ou órgãos públicos) vamos ver se aglomerarem pessoas devotas e outras curiosas, logo, a sequência de fogos de artifício que rompe nos céus, avisa que é manhã de domingo, que o Santo se desloca e vai ao encontro dos doentes e devotos. Podemos perceber que a fé atrai as pessoas pela alegria de simplesmente se encontrarem e tornarem isso um compromisso, e isto se reflete nas palavras do Sr. Adamor de Lima15 apud (JUNIOR, 2003:51): “a gente faz a devoção, né! Caminhar no Círio é também uma devoção, né! Ora o cara tá participando para alcançar uma graça também, né! As caminhadas. Eu tenho me sentido bem na parte de tocar tanto pra procissão como para outros eventos, a gente toca satisfeito mesmo que ganhe pouco”. Finalmente destacamos que o fenômeno devocional atrelado ao imaginário do Arcanjo São Miguel, contribuiu no compartilhar de uma fé que segue por gerações, entre os campos, rios e florestas, bem como, nas margens da cidade ribeirinha de Abaetetuba, através dos gestos estetizados pela cultura, que tentamos pontuar acima. Nisto, descrevemos a manifestação de uma comunidade de fé que se encontra, faz orações, celebra, festeja e se reinventa a partir do diálogo com o sagrado. Está é a marca de um catolicismo ainda vivo na Amazônia, que ressurge no limiar do século XXI a despeito de todo desagravo as imagens dos Santos, na ofensiva iconoclasta e seu mundo desencantado. Lição tomada por estas comunidades ribeirinhas, de homens e mulheres simples – a exemplo dos moradores da vila de Beja – que são os testemunhos de uma devoção que não se quer esquecida, mas, viva pelas asas de Miguel.
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Andrei Tarkovski e o Apocalipse Kátia M.L.Mendonça
Da imagem e do símbolo Pretendemos introduzir uma reflexão, melhor dizendo, abrir uma discussão sobre as possíveis conexões entre Henry Corbin e Andrei Tarkovski. Embora em campos distintos, ambos apresentam domínios muito extensos, transitando entre a arte, a teologia, a filosofia, e a antropologia. Suas hermenêuticas são espirituais, rompendo com as tradicionais concepções ocidentais de campos separados entre conhecimento e experiência espiritual. Suas obras são um desafio tanto para uma sociologia da arte quanto para uma antropologia do imaginário. Neste sentido, a busca de conexões entre ambos se apresenta frutífera para uma penetração no universo do cinema de Tarkovski e da sua concepção de imagem. Usando o termo imagem em contraposição a símbolo, Tarkovski sempre se opôs fortemente a qualquer interpretação simbólica de seus filmes. Para ele tentar reduzir a imagem ao símbolo seria como fechar as portas de acesso ao infinito e, portanto, à expressão do artista. As imagens, corpos e objetos que surgem em seus filmes não buscam representar algo, mas expressar o tempo e espaço vividos pelo próprio diretor em suas narrativas. Com ele já não estamos diante do espaço euclidiano e tampouco do tempo linear, mas de um tempo e espaço vivenciados espiritualmente pelo diretor; um tempo e espaço que já estão lá, aos quais a película foto-cinematográfica apenas confere expressão material, os esculpe como lembra Tarkovski. Neste sentido, a hipótese condutora desta reflexão é que a imagem em Tarkovski nos abre para algo semelhante ao que Corbin designou por mundus imaginalis. Corbin mergulhará no universo místico islâmico em particular de Ibn’Arabi e Sohrawardi. Sua hermenêutica nos propicia a construção de um horizonte que nos aproxima (sempre e apenas isso: nos aproxima...) da compreensão da obra de Tarkovski. A via de aproximação entre ambos será a concepção de mundo imaginal. Mas, antes de tudo, tentemos precisar os termos símbolo e imagem que são utilizados distintamente por Tarkovski e por Corbin, mas que conduzem ao mesmo campo: o mundo espiritual, a realidade suprassensível. O mundo imaginal de Corbin diz respeito a uma realidade infinita que extrapola todas as tentativas de redução intelectual. Corbin se afasta inclusive da palavra imaginário, utilizada pelos seus companheiros do Círculo de Eranos, Mircea Eliade e Gilbert Durand (este último a defende com vigor sob uma perspectiva marcada pela instauração de sentido (DURAND,1995)). As reservas de Corbin à palavra se dão pelas ambiguidades que carrega o termo que “prejuzga la realidad alcanzada o por alcanzar, revelando la impotencia ante ese mundo a la vez intermedio y mediador al que denominaremos mundus imaginalis” (CORBIN,1993, p.13). No sufismo de Ibn’Arabi Corbin identifica um mundo com três dimensões: o universo apreensível pela percepção intelectual, o universo perceptível pelos sentidos e, entre eles, um mundo intermediário, o mundo imaginal (mundus imaginalis), mundo das ideias-imagens, das figuras-arquétipos, mundo que é real e objetivo, tanto quanto o mundo inteligível e sensível, “constituido por una materia real y dotado de una extensión real, aunque en estado sutil e inmaterial respecto a la materia sensible y corruptible” (CORBIN, 1993, p.12). Pág.87
O mundo imaginal é alcançado através da oração. É através dela, como ato da imaginação criadora que Deus se epifaniza ao e através do homem. É, enfim, através da prece que se revela o plano imaginal.
Pues la oración no es petición de nada: es la expresión de un modo de ser, un medio e existir y de hacer existir, es decir, de hacer aparecer, de «ver» al Dios que se revela; verle, non su Esencia, desde luego, sino en la forma que él precisamente revela al revelarse mediante esa forma y en ella. Y es esto lo que, por adelantado, refuta la objetación de quienes, desconociendo totalmente la naturaleza de la Imaginación teofánica como creación, plantean que un Dios que sea «creación» de nuestra Imaginación no pues ser más que irreal y que, por tanto, la oración a él dirigida carece de todo sentido. Es precisamente porque él es esa creación por lo que se le ora, y para eso y por eso es por lo que existe. La oración es la forma más elevada, el acto culminante de la Imaginación creadora. (CORBIN, 1993, p.287, grifos do autor).
Na obra de Tarkovski o contato com o mundo imaginal ocorre seja através de Chris com o Oceano de Solaris, seja através do Stalker com a Zona. Porém, o momento crucial da entrada no plano intermédio da “Presença Imaginativa” como a nomeia Corbin, ocorre no cenário apocalíptico de O Sacrifício, quando Aleksander, movido pelo desespero diante da guerra nuclear, recita a oração do Pai Nosso. Certamente uma das mais belas cenas da história do cinema, na qual toda a fragilidade e arrependimento humanos são expostos diante de Deus que, ao final, atenderá a prece desse homem que por todos se sacrifica. Mais do que uma petição, a oração de Aleksander é um diálogo com o Criador, no sentido buberiano do termo diálogo (BUBER, 1982 e 2003) e, com a entrada no mundo imaginal que se segue na sequência do filme, Aleksander viverá conscientemente a experiência de uma outra realidade da qual participará também o espectador que se encontre aberto para tal.
ALEKSANDER: Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje...não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém... Deus, salve-nos neste momento terrível...Não deixe morrerem meus filhos, meus amigos, minha esposa, Viktor... ...todos que amam o Senhor, todos os que acreditam ou não acreditam no Senhor, porque foram cegos e não tiveram tempo de pensar no Senhor, porque nunca foram realmente infelizes. Salve todos que nesse minuto perdem a esperança, o futuro, a vida, a possibilidade de subjugar os pensamentos ao Senhor, que estão repletos de medo e sentem a aproximação do fim, o medo não por si próprios, mas por seus entes queridos, por aqueles que ninguém pode defender, além do Senhor. Defender porque essa é a última guerra, terrível, depois da qual não restarão vencedores, nem vencidos, nem cidades, nem vilas, nem ervas, nem árvores, nem água nas fontes, nem pássaros Pág.88
no céu. (TARKOVSKI, 2012a).
A oração de Aleksander tem a força de penetração no mundo imaginal pois é feita com o coração que é o órgão da oração, como indica Corbin. Logo, um órgão psicoespiritual que concentra a energia (Himma). A função da oração é compartilhada entre Deus e o homem, pois a Criação é compartilhada por “aquel que se muestra (motajallî) y aquel a quien se muestra (motajallà laho); la oración es un momento, una recurrencia por excelencia de la Creación (tajdîd al Khalq)” (CORBIN, 1993, p.287). Como em Tarkovski, encontramos também em Corbin uma exaltação filosófica da imagem (DELAUNAY,2014). Neste a imagem tem sua função noética e cognitiva própria, aquela que nos dá acesso a uma região específica do ser, ao mundo imaginal, ou seja, a um “universo espiritual de substância luminosa” (CORBIN,1986, p.153). O acesso a essa dimensão se dá unicamente pela imaginação criadora (ou imaginação ativa), a qual, segundo Corbin, é um órgão de percepção e que não deve ser confundida com a fantasia, com a imaginação no sentido comum do termo, com as construções irreais, ou com a criação artística: “el órgano de este universo es precisamente la Imaginación activa; es ése el lugar de las visiones teofánicas, el escenario en el que ocurren en su verdadera realidad los acontecimientos visionarios y las historias simbólicas” (CORBIN,1993, p.13). Para Corbin o agnosticismo e nominalismo dos teólogos os impedirá de compreender as visões extáticas e os sonhos dos profetas. As interpretações teológicas e filosóficas orientadas pela racionalidade desnaturalizam as imagens convertendo-as em alegorias inofensivas, não conseguindo, deste modo, aceder à experiência visionária.
referida a lo «Universal», la Imagen no es más que una alegoría; referida a lo incondicionado absoluto, es decir, absuelta tanto de lo universal como de lo particular, la Imagen es aparición teofánica. Presupone así la idea del ´âlam al-mithâl (mundus imaginalis). Presupone la Imaginación teofánica que aquí hemos tratado de analizar: no es en el nivel terminal del mundo sensible (físico, histórico) donde se realiza la antropomorfosis, sino en el nivel del Ángel y del mundo angélico. Por eso, lo que aquí está en juego es el estatuto mismo de la Imagen, así como la validez de sus homologaciones. El sentido de las teofanías no es ni el literalismo (el del antropomorfismo que atribuye predicados humanos a la divinidad), ni el alegorismo (que hace desvanecerse a la Imagen al «explicarla»), como tampoco es ni tashbîh, ni ta´wîl, ni idolatría ni iconoclasmo. (CORBIN, 1993, p.315, grifos nossos).
Será a imaginação criadora que alcançará o mundo imaginal revelado nas epifanias, nas teofanias, nas visões, nas experiências místicas, etc. Embora simbólico, este mundo jamais poderá ser restrito a meras alegorias. Isso porque símbolo e alegoria têm sentidos distintos para Corbin: a alegoria é uma operação racional que não implica em alteração de consciência, o símbolo, pelo contrário, é a “cifra de um mistério” e em sua inesgotabilidade exige um outro nível de consciência. O símbolo “nunca é ‘explicado’ de una vez por todas, sino que debe ser continuamente descifrado, lo mismo que una partitura musical nunca es descifrada para Pág.89
siempre, sino que sugere una ejecución siempre nueva” (CORBIN, 1993, p.25). Primeiro tradutor de Heidegger na França, Corbin se viu instigado pela fenomenologia, a qual reconheceu ter aberto portas para o beco sem saída criado pelo materialismo e pelo positivismo. É certo que Heidegger colocou a hermenêutica e não a lógica abstrata ou o materialismo histórico no centro do ser humano e do conhecimento, mas, ao contrário de Heidegger, Corbin avança rumo a uma hermenêutica espiritual que recusa a separação entre a filosofia e a revelação, como ocorreu no Ocidente desde a Renascença.
Diferentemente de Heidegger que quis libertar a imaginação da teologia, Corbin voltou sua hermenêutica para uma visão teológica que não é estritamente cristã, mas que abarca toda tradição profética de Abraão e dos profetas do Antigo Testamento, passando por Jesus até incluir Muhammad e talvez outros a surgirem. (CHEETHAM, 2012, tradução nossa).
Cabe lembrar que esta visão difere da hermenêutica de Paul Ricoeur, o qual, ainda que reconheça a inesgotabilidade do símbolo, pois o símbolo “dá o que pensar” (RICOEUR, 2013), permanece, como de resto toda a filosofia ocidental, à beira do caminho, não avançando para a dimensão espiritual da questão como o faz Corbin. Tentemos então identificar as intersecções entre Corbin e Tarkovski. Em Corbin o pensamento racional e redutor se aloja na alegoria, enquanto o símbolo é inesgotável em seu significado e compõe o mundo imaginal. Em Tarkovski a terminologia é outra e a inesgotabilidade da realidade suprassensível será um atributo da imagem, ficando o símbolo com a função que possui a alegoria em Corbin. É importante destacar que falamos aqui em similitudes e não igualdades já que, embora ambos sofram influência da mística oriental. “A imagem é indivisível e inapreensível e depende de nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar” (TARKOVSKI, 1990, p. 123). Nessa equação, como a chama Tarkovski, a imagem será mais ou menos penetrada dependendo da maior ou menor permeabilidade e abertura da consciência humana. “A imagem é uma impressão, um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira” (TARKOVSKI, 1990, p.123). É impossível restringi-la a uma fórmula intelectual, decompô-la em seus elementos. Seu efeito emocional poderoso decorre justamente dessa inacessibilidade, dessa impossibilidade de decompô-la. “E assim abre-se diante de nós a possibilidade de uma interação com o infinito, uma vez que a grande função da imagem artística é ser uma espécie de detector do infinito...”. Essa impossibilidade de decomposição da imagem “nasce da integração de princípios opostos” (TARKOVSKI, 1990, p.128). Para Corbin, o mundo imaginal terá também esse duplo estatuto de uma experiência de tempo e de espaço marcada pela coincidentia oppositorum, À primeira vista a visão de Tarkovski parece se assemelhar a de Walter Benjamin acerca da imagem aurática. Esta, porém, foi, perdida nas tensões permanentes e incongruências de base existentes entre o misticismo judaico (e, ressalte-se, qualquer experiência mística) e o materialismo marxista que impediram Benjamin de avançar adiante e o fizeram cair na apologia ao cinema de montagem de Eisenstein, rejeitado por Tarkovski em razão da manipulação ideológica das imagens e do seu distanciamento da verdade (MENDONÇA, 2014). Diferentemente de Eisenstein, para Tarkovski a função da imagem é expressar a vida “e não conceitos Pág.90
e reflexões sobre ela” (TARKOVSKI, 1990, p.131). Impossível de ser aprisionada pelo conceito ou pelo significado como o símbolo, a imagem é “um mundo inteiro refletido como que numa gota d’água” (TARKOVSKI, 1990, p. 130). A imagem é mesmo uma espécie de milagre, como enfatizará em seu Discurso sobre o Apocalipse (TARKOVSKI, 1984). São evidentes nessa concepção de imagem os ecos da sociedade e da cultura bizantinas na qual a relação entre forma e conteúdo atinge a perfeição no ícone sagrado. Ora, se a arte do Ocidente se pretende religiosa ela na verdade não tem nada de sagrado como diz Evdokimov (1960, p.3). É o ícone que porta o sagrado posto que é subordinado a Deus e não ao gosto do artista. A inspiração para a escritura do ícone– pois um ícone não se o pinta, mas se o escreve (LELOUP, 2006) -- provém do Espírito Santo e não é atributo do artista. Deste modo, os ícones sequer são assinados, pois sua autoria é espiritual. Esta perspectiva influencia o cinema de Tarkovski e sua concepção de imagem recebe clara influência de Pavel Florensky (FLORENSKY & GUSTAFSON, 1997; FLORENSKII, 2002; MENDONÇA, 2014), para quem a forma icônica, partindo de uma perspectiva invertida, é expressão da Sophia (Sabedoria) celeste que se realiza na terra. É por isso que podemos dizer que não há formas vazias e sem sentido em Tarkovski. O seu cinema é uma espiritualização da forma que brota da espiritualização do artista, assim como o ícone é a espiritualização da matéria (pigmentos, gesso, terra, madeira) que surge das mãos do artista espiritualizado. Em Tarkovski, como no ícone, a arte não está à beira do caos porque ele, o artista, está ligado ao mistério do Absoluto. A negação dessa condição existencial pelo artista se expressa na queda no vazio que domina certas expressões da arte contemporânea. Podemos dizer que para Tarkovski o artista permite, ou não, o acesso ao mundo imaginal ligado ao Absoluto, na medida em que reconhece a existência dessa dimensão e admite que a capacidade de criação não brota dele, mas sim do Criador. Um episódio relatado por Rashit Safiullin, designer de produção de Stalker, nos dá uma breve visão de como Tarkovski lidava com o mundo imaginal. Durante as filmagens de Stalker o terreno em que seria filmada a Zona apresentava algumas poucas flores, dentes- de- leão, que de repente se abriram. Tarkovski mandou a produção colhê-las a fim de manter a característica virgem do lugar. Após isso ele dirá: “Rashid, as flores não estão aqui, mas a presença delas pode ser sentida”. O mesmo ocorre com a Zona. Esta é uma epifania, uma manifestação real do sagrado, não uma alegoria (no sentido de Corbin), ou um símbolo (no sentido de Tarkovski), pois, como um campo de fé só pode ser experienciada espiritualmente, seja por Tarkovski, seja pelos integrantes da filmagem, seja pelos espectadores. Ainda Rashit Safiullin, que morou na casa do diretor quando das filmagens de Stalker, assim descreve sua experiência:
Na verdade, Tarkovski estava vivendo comigo na Zona. É um habitat muito especifico mostrando quem é quem. A Zona vê através de você, é muito observadora. E quando morei com Andrei...não pude me comportar...fora do modo da Zona (...). A Zona é um lugar onde eles conversam sobre as coisas mais importantes. Você pode encontrar pessoas aqui e viver como quiser...sem reagir ao que está do lado de fora. Fora isso você tem que encontrar, que rodear os outros. Mas aqui você vive sendo o mais íntimo de você. Você vive do jeito certo, respirando livremente...dizendo somente a verdade, sendo honesto com as pessoas. É um lugar onde você pode conversar com alguém... algo insondável. [A Sala] Sim, falando com Deus. (...) sim, sim, sim, mas a Sala é muito mais celestial, como uma dádiva. Sim, um modelo de perfeição. (Dossiê Tarkovski, Pág.91
Volume IV, s/d)
Tarkovski por seu turno, falando da Zona dirá:
As pessoas muitas vezes me perguntam o que significa a Zona, o que ela simboliza, e fazem conjecturas absurdas a proposito. Esse tipo de pergunta me deixa desesperado e enfurecido. A Zona não simboliza nada, nada mais do que qualquer outra coisa em meus filmes: a zona é uma zona, é a vida, e, ao longo dela, um homem pode se destruir ou pode se salvar. Se ele se salva ou não é algo que depende do seu próprio auto respeito e da sua capacidade de distinguir entre o que realmente importa e o que é puramente efêmero (TARKOVSKI, 1990, p.241, grifos meus).
A recusa de Tarkovski em aceitar qualquer interpretação simbólica é uma luta enquanto artista para romper os condicionamentos humanos que ensejam cegueiras espirituais e, consequentemente, éticas (lembrando que o espiritual precede ao ético). “Posso apenas dizer que a imagem avança para o infinito e leva para o absoluto” (TARKOVSKI, 1990, p.131). Neste sentido a imagem jamais será traduzida em palavras, ela é a oportunidade do encontro com Deus, no sentido buberiano da palavra, de relação Eu-Tu, rompendo com os papéis, com as distinções, com as lutas e com os egos. Mas, a nosso ver, a imagem, pode também ser a oportunidade de afastamento brutal do homem em relação ao Criador e a entrada em dimensões infernais.
Sobre o Apocalipse Desde sempre a humanidade caminhou entre as chamadas imagens primordiais, um imaginário que constituindo o fundo das consciências individuais emerge no coletivo através dos complexos simbólicos que são os mitos. Essas raízes primordiais foram abordadas com diferentes, embora próximos, significados pela antropologia e pelas demais teorias do imaginário, em particular pelo Círculo de Eranos, do qual faziam parte Corbin juntamente com Mircea Eliade, Gilbert Durand, Carl Jung e, durante algum tempo, Martin Buber. Entre os membros do Círculo, termos como arquétipos, imagens primordiais, inconsciente coletivo, símbolo e imaginário são discutidos e usados por um ou outro participante do grupo, com distintos sentidos, porém, mantendo o fio condutor que conduziu o círculo que é a busca por um conhecimento gnóstico e esotérico (WASSERSTROM, 1999) assentado sobre a crença em uma realidade suprassensível que cada pensador tenta aceder através de uma determinada categoria. Assim é que temos a questão dos arquétipos em Jung e Eliade. Enquanto no primeiro diz respeito às estruturas do inconsciente coletivo, em Eliade remete a Platão e a Santo Agostinho, no sentido de modelo exemplar “ revelado no mito e que se reatualiza pelo rito. Melhor fosse dizer ‘paradigmas e repetição’ ” (ELIADE, 1957). No que diz respeito aos ciclos de existência terrena, para Eliade há imaginários dos grandes ciclos cósmicos que atribuem novos significados à história e que se articulam entre duas vertentes: “a do tempo cíclico, que se regenera periodicamente ad infinitum” e a “ do tempo finito, um fragmento (embora também seja cíclico) entre duas eternidades atemporais” (ELIADE, 1981, p.111). Em váPág.92
rias tradições esse imaginário se faz presente, ora vinculado ao mito do eterno retorno, ora ao mito do fim do mundo. Ambos apontam para a necessidade, como lembra Eliade, do homem se defender da história, consolar suas dores e enxugar suas lágrimas, dando sentido ao presente, muitas vezes marcado por catástrofes e provações. O mito do fim da história com um julgamento final dos homens e do fim do mundo pelo fogo, como uma purificação após a qual o bem vencerá (apokatastasis) tem, segundo Eliade, origem iraniana (ELIADE,1996, 121) e irá impregnar os apocalipses e a escatologia de origem judaico-cristã. É neste solo que brota o Apocalipse de São João, ou Livro da Revelação, que irá impregnar fortemente a tradição religiosa e artística russa. Entre outros, no século XIX teremos figuras como Dostoievski e Soloviev e, no século XX, Boulgakov e Solzhenitsyn. O cinema de Andrei Tarkovski não escapará dessa influência, perceptível desde A Infância de Ivan e que se tornará mais evidente na trilogia composta por Stalker, Nostalghia e O Sacrifício. Em 1984, durante uma retrospectiva de seus filmes, Tarkovski fará uma intervenção conhecida como Discurso sobre o Apocalipse a qual lança luz sobre a leitura apocalíptica empreendida por seu trabalho. Para ele, o livro de São João seria a maior obra poética já criada sobre a terra, “é um fenômeno que em sua essência exprime todas as leis estabelecidas para o homem pelo alto” (TARKOVSKI, 1984). Seria, assim, impossível interpretar o Apocalipse porque o Apocalipse não é um símbolo, mas uma imagem:
Ora, se é possível interpretar um símbolo, esse não é o caso de uma imagem. Pode-se decifrar um símbolo, dele se pode extrair um certo sentido, uma certa fórmula, enquanto que somos incapazes de compreender uma imagem, embora se possa senti-la e recebê-la. Com efeito, ela contém uma infinidade de possibilidades de interpretação. É como se ela exprimisse uma infinidade de ligações com o mundo, com o absoluto, com o infinito. O Apocalipse é o último elo dessa corrente. Neste livro – o último elo é que se completa a epopeia humana, no sentido espiritual da palavra. (TARKOVSKI, 1984, grifos e tradução nossos).
O tempo do Apocalipse não é o tempo convencional, logo, não nos é permitido saber quando ocorrerá, “isso pode chegar amanhã, pode chegar em um milênio”. Daí, não se pode, como diz Tarkovski, tirar nenhuma conclusão quanto ao tempo do Apocalipse. Mas, ressalta, “nós vivemos em um período muito duro, e as dificuldades se tornam mais duras ainda a cada ano”. Estas dificuldades, sem dúvida, influenciam diretamente a arte e o papel do artista subvertendo-os e degradando-os. Como ele indica, há tempos que vem se construindo uma visão “sacrílega” da arte e o artista. Este que antes tinha consciência de ser a imagem e a semelhança de Deus, de ser uma criação Dele, passa a levantar a questão da criação ligada ao pecado.
Porque tal questão surge se nós sabemos perfeitamente que a criação nos lembra que somos criados, que temos um Pai? Por que surge uma questão tão, diria eu, sacrílega? Porque a crise cultural do último século permitiu ao artista se desligar de toda concepção espiritual e a criação tornar-se uma espécie de instinto. (...) O artista começa a considerar o talento que lhe foi dado como sua propriedade, daí lhe vem o direito de pensar que o talento não o obriga a nada. E isso que explica essa ausência de espiritualidade que reina sobre a arte contemporânea. (TARKOVSKI, 1984, tradução nossa). Pág.93
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Essa ausência de espiritualidade contaminará a própria arte religiosa contemporânea a qual não consegue mais atingir sua destinação fundamental que é conectar o homem com o divino.
Eu estive há pouco no museu do Vaticano. Há um número imenso de salas consagradas à pintura religiosa contemporânea. Há que ver isto, pois é horrível. Eu não compreendo porque estas - perdoem-me- obras estão dispostas sobre as paredes de um tal museu. Como isso pode satisfazer as pessoas religiosas e em particular a administração da Igreja católica. Isto tudo é simplesmente espantoso (TARKOVSKI, 1984, tradução nossa).
Essa terrível crise espiritual se espelhará nas catedrais e nas igrejas católicas ocidentais contemporâneas muito distantes de uma arquitetura do sagrado que seguia os cânones tradicionais da construção em forma de cruz. Hoje, como as artes plásticas no Museu do Vaticano, a arquitetura das igrejas se perdeu em hexágonos, poliedros, triângulos e outras formas totalmente estranhas e distantes da cruz16, produto de algo que Fredric Jameson, ao analisar a estética pós-moderna, chamará de “cultura esquizóide” -- superficial e sujeita a “intensidades” que rapidamente se esvanecem (JAMESON, 2007), ou seja, vazias de sentido. Lembremos, entre tantos..., de exemplos tais como a Catedral de Santa Maria em Tóquio ou, a com o mesmo nome em São Francisco, Califórnia, ou ainda, da Basílica Santuário da Divina Misericórdia em Cracóvia. Essas obras são produtos de uma “consciência atrofiada” que, como destaca Tarkovski, possuiriam artistas Dostoievski e seus personagens. Uma consciência “incapaz de crer”, aquela que padece de “ausência de espiritualidade” e da “impossibilidade de esperar a graça”. Como ele ressalta: ”feliz o homem que conheceu este estado [que crê]. Mas poucos podem disso se orgulhar. Para se sentir livre e feliz é a intrepidez que vale” (TARKOVSKI, 1984). Em sua leitura sobre o Apocalipse, Tarkovski fará críticas à utilização da ciência e da tecnologia pela humanidade. Como Tolstói e Unamuno (Mendonça, 2013a), nele encontraremos uma crítica à crise espiritual do artista e da arte contemporâneos, realçando o fato de que os homens não estavam moralmente prontos para o desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes do último século que os conduziu a um mundo falso e ao que ele chama de “realidade de próteses” que interferem em nossos corpos sem serem acompanhadas pela necessária base espiritual. As próteses tecnológicas17 “alongam nossas mãos, aguçam nossa visão, permitem nos deslocarmos mais rapidamente. (...). Porém, não somos mais felizes com isso”, antes somos “escravos desse sistema, desta máquina impossível de parar” (TARKOVSKI, 1984). As consequências para a vida social são desastrosas e, segundo Tarkovski, embora tudo seja planejado e feito para vivermos em conjunto, nós não confiamos uns nos outros, não nos ajudamos mutuamente e assim “não participamos verdadeiramente da vida social”. Assim temos que o universo imagético construído em Solaris, nos revela o vazio da existência humana assentada sobre tais próteses: o cenário da estação espacial, seus artefatos tecnológicos e a destruição material acompanhada da destruição espiritual dos cientistas que lá habitam são ilustradas por imagens que desde o início remetem à glorificação da ciência. Ainda na terra são o busto de Aristóteles e as imagens de cientistas que estão no fundo dos cenários. Mas, como em meio ao cenário apocalíptico da guerra em A Infância de Ivan, haverá a aparição de um ícone no cenário de Solaris apontando, como toda a iconografia em Tarkovski, para Pág.96
a presença dessa outra dimensão da realidade – a única realidade, posto que vivemos em meio à ilusão18 – presente, embora não seja vista, ou se vista quando em suas irrupções em nossa dimensão ou quando de seu contato conosco, não compreendida. Dimensão que é parte do mistério que nos envolve. Como não lembrar aqui do Oceano de Solaris e da Zona de Stalker? Estas são dimensões às quais o homem só pode aceder pela fé, sem isto ele se mantem cego, como lembra o personagem Otto de O Sacrifício. Será pela fé que o homem poderá aceder essa realidade e compreendê-la, compreendendo assim o sentido do livro da Revelação. Mas, ressalte-se, antes de tudo, que a fé é uma tortuosa, cheia de perigos e movediça relação com essa realidade, como o demonstram a relação dos homens com o Oceano em Solaris e com a Zona em Stalker. Ora, a sociedade contemporânea, denunciada por Tarkovski, perdeu a cultura, no sentido espiritual de ligação com Deus como adotado por Nicolas Berdiaiev e se lançou em um desenvolvimento cuja dinâmica não se submete mais ao controle da vontade humana (TARKOVSKI, 1984). Esse destino é o Apocalipse para Tarkovski:
É uma imagem da alma humana com suas responsabilidades e deveres. Esse é o tema da Revelação de São João. É impossível ao homem não experimentar isso. Pois ao final de contas é precisamente essa a razão pela qual nós podemos dizer que a morte e o sofrimento são intrinsecamente ligados, se a personalidade sofre e morre, ou se o ciclo da história termina, quando milhões morrem e sofrem também. Porque o homem não é capaz de suportar a barreira dolorosa à qual ele pode acessar, (...) O Apocalipse é, ao final, a narrativa do destino. Do destino do homem no qual o eu da pessoa e a sociedade são indissociáveis. (TARKOVSKI, 1984, grifos meus).
Sua percepção do Apocalipse como imagem vinculada simultaneamente às experiências individuais e coletiva da história, se revela em diversos momentos de sua obra, seja através da integralidade das narrativas, seja através dos inserts nelas feitos, quase sempre de excertos bíblicos, de poesias, de ícones ou de pinturas que dão conta da presença de um mundo imaginal apocalíptico, de um tempo e um espaço que são realidades ocultas aos nossos olhos cegos (porque sem fé : esse é o sentido da cegueira em Tarkovski). A Infância de Ivan se abre com O apocalipse de Albrecht Dürer. Este é o pano de fundo para os horrores da guerra e das infâncias destruídas como a de Ivan. O insert da imagem de Dürer se articula, fechando como que um arco, com a imagem final que é a foto – icônica como a de um santo mártir - de Ivan tirada pela Gestapo antes de sua execução. O tema da dimensão apocalíptica da guerra será retomado em Rublev, onde a morte e o sofrimento serão o solo no qual o artista erguerá sua alma para o alto. Aqui não há ilusões e o final feliz com o sino tocando é a expressão da luta espiritual do homem contra o mal e do milagre de uma força que tanto o sineiro quanto Rublev não possuem por si mesmos, mas que vem do alto e que se revela quando o sino é erguido e toca com imponência. O sineiro sem experiência alguma e que se propõe realizar algo muito acima de sua capacidade e de suas forças, alcança a redenção e, através dele, Rublev que se liberta do mutismo e caminha para pintar o ícone da Santíssima Trindade. Em Solaris o tema do Apocalipse reaparece no vazio de homens sem laços entre si e para com o planeta Terra, dissolvidos que foram esses laços pelo conhecimento cientifico e avanço tecnológico sem limites. Homens dissolvidos nos artefatos tecnológicos, incapazes de amar e de serem amados. Solaris é uma prefiguração do futuro da humanidade: de homens perdidos, recusando Deus, sem imagens santas (ícones), banhados pela luz fria e em meio a brancas paredes como as da estação espacial. Pág.97
Solaris trata de pessoas perdidas no Cosmo e obrigadas, querendo ou não, a adquirir e dominar mais uma porção de conhecimento. A ânsia infinita do homem por conhecimento, que lhe foi dada gratuitamente, é uma fonte de grande tensão, pois traz consigo ansiedade e constante sofrimento, pesar e desilusão, já que a verdade última nunca pode ser conhecida (...). Os personagens de Solaris eram atormentados por desilusões, e a saída que lhes oferecemos era demasiado ilusória. Baseava-se em sonhos, na oportunidade de reconhecer as próprias raízes --- aquelas raízes que para sempre ligam o homem à Terra onde nasceu. Contudo, até esses laços já haviam se tornado irreais para eles. (TARKOVSKI, 1990, 239)
Em Solaris, em meio aos objetos e aparelhos emerge o vazio e o sofrimento e com eles a ausência de raízes do mundo científico e tecnológico. Em Stalker temos também o cenário marcado pela tecnologia e pela ciência, ou melhor, dos rastros de destruição delas advindos. Se em Solaris os homens estão vivendo em meio às “próteses” e movidos pela busca incessante de conhecimento (que ao final dará em nada...) em Stalker os homens movem-se em um meio destruído por essas mesmas próteses, porém, se movimentando em direção à Zona, em busca da esperança e da fé. Se tomarmos a compreensão de Tarkovski acerca do Apocalipse como dizendo respeito à história dos indivíduos e da humanidade veremos que a besta do Apocalipse se resume à falta de amor. Ela está presente, com exceção de Chris e de Hari, nos olhares vazios e desesperados dos demais personagens de Solaris e dos seguidores de Stalker, o escritor e o professor. A redenção em Solaris passa pelo amor entre Hari e Chris; em Stalker passa pelo amor e sacrifício da esposa pelo Stalker e dele mesmo pela humanidade, assim como passará pelo amor de Aleksander pela família e pela humanidade em O Sacrifício. Não existe amor sem sacrifício e não existe redenção sem amor, diria Tarkovski. Stalker foi filmado como se o conjunto do filme tivesse sido feito em uma única tomada, sem deslocamento de tempo, como ocorreu em O Espelho, no qual sonhos, lembranças e realidade se mesclam. Em Stalker os personagens não têm nomes e a câmera se move, ela também, como um stalker através de minuciosos close-ups das faces do professor e do escritor e da nuca de Stalker -- o que, como diz Skakov (2012), “vai contra todas as convenções da cenografia clássica”. A música de Eduardo Artemiev tem um papel central como personagem da narrativa e não simples acompanhamento ou ilustração, propiciando a entrada na Zona que se atinge por um caminho cheio de perigos, de decomposição e de destruição. A degradação e tristeza, expressas no preto e branco que antecede a entrada na Zona, é substituída, quando nela se entra, pelo colorido da natureza selvagem que renasce em meio ao caos da catástrofe anterior. O Oceano e a Zona são mistérios que para serem penetrados exigem a fé, “a pesada aparência superficial [da zona] é profundamente conectada com a consciência interna do observador: a Zona, como o planeta Solaris, é o miraculoso e último outro topos que se modifica de acordo com o estado interior dos personagens”. (SKAKOV, 2012). Stalker encontra-se, como Domenico em Nostalghia e Aleksander em O Sacrifício, dentro da mais pura tradição cultural religiosa russa, o louco santo (lembremos aqui de Dostoievski e do seu Makar, de O Adolescente, assim como de Maria Timofeyevna de Os Demônios) que conduz espiritualmente as pessoas para a experiência da fé; para uma realidade suprassensível, porém oculta aos olhos vazios, para falar como o Stalker, dos dois visitantes, notadamente intelectuais marcados pela racionalidade e pelo vazio que ela carrega consigo. O lamento do Stalker pela frustrada expedição é pleno de força imagética retomando essencialmente os temas chaves do Apocalipse e da obra de Dostoievski (ambos influenciarão profundamente Tarkovski): as Pág.98
consequências da perda de fé em Deus e o predomínio no mundo da impossibilidade de os homens crerem em uma realidade suprassensível. Stalker fala chorando sobre os visitantes a quem conduziu:
STALKER: Você não viu? Eles têm os olhos vazios! Só pensam em não perder...em vender-se por mais dinheiro! Querem que todo o trabalho do espírito lhes seja pago! Pensam que “nasceram para algum propósito! Que “atendem a um chamado”! Para eles vive-se só uma vez! Como podem tais pessoas acreditarem em algo? A ESPOSA: Calma, pare...tente dormir. Durma. STALKER: Ninguém acredita. Não somente esses dois. Ninguém! Quem vou conduzir? Jesus! E a coisa mais terrível é.… que ninguém precisa disso. E ninguém precisa daquela Sala. E todos os meus esforços são inúteis! (TARKOVSKI,1979).
Despidos de imaginação criadora, no sentido de Corbin, o Professor e o Escritor não conseguem entrar na Zona. Contudo, a cena final do filme revela que a filha do Stalker, uma criança aparentemente doente, entra sem dificuldades na Zona...O deslocamento dos copos, que ela faz só com o pensamento, sem qualquer dificuldade, é impossível para aqueles que, tendo atrofiados o órgão da imaginação criadora, não conseguem ingressar no mundo imaginal. Isto irá conferir o tom de esperança com que termina o filme. Esperança que também estará presente no final de O Sacrifício, com o filho de Aleksander sob a árvore. E, mais uma vez temos em Tarkovski, os filhos – as crianças, os puros - como esperança de redenção. O Apocalipse, contudo, não é somente revelador de castigos que sobrevirão ao homem, mas também de esperança:
Se bem que o tempo esteja próximo – para cada um separadamente ele é verdadeiramente próximo – para todos em conjunto ainda não é tarde demais. O Apocalipse é temível para cada um isoladamente, mas para todos em conjunto ele contém uma esperança, E nisto reside o sentido da Revelação. (TARKOVSKI, 1984).
No final de O Sacrifício Tarkovski deixa ao filho (e para nós) a dedicatória “com esperança e fé”. Anos Pág.99
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antes, quando da filmagem de Stalker, sob as águas da Zona se encontram vários objetos, entre eles a imagem do Salvador e um velho calendário que, profeticamente, indica a data 28 de dezembro. Esse seria o seu último dia de vida na Terra. Dia 29 seria o dia da Revelação para o próprio Tarkovski: o dia de sua morte.
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O tempo em que a notícia muda: é Círio outra vez!19 Jorge Oscar Santos Miranda20
À guisa de introdução: de frente com os jornalistas
O Prêmio Nobel de Literatura, Orhan Pamuk (2007), certa vez disse que o escritor é uma pessoa que passa anos tentando descobrir, com paciência, um segundo ser dentro de si e o mundo que o faz ser quem é. Escrever é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se reconhece a si mesma – com paciência, obstinação, alegria. A tarefa de compreender o mundo já é árdua para quem está acostumando a suavizar à rigidez que o próprio mundo impõe. Para um pesquisador das ciências humanas, o sociólogo de maneira especial, a dificuldade é muito maior, sobretudo quando seus dados de pesquisa não são somente a observação e teorias, mas a partilha de experiências de vida que o próprio pesquisado narra, pois nela há bastidores por ora desconhecidos que precisam se enquadrar nos cânones dos métodos científicos fechados como exigência para serem reconhecidos. Daí que o momento de fala das pessoas que doaram tempo e paciência para participar da pesquisa (serem entrevistadas) quase sempre é sufocado pelo pedantismo do excesso de teorias e preciosismo do pesquisador. Mas como fazer para que os atores sociais da pesquisa, aqui os jornalistas, tenham destaque e ao mesmo tempo confiram validade ao estudo do pesquisador? Durante a pesquisa para o mestrado entrevistei os jornalistas do caderno policial do Jornal Amazônia – jornal popular de Belém do Pará, fortemente marcado pela presença de matérias policiais acompanhadas de fotos expondo cenas violentas. Deparei-me então com relatos marcantes dos profissionais inseridos naquele tipo de atividade, estranha e paradoxal, que é fazer a cobertura da violência em que se encontra mergulhada uma capital como Belém. Temos então o relato de Cristovão21 para quem as cenas de crime não são o tipo de reportagem que os jornalistas gostam de fazer: “Sempre é colocado que o jornalista é meio abutre e tal, mas não é isso não. A gente vai lá porque tem que ir e ninguém acha isso bonito não”. Em sua opinião, o leitor tem uma visão muito limitada do que acontece na produção do jornal. O próprio jornalista passa por situações em que é obrigado a aceitar a alteração feita pelo editor na sua matéria que muitas vezes modifica todo o contexto da informação que o informante concedeu. Para os leitores, pode parecer que o jornalista fez a mudança por vontade própria, mas não, como enfatiza: “Nós também somos humanos. A gente vive também. A gente se coloca no lugar das pessoas. Mas nós recebemos muitas críticas pelo nosso trabalho”. Suzzete tem 18 anos de profissão, trabalha no Jornal Amazônia há 12 anos, e relatou que a lida diária de trabalho na redação é marcada pelo tempo, tudo é rápido e às vezes não há tempo para pensar: “Quem vive o jornalismo tem que estar disposto a essa vida corrida. Quem trabalha há muito tempo, acaba trazendo isso para seu dia-dia, você não tem mais tanta paciência, porque tudo é muito rápido. O seu corpo se condiciona a essa velocidade”. Ela comentou que as novas tecnologias exigem cada vez mais o imediatismo dos profissioPág.104
nais: “Ele é cobrado sem pensar muito no humano. A máquina vai sendo reformada, restaurada, enfim. Tem vantagens tecnológicas, mas tem um humano ali”. Paulo está na profissão há 21 anos e nela começou aos 14 anos de idade, antes de chegar ao jornal trabalhou numa produtora de eventos. Deixou o trabalho na produtora quando sua noiva ficou grávida, casou e decidiu dar novos rumos à profissão. O tempo em que passou no antigo emprego conheceu muitas pessoas da imprensa, estabelecendo, assim, contatos e logo que saiu da produtora recebeu o convite para trabalhar no jornal Diário do Pará como repórter fotográfico onde ficou por quatro anos. No jornal Amazônia tem um ano e seis meses. Ainda na produtora realizava trabalhos para jornais, mas sem a experiência da rotina diária da redação. O seu dia-dia de trabalho e dos demais colegas na redação tem a carga horária de cinco horas de trabalho diário, no entanto, Paulo presta serviço como freelancer para a revista Veja e para os jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo e isso faz com que fique “ligado” o dia todo. Para ele não tem rotina, pois a todo o momento há um assunto novo. Cara, tipo assim, a gente trabalha com cinco horas de carga horária de trabalho, mas eu particularmente não trabalho só cinco, porque, por conta daqui também, eu faço Veja, eu faço Folha, e faço Estadão. Sou tipo correspondente deles aqui. Então tem que tá ligado, porque tudo que acontece aqui no Pará eu que mando pra eles. Então você tem que tá ligado na internet, notícia, ficar por ali ... e rodar, ir atrás da notícia. O jornalismo é assim, todo dia é um assunto. Jornalismo é todo dia. Todo dia tem um morto, todo dia tem protesto. Todo dia tem um assunto, não tem jeito. Tu não consegues entrar, minha opinião, tu não consegues entrar na rotina assim, não tem como. Todo dia é uma coisa.
Aproveitei a experiência de trabalho deste entrevistado em duas empresas jornalísticas, Diário do Pará e Jornal Amazônia, para perguntar o que pensava sobre a influência da imprensa na disseminação do medo e da insegurança ao publicar imagens de violência diariamente nos jornais. Em sua opinião, a imprensa contribui. Ele deu o exemplo do Diário do Pará que brinca muito com as manchetes do caderno de polícia, ao contrário, do Amazônia que publica de outra forma. Paulo falou que o grande problema é que alguns colegas entram na “pilha” do jornal, acreditando que estão fazendo o mais adequado. Contribui e muito. Vou te dar um exemplo. Lá no Diário eles brincam muito com a morte, com preso, principalmente com a violência. Lá eles brincam muito. Tu vê aquelas manchetes: “Saiu da prisão para morrer na rua”, Esse não vai passar o Círio, levou bala”, “ Já era não sei o que ...” Aqui não, não brincam muito. Porque é uma coisa séria. Aqui estão muito preocupados. Lá não bicho! Lá eles não tão preocupados em nada, eles tão a fim de vender jornal, isso que eles querem, sabe. E se tu não for cabeça, tu entra na pilha do jornal, tu não podes entrar na pilha de jornal. Tu tem que fazer teu trabalho. Contribuir vai muito pela cabeça do cara.
Ainda falando sobre este assunto, disse ele que existem colegas de profissão que fazem o impossível para registrar os corpos das vítimas das ocorrências policiais e que são os chamados de “carniceiros”. A vontade de ganhar prestígio é muito grande e o profissional é capaz de brigar para ter a foto da pessoa morta. Para o entrevistado, essa atitude extremada reforça o rótulo de “abutres”, “frios”, “sem humanidade” em cima do Pág.105
jornalista da área de policial. Enquanto continuava a conversar com Paulo, Severiano preparava-se para iniciar o trabalho no turno da noite. Após arrumar os equipamentos na mochila, puxou a cadeira e sentou, escutando a nossa conversa. Paulo então apontou para o colega e me disse: Ele gosta de fazer polícia. Ele fez polícia pra c... Eu disse a ele que eu não sou muito de fazer, eu não gosto de fazer. Uma vez eu era do Diário e ele do Amazônia, a gente até comentava, ele dizia: Égua, eu adoro fazer...! Eu disse bicho, eu odeio doido. Eu tenho raiva! Ai, eu lembro que nesse dia, logo depois, umas semanas nos encontramos num assalto com refém e esse bicho me olhou e disse: “mas não é tu que não faz polícia? P... doido caiu doido[refere-se a pauta da reportagem para fazer]. Porque é o seguinte, eu não gosto, mas eu faço, eu sou funcionário, tenho que fazer, não tem jeito. Cai e tu tens que ser profissional, como te falei ainda agora, tu tens que ser profissional. Eu não gosto! Eu não gosto doido. Eu sou declarado, eu não gosto. Mas eu tenho que fazer, pai. Sou funcionário.
Tempo em que a notícia muda: é Círio outra vez!
Em meio a um cenário de profissionais - os chamados repórteres policiais – que trabalham com imagens e notícias cujo tema é a violência urbana e que lidam diariamente com a dor dos outros, percebi que nem só de violência se faz notícia e muito menos somente dela são as experiências desses profissionais. No decorrer da pesquisa de campo, descobri que existe um tempo durante as atividades em que a cena habitual da violência que compõe as reportagens é minimizada. Esse tempo é o mês de outubro, particularmente no período da festividade do Círio de Nazaré em Belém do Pará. Isso impõe a pergunta: Qual a relação das notícias de violência com festividade religiosa como o Círio? São, sem dúvida, duas coisas distintas, mas o significado que os jornalistas, em especial os repórteres fotográficos, atribuem ao fazer imagens para compor a reportagem sobre a festividade, despertou o meu interesse. Cada profissional entrevistado contou “cenas” de como esse tempo é especial para a profissão e para o ser humano, este último antecede o primeiro. Vejo isso como a “fuga” da rotina em que o espaço e o tempo não são comuns. É uma manifestação única, singular. Eu faço para jornal o Círio ... eu acho que é o tempo que eu tenho de jornalismo, 21 anos. Eu encontrei outro dia ... O meu primeiro Círio que eu fotografei com 12 anos em 83. Então já foi um negócio que, desde ali, já começou a me envolver. Então aquilo virou uma rotina para todos nós. O cara tá fazendo polícia, no dia do Círio, pô, a equipe fazendo polícia, a gente precisa de uma equipe de polícia. O cara pega a roupa dele e sai correndo lá pro CAN (Centro Arquitetônico de Nazaré) para chegar lá e fazer a chegada do Círio. Eu escalo cinco repórteres fotógrafos e no final do dia dez foram. Todo mundo tem que ir. É uma procissão que tem a mesma rotina, mas que você nunca vai fazer uma foto igual. Por mais que até os personagens possam ser os mesmos (Cristovão, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus). No primeiro Círio eu não fiz nenhuma foto. Eu não consegui. Eu fiquei muito encantada com aquele mundo de gente passando, um rio de gente. Na verdade, Pág.106
assim, eu cresci na igreja evangélica, presbiteriana. Então, quando eu era criança, adolescente, o meu pai levava a gente pra outro lugar, pra praia, e eu não via o Círio. (Suzzete, grifos meus). Acho que só de ver já é muito gratificante, só de ver. E a gente, que já trabalha há muito tempo com fotografia, com imagem, com um olhar, talvez a gente veja algumas coisas que somos privilegiados e que em muitos casos outras pessoas não veem (Roberto, jornalista do Jornal Amazônia). Círio pra mim é tudo. Tem gente que diz que Círio não tem mais imagem pra fotografar, que é tudo a mesma coisa. Que nada! Se eu te falar que ali na rua com dois milhões e meio de pessoas. Tem gente que fala: Tu já vieste fotografar Círio de novo? É a mesma imagem. Não é bicho!(Gabriel, jornalista do Jornal Amazônia).
Mircea Eliade (2010) descreve que o espaço para o homem religioso jamais é homogêneo, ele sempre apresenta roturas que por intermédio de uma experiência religiosa o torna um lugar incomum, pois este representa uma “fundação no mundo”, onde a experiência religiosa de primeira instância demonstra uma reflexão do mundo que encaminha para um referencial da existência, um “ponto fixo” que o orienta. O tempo também para o homem religioso não é homogêneo e nem contínuo, apresenta intervalos de tempo sagrado que se opõe ao tempo profano. Para o homem religioso o tempo sagrado sempre se apresenta como um convite a celebrar o específico de cada motivo da existência, por isso o seu significado é de um tempo circular, reversível, eterno, presente, mítico, cujo homem reintegra em intervalos pela linguagem dos ritos. “Para o homem religioso, ao contrário, a duração temporal profana pode ser parada, periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um Tempo sagrado, não histórico” (Eliade, 2010, p. 66). É semelhante ao que acontece com maioria dos jornalistas entrevistados. Durante o tempo que a cidade está envolvida com os festejos do Círio, a violência não deixa de existir e muito menos é amenizada; continua sendo estampada nas edições do jornal. No entanto, a centralidade da atividade profissional daquele momento está voltada para a festividade religiosa, para o captar a expressão que melhor define a fé. O Círio de Nazaré é um evento religioso de grande repercussão em nível nacional e internacional, sem megalomanias. Digo que o mundo, no mês de outubro, concentra-se na cidade de Belém do Pará que celebra a maior manifestação religiosa católica do Brasil e o maior evento religioso do mundo. Apontaria esse o motivo para todo profissional da imprensa, sobretudo local, querer fazer reportagens da festividade religiosa. Para o jornalista que se deixa levar pelo sentimento religioso que o Círio suscita, trabalhar na produção dessas notícias constitui-se como “ponte” para a manifestação do sagrado que se impõe sem programação prévia, e que aparece na ação mais singela. É difícil ser compreendido quando se tenta fechá-la em um modelo explicativo, pois, para quem não vivenciou é apenas um trabalho e, de fato, é uma atividade desempenhada, contudo o que se mostra como diferencial no relato desses profissionais é a capacidade de ser uma “revelação”, uma hierofania22: O homem ocidental moderno experimenta um certo mal-estar diante de inúmeras formas de manifestação do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo [...] não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, Pág.107
nem árvore, mas sagrado, o ganz andere (Eliade, 2010, p. 18).
Os relatos citados anteriormente levam a entender que há uma disponibilidade para mergulhar naquele contexto de expressão da fé do outro, ao mesmo tempo em que esta envolve a execução de sua atividade profissional e modifica a relação. Para eles a profissão coloca-os numa posição privilegiada com relação as demais pessoas – motivo de orgulho para a maioria, já que se transformam em leitores e tradutores de um tempo que inspira renovação. Eliade (2010) considerou que o homem religioso tende a aproveitar ao máximo possível esse tempo que está no universo do sagrado, bem como a experiência de vida que carrega. Assim, mesmo aquele que diz estar no evento somente pelo trabalho e que tenta excluir uma ligação religiosa com o momento não consegue apagar o comportamento religioso: O extremo policial pra mim envolve mais emoção porque tu vês as pessoas ali comovidas com a cena. Mas, pra mim, não sou católico, então não tem emoção pra mim. Encaro apenas como trabalho. Só como lado profissional. Agora é claro, pô, tu vê pessoas ali que ... tu pensas muito mais nas pessoas que pô, tão andando de joelhos e tal, tá ferida. Ou então uma pessoa que passou mal, tu fica comovido com a realidade daquela pessoa, mas não com o Círio em si. Eu não consigo me comover com isso (Severiano Silva, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus)
Embora o jornalista admita que trabalhar na festividade do Círio não lhe toca profundamente, por não ser católico, o que leva a compreender que tem uma visão de espaço homogêneo sem um “ponto fixo”23, por isso o acontecimento ao seu redor surge como mais um dentre os vários que costuma registrar. Assim, a experiência do espaço que ele descortina se mostra fragmentada, neutra e relativa, não necessariamente por vontade própria. Entretanto, quando reconhece a confissão de fé do Outro, expressada no “sacrifício” de uma promessa, ele, sem saber, admite estar num espaço sagrado que ainda que não possa transforma-lo, pode conduzi-lo a refletir sobre a realidade que o circunda. Nessa experiência do espaço profano ainda intervêm valores que, de algum modo, lembram a não-homogeneidade específica da experiência religiosa do espaço [...] Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não religioso, uma qualidade excepcional, “única”: são os lugares sagrados” do seu universo privado, como se neles um ser não-religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana. (Eliade, 2010 , p. 28).
Esta outra realidade que é apresentada a este jornalista também acompanha uma noção do Tempo como sendo heterogêneo e descontínuo, peculiar ao homem religioso, isso porque é na “comoção” que diz ter sentido, ao ver os romeiros em procissão, que o profissional viveu e conheceu um ritmo temporal diferente e que somente foi possível através desse dia, a festa do Círio. Podemos comparar a atitude do jornalista ao do homem não-religioso, que vive e experimenta ritmos temporais variados, no entanto o Tempo é encarado por ele simplesmente como uma experiência humana na qual nenhuma presença divina se pode inserir. “Para o homem não religioso o Tempo não pode apresentar nem roturas nem ‘mistério’: constitui a mais profunda dimensão existencial do homem, está ligado à sua própria existência, portanto tem um começo e um fim, que Pág.108
é a morte, o aniquilamento da existência” (Eliade, 2010, p. 65). Esses Tempo e Espaço sagrados que atuam sobre os jornalistas, capazes de intervir nos olhares que influenciam a atividade profissional podem ser explicados pelo papel do mito na vida do ser humano. De acordo com Mendonça (2002), na experiência profana vivida pelo homem moderno, a-religioso, reside uma sociedade dessacralizada. Embora não acredite ou oculte a atmosfera sagrada, este homem tem sua origem no homo religiosus que reconhecia a necessidade de viver a crença no mito como forma de comunicação com o sagrado. Nisso, encontra-se a base da permanência do pensamento mítico na sociedade moderna e, também, a conexão interpretativa para a forma de degradada que o mito adquire nesta sociedade. Mendonça (2002) pontua que o mito no mundo tradicional tinha um caráter existencial, o homem recorria a ele como segurança diante da morte, todavia na sociedade moderna este sentido foi sendo apagado, suprimido pela efemeridade que já não mais consegue impedir o desespero e a alienação do indivíduo. Destituiu a representação da estabilidade e segurança, de duração do sagrado. Apesar de Mendonça (2002) dirigir a sua análise para o mito na política, esta ponderação é apropriada para comentar a experiência de um evento mítico religioso, como o Círio de Nazaré, no comportamento profissional dos jornalistas que reflete na produção da notícia. “Recuperando o mítico, o homem ‘tolera a história’ e ao mesmo tempo se consola” (Eliade apud Mendonça, 2002, p. 227). Este consolo que os autores mencionam tem nítida associação com o momento de “fuga”, ao qual me referi no início do texto. Segundo Mendonça (2002), a vida moderna não apagou a função do consolo no mito, mas a relação do homem com a história que passa a criar voluntariamente outra história no qual o homem busca se salvaguardar. No caso dos jornalistas, o trabalho na cobertura da festividade do Círio representa um evadir-se das reportagens sobre a violência “habitual” da cidade que são noticiadas, pois o Círio consegue (re) construir um sentido profissional e também humano: Todo o Círio é um insight. Pra mim, eu sou católico, eu chego ali eu me sinto, em primeiro lugar, um privilegiado porque eu posso chegar muito próximo a ela (refere-se à imagem da Santa). Dos dois milhões de pessoas que tão ali, eu faço parte de uma dezena que pode chegar muito perto, muito próximo. Então eu já sou privilegiado por isso. A emoção todo ano existe. Você não tem como não se arrepiar, como não ficar emocionado, como não sentir aquele calor que emana das pessoas. E aquilo ali é uma força poderosíssima. Aquilo ali eu acho que acende um estádio de futebol. Se puder canalizar aquela energia em energia elétrica aquilo ali vai ascender um estádio. Porque é muita energia, muita força, muita fé. E isso, e essas emoções, essas manifestações geram imagens pra nós fantásticas. E a nossa busca é essa, poder cada vez mais sintetizar, mostrar essa força, essa fé em imagens (Sandoval, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus) Tem repórteres fotográficos que não são católicos que vão lá e fazem um trabalho mostrando toda a fé, toda força de Nossa Senhora diante daquele povo, porque, independente de religião, aquela imagem tem uma força incomensurável. Aquela imagem, independente da religião que tu possas ter, tu observando aquilo ali, aquela manifestação, não tem como não te emocionar. Uma imagem de quarenta centímetros que leva dois milhões de pessoas para rua numa cidade que tem um milhão e meio de habitantes (Michel, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus) Olha, eu acho, primeiro como paraense, mexe com o nosso imaginário. E eu, como trabalho com imagem, não é a mesma coisa, é diferente. Porque tem uma questão ai Pág.109
cultural, eu acho que faz parte da nossa história, da nossa cultura de Belém. Cobrir o Círio é especial. Eu já cobri quase todo o tempo que eu tenho de fotografia eu nunca faltei um Círio. Eu não consigo não fotografar. Eu faço o Círio fluvial, a trasladação, mas o Círio mesmo eu quero tá nem que seja, assim, uma hora, meia hora pra fazer o Círio. Acho que já não é mais só católico, transcende a religião tem candomblé, tem espírita. (Celina, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus).
Segundo Alves (2005), a festa atualiza o mito de fundação do culto e da festividade de Nazaré, especialmente ao sacralizar os espaços percorridos pela procissão e ao definir o evento como a mais forte manifestação da identidade paraense (a ideia de uma identidade regional) pelos personagens e pelas situações vividas na performance ritual. Em certo sentido, não difere, formalmente, de outras lendas e narrativas que consubstanciam os cultos à Virgem Maria em muitos outros países e cidades. O mito conta uma história sagrada, narra um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Nele há uma história verdadeira porque está vinculado a realidades, e sua função é revelar modelos exemplares de todos os ritos das atividades humanas significativas (Eliade, 2000). As sociedades primitivas e arcaicas compreendiam o valor do mito como fundamentação da vida social e da cultura, pois ele trazia uma verdade absoluta já que conta uma história sagrada por intermédio de uma revelação transumana que, segundo, Eliade (1957), teve um lugar no início do Grande Tempo. A dualidade do mito em ser real e sagrado, isso o tornou exemplar passível de se repetir, servia de modelo, pois continha a explicação dos atos humanos. Noutros termos, um mito é uma história verdadeira que se passou no começo dos tempos e que serve de modelo aos comportamentos humanos. Ao imitar os atos exemplares de um deus ou herói mítico, ou simplesmente ao narrar as suas aventuras, o homem das sociedades arcaicas destaca-se do tempo profano e reúne-se magicamente ao Grande Tempo, ao tempo sagrado. (Eliade, 1956, p. 16)
A função do mito e dos símbolos nas sociedades modernas está longe de ter o mesmo papel do que foi nas sociedades tradicionais e primitivas, contudo, não seria nenhum desacerto dizer que a função do mito atuou nesse momento da vida dos entrevistados, mesmo sabendo que a realidade que eles encontram no cotidiano, fora desse Grande Tempo, é aquela dos mais diversos problemas sociais que afligem a sociedade belenense (em particular a violência). Entretanto o comportamento mítico se conserva, pois é na observação da manifestação religiosa dos devotos da Virgem de Nazaré que os jornalistas entram em contato com a história verdadeira, como o próprio entrevistado diz: “Porque é muita energia, muita força, muita fé. E isso, e essas emoções, essas manifestações geram imagens para nós fantásticas. E a nossa busca é essa, poder cada vez mais sintetizar, mostrar essa força, essa fé em imagens” (Cristovão, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus). A compreensão desse tempo sagrado corresponde a certa regeneração do tempo na cidade, onde os “males” que afetam as relações sociais são suplantados por uma perspectiva de um “novo começo”, mesmo que seja no mês de outubro. No pensamento de Eliade (2010) a regeneração pelo regresso ao tempo original tem dois elementos centrais: o primeiro enfatiza a regeneração ao tempo original que acontecia a partir da repetição anual da cosmogonia (das lendas e teorias das origens do universo), ou seja, o tempo recomeçava como Tempo sagrado, juntamente com illud tempus24 em que o Mundo viera pela primeira vez à existência; o segundo dizia respeito à participação do homem na “recriação” do mundo, o que faz dele contemporâneo do Pág.110
illud tempus, sendo assim, nascia de novo, era o recomeço da sua existência. Tais elementos ajudam a entender o comportamento do homem religioso em relação ao Tempo.
Esses fatos são importantes, pois desvendam-nos o segredo do comportamento do homem religioso em relação ao Tempo (grifos meus). Tempo sagrado e forte é o Tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente, o homem esforçar-se-á por voltar a unir-se periodicamente a esse Tempo original. Essa reatualização ritual do illud tempus da primeira epifania de uma realidade está na base de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e, portanto religioso), mas sim sua reatualização. (Eliade, 2010, p.73).
Sem intenção de cometer uma redundância displicente, chamo a atenção para a abordagem feita por Eliade (2010) que é pensada em direção às sociedades tradicionais e primitivas, no entanto o caráter de conservação do comportamento mítico independe do nível de evolução da sociedade. Portanto essa ideia de regeneração do tempo auxilia a pensar no sentido que os jornalistas, especialmente os repórteres fotográficos, atribuem ao Círio quando dizem: “Círio pra mim é tudo. Tem gente que diz que Círio não tem mais imagem pra fotografar, que é tudo a mesma coisa. Que nada! Todo o Círio é um insight”. Ao contrariar a opinião de que o Círio é um evento igual em todos os anos, os profissionais reatualizam25 aquele dia, é uma volta ao Tempo de origem, pois as emoções vividas naquele momento passam a estampar as páginas dos jornais que “recriam” um mundo estável e harmônico – e oculta fica momentaneamente a carga dramática de meses de imersão na produção de notícias sobre violência, em particular na imagem fotográfica. O Círio de Nazaré “transforma” a cidade de Belém. Alves (2005) descreve como sendo dias de um intenso, por vezes dramático, encontro que envolve fé, alegria, festejos e sentimentos profundos. O tempo da festa, sendo uma espécie de parada cósmica, revela-se como o momento liminar em que o modo de vida e o mundo social fazem a sua passagem anual (Alves, 2005). É na parada do tempo que os jornalistas encontram a direção oposta de uma emoção que não mais carece de apelo em torno da violência para tocar o Outro. A atmosfera dos dias nazarenos deixa-os homens comuns, faz desaparecer a “síndrome de Clark Kent”, de achar que vai mudar o mundo e a arrogância de uma identidade forjada de fiscais do povo. Olha, pra mim o Círio sempre me emociona muito. Sempre cada Círio é um Círio, cada sentimento. Parece que tem Círio que eu choro mais que outros, a gente se sente sensível, mais cometido. Mas eu choro sempre. Embora eu não me considere católica. Eu acredito em Deus, mas eu acho que, o que me move ali é a energia e perceber que ali tem vários universos juntos. E naquele momento tá todo mundo pensando numa coisa, na fé, na esperança, e isso é muito legal de ver. Que ali, naquele momento, pessoas de diferentes idades, classes sociais, etnias inclusive, estão ali num momento não pensando: Ah! Eu sou católico ... Ah! Eu sou evangélico... Eu sou espírita... Eu sou do candomblé, eu sou branco, preto, vermelho. Ali tu tá só pensando numa coisa: na esperança, no amor, na fé, solidariedade também que a gente vê muito (Margarette, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus). Eu gosto muito de ver os relatos, de ver a fé que move as pessoas. Se tem uma coisa que me impressiona muito mesmo é a fé das pessoas. Eu até digo que eu fico admirada porque eu queria ter tanta fé o quanto aquelas pessoas têm. Então eu Pág.111
acho que eu não tenho tanta fé assim. Mas a emoção vem justamente quando contam o que aconteceu. Aconteceram situações que só realmente um milagre para salvar a vida de alguém e aí eu fico emocionada (Cecília Meirelles, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus). Esse foi o vigésimo primeiro Círio. E eu já fazia antes disso. Eu nunca deixei de fazer nenhum, desde que comecei trabalhar em jornal. Teve um ano que eu, já na edição do Amazônia, decidi que não ia porque eu tava virando, trabalhando muito e tal, eu estava cansado e eu disse, não, eu não vou, a equipe estava “ok” e resolvi não ir. Ai eu acordei em casa, liguei a televisão e a berlinda estava ali dobrando, entrando na Presidente Vargas. Aí eu não aguentei. Levantei da cama num pulo . Tomei um banho, vesti minha roupa. Corri lá pro CAN pra esperar a chegada. Eu não posso passar um ano sem fazer. É como se fosse assim, como se fosse ficar faltando um pedaço daquele ano, sei lá! Como se tivesse faltando até com um compromisso com ... não sei ... não sei ... Uma coisa que impele, que leva. (Cristovão, jornalista do Jornal Amazônia, grifos meus).
Foi apresentado no início desta abordagem que o mito tem a capacidade de tornar-se modelo exemplar que conta uma história sagrada que revela um mistério ao homem, pois possibilita também a crença na renovação do mundo. O relato dos três jornalistas nos conduz para este caminho, uma vez que eles expressam sentimentos comuns que mantêm a ligação com o sagrado – em diferentes graduações. No entanto para que a “renovação” aconteça é necessária uma situação concreta na vida do homem. No caso abordado aqui, o Círio assume essa espécie de ciclo temporal para a “renovação”.
O “Mundo”, portanto, é sempre o mundo que se conhece e no qual se vive; ele difere de um tipo de cultura para outra; existe, por conseguinte, um número considerável de “Mundos”. [...]. Trata-se, contudo, sempre de um ciclo, isto é, de uma duração temporal que tem um começo e um fim. Ora, no fim de um ciclo e no início do ciclo seguinte, realiza-se uma série de rituais que visam a renovação do mundo (Eliade, 2000, p. 44).
Essa “renovação do Mundo” tem no ritual mítico a sustentação para o que Eliade (2000) chamou de a perfeição dos primórdios que surge de uma experiência religiosa íntima do homem que tem na recordação imaginária o sentido de paraíso perdido, de uma contemplação mítica que precede a atual condição humana. Para Mendonça (2002), os mitos de criação do mundo, que acalentavam o homem das sociedades primitivas ao tempo e à história, são na sociedade moderna ocultados sob o manto da razão que remetem às imagens primordiais não-históricas. A construção imagética do “Mundo” renovado pode se mostrar uma ação contraditória ou até mesmo difícil de alcançar nas sociedades modernas ou pós-modernas, que estão à forjar ou destruir os mitos, sobretudo quando se tem o aparato dos meios de comunicação, este entregue ao apelo mercadológico já irreversível. Estive, ao longo do texto, evocando o mito, cuja dimensão de análise é mais profunda do que foi apresentado aqui, para extrair a importância do comportamento mítico que se conserva na sociedade. Isso pode Pág.112
tornar-se uma experiência religiosa. Coloco o exemplo de profissionais que, antes de tudo, são seres humanos que no contato com o sagrado, de maneira diferenciada, se permitiram a “abertura” a ponto de reconhecer valores absolutos que referenciam sua existência humana. A referência do transcendente, do Tempo e Espaço sagrado, ou de tudo aquilo faz lembrar laços de solidariedade possibilita um grau mínimo de reflexão da vida que pode até se dar somente no mês de outubro, durante os festejos do Círio de Nazaré, mas é capaz de fazer os profissionais romperem o pessimismo advindo da rotina caótica da cidade. O Círio é o evento mais aguardado pelos fotojornalistas. A edição de segunda-feira, após a procissão, cria expectativas já que poderão saber qual jornal publicou mais fotos, quem teve a fotografia publicada, mexe com a vaidade dos profissionais. A motivação religiosa pode ficar de lado ou ser apagada, mas o contexto da festa do Círio altera até a rivalidade entre os jornais da cidade e a vaidade entre os profissionais, pois a competição passa a não ser pelas imagens da morte, da violência abrupta, mas das melhores imagens que representaram o Círio daquele ano.
Cara, vou te falar uma coisa. É ... assim. O jornal de segunda-feira é um jornal muito esperado pelo meio da fotografia. É o dia do “racha-racha”, entre aspas. É um jornal que todo mundo quer ver no outro dia cara, no meio da fotografia sabe. É lá que é a moral da história. Ali é o dia que tu vai ver quem é que ganhou, sabe? A gente diz que a competição da foto é lá (...) O “racha-racha”, o modo de falar, pra ti não entender errado. O que é o “racha-racha”? É quando tu vê quem ganhou. Se foi o Diário ou se foi O Liberal (...) Porque ali é a história doutor. Se tu publicou uma foto numa segunda-feira, tu já tá eleito cara. (Juscelino, jornalista do Jornal Amazônia).
Olhar as imagens fotográficas da festividade do Círio nos jornais é, de certo modo, olhar a expressão de uma contracorrente que se apresenta diante de uma situação de obscuridade na construção imagética da violência tão explorada pelos meios de comunicação da capital paraense. O Círio é o consolo que Belém preserva, porque tem nesse evento anual a renovação do Tempo e Espaço que, muitas vezes, aparentam não ter um recomeçar.
Referências bibliográficas ALVES, Isidoro. A festiva devoção no Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Estudos Avançados, vol.19 no.54 São Paulo May/Aug. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000200017 .Acesso 05.01.2013. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000. ELIADE, Mircea O sagrado e profano: a essência das religiões. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. ELIADE, Mircea Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa – Portugal: Edições 70, 1957. MENDONÇA, Kátia. A salvação pelo espetáculo: Mito do herói e política no Brasil. Rio de Janeiro: TopBooks, 2002. PAMUK, Orhan. A maleta de meu pai. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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Testemunhar milagres: uma perspectiva hermenêutica José Maria Guimarães Ramos26
Introdução
A questão dos milagres: testemunhos, narrativas e controvérsias, embora seja um tema que remonta o início do cristianismo e consequentemente à história ocidental à qual o cristianismo faz parte, no século XX tornou-se um tema sem importância para estudiosos por causa do cientificismo e da secularização que orientaram a retirada da religião da esfera pública para confiná-la na esfera privada. Isto aconteceu quando se colocou em prática uma visão da realidade reduzida ao olhar metodológico da ciência moderna como única interpretação digna de crédito. Ao contrário, Gadamer (1997, p. 31) mostrar que o olhar científico não é exclusivo, mas um, entre outros, que interpretam um texto: “entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo”. É sob esta perspectiva que tomo a presente reflexão sobre testemunho de milagres, a saber, como um texto a ser lido, ou melhor interpretado para perceber como este fenômeno religioso dialoga com a vida de uma sociedade e “do homem no mundo”. Para isso, além da contribuição de Gadamer, tomo a noção de texto e a hermenêutica do testemunho de Paul Ricoeur e a dialógica de Martim Buber para mostrar como uma narrativa de milagre mostra um modo de compreender e de estar mundo. Com a saída de cena da religião, os assuntos referentes a ela, experiências, ritos, mitos e narrativas perderam interlocução, mas não desapareceram como se postulava e continuaram e existir de forma subjacente como as “memórias subterrâneas” pensadas por Pollak (1989, p.4), ou seja, estavam operando em uma dinâmica silenciosa e no final do século XX emergiram que “de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes”.
Tomar milagres como objeto de pesquisa é sobretudo colocar-se a escutar as narrativas daqueles que viveram este tipo experiência, é a partir das narrativas colocadas como testemunho que as ciências humanas, psicologia, filosofia, sociologia e antropologia entre outras podem ser acionadas. Portanto, o testemunho é o ponto de partida para inteligibilidade do milagre enquanto uma experiência religiosa que refloresce não somente nos lugares tradicionais de culto religioso, ou seja, igrejas, santuários, procissões e locais de peregrinações, mas em redes de televisão e rádio nos quais são mostrados ao vivo atraindo a atenção de um público Pág.114
sempre atônito. Esta espetacularização dos milagres chegou à internet através das redes sociais e sites especializados no assunto, além de inúmeras publicações de livros e artigos sobre o tema, o que mostra a dimensão deste fenômeno. Como se observa, o campo e as fontes de pesquisa são abundantes para quem deseja estudar ou se aventurar em um trabalho etnográfico sobre este assunto, meu objetivo é, porém, perceber nos testemunhos os significados latentes que fazem com que estas experiências se tornem públicas dialogando com o mundo contemporâneo.
A herança da tradição oral Para iniciar a reflexão sobre a posição que ocupa um testemunho de tipo religioso é importante ter claro a que tipo de tradição estas narrativas pertencem, quais bases epistemológicas as sustentam, como diz Gadamer (1997, p.31): “ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? ” Ricoeur (2007) mostra como a memória individual faz parte da tradição do olhar interior como postulou Santo Agostinho que nas suas “Confissões” procurou registrar e transmitir uma experiência viva de impressões pessoais de sua consciência total, pois sua memória, ou autobiografia, é montada com pressupostos cognitivos, práticos e afetivos retirados de sua memória privada, ou seja, de sua interioridade. Um testemunho de milagres deve ser ouvido levando em consideração todos estes aspectos que, de certa forma, também alcança a interioridade de quem escuta. Esta é chave de interpretação dessas narrativas que permite perceber como o narrador constrói seu próprio evento, ou seja, uma cura milagrosa, um salvamento de uma tragédia ou uma conversão religiosa como no caso de Santo Agostinho. Estes fenômenos de religiosidade dão sentido a uma realidade social de significados e tornam a vida possível por uma visão de mundo elaborada a partir de um material simbólico em uma realidade concebida como transcendente e divina, por isso, o campo religioso é um dos estruturadores da visão de mundo na qual narrativas de milagres são possíveis. Deste modo o testemunho se oferece como um texto a ser lido, interpretado e compreendido pelo diálogo entre testemunho e ouvinte, este que, nas tradições orais, aprende em silêncio, no ouvir para “aprofundar os ensinamentos recebidos” (Hampaté Bâ, 2010, p. 208). O mundo interpretado pela técnica perdeu a confiança na palavra, no relato e no testemunho destruindo a ligação que dava unidade aos indivíduos pelas narrativas compartilhadas por todos. Este é o mundo daquele que testemunha, que recorre à narração para expressar sua interioridade em uma sociedade da suspeita que precisa de provas incontestáveis para sanar dúvidas. Isto quase extinguiu a arte de narrar como frisou Benjamim:
É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Uma das causas desse fenômeno é evidente: as ações da experiência estão em baixa. Pág.115
Benjamim (2012, p. 213):
A extinção da arte de narrar acompanha a extinção das tradições orais onde o intercâmbio de testemunhos constrói uma realidade compartilhada que se estrutura sobre o “poder da palavra” característica das tradições orais como disse Hampaté Bâ (2010, p.182) “o que acontece por trás do testemunho é o próprio valor do homem que faz o testemunho [...] e o valor atribuído à verdade de uma certa sociedade”. É pelo vínculo social que se fundamenta na verdade, ou seja, que a palavra do outro tem plausibilidade, não há necessidade de métodos científicos que atestem a veracidade da palavra. Ao ouvir um testemunho de milagre percebe-se que esse vínculo como a oralidade não foi totalmente interrompido, com isso, “o mundo que nos cerca é uma narrativa, nosso comportamento, nossas ações, nossa moral, nossa identidade, nossa arte, etc. são narrativas, o outro é uma narrativa” (Mendonça, 2014, p 258). Com isso, se responde ao questionamento de Gadamer sobre o conhecimento e a verdade, isto é, a ação de narrar ou de testemunhar extrai sua autoridade de um contexto social onde os indivíduos compartilham relações confiáveis que forjam instituições como família, comunidade e a própria narrativa coloca-se como uma instituição legitimada pela sociedade, verdade e conhecimento são construídos nesse âmbito social e nunca é uma ação isolada como disse Bourdieu (2010). Neste contesto, os conceitos de conhecimento e verdade não estão dissociados, a sua racionalidade está no conjunto da vida em comum que não é justificada por um procedimento metodológico pré-definido, mas em vista do sentido vital dos indivíduos. A seguir mostro um relato de milagre feito por Irmã Lúcia, uma das videntes das aparições de Fátima em Portugal em 1917, tal relato foi registrado e arquivado na época das aparições:
[...] Outra vez, era um soldado que chorava como uma criança. Tinha recebido ordem de partir para a guerra e deixava a sua mulher em cama, doente, e três filhinhos. Ele pedia ou a cura da mulher ou a revogação da ordem. A Jacinta convidou-o a rezar com ela o Terço. Depois disse-lhe: – Não chore. Nossa Senhora é tão boa! Com certeza faz-lhe a graça que Lhe pede. E não esqueceu mais o seu soldado. No fim do Terço rezava sempre uma Ave-Maria pelo soldado. Passados alguns meses, apareceu com sua esposa e seus três filhinhos para agradecer a Nossa Senhora as duas graças recebidas. Por causa duma febre que Ihe tinha dado na véspera de partir, tinha sido livre do serviço militar e sua esposa, dizia ele, tinha sido curada por milagre de Nossa Senhora. (Lúcia, 2007, p.57, grifo meu).
Observa-se no relato acima um único testemunho, mas com a interposição de falas de vários personagens que mostra que a narrativa não é uma construção individual. A conclusão da narrativa acima tem no centro a expressão “dizia ele”, a palavra do soldado testemunha o milagre, a experiência religiosa foi vivida integralmente por ele, mas com a participação dos outros atores que perceberam igualmente o fato como um milagre. Segundo Hartmann (2013, p. 67) “a prática de contar e ouvir histórias está inserida num complexo ‘evento de fala’ que, através do uso de várias linguagens, representa a vitalidade de uma tradição que é recriada dia após dia”.
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Percebe-se no relato de Irmã Lúcia o que Gadamer chama de “entendimento tácito” que se estabelece na orientação comum do mundo construído e orientado pela linguagem. Compreender este tipo de narrativa requer uma atitude de abertura para dialogar com ela, não de refutá-la ou de partir da dúvida cartesiana para depois reconstruí-la o que torna impossível a compreensão. Para o autor dialogar que dizer:
Conversa não é primariamente controvérsia. Parece-me característica da modernidade apreciar em demasia a identificação entre conversa e controvérsia. Conversar também não é mutuamente desentender-se ou passar ao largo do outro. Constrói-se, ao contrário, um aspecto comum do que é falado. A verdadeira realidade da comunicação humana é o fato do diálogo não ser nem a contraposição de um contra a opinião do outro e nem o aditamento ou soma de uma opinião à outra. O diálogo transforma ambos. O êxito de um diálogo dá-se quando já não se pode recair no dissenso que lhe deu origem. Uma solidariedade ética e social só pode acontecer na comunhão de opiniões, que é tão comum que já não é minha nem sua opinião, mas uma interpretação comum do mundo. (Gadamer, 2002, p. 221).
Uma vez superada a barreira da controvérsia e do desentendimento é possível uma interpretação comum do mundo, mas isso só é possível com a atitude de abertura e de escuta à opinião do outro. Noções pré-concebidas são um empecilho pois levam ao dissenso. A interpretação comum do mundo é fruto do diálogo, do entendimento que só é possível quando existe um certo nível de coesão social, nesse sentido, os fenômenos religiosos como os testemunhos de tais fenômenos sempre tiveram um papel importante. Em última análise, o problema é sim de legitimidade dos discursos, mas este problema pensado enquanto uma questão de método científico é irresoluto, visto que os procedimentos científicos têm seus próprios mecanismos, como a verificabilidade empírica e instrumentos técnicos de análise e de prova, sem os quais a ciência não pode emitir resultados. Por isso, para Gadamer partir dessa controvérsia não é o melhor caminho.
A hermenêutica do testemunho em Paul Ricoeur A necessidade de abertura ao outro que acontece no diálogo é um ponto central no pensamento de Paul Ricoeur, que ao tomar como fonte os testemunhos como compreensão e explicação histórica analisando a memória declarada de quem vivenciou os fatos. Esta visão epistemológica conciliadora expande a percepção do mundo com narrativas, memória, história, direito, simbólico, etc. tudo isso, é questão hermenêutica. Esta amplitude do pensamento que permite a leitura do social. Ricoeur coloca a questão sob o ponto de vista da reflexividade que é a hermenêutica da relação como o outro, pois ao compreendê-lo compreende a si mesmo. Isto elimina a controvérsia, para lembrar Gadamer, que opõe sujeito e objeto do conhecimento. As narrativas de milagres se sustentam com as declarações de seus personagens que com suas experiências interpretam e fazem a história, isto acontece sobretudo sob a forma de testemunhos ou “memória declarada” como os chama Ricoeur, a abordagem deste autor pode ser denominada como uma hermenêutica de testemunho, pois segundo ele:
O testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo das “coisas do Pág.117
passado” (praeterita), das condições de possibilidade ao processo efetivo da operação historiográfica. Com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental. (Ricoeur, 2007, p.170)
A análise do testemunho, enquanto um procedimento epistemológico como se vê acima é um processo, ou seja, é um percurso de compreensão e explicação da história que satisfaz tanto os fundamentos filosóficos do questionamento ontológico sobre a essência das coisas com clássica e fundamental pergunta “o que é isto? ”, neste caso “o que é a história? ”, como a necessidade de considerar os conteúdos de como a história acontece. Pois, na análise do testemunho o autor não dissocia “forma” e “conteúdo”, que é, para ele, condição e possibilidade da própria história. Isto nunca foi negado por ninguém, mas conciliar forma e conteúdo parecia já definida como uma aporia que somente era resolvida exclusivamente em termos conceituais no pensamento de Aristóteles. O autor consegue ligar essas duas dimensões da história, ou seja, “forma” e “conteúdo” usando o testemunho como vínculo, explorando seu potencial de emprego, por se uma prática cotidiana de representação do passado e da realidade em forma de depoimentos, narrativas, imagens e retóricas que formam a memória arquivada (Ricoeur, 2007, 170). Deste modo, se expande para a historiografia o campo de suas fontes. Que fontes são essas? Em sintonia com a mudança de paradigma sobre as fontes históricas e de que a memória é coletiva o que possibilitou que a narrativa se tornasse fonte, o conteúdo das narrativas também se tornou objeto de análise histórica e social para uma compreensão mais ampla da realidade social, como é mostrado a seguir por Marc Bloch (1993, p. 43-44):
Não podia se podia pensar em considerar os ritos de cura isoladamente, fora de todo esse grupo de superstições e legendas que formam o “maravilhoso” monárquico; isso teria sido condenar-se antecipadamente a vê-los apenas como uma anomalia ridícula, sem ligação com as tendências gerais da consciência coletiva. Esses ritos serviram-me de fio condutor para estudar, particularmente na França e na Inglaterra, o caráter sobrenatural que por longo tempo foi atribuído ao poder régio aquilo que poderíamos chamar a realeza “mística”. [...]. Ora, para compreender o que foram as monarquias de outrora, para sobretudo dar-se conta de sua longa dominação sobre os espíritos dos homens, não é suficiente apenas esclarecer até o último detalhe o mecanismo da organização administrativa, judiciária, financeira que essas monarquias impuseram a seus súditos; nem é suficiente analisar abstratamente ou procurar extrair de alguns grandes teóricos os conceitos de absolutismo ou de direito divino. É necessário também penetrar as crenças e as fábulas que floresceram em torno das casas principescas. Em muitos pontos, todo esse folclore diz-nos mais do que diria qualquer tratado doutrinal.
Assim, para Marc Bloch (1993, p. 35) os testemunhos de milagres dos reis são fontes preciosas para entender as sociedades francesa e inglesa do século XII ao XVIII:
Entre os fiéis, conta-se que uma mulher cujo filho sofria com uma febre quartã atravessou sub-repticiamente a multidão até o rei, aproximou-se dele por traz e, sem que o soberano percebesse, arrancou algumas granjas do manto real; ela colocou-as em água e fez o filho beber essa água. A febre logo baixou; o doente curou-se. De minha parte, não ponho a coisa em dúvida. De fato, eu mesmo vi, bem frequentemente, demônios Pág.118
que habitavam corpos possuídos gritar o nome desse rei e, denunciados pela virtude que emanava dele, confessar seus crimes.
Este testemunho vai ao encontro de Ricoeur (2007, p.172) quando diz que a “fórmula típica do testemunho: eu estava lá”, tem um caráter “auto-refencial” que balanceia, que dá plausibilidade ao discurso, pois atesta a realidade da coisa passada, seu conteúdo, espaço e tempo que é digno de crédito. A realidade que vai além da empiria, isto é, ao nível da consciência que configura as representações sociais compartilhadas pelo grupo estão na “estrutura dialogal do testemunho” (Ricoeur, 2007, p.173) que configura as condições gerais de comunicação e de aceite da narrativa, esta situação de diálogo funda o espaço público, palco de toda a vida social. Para Ricoeur (2007, p.173) todo testemunho é um pedido de crédito, de confiança, pois “eu estava lá” e mais ainda outros podem confirmar, de modo que, a palavra é colocada à prova não pública somente, mas do tempo. A confiabilidade é submetida à prova do tempo, não para provar a existência de uma realidade objetiva de um milagre por exemplo, mas a realidade de uma experiência vivida coletivamente em que seu significado é determinado pelo espaço e tempo históricos e pelas representações que seus sujeitos têm de sua existência e da existência do mundo. Ricoeur ao interpretar a parábola do bom samaritano mostra como ele se orienta no mundo, como sua ação pode ser lida como um texto que interpreta o próprio mundo. Pois como diz Mendonça (2014, p.265) “o Samaritano é orientado por um olhar, por uma ótica, por uma forma de ler e interpretar o mundo que o capacita para a relação que é o próximo”. O olhar de quem narra revela os valores e concepções que o norteiam sua ação no mundo, compreender e ter a capacidade de dialogar com essas concepções.
Estava em Beirute, como meu assistente, e acompanhávamos um xiita pela rua. [...] Dois segundos depois ouvimos um ruído característico de um obus de morteiro, vindo diretamente sobre nós. Nos jogamos todos no chão, cruzando os braços sobre a cabeça. Nesse caso, nós não tínhamos a menor chance. E eu vi, bem distintamente, o foguete chegar sobre nós, como num filme de câmera lenta; eu cheguei até a distinguir as asas do foguete, descrevendo uma bela curva para cair a um metro de meu nariz, num banco de areia. Eu me encolhi, esperando a explosão, sabendo que seria o fim. Não sei por que, mas milagrosamente ele não explodiu. (Jovanovic, 1995, p.106)
Este é um relato jornalístico que na descrição dos fatos dá sua própria interpretação do mesmo: “Não sei por que”, é inexplicável, é concebido como um milagre, não no sentido estritamente religioso, mas por ser inexplicável. No entanto, o autor percebe o fato como algo extraordinário que vai além de sua compreensão. Ele coloca o acontecimento em suspenso de juízos e sem tomar posição, deixa essa responsabilidade para o ouvinte. Isto é reflexividade, onde quem ouve olha para si mesmo, procura harmonizar suas próprias opiniões consigo mesmo, o esforço de compreender-se parece maior que compreender o texto. Assim, entra em diálogo as concepções de quem narra e de quem escuta. Isto Ricoeur (s/d, p.155) chama de apropriação: “Por apropriação, eu entendo isto: a interpretação de um texto completa-se na interpretação de si de um sujeito que doravante se compreende melhor, se compreende de outro modo, ou começa mesmo a compreender-se”.
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O testemunho enquanto relação dialógica Por isso, para Ricoeur (s/d, p.155) “ler é. Em qualquer hipótese, encadear um discurso novo no discurso do texto” o que mostra o seu caráter de abertura. Com isso o pensamento sobre o diálogo de Ricoeur se aproxima à dialógica de Buber, para o qual abertura, ou seja, o entrar em contato com o outro com a totalidade do ser é uma condição. Assim, não há controvérsia com interlocutor algum: o outro, a natureza e Deus (Buber, 1979). Este tipo de abertura é fundamente para escutar uma narrativa de milagre, a escuta dá acesso ao interno não somente do psiquismo ou da realidade social do outro, mas é via de acesso ao ser. Por isso, para Buber (2014) o homem só pode existir em relação, toda a sua vida é encontro. Segundo Mendonça (2014, p.64),
Como para Ricoeur, temos que em Buber a característica do encontro dialógico não é o dever-ser, mas o poder-ser, pois o diálogo não se impõe a ninguém. Responder não é um dever, mas um poder. [...]. Não há aqui dotados e não dotados, somente há aqueles que se dão e aqueles que se retraem. Pessoas e tempos estão em abertos; hoje o que se retrai pode amanhã abrir-se e vice-versa; mesmo que não tenha disso consciência. A imprevisibilidade e a não obrigatoriedade são marcas da relação dialógica, são elas que permitem o encontro.
Escutar uma narrativa sob ponto de vista da totalidade do ser permite compreender a razão de tal discurso e como ele é possível, é descobrir como um milagre que é testemunhado tem sentido da vivência de alguém, suas emoções, problemática e compreensão de como a vida se apresenta para ele.
Considerações finais Narrativa e imaginário são duas partes de uma mesma realidade quando se fala em milagres. Se dar assentimento à “palavra” do outro é um princípio do vínculo social e o testemunho torna-se uma instituição (Ricoeur,2007, p.174) que atesta a vida de narrativas, narradores e ouvintes. É onde a lógica cosmológica se expressa no diálogo intersubjetivo. Hoje quando escutamos falar em milagres imaginamos várias possibilidades de compreensão, ou de utilização. A afirmativa de um vínculo entre pessoas se mistura com tantos aspectos do contexto religioso de hoje: a espetacularização desses fatos de religiosidade explorados pelas igrejas neopentecostais, a desconfiança nesse tipo de discurso, sua utilização na propaganda, etc., mas essas narrativas preservam ainda aspectos importantes das tradições orais em que a confiabilidade no discurso do outro gera vínculo social. Narrativas, como um testemunho de milagre, vistas com a perspectiva da dialógica de Buber (2014) ajudam a pensar o social não somente como um vínculo de relações comuns a indivíduos de um mesmo grupo, onde as relações só têm funções sociais que dizem respeito à coletividade, mas como uma relação essencial entre um membro e outro na integridade e autenticidade das relações. Isto se dá em certas comunidades que, prescindindo do ceticismo científico e filosófico, continuam Pág.120
firmes na tradição oral. Essas comunidades baseiam-se na confiabilidade e no poder de veracidade da “palavra” revestida de uma aura. Com isso, essas vozes deixam de ser subterrâneas e ora dialogam, ora contestam o mundo secularizado, se fazem ouvir e interpretam a história revelando a pluralidade de sujeitos que nela atuam compartilhando sua visão de mundo, como mostra Ricoeur (2007, p.175): “Esse compartilhamento é o componente principal do que podemos chamar “senso comum”. Quando alguém narra um milagre esta narração entra num mundo percepção e compreensão comum, o seu imaginário é comum, sua fala é comum por isso é inteligível. Não compreender isso é não ter a capacidade de ler expressões que norteiam a vida social e que têm sentido pois em nível individual dão sentido à vida e são também o que constitui a interioridade pessoal.
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“Eu espero”: Gabriel Marcel e a experiência existencial do mistério da esperança Valber Oliveira de Brito27 A esperança refere-se a algo que, na ordem natural, não depende de nós. A base da esperança é a consciência de uma situação que nos convida a desesperar (a doença, a perdição, etc.). Esperar significa dar crédito à realidade, significa afirmar que nela há algo que triunfará sobre o perigo. Gabriel Marcel
Como resultado do mal que aflige a humanidade, vários críticos como, por exemplo, os filósofos do existencialismo, procuraram lançar um olhar para essas questões, dando ao mal o nome de solidão, trevas, vazio, náusea, incomunicabilidade; ao que se pode ser acrescentado, sob uma perspectiva cristã, outros nomes, como o pecado, afastamento de Deus, ódio, violência, avidez, orgulho, etc. (Fanzaga, 2007). Tudo isso é o retrato dramático da vida no mundo moderno. A partir desse retrato poderíamos cair na tentação do desespero, pois nossa condição imediata não nos mostra saída ao que nos parece mais como um círculo vicioso. Porém, existem autores que, inseridos nos mais variados contextos (com diferenças e semelhanças de abordagens), nos mostram que o ser humano é movido por uma inquietação e um sentimento insuprimível: a esperança. Alguns destes autores nos incitam a ver o ser humano como mistério, portanto não determinado, não podendo ser tematizado; logo, o tempo está em aberto. Há esperança em meio a esse contexto de caos. Entre os autores que trabalham a temática da esperança temos Ernst Bloch e sua obra O Princípio Esperança (2005), Jurgen Moltmann e sua Teologia da Esperança: estudos sobre os fundamentos e as conseqüências de uma escatologia cristã (2005), além da encíclica Spe Salvi (2007), do Papa Bento XVI, dentre outros28. Apesar da importância reconhecida dessas obras no que tange a temática da esperança, é a partir de Gabriel Marcel, e sua noção de esperança, que delineio as reflexões deste texto. Logo, o presente artigo tem por objetivo promover um breve bosqueio sobre a noção de esperança, especialmente na concepção deste filósofo. Concordo com Zilles (1988, p. 104), quando afirma que “pensadores como o teórico marxista Ernst Bloch e o escritor Eric Fromm, dedicaram-lhe amplo espaço. Mas, na obra de Gabriel Marcel, o tema da esperança é uma constante”. Marcel nos apresenta uma esperança que está para além de qualquer teologia, de otimismos militantes, de racionalizações, de vieses ideológicos e de qualquer religião (sem esquecer, todavia, a importância da vivência de uma religiosidade como possibilidade de abertura para a alteridade do futuro). Para o filósofo francês, a esperança é traço constitutivo da experiência pessoal, porém em um sentido totalmente diferente. Ele não vê, de modo algum, aumento ou redução naturalista, sequer enxerga a pura identificação com o otimismo e com o desejo, que são vinculados à simples espera. Marcel nos apresenta uma esperança na qual as experiências de cativeiro e abandono são as condições efetivas que a tornam possível. “Na visão de Marcel, o homem é itinerante, ou seja, homo viator. É ser Pág.123
encarnado, a caminho do sentido da vida. Nesse caminho, a esperança é a abertura do ser encarnado. A esperança leva-nos a contestar tudo que já existe”. (Zilles, 1988, p. 10). Essa esperança se encontra na esfera do diálogo, como entendido por Martin Buber. De acordo com Mendonça (2009, p. 48), “apesar de suas singularidades filosófico-religiosas, Gabriel Marcel e Martin Buber trocaram correspondência. O primeiro reconheceu sua dívida para com a filosofia do diálogo de Buber”. Ao apresentarem suas críticas sobre os malefícios do mundo moderno, esses autores nos apontam para uma possível saída, ainda que sem garantias. Nas palavras de Mendonça (2009, p. 48):
Pensadores ancorados em uma percepção teísta como o foram Martin Buber e Gabriel Marcel, entre outros, irão buscar a superação desse dilema em algo que ao final, mesmo sem segurança alguma, como dizia Buber, remete à esperança e à possibilidade de encontrar uma luz ao final do túnel.
A esperança não consiste em aceitar uma situação que se impõe. Para Marcel (2005), a esperança se situa na ordem do ser que atravessa uma situação de prova, pessoal ou coletiva. “Atua na vida como uma força secreta, no meio da noite, evolvendo o homem, o capacita para resistir ao desespero”. (Zilles, 1998, p. 105). A esperança parte da experiência concreta do “eu espero”, da concepção que o homem é um ser a caminho ou homo viator.
A esperança Marceliana O tema da esperança é presença constante nas reflexões do filósofo francês Gabriel Marcel, especialmente em sua obra Homo Viator (2005), mais precisamente no artigo denominado Esboço de uma fenomenologia e de uma metafísica da esperança. Nesta obra, Marcel analisa a experiência do ato de esperar, seus componentes; descreve suas fases, investiga suas fontes e a função que a esperança realiza na consciência do homem. O autor afirma que não tem a intenção de elaborar uma definição acerca da esperança, mas refletir sobre ela a partir da vivência concreta. Ele começa dizendo que ali parece está contido o desejo, a expectativa de algo desejado. Descobre, no interior da temporalidade da existência humana a abertura constitutiva à transcendência como presença infalível, ainda que indizível. Diante disso, ele destaca a dificuldade de se definir a natureza da esperança. A partir de uma análise fenomenológica e metafísica das experiências existenciais do “eu espero”, Marcel deixa claro que não devemos confundi-las com o desejo e com o otimismo. Em decorrência disso, o autor afirma que: “Portanto, não terá que estranhar-se de ver-me partir de um ‘eu espero’ degradado, que constituirá para nós uma verdadeira marca negativa”. (Marcel, 2005, p. 41). Assim, ele se preocupa inicialmente em esclarecer o que a esperança não é para posteriormente reconhecer o que realmente ela é. Marcel nos dá o seguinte exemplo:
Espero que Jacques chegue pela manhã para almoçar, e não depois de meio-dia: Que outra coisa isso significa senão que o anseio, pois tenho o desejo de que Jacques permaneça comigo o maior tempo possível; e tenho razões para pensar que será efetivamente assim: sei que não pensa em voltar ao seu escritório e poderá pegar um trem Pág.124
pela manhã, etc. (Marcel, 2005, p. 41).
Segundo ele, a pessoa que pronuncia esta frase não manifesta outra coisa senão certo anseio, certa crença. Portanto, não há nada que lhe preocupe verdadeiramente, pois é apenas um certo desejo, de que Jacques chegue em tempo para o almoço. “Observemos esta expresión de la que tendremos que acordarnos; también observo que las razones para esperar aquí son totalmente exteriores a mí mismo, exteriores a mi ser, muy lejos de estar arraigadas en el fondo de lo que soy”. (Marcel, 2005, p. 41-42). Para Marcel, no fundo trata-se simplesmente de um cálculo das oportunidades que ponho diante de mim, da solução de um pequeno problema prático de possibilidades. Neste sentido, a esperança não pode confundir-se com o desejo, nem com o otimismo. Ao distinguir esperança de otimismo, Marcel destaca que há otimismos sentimentais e outros com pretensão à racionalidade; há otimismos que reivindicam fundamento empírico, outros, fundamento metafísico ou teológico. Segundo ele
El optimista es quien tiene la firme convicción, o en algunos casos simplemente el vago sentimiento, de que las cosas ‘se arreglarán’. Digo intencionalmente ‘las cosas’: puede tratarse, bien de una situación determinada, de una dificultad concreta, bien de dificultades, conflictos o contradicciones en general. Se sobreentiende que el optimismo puede manifestarse de modos muy distintos; existe un optimismo puramente sentimental y un optimismo con pretensiones racionales (que a decir verdad quizás sólo es un sentimentalismo camuflado). Hay optimismos que pretenden fundarse tan sólo sobre consideraciones empíricas; y hay otros que, per el contrario, pretenden reposar sobre argumentos metafísicos, incluso teológicos. (MarceL, 2005, p. 45-46)
Se Marcel situa a esperança no extremo oposto ao desejo, um outro pensador, Josef Pieper, “ao analisar a relação entre esperança e história distinguiu as esperanças comuns daquela que ele chamou de esperança fundamental”. (Piazza, 2004, p. 37). Para Pieper, a esperança não tem por objeto algo cuja referência pode ser encontrada no mundo, embora não seja, apesar de tudo, abstrata e desencarnada, pois o mundo é seu lugar de atuação. Logo, Piazza (2004, p. 37), ao comentar sobre Gabriel Marcel e Josef Pieper, afirma que: “Os dois autores, ao insistirem nos limites da condição humana, apresentam como decisiva a constituição de uma tensão existencial, na transitoriedade da história, entre o homo viator e a transcendência de Deus”. De acordo com Albornoz (2009), para Marcel, a esperança será contestada tanto pelos dogmáticos, que têm certeza, como pelos céticos, que de tudo duvidam, pois certeza e dúvida ocorrem num registro que não inclui a esperança. Quem espera não duvida nem tem certeza, “Una trascripción tal es absolutamente infiel, no tiene en cuenta lo que hay de humilde, de tímido, de casto, en la esperanza auténtica.”. (Marcel, 2005, p. 47). Assim, na esperança autêntica mantém-se a humildade, uma certa timidez, uma espécie de “castidade”, de pudor espiritual que impede passar à certeza e repugna deixar-se reduzir ao pensamento no sentido de raciocínio. Por outro lado, a esperança não pode ser reduzida à expressão da vitalidade de um corpo sadio, uma vez que é capaz de sobreviver à ruína quase total do organismo. A esperança entendida como não sendo nem desejo nem otimismo se situa numa outra ordem, a saber, a do ser que atravessa uma situação de prova, pessoal ou coletiva. Vale aqui destacar que o desejo de que algo aconteça não surge necessariamente numa provação. Há situações em que o trágico parece ausente, Pág.125
e que, contudo, favorecem ou suscitam a intervenção da esperança, “Se puede pensar por ejemplo en la mujer que espera um hijo y que está literalmente por la esperanza” (Marcel, 2005, p. 43). Porém, a esperança se situa sempre no contexto de prova, quando a situação na qual vivo ameaça destruir a minha integridade, meu ser. Como exemplos de situação de prova, Marcel cita o exílio, a separação, o sequestro, a doença, a escravidão; onde ao que poderíamos acrescentar a miséria, o vício, e a falta de liberdade para pensar livremente e expressar-se sem risco de perseguição; nesses casos tão negativos, a esperança carrega uma marca de libertação e é, portanto, esperança de emancipação. A esperança para Marcel emerge no contexto da provação, da prova, e se dá, pois, como uma resposta do ser à provação, à falta de liberdade do cativeiro. Tais situações se caracterizam por atingir o mais profundo do que verdadeiramente sou. Por isso que, nessas realidades, o eu espero aspira sempre a uma determinada liberação que colocará fim a provação que está vivendo, como destaca o autor:
Supongamos ahora, por el contrario, que paso por una prueba, bien privada bien común al grupo al que pertenezco: aspiro a una cierta liberación que ponga fin a esta prueba. El ‘yo espero’, considerado con su fuerza, está orientado hacia una salvación. Para mí se trata verdaderamente de salir de las tinieblas en las que estoy actualmente sumergido, y que pueden ser las tinieblas de la enfermedad, de la separación, del exilio, de la esclavitud […]. (Marcel, 2005, p. 42).
Deste modo, a esperança se situa no contexto da prova, à que não somente corresponde, mas que é uma verdadeira resposta do ser. Em qualquer experiência de provação, ela é sempre a experiência da qual aspiro sair o mais depressa possível. Nas palavras de Marcel: “Es cierto que en cualquier prueba del orden aquí considerado me veo privado durante un tiempo indeterminado de una cierta luz a la que aspiro. Por otra parte, diría de buene gana que toda prueba de este tipo puede asimilarse a un modo de cautividad.” (Marcel, 2005, p. 42). Logo, aspiro sair da provação em busca da luz, algo que coloque fim às trevas nas quais se está submergido. A esperança aqui adquire o significado de uma exigência que não é lógica nem psicológica, mas sim ontológica, isto é, radica-se na essência do ser. Em resumo, a esperança é uma exigência ontológica do ser que é afetado por uma profunda provação que o impede de existir plenamente. Manifesta-se exclusivamente nas situações mais cruciais e desesperadoras, quando a existência está sobre profundo risco. Na compreensão da esperança, Marcel utiliza exemplos que se caracterizam por apresentar situações de prisão, de trevas. O eu espero é sempre “estar cativo de”. Não se espera verdadeiramente se não for um esperar certa liberdade, a libertação de alguma situação de cativeiro, de aprisionamento. Para ele não há esperança se não há uma verdadeira exigência ontológica em busca de uma determinada libertação de uma provação que se está vivendo:
Me considero cautivo si me encuentro no solo arrojado, sino comprometido, por una coacción exterior, con un modo de existencia que se me impone y conlleva restricciones de todo o tipo respecto a mi propio actuar. Además, o que caracteriza a todas las situaciones que evocamos en este momento es que implican invariablemente la imposibilidad a la que me veo reducido, no necesariamente de moverme o de actuar de una manera relativamente libre, sino de acceder a una cierta plenitud vivida, que puede ser una plenitud del sentir o incluso del pensamiento propiamente dicho. (Marcel, 2005, p. 42).
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Marcel exemplifica isto fazendo menção à situação do artista ou do escritor que sofre uma fase em que não consegue produzir. De acordo com o autor, nesta fase improdutiva o artista ou o escritor tem literalmente consciência de estar na prisão, ou seja, no exílio, como se estivera realmente privado de certa luz na qual o seu ser normalmente deveria ser iluminado. Desde a compreensão platônica a existência humana pôde ser entendida como uma espécie de prisão. Na realidade, segundo o autor, as situações de limitação e de esterilidade artística revelam que:
Hay un aspecto general de la existencia humana según el cual ésta aparece como cautividad, y que allí donde se presenta según este perfil es donde precisamente aquella es, si se puede decir, propensa a la esperanza [...] existe también una posibilidad permanente de degradación de esta existencia, al término de la cual ésta fatalmente se hace cada vez más incapaz para la esperanza. Por una paradoja solo sorprendente para un pensamiento muy superficial, cuanto menos se experimente la vida como cautividad, menos serpa capaz el alma de ver brillar esta luz velada, misteriosa, que – ya lo sentimos antes de cualquier análisis – está en el hogar mismo de la esperanza. (Marcel, 2005, p. 44).
Sendo assim, conforme Marcel, na verdade, a condição geral do homem, ali onde a sua vida parece normal, permanece sempre um cativeiro por causa da escravidão de todos os tipos de que é obrigado a sofrer, mesmo que apenas por causa de seu corpo, e mais ainda, por causa da noite que envolve o seu começo e seu fim. Neste sentido:
La prueba es tal en aquello que me conmueve, en lo que se enfrenta a mi ser, en lo que estoy expuesto a sufrir, por su acción, una alteración permanente: así es cómo la enfermedad puede hacer de mí ese ser deforme que es el enfermo catalogado, profesionalizado de alguna manera, que se piensa a sí mismo como tal y que adopta en todo el habitus del enfermo; de igual manera, para la cautividad o para el exílio, etc. (Marcel, 2005, p.53).
Como podemos perceber, o autor vê a esperança como uma das exigências ontológicas mais profundas do ser humano. Uma resposta verdadeira do ser à situação de trevas a qual atravessa. Para ele, é em meio à angústia, ao mais profundo sofrimento que surge a esperança, esta que emerge a partir da exigência ontológica de libertação que é resultante do momento mais profundo da provação. Ser prisioneiro é alienação, mas ao passar pela experiência negativa da escravidão e da alienação, somos levados a tomar consciência da integridade perdida que queremos recuperar. Não podemos esquecer que Marcel viveu o contexto e a experiência da Primeira Guerra Mundial, o que evidentemente o favoreceu também no que diz respeito ao oposto da esperança: o desespero. Para o autor, há uma estreita relação entre a tentação de desesperar e a esperança. Em suas palavras, “La verdad es que solo puede haber, propiamente hablando, esperanza donde interviene la tentación de desesperar; la esperanza es el acto por el cual esta tentación es activa o victoriosamente superada […]”. (Marcel, 2005, p.48). Logo, não há esperança sem o confronto direto com o que me ameaça infringir o desespero. Pág.127
Ao esclarecer acerca do que é o desespero, o exemplifica a partir da situação de prova a qual passa o enfermo de uma doença crônica, e para o qual não se vislumbra nenhuma possibilidade de cura:
Supongamos que padezco una enfermedad crónica, y que no se vislumbra ninguna mejoría de mi situación. Puede llegar el momento en que yo mismo declare: ‘soy incurable’. O que sean los médicos quienes me anuncien, con o sin ambages, que según todos los indicios no me curaré. (Marcel, 2005, p. 49).
No primeiro caso, ao declarar que sou incurável, declaro a mim mesmo que não existe possibilidade alguma de recuperação. Me fecho para o futuro e, portanto, interrompo o processo dinâmico da realidade e do tempo, sofro por antecipação, antecipo a minha destruição. Afirmo e acredito de forma convicta que minha doença é incurável, o que acarreta consequências graves. A esse processo Marcel denomina “autofagia espiritual”. Ou seja, o indivíduo passa a consumir-se interiormente pelo fato de estar convencido da ideia de que é incurável, como nos mostra o autor:
Sobre esta llama que es la vida se ejerce la acción maléfica de la desesperación. Se podría decir todavía que el ardor disuelve o volatiliza lo que sin él se convertiría en todo momento en dificultad para existir. Se dirige a cierta materia del devenir personal que tiene como tarea consumir-la; allí donde por el contrario interviene el ‘maleficio’, esta llama se aparta de la materia que es su alimento natural para enfrentarse contra sí misma; es lo que se expresa admirablemente cuando se dice de un ser: ‘se consume’. Desde este punto de vista, la desesperación puede ser asimilada a una verdadera autofagia espiritual. (Marcel, 2005, p. 55).
No segundo caso, pode acontecer o contrário. Ao ouvir o médico me comunicar que não a indícios de cura, pode acontecer que suscite em mim o poder não só de resistir, mas também de desmenti-lo com os fatos. Logo, “De todas maneras se puede decir que en este segundo caso, yo no aparecería, en principio, como colaborando a mi propia curación, a no ser que ratifique y con ello haga mía la sentencia que se me ha comunicado” (Marcel, 2005, p. 49). Deste modo, desesperar-se é ficar preso em uma dada situação de prova. É permanecer aprisionado em meio à frieza e indiferença, sem esperança. É aceitar a própria destruição sem fazer nada para impedi-la. Consiste em se suicidar por antecipação, em se destruir interiormente. Revela-nos que não existe uma saída para nossa situação de cativeiro. O desespero se apresenta aqui como um encantamento, ou mais exatamente, como um mal, como uma ação maléfica que atinge o sustento mesmo da vida:
El desesperado no contempla solamente, no tiene sólo ante él esta repetición sombría, esta eternización de una situación en la cual está aprisionado como una barca en el hielo; por una paradoja difícil de concebir, anticipa esta repetición, la ve en el mismo instante, y posee al mismo tiempo la certeza agria de que esta anticipación no le dispensará de continua viviendo la prueba día tras día, indefinidamente, hasta esta extinción que él también anticipa, pero no como solución: como un supremo ultraje Pág.128
al desaparecido, al que su duelo le aseguraba todavía, a pesar de todo, una sombra de supervivencia. (Marcel, 2005, p. 54).
O autor faz ainda o seguinte questionamento: “Se puede esperar cuando las razones para esperar son insuficientes o faltan en absoluto?”. Para Marcel, esta pergunta só pode ser estabelecida por quem concebe a esperança como um fenômeno exterior a si e se pergunta em que condições este fenômeno pode ocorrer. De acordo com o autor, quem pensa assim nada mais é que um observador, alguém que julga de fora, analisa a situação sem participar dela. Porém a reflexão não tardará em mostrar-nos que pensar assim a esperança é precisamente suprimi-la. Quem pensa desta maneira não entendeu o que é esperança. Pensa a partir de uma mentalidade que se situa no plano da razão especulativa, que calcula as probabilidades e mede os meios para ver se alcançará os fins, ou seja, em uma relação onde predomina, em termos weberianos, a racionalidade instrumental29 ou, como nos afirma Martin Buber, a relação Eu-Isso30. Quem espera tem, necessariamente, suas razões para esperar. Porém, pode de fato ocorrer que alguém espere em uma situação que para mim, quem estabelece a questão, não implica razões para esperar? Pode realmente alguém esperar em uma situação que para o sujeito mesmo é insuportável e, portanto, as razões para esperar são insuficientes ou faltam em absoluto? Com relação à primeira pergunta, Marcel afirma que temos que responder que sim: “Está muy claro que el outro puede conservar la esperanza allí donde el observador estima que las razones para esperar no existem, es decir, a sus ojos están ausentes”. (Marcel, 2005, p. 76). O autor afirma que a esperança pertence ao âmbito do mistério, não se apresentando, portanto, como problema. Deste modo, só quem vive pode compreendê-la a dar-lhe crédito. Logo, isso significa que uma outra pessoa pode não esperar numa situação na qual eu espero convictamente. As razões para esperar são sempre pessoais ou intersubjetivas; quem é estranho, quem não faz parte das minhas relações nem sempre concordará com as razões nas quais espero:
Y lo hemos visto, y lo reconoceremos cada vez con mayor claridad, que quien espera, a poco que esta esperanza sea real y no se reduzca a un deseo platónico, se manifiesta a sí mismo como implicado en cierto proceso; y sólo desde este punto de vista se puede dar razón de lo que hay de específico y, añadiría, de suprarracioanal, quizá también de suprarrelacional, en la esperanza, que, retomando la terminología a la que he recurrido tan a menudo, se presenta como misterio y no como problema. (Marcel, 2005, p. 47).
Na segunda questão, se as razões para esperar são reconhecidas pelo próprio sujeito como insuficientes ou faltam em absoluto, o mesmo pode reconhecer quem não espera verdadeiramente. Assim sendo, “el empleo de la palabra ‘suficiente’ implica, por lo demás, contradicción, pues si el sujeto espera, parece que las razones para esperar son suficientes para él, sea lo que séalo que el observador piense de ellas.” (Marcel, 2005, p. 76). Segundo Marcel, o observador tem razão calculadora, procede com os meios aproximativos de que dispõe e empreende uma verdadeira contabilidade das possibilidades que existem para esperar. De acordo com o autor, o sujeito “Al hacer intervernir la idéia de derecho a esperar, situa el asunto precisamente sobre o terreno de la razón calculadora, es decir, en el fondo del cálculo de posibilidades. (Marcel, 2005, p.76). Para Marcel, o que é fundamental no ato de esperar é o não calcular, o não ser contaminado por respostas prontas; é o não ser influenciado e arruinado pelos determinismos e certezas supostamente absolutas. A esperança marceliana é uma esperança vivida concretamente, onde o sujeito está aberto à realidade e Pág.129
por isso disposto a criar condições para que ocorra a libertação da situação de prova em que se encontra. A esperança é diferente da acomodação. Quem espera vive a experiência do tempo aberto, é um sujeito engajado na realidade em um processo dinâmico e criador, que contribui para a transformação da realidade pela qual é afetado. Em dúvida reduz as oportunidades de conseguir a libertação da situação de prova.
A esperança e a experiência com o tempo Diante disso, o autor faz a distinção entre tempo aberto e tempo fechado. A esperança supõe uma relação original da consciência com o tempo. Implica a consciência de que o tempo futuro se encontra, de algum modo, aberto, ou seja, composto de possibilidades as quais contribuirão para a libertação da situação de desespero na qual me encontro. Já o desespero “Es en un cierto sentido la consciencia del tempo cerrado, o más exactamente aún, del tiempo como prisión” (Marcel, 2005, p. 65). Para o desesperado o tempo é fechado, pois não consegue ver possibilidades de sair de sua situação desesperadora, assim, o tempo o aprisiona, o escraviza. Além do desesperado, participa também do tempo fechado aquele que se deixa dominar pelo que o autor chama de “rotina cegante” do cotidiano. O sujeito que é envolvido em tal situação não tem consciência do desespero, porém se fecha em uma improdutiva repetição de suas atividades cotidianas, de tal maneira que se torna impossível construir um processo criativo que dê sentido à sua existência. Portanto, quem se encontra no tempo fechado é aquele que é dominado pelo determinismo interior, não reconhecendo a realidade como algo dinâmico; por isso, sua situação de provação lhe parece impossível de ser modificada. No entanto, as reflexões de Marcel sobre o desesperado nos revelam que, no fundo, não é a realidade em si que é fechada, mas sim o próprio sujeito que vivencia o desespero. O sujeito manifesta sua situação de desespero no isolamento, na solidão, no egocentrismo. Em contrapartida, quem espera deve tronar possível vivenciar a prova, o sofrimento, como algo que pode ser absorvido e assim conseguir sua libertação do cativeiro por meio de um processo criador, como nos aponta o autor: Todo nos prepara, pues, a reconocer que la desesperación es en un cierto sentido la conciencia del tiempo cerrado, o más exactamente aún, del tiempo como prisión – mientras que la esperanza se presenta como captada a través del tiempo; todo ocurre como si el tiempo, en lugar de encerrarse en la conciencia, dejara pasar algo a través de él-. Desde este punto de vista es desde donde antes puede destacar el carácter profético de la esperanza. Sin duda, no se puede decir que la esperanza vea lo que será; pero ella lo afirma como si o viera; diríamos que saca su autoridad de una visión encubierta y que le es dado considerar sin disfrutar de ella. (Marcel, 2005, p. 65). O autor salienta ainda que a vivência do tempo aberto se relaciona com a vivência da paciência, esta que é uma das principais características do verdadeiro ato de esperar. Quem espera, ainda que engajado ativamente na libertação da situação na qual se encontra, necessita desta virtude. É fundamental ter paciência consigo mesmo e com o outro: “Una sencílla expresión tomada del linguaje familiar viene aqui en nuestra ayuda: tomarse su tiempo. El que resiste o se rebela no sabe tomarse su tiempo. (Marcel, 2005, p. 51). Assim, a vitória da esperança sobre a situação de prova caracteriza-se mais como um processo de libertação do que como uma rebelião; a esperança seria uma espécie de não-aceitação positiva, diferente da revolta; é da mesma ordem do medo e da reação ao medo, seu oposto, consiste em ter confiança em um certo processo de cresciPág.130
mento ou de amadurecimento, que nos conduz à libertação:
Sin introducimos el dado paciencia en la no-aceptación, nos acercamos infinitamente, de golpe, a la esperanza [...] Desde este punto de vista la esperanza consistirá en considerar la prueba primeramente como parte integrante de uno mismo, y al mismo tiempo como destinada a suprimirse y transformarse dentro de un proceso creador. (MARCEL, 2005, p.51).
A esperança se relaciona com a paciência ante a impaciência que se associa ao medo; mas a própria paciência pode degradar-se; tanto para o caso da doença como do cativeiro, da prisão, do exílio, junto a todas as espécies de sofrimento ameaça a degradação. Mas o que esperamos? Nas palavras do autor “Yo espero la vuelta del ausente, la derrota del enemigo, la paz que devolverá a mi país las libertades de las que el desastre le ha despojado.” (Marcel, 2005, p. 53). O filósofo destaca ainda que a esperança transcende a imaginação; nas situações de doença, cativeiro, exílio, o que esperamos é a libertação; isso nos faz perceber o elo íntimo que existe entre esperança e liberdade. Esperando a libertação, de certo modo a condiciono e a favoreço, mesmo que não se possa chegar a falar de “eficácia causal” da esperança: “La verdad es más bien que soy consciente, al esperar, de reforzar, y al desesperar o simplesmente dudar, de aflojar, de debilitar un cierto vínculo que me une a lo que está en cuestión”. (Marcel, 2005, p. 60). Por outro lado, parece sem propósito impor condições à esperança. O autor convida a pensar a esperança como “esperança absoluta”; a esperança estaria ligada a certa “candura, uma certa virgindade” com relação à experiência, e seria própria daqueles que não foram corroídos pela vida. De acordo com Marcel, o homem é um ser de engajamento situado entre outros existentes. O homem é tanto mais homem quanto mais caminha na direção do compromisso, da fidelidade. A libertação das situações de prova, assim como a liberdade, não consiste em uma conquista inteiramente individual, mas sobretudo coletiva, ou melhor, uma conquista intersubjetiva. Na obra de Marcel (2005) podemos perceber que a esperança se apresenta como intimamente ligada ao amor. Para ele, não se pode abrir o processo da esperança sem estabelecer ao mesmo tempo o do amor, que supõe uma comunhão e uma confiança no outro. “Es precisamente allí y solo allí donde existe este amor, donde se puede y se deve hablar de esperanza, pues este amor se encarna en una realidad que sin él no sería lo que és. (Marcel, 2005, p.69). Neste sentido: ‘yo espero en ti para nosotros’: tal es la expresión más adecuada y más elaborada del acto que el verbo esperar traduce de una manera todavía confusa y velada. […] Si es así, hay que decir que esperar, tal como nosotros lo presentimos, es vivir en esperanza, en lugar de concentrar nuestra atención ansiosa sobre las meras fichas alineadas delante de nosotros, que sin descanso contamos y recontamos febrilmente, atenazados por el miedo a encontrarnos frustrados o desarmados. (Marcel, 2005, p. 72-73).
Considerações finais A vida é essencialmente incerteza e risco, um mistério, diria Gabriel Marcel, e o homem, igualPág.131
mente, um projeto em aberto; logo não é algo fechado, mas dinâmico e artífice do próprio projeto. Muitas vezes seduzidos pelas múltiplas promessas do mundo moderno, fazemos escolhas e cometemos alguns erros graves no que tange a projeção e realização de nosso ser, que tendem a apagar o ultimo feixe de luz da esperança que carregamos com nossos sonhos e projetos, abandonando-nos no desespero. Entretanto, na vida podem surgir momentos singulares em que ela parece iluminar-se, nos revelando que ainda existe um sentido. Estes momentos preciosos, que se encontram na esfera do diálogo buberiano, reacendem a chama da esperança, tal como defendida por Marcel, iluminando a nossa existência. Por fim, nessa concepção, a esperança não deve ser avaliada ou julgada, nem diante do tribunal da razão nem diante das análises de fatos, prognósticos ou argumentos de base empírica. A esperança reside em outro patamar. Tem um caráter profético, ainda que difuso, e sua relação com o tempo é uma relação complexa, permeada pelo amor e pela comunhão. “Por la conciencia de estos intercambios, de esta misteriosa e incesante circulación, me abro a la esperanza – conciencia profética, como hemos dicho, pero difusa y que, en la medida en que pretendiera conmutarse en previsión, correría el peligro de matarse.” (Marcel, 2005, p. 73). A esperança é como que um pressentimento apoiado no amor e na comunhão: “Eu espero em ti por nós”. Nós esperamos em Ti. A esperança, finalmente, não se identifica com o desejo; no fundo, é um dom, uma graça. A partir dessas considerações, o filósofo resume:
La esperanza es esencialmente, se podría decir, la disponibilidad de un alma tan profundamente comprometida en una experiencia de comunión como para llevar a cabo el acto que trasciende la oposición entre el querer y el conocer, mediante el cual ella afirma la perennidad viviente de la cual esta experiencia le ofrece, a la vez, la prenda y las primicias. (Marcel, 2005, p. 79).
Referências bibliográficas BRITO, Valber Oliveira de. Educação e Diálogo: o papel do educador em meio à esperança. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal do Pará – Belém/PA, 2012. BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro, 2001. _______. Do diálogo e do dialógico. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Perspectiva, 1982. FANZAGA, Livio. As virtudes teologias: fé, esperança, caridade. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007. MARCEL, G. Os homens contra o homem. Portugal: Tipografia Modesta [s. d.]. _______. Homo Viator: prolegómenos a una metafísica de la esperanza. Salamanca: Ediciones Sígueme: 2005. MENDONÇA, Kátia. Mendonca, K. M. L. (2009). Entre a dor e a esperança: educação para o diálogo em Martin Buber.Memorandum, 17, 4559 Disponível em Pág.132
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PIAZZA, Orazio Francesco. A esperança: lógica do impossível. Trad. João Carlos Rosalino. São Paulo: Paulinas, 2004. ZILLES, Urbano. Gabriel Marcel e o existencialismo. Porto Alegre: Acadêmica/PUC, 1988. ZUBEN, Newton Aquiles Von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. São Paulo: EDUSC, 2003.
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Os anjos do tapete vermelho Mônica Lizardo de Moraes
O Círio de Nazaré transforma Belém: em cada esquina, em cada gesto, a emoção vai transbordando... palavra alguma explica a dimensão do que acontece quando aquele rio caudaloso de gente atravessa a cidade, os corações iluminados a agradecer e louvar a Mãe Misericordiosa que segue à frente. E sob o sol causticante da Amazônia, são muitos os que se movimentam silenciosos, exauridos, curvados mediante a graça alcançada. O promesseiro de joelhos, com as ataduras esfarrapadas e o corpo que se esvai, tem uma certeza, a força virá de Deus, e com Fé se chegará ao final. E assim, sua dor e a infinita distância que o separa do pagamento de sua promessa, são subitamente aliviadas: uma mão pousa em seu ombro, feito asas de anjo. Não se caminha só no Círio, uma legião de jovens se movimenta, atenta aos pedidos de socorro, e quando as vozes se calarem eles ainda assim estarão ali até o final, anjos não viram as costas: é a Fé viva, que vive de partilha, de doação. Quando acompanhar o Círio preste atenção, os anjos também se ajoelham e choram, e às vezes vestem vermelho.
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(NOTAS)
1
Este trabalho é produto do Programa de Iniciação Científica desenvolvido com o apoio de Bolsa de Estudo PIBIC/CNPQ e vinculado ao projeto de
2
Graduada do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. E-mail: mesquita.amanda@yahoo.com.br
3
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – UFPA.
4
Graduando de Ciências Sociais – UFPA e bolsista PIBIC.
5
Doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UFPA) e Professor do curso de Licenciatura em Educação do Campo UFPA/Campus Abaetetuba.
pesquisa Imagem, arte, ética e sociedade do PPGSA/UFPA.
6
Bíblia Sagrada. Edições Paulus, São Paulo, 1991.
7
A Samaúma (Ceiba Pentandra Gaertn), cujo sentido para os índios é “a rainha da floresta”, esteticamente é uma das mais belas árvores da
Amazônia. De origem asiática, hoje continua encantando a todos que a encontram no seu imponente tamanho e beleza de formas. Pode alcançar uma altura de 45 a 50 metros e um diâmetro de 2 a 3 metros. Seu enorme tronco produz fortes sons quando alguém bate nele, por isto a Samaúma é também chamada de campainha da floresta. Ela é uma árvore lendária, a lenda conta que nela vive o Curupira, personagem da mata, que ao ouvir o barulho do tronco da grande árvore recebe o aviso da chegada de algum perigo para a mata. O Curupira então assusta os visitantes com a finalidade de defender a floresta de seus inimigos e invasores. Os povos tradicionais da Amazônia sempre adoraram a Samaúma pelas suas qualidades curativas. Seus pajés consideram a grande rainha como uma árvore divina. As sementes ao amadurecer são empurradas pelo vento bem longe de seus galhos como anunciando a presença de grande árvore
8
Martin Buber, filosofo judeu, morou na Alemanha e morreu em Jerusalém, defendeu o diálogo como fundamento da vida humana e principal acesso
ao transcendente, definiu suas propostas no campo dos estudos sobre a comunidade, fenômeno derivado do inter-humano.
9
Bíblia Sagrada. Edições Paulus, São Paulo, 1991.
10
Dizem os moradores que o tocador do sino, era extremamente pontual no anuncio dos eventos da vila, como funerais, missas e festejos.
11
O coletivo é composto por um grupo diversificado de jovens fotógrafos da cidade, entre eles: (Leonora Lagos, Sergio Rodrigues e Paulo Joel)
12
Nheengatu: Também conhecido como nhengatu, nhangatu, inhangatu ou língua geral amazônica, ou ainda pelo nome latino língua brasílica, é
uma língua artificial derivada do tronco tupi, da família tupi-guarani. Foi a segunda língua geral indígena desenvolvida no Brasil, após a língua geral paulista. Até
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o século XIX, ela foi veículo da catequese e da ação social e política portuguesa e luso-brasileira.
13
Nossas homenagens (In memoriam) aos músicos e cantadores do grupo de folia e ladainha de São Miguel de Beja: Sr. Milicio, Raimundo, Laurinho
14
Folheto de Cantos de Louvores da Festividade de São Miguel Arcanjo da Vila de Beja.: “Com Jesus e São Miguel a juventude diz sim a evangeli-
15
Adamor de Lima é musico e folião da ladainha de São Miguel Arcanjo, participou de várias procissões em homenagem a São Miguel e outros San-
16
Acerca das antigas catedrais e sua arquitetura sagrada ver Nicolas, 2001 e Duby, 1979.
17
Lembremos quanto à noção de prótese que Paul Virilio viria a adotar essa ideia mais tarde. Vide Mendonça, 2012.
18
Não podemos em nome de um estéril cientificismo, tão criticado por Tarkovski, fugir das aberturas que a própria ciência deu a essa dimensão, que
Leal, Manoel Nazaré, Sr Juju.
zação, Vila de Beja/Abaetetuba-PA, Ano 2013.
tos.
é o real. Falo das experiências de quase morte (EQM) cada vez mais relatadas por milhares de pessoas em todos os pontos do mundo e mapeadas por diversos investigadores. Entre muitos, ver Alexander, 2013; Kubler-Ross,1993.
19
Este artigo é parte da dissertação: Da violência nas Imagens: A notícia que não sai no jornal, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências
20
Possuí bacharelado e licenciatura em graduação em Ciência Sociais (ênfase em sociologia), UFPA. Mestre em Ciência Sociais (área de concentração
21
Os nomes todos são fictícios para preservar a identidade dos informantes.
22
Eliade (2010) cunha o termo com o intuito de indicar um ato da manifestação do sagrado. Já que o termo é cômodo, pois não implica nenhuma
23
O “ponto fixo” pode ser compreendido como um referencial que guia o homem na sociedade, este “ponto fixo” é revelado através de uma hierofa-
24
De acordo com a leitura de Eliade (2010), compreendo o illud tempus como criação de um tempo e espaço mítico que resgatar algo ligado ao sagra-
Sociais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFPA, Campus Belém. Abril-2013.
em Sociologia) pelo PPGCS-UFPA.
precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela.
nia, a manifestação do sagrado que o homem toma conhecimento (Eliade, 2010).
Pág.159
do.
25
Nas religiões primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos divinos justifica-se como imitatio dei. O calendário sagrado repete anualmente
as mesmas festas, quer dizer, a comemoração dos mesmos acontecimentos míticos. Propriamente falando, o calendário sagrado representa-se como o “eterno retorno” de um número limitado de gestos divinos e isto é verdadeiro não somente para as religiões primitivas, mas também para todas as outras religiões. Em toda parte, o calendário festivo constitui um retorno periódico das mesmas situações primordiais e, consequentemente, a reatualização do mesmo Tempo sagrado. Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois a cada reatualização ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino (Eliade, 2010, p. 94).
26
Doutorando do PPGSA da Universidade Federal do Pará.
27
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Mestre em Ciências Sociais com ênfase em Sociologia, pelo
28
Acerca das reflexões desses autores e suas respectivas noções de esperança, vide: BRITO, Valber Oliveira de. Educação e Diálogo: o papel do educa-
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFPA.
dor em meio à esperança. 2012. 124 páginas, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal do Pará – Belém/ PA, 2012.
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29
Vide WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia de Letras. 2004.
30
Vide BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro, 2001.
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