Átimo - Eu sou vários, eu sou muitos

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editorial

Eu sou vários Eu sou muitos.

Texto por

Do outro lado, contrário. Estranho, raro, esquisito, excêntrico. Pecador, puta. Extravagante, escandaloso. Mais que palavras, conceitos. Ideias, sombra daquilo que a sociedade se recusa a olhar, ou melhor, enxergar. Nem todos nós realmente existimos. Alguns humanos vivem por detrás de onde a luz reflete, pelas entranhas da cidade, e contorcem pra viver. Um nome? Não. Quem você é? Ou quem gostaria de ser? Pelas páginas que se seguem brotam histórias de pessoas que nasceram de um ventre e vivem ou, simplesmente, sobrevivem. Enquanto algumas são acolhidas pelos espaços que se escondem na vida noturna do Grande Recife, outras são apunhaladas pelos mesmos latíbulos. No país com o maior número de assassinatos de pessoas trans*, entre 2008 e 2013, de acordo com a ONG Transgender Euroupe, Mayara e Morgan buscam a todo o tempo formas de se relacionarem com a cidade em que vivem de forma segura. ATÍMO se propõe a contar histórias de moradores e moradoras do Recife que assumiram uma identidade transgênero e como se relacionam com uma metrópole multicultural que abriga preconceitos, violências, amores, e militâncias.

Caio Castro Mello


Perfil

04. Mayara Rustoff

Crônica

14. Paredes do silêncio

artigo

15. (des)Categorizando

Perfil

20. Morgan Rose

Entrevista

24. Bruno Robson

Coluna

28. Travesti Reflexiva

Reportagem

Fevereiro

2015

sumário

30. Escalada para o Mercado de Trabalho

arte

35. Laerte & Carol Rossetti

Reportagem

36. Eu me chamo Deliylah

depoimentos

38. Eu por mim

Perfil

40. Heitor Bruno

sumário A Revista Átimo traz em suas páginas uma tecnologia para tornar a experiência do leitor mais interativa e diversificada. O QR Code te leva para além do papel, possibilitando a visualização de vídeos, além de diversos websites relacionados ao conteúdo Giselle Veloso dessa publicação. Para utilizá-lo, basta instalar um aplicativo leitor de QR Code no seu smartphone, que estão disponíveis para Android, BlackBerry, iOS e Windows Phone. A partir daí, aproxime a câmera do celular do código de cada página e aproveite das possibilidades que preparamos para você.


expediente Redação: Caio Castro Mello Cássio Oliveira Cícera Amorim Eduarda Esteves Maria Eduarda Barbosa Marília Parente Ilustração da capa: Luís Henrique Marques Orientação: Bruno Nogueira Soraya Barreto Consultoria Gráfica: Renê Porfírio Colaboradores: Alisson Henning Carol Rossetti Jorge Cosme José Terceiro Laerte Coutinho Morgan Rose Pedro Conrado Sofia F. Ricardo (Travesti Reflexiva) Agradecimentos Especiais: Ana Giselle Bruno Robson Cristiane Falcão Centro Estadual de Combate a Homofobia - CECH Deliylah Gomez Eleonora Pereira Érika Sylva Fernanda Capibaribe Giselle Veloso Heitor Azevedo Igor Travassos Janaína Louise Giselle Veloso Mayara Rustoff Morgan Rose Nirvana Leal Rose e Luiz Henrique


Perfil

Estou ali, vai ter que me aceitar.

fim.

Mayara Rustoff

Texto e Fotografia

Confira o vídeo da entrevista com Mayara. Acesse o QR Code ao lado.

Caio Castro Mello Maria Eduarda Barbosa

Foram alguns ônibus e um metrô que nos levaram rumo ao mar. Perdidos entre os altos edifícios que cercam as praias procurávamos um em especial. Quando encontramos o muro com o número estampado, procuramos o interfone e não o encontramos. Um soldado aparece de uma torre e nos pede uma identificação. Como nos contos de fadas, a princesa que nos observa por uma janela, com os olhos entre as cortinas lilás, autoriza a entrada.

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A trilha sonora não foi escolhida. À medida que a primeira conversa fluía, a TV exibia videoclipes que faziam parte da programação de um canal pago. Beyoncé, Justin Timberlake, Lady Gaga, entre outros, embalaram a nossa manhã e de Mayara, dona de um sorriso encantador. Por coincidência (ou será destino?), a carioca é fã de Gaga e mostrou, mais tarde, um grande pôster da cantora em seu quarto. O videoclipe da artista selecionado pelo programa foi Donatella, faixa do álbum ArtPop, e se tornou um dos momentos de descontração da conversa. No entanto, é com o trecho de outra música de Lady Gaga, Hair, do álbum Born This Way, que começaremos a história de Mayara: “I just wanna be myself and I want you to love me for who I am”, na tradução “Só quero ser eu mesma, e quero que você me ame pelo que eu sou”. Mayara Rustoff tem vontade de viajar o mundo e conhecer outras culturas. Sua tatuagem no pulso direito, o contorno do mapa-múndi, retrata esse desejo. Ela nasceu e morou no Rio de Janeiro, e mudou-se com sua família para o Recife em 2013. Ainda não conheceu o mundo, mas já passou algumas partes do Brasil fazendo a viagem de lá para a capital pernambucana de carro. A mudança para o Recife aconteceu devido ao trabalho do pai, Luís Henrique, militar desde 1986. Entre cidades como Brasília, São Paulo e Natal, Recife foi a escolhida pela família como o novo lar. O Rio de Janeiro marcou a vida de Mayara. Foi lá que ela, aos 14 anos, descobriu que queria e poderia ser uma mulher.

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mudança 8

Na cidade maravilhosa, Mayara teve seu primeiro contato com as baladas, onde ela passou a se enxergar e se compreender. “Desde que tenho noção da vida, eu me sinto uma menina. Nunca me senti um menino. Nunca. Nunca. Então eu sabia que tinha algo de estranho e diferente. Eu não achava normal eu me sentir uma menina, querer me tornar uma mulher”, revela Mayara, que também ressalta a importância das baladas: “Então eu acho que isso ajudou, ter contato com travesti, com mulheres trans*”. A essência da balada também veio junto com Mayara para o Recife. Em sua nova cidade, a garota prefere a vida noturna a viver uma cidade cheia de olhos que a vigiam e a ferem à luz do dia. Onde é aceita, nas grandes casas de luzes que piscam freneticamente, ela vive, dança, se expõe e retorna às suas privações. Ela


adentrava à pista de dança com um boné para trás e uma blusa amarrada na cintura, que lhe permitia movimentos que vão além da malemolência do corpo humano. Entre batidas e vibrações das caixas, Mayara se entregava às escolhas da DJ, sua amiga, que mais do que músicas, tocava gritos de liberdade. Eram letras com palavras de ordem que exigiam voz, reiteravam direitos e acentuavam posturas marcantes e decisivas enquanto pessoas. Giza e seus cabelos vermelhos ditavam mais do que as canções que embalavam aquela noite no bairro da Boa Vista. Ela construía momentos e alterava a velocidade com que as relações humanas se estabeleciam no casarão.

transição

De suas amizades, Mayara relata “É compli cado fazer amizade com homem-cis-hetero, até porque, os que fazem amizade comigo, acabam querendo algo mais. Acho que entram já com essa intenção”.

“Olha, no início comecei como gay, né? E foi mudando aos poucos. Fui trazendo a maquiagem, deixei o cabelo crescer e mudei minhas roupas. Minha mãe no início ficou muito chocada, foi aquele baque. Já meu pai foi mais de boa. Ele, inclusive, que ajudou minha mãe”. Atualmente, é a mãe de Mayara que lida melhor com sua nova identidade de gênero. “Ela diz que eu sou a filha que sempre quis”. Mas nem sempre foi assim. Quando a garota começou a transição, aflita pela forma como a família lidaria com as mudanças, sua mãe entrou em conflitos consigo mesma. Seu pai conta das dificuldades de entender as transformações que ocorriam na vida dela. “É choque, entendeu? Às vezes a gente atua de maneira errada não por maldade, um pai não quer o mal dos filhos, jamais!”, conta Luiz. O nome foi a mãe, Rose, quem escolheu. “Se eu tivesse uma menina, ela se chamaria Mayara”. Durante a transição foi complicado, de acordo com a garota, devido à falta de informação. Seus diálogos em casa foram pouco a pouco modificando a forma como a família lidava com suas mudanças. Na época, Mayara foi em busca de informação na internet. Além disso, ela estudava com uma colega que também estava em transição e depois conheceu outra. “Na internet eu comecei a pesquisar. Daí, vi que eu sou uma mulher trans e que essa era a vontade que eu tinha desde pequena - de ser uma mulher trans”, destaca. Através das pesquisas, ela descobriu que essa identidade é possível e conta que o acesso à informação e a conversa com mulheres trans fizeram-na passar do “quero ser” para “posso 9


ser”. “Ninguém tem que ditar isso ‘ah você é isso, você é aquilo’. Eu tenho que dizer o que sou, eu tenho que me identificar”, ressalta.

escolhas

Contudo, foi na escola, como a maioria das pessoas, que Mayara teve acesso às formas de não aceitação mais duras pelas quais passou. Na luta para usar o banheiro e ter seu nome social na chamada, ela enfrentou obstáculos como a ignorância da diretoria e de pais de alunos em relação à diversidade de gênero. “Aconteceu de uma aluna reclamar e o pai ir lá (na escola) e dizer que se não fizessem algo, ele faria na rua. Eu falei, 'dane-se, que faça comigo na rua, mas eu tenho meu direito'”.

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Foi no extinto Orkut (website de rede social) que Mayara participou de seu primeiro grupo, cujos tópicos eram sobre terapia hormonal. Com a mudança para o Facebook, tornou-se: “Hormônio para transgêneros”. Ela queria mudar o corpo, desejava ver a mulher que queria ser e é. Com as informações, Mayara passou a se automedicar com hormônios. A compra foi feita sem os pais saberem, mas, por um acaso, eles descobriram. “Na hora que pedi na farmácia, o entregador chegou junto com eles da rua e eles trouxeram o remédio”, revela. “Eu levei e falei ‘isso são hormônios’ e eles foram de boa, sabe?”, completa. O tratamento começou há dois anos e ela ressalta que irá procurar um endocrinologista: “eu acho que preciso agora de um controle”. A garota de 19 anos, que sonha em cursar a faculdade de Eventos, tem encontrado algumas dificuldades nos ambientes escolares. Mayara saiu de um cursinho preparatório que frequentava na Zona Sul do Grande Recife por conta de comentários agressivos de um professor de física que lecionava na instituição. “Eu já discuti com ele uma vez. Ele era machista, agarrava as meninas e era homofóbico”. Militante feminista, Mayara conheceu o movimento através da internet. Com pautas que diziam respeito a seus direitos, ela se iniciou nas pesquisas e hoje é uma defensora da igualdade de gênero e do respeito à diversidade.


“E se eu chegar agora na rua e perguntar o que é uma mulher trans, o que é uma travesti? Somos confundidas com homens gays”. De acordo com Mayara, a falta de informação em relação à diversidade de gênero é umas das causas do preconceito que sofre.

questão de identidade

Em virtude de tudo isso, a garota encontra sérios problemas para sua identificação oficial. O incômodo de Mayara ao ser tratada no masculino por quem lê seu Registro Geral não é levado em consideração pelas atuais leis brasileiras. Apesar de desejar uma mudança em sua documentação, a burocracia e as dificuldades nos processos corroboram para o adiamento de seus planos até que se passasse o vestibular. “Tenho que ter laudo de psiquiatra, psicólogo, assistente social e advogado. Depois disso, tenho que esperar a decisão do juiz”, afirma.

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Entre olhares e desaprovações, segurança é uma palavra que Mayara não pode assimilar em sua vida. “Acho que uma trans* sair na rua e não se perguntar ‘eu vou voltar viva?’ é quase impossível. Eu já vi muitas mulheres que eu conhecia sendo achadas mortas em bueiros, num canto sujo por aí”. Já aconteceu também de hoje eu estar falando com ela e amanhã ela se matar”. Mayara revela um grande incômodo sobre como a mídia retrata as pessoas trans*: “Um dia desses morreu uma mulher trans. Ela foi achada morta e não foi noticiada. Dane-se. Não sou nada, sou um resto. É pesado imaginar que amanhã você vai morrer e os únicos que vão chorar serão seu pai e sua mãe, e, no dia seguinte, será esquecida e ninguém fará justiça. Enterra”.

No matter gay, straight, or bi,

Lesbian, transgendered life I was born to survive

- Lady Gaga (Born this way)

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do medo

I'm on the right track, baby


Era início da noite quando Mayara chegou a seu prédio. Com o cabelo preso, diferentemente do primeiro encontro, a garota chegava do trabalho. No dia três de dezembro de 2014, Mayara começou em seu emprego na Galeria Castro Alves. A casa estava cheia. Sua família e sua vizinha jantavam, enquanto nos preparávamos para a sessão de fotos em seu quarto. “Emprego para mulher trans é difícil né? Uma amiga me indicou para esse emprego de atendente, recepcionista e garçonete. E eu fui lá”, conta Mayara, que não economiza elogios à sua patroa. “É um amor de pessoa, um doce, e na hora ela falou que eu estava contratada. Até hoje ela é magnífica comigo. Estou me sentindo bem e está sendo ótimo”.

o emprego

Mayara se maquiava em frente a um grande espelho iluminado, que também refletia a imagem de Lady Gaga pendurada em sua parede. De repente, um susto: “encontrei! Achei que tinha perdido meu batom preferido”. Em meio à sessão de fotos, Mayara pede licença para acender um cigarro. Em silêncio, ela ajeitou a cortina do quarto e ficou na janela ao som da cantora norte-americana Lana Del Rey. Entre um trago e outro, cantava timidamente os versos das canções. Depois, sentada em sua cama, respondia com firmeza as perguntas e, certa de seu papel no mundo, indagou: “ Estou ali, vai ter que me aceitar. Fim”.

Os pais de Mayara contam mais sobre a garota em vídeo. Acesse o QR Code ao lado. 13


crônica

Paredes do Silêncio

Texto por

Caio Castro Mello

Àquilo que te negas enxergar só restam as trevas. Objeto! Ora lixo, ora buraco.

Relatos de um bar, casa dos ratos, abrigo da ojeriza humana por si mesma. A casa velha de paredes pintadas só tinha uma porta. Em sua frente, apenas um de preto e duas loiras. Dois chafarizes cuspiam água. O silêncio e vazio dos arredores davam o tom de uma noite recifense dos grandes centros. Um passo pela porta, quatro mãos lhe invadem. O contrato estabelece-se. Dê-lhes teu corpo como o fazes de costume. As batidas começam a serem sentidas pelo peito que pulsa em ritmo constante. Encontra-se uma luz em meio à escuridão, ora vermelha, ora azul. Entre saltos e saias, o íntimo se expõe, ou simplesmente não existe. Perucas e cílios não escondem, transparecem. Para os que se balançam em melodias metricamente regulares aos que na malemolência das entranhas dos morros dobram-se as coxas, viver é um verbo transitivo indireto. Aceito, murmuram as paredes na escuridão. Menos estampas, mais pele. Mulher, teu pênis cabe aqui. Em outra sala, pede-se o microfone, era um pedido: toca Cazuza. A escória varrida da cidade pelo dia, à noite vive (de sacanagem), só pra contrariar. Tomava-se Skol e por vezes Coca-Cola. Detrás da cortina, deitar é luxo para alcovas. Desce-se a calça. Ajoelhe-se! Próximo. Ouvem-se gritos abafados. “Também sou gente”, disse. Implorava-se pelos gestos e olhares: respirar. Ali, debaixo do tapete vermelho sobre o qual anda o Recife, entrelaçavam-se histórias e corpos. Alguns com dores, outros em paz. Peitos à mostra como um pavão que seduz. Extinto. Animal. Bicha! Cortiço da soberba humana. Isolados pelas espumas que os abafam, escondidos pelas paredes que os libertam. Asfixia. Tabaco. Por fora, o silêncio se mantém intacto. A senhora distinta dormia. O herdeiro desfilava regado a champagne. Contudo, nada disso aconteceu ou sequer existiu. Toca um frevo, dj! Alívio. Isso sim é a cara do Recife.

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artigo

(des) Categorizando Texto por

Maria Eduarda Barbosa

Em um mundo ditador, Mayara, Deliylah, Janaína, Cristiane, Heitor e Morgan, são pessoas que ultrapassaram barreiras entre anatomia, identidade de gênero e orientação sexual para serem quem desejam ser. Elas e ele, que você conhecerá ao longo da ÁTIMO, transgridem a cisgeneridade, termo usado para definir pessoas cujo gênero se identifica com o sexo de nascimento. Esse é um conceito que reitera a divisão entre masculino e feminino como se apenas houvesse essas duas possibilidades de existência e gênero, quando, na verdade, nossa humanidade vai muito além disso. De acordo com Fernanda Capibaribe, professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), até hoje, a tendência das pessoas é associar o sexo biológico (mulher ou homem) com o gênero (feminino ou masculino) como se essa implicação fosse direta. “A gente nasce com uma certa anatomia, normalmente ela é nomeada, salvo exceções, como uma anatomia de menino ou menina, ou seja, homem ou mulher, a partir de um aparelho reprodutor, e a 15


tendência da sociedade é associar essa anatomia logo a uma identidade”, explica. Joan Scott, historiadora norte-americana, no texto “ Gênero - uma categoria útil para análise histórica”, estabelece o gênero como uma relação construída ao longo da vida. O que vai de encontro à percepção como algo inerente, que viesse de “fábrica”. Isto é, para a autora, o gênero com o qual nos identificamos é formado por nossas experiências de vida. “Gênero é identidade, é construção social, cultural”, afirma Fernanda, que também ressalta: “Uma coisa é a anatomia que nos nomeia, que pode, inclusive essa, ser questionada porque Simone de Beauvoir, desde a década de 1940, já questiona a nomeação do ser mulher. Outra coisa é a maneira como nós nos portamos, como nós lidamos com a nossa anatomia”. O psicólogo e integrante do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (Gema/UFPE), Bruno Robson, explica que hoje existe o debate de que o sexo biológico também é construído socioculturalmente. “Por mais que a gente nasça com um pênis ou uma vagina, tudo o que a gente constrói ao redor disso é social. É uma construção”, frisa o pesquisador. Já a sexualidade, para Bruno Robson, é a expressão sexual das pessoas, que pode ser expressa de diversas formas como carinho, afeto e o ato sexual em si. Acerca do tema, Fernanda Capibaribe acredita em possíveis avanços dentro dessa temática. “Eu acho que o que vai avançar muito nessa discussão sobre orientação sexual, que o transgênero tem uma importância muito grande nesse sentido, é a entrada do desejo em cena e a discussão da bissexualidade como algo que nos atravessa e que não está ligado ao gene, está ligado a uma experiência, está ligado a uma possibilidade de experimentação de sexualidade”, destaca a professora.

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De acordo com o website transfeminismo.com, o termo trans é utilizado com um asteristico ao final da palavra para evitar classificações que podem ser excludentes. É um termo guarda-chuva, que inclui qualquer identidade trans. “Além disso, o termo também pode incluir pessoas trans* que se identificam dentro e/ou fora do sistema normativo binário de gênero, ou seja, da ideia normativa que temos de masculino e feminino que forma um binário”, diz o site.


O que significa a palavra transgênero?

Para ser considerado transexual não é preciso realizar a redesignação sexual (ou transgenitalização), cirurgia de adequação do sexo ao gênero. Muitas pessoas tendem a diferenciar os termos transexual e travesti (transexual seria a

denominação para pessoas que realizaram a cirurgia e travesti para as que não realizaram) através disso. Contudo, de acordo com Sofia, autora da página Travesti Reflexiva no Facebook, a diferença acontece na autoidentificação. A cirurgia é o ponto final. Segundo Fernanda, para ter o direito à redesignação sexual, a pessoa precisa passar por um processo terapêutico que dura, pelo menos, uns dois anos.

cisgênero e transgênero

Segundo Fernanda, o transgênero é aquele que ultrapassa as barreiras da cisgeneridade, o qual não se identifica com o gênero que lhe é imposto em função de seus órgãos sexuais. Seu corpo não está associado à sua identidade pelas normas sociais vigentes. “A gente pode trabalhar o transgênero desde uma drag queen, cross dresser ou um certo tipo de identificação com o gênero oposto àquele sexo na nomeação linear”, explica. Ela utiliza como exemplo uma pessoa que nasceu homem, mas se identifica com o feminino e, nesse processo de identifi cação, adquire marcas simbólicas e materiais do que é nomeado como feminino (roupas, gestos, gostos, etc.). “Então isso você já pode considerar um certo tipo de conduta atravessando a ponte, transgredindo a definição cisgênero”, completa Fernanda. O transexual é um transgênero. Conforme a professora, é aquele que não se vê dentro daquele corpo. “Não é só assim: eu sou mulher, mas me identifico com o masculino. O transexual não se vê naquele corpo”, diz. Assim como transexuais, a travesti também faz mudanças permanentes ou numa temporalidade mais extensa. Já a drag queen ou o drag king, por exemplo, se traveste com características do gênero “oposto” temporariamente. O termo travesti foi durante muito tempo, e ainda é, utilizado pejorativamente ou nomeado no lugar de marginalidade. “Acho interessante a maneira como algumas pessoas têm assumido esse termo, e de uma forma emponderante, porque foi durante muito pejorativo”, comenta Fernanda.

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Feminino e masculino: uma dicotomia

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diz: “O trans não quer dizer que eu cheguei lá no outro lado ou que quero chegar lá. O trans é a nomenclatura que está sendo trabalhada para permitir acessibilidade entre os dois lados que o cis determina como isso ou aquilo. Então o trans poderia ser isso e aquilo”.

teoria queer

A teoria Queer surge como uma tentativa de desconstrução dessa divisão. Quando nomeamos, por exemplo, o feminino em oposição ao masculino, construímos um binarismo, ou seja, reduzimos a apenas duas possibilidades. “O que a teoria Queer faz é considerar que essa dicotomia não se sustenta mais”, ressalta Fernanda Capibaribe. A teoria Queer mostra a possibilidade de você ser quem quer ser. “Essa nomeação foi dada exatamente pelo estranhamento da dicotomia de gênero. O Queer quer dizer o estranho”, explica Fernanda, que também diz: “É uma abolição dessa nomenclatura porque, se nomeio masculino ou feminino, eu faço uma distinção. Mas, a teoria Queer vai trabalhar essa abolição na perspectiva da transgeneridade, em que a orientação sexual não está ligada a isso. Ser transgênero não significa ser homossexual”. A estratégia da multidão que adota a nomenclatura é apropriar-se das identificações negativas produzindo identificações de resistência à normatização, ressignificando-a. “O transgênero é um modo de ser, um modo de se identificar, de pertencer, é um modo de trabalhar as marcas do seu próprio corpo, de trazer essas marcas para o corpo. Mas isso não está ligado, não tem uma ligação direta com a orientação sexual”, ressalta Fernanda. De acordo com ela, a teoria Queer também questiona a questão da orientação sexual, porque ela também é uma nomeação do isso ou aquilo. “A teoria Queer começa questionando as lutas do movimento homossexual porque o ser homo acabou virando uma reiteração da distinção. Ser homo é uma oposição a heteronormatividade. Então quando você faz isso desconsidera o que está no meio”, explica. A teoria Queer trabalha a ideia do trans* ser uma possibilidade que não está ligada a dicotomias, segundo Fernanda, que também

A Associação de Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) emitiu a nota circular nº 0001/2013 aos meios de comunicação para que fosse incorporado o artigo feminino em matérias que fazem referência às travestis e transexuais. “Conto com o respeito de todos/as com relação a nossa Identidade de Gênero: feminina. Portanto, sempre ao redigirem matérias que envolvam Travestis e Transexuais recorram ao gênero feminino (AS TRAVESTIS, DAS TRAVESTIS, A TRAVESTI, UMA TRAVESTI). A aplicabilidade do gênero masculino só se justifica nos casos em que a referência do sexo biológico é feminina, mas a identidade social é masculina”, diz parte do texto que pode ser conferido na íntegra acessando o QR Code ao lado.


Perfil

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Perfil

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o que é o que é nem homem, nem mulher

Texto e Fotografia

Marília Parente

Ela era uma mulher: o perfume doce denunciava. Não seria quem é, no entanto, sem a força de outra fragrância caprichosamente aplicada a seu corpo. Morgan tinha esse cheiro camuflado pela maresia de Boa Viagem quando a conheci. Eram quatro horas da tarde e eu varria o parque Dona Lindu com os olhos, pois sabia que ela se destacaria da multidão. Moletom, calças de estampa florida, sapatos masculinos, batom e uma pele impecavelmente branca para alguém que mora na praia desde criança. Morgan só levantou o olhar do chão quando precisou me cumprimentar. Como se fizesse tudo em segredo, sussurrou sua vida durante três horas e explicou que seus pais lidam melhor com sapatos masculinos. 21


Filha de um advogado paulista, Morgan chegou ao Recife quando tinha um ano de idade. “Meu pai se transferiu para uma firma daqui. Nem lembro de São Paulo”, comenta. Como se não tivesse perdido parte do sotaque de um lugar onde nunca precisou articular mais de três fonemas, Morgan conta que nunca foi fã de praia. “Sempre preferi piscina. Agora, também tem essa questão do corpo. Não me sinto confortável com o meu”.

o moletom

Morgan também está descontente com seu peso. Conta que aos 17 anos até chegou a frequentar a academia, por pressão do pai. “Com uns 2 meses, larguei. Todas aquelas pessoas malhadas...Era o início desse sentimentozinho de desconforto”, lembra.

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Paciente de um processo de depilação definitiva da barba, a moça está aliviada. Os poucos pêlos que teimam em nascer no rosto, no entanto, ainda causam sofrimento. “Ter que me barbear é humilhante”, desabafa. Aprimorado, o tratamento hormonal é uma luz no fim de um túnel espesso. Ganhar no corpo as curvas e sutilezas com as quais a consciência se familiariza custa caro e exige um acompanhamento que Morgan não tem. “Meus pais não apoiariam e tenho medo de começar a pagar sozinha e não conseguir concluir o tratamento”, murmura. Aos 21 anos, Morgan não se sente feminina, nem masculina. “A androginia acabou se tornando uma zona de conforto. Mais pela dificuldade de me mostrar feminina do que por gostar de me apresentar andrógena”. Os ombros largos, os pés grandes e a estatura expressiva incomodam e ditam a escolha do vestuário. “Tenho medo de cair nessa caricatura de mulher trans como alguém com fisionomia masculina que tenta se hiperfeminilizar. Às


vezes, quando você tenta expressar uma característica de mulher, acaba se masculinizando”.

o mundo de morgan

Peço para fotografá-la. Ela logo põe o moletom. “Ele basicamente desdefine a minha silhueta, o que me faz sentir bem mais feminina”, explica. Desdefinir. Vez por outra, a jovem gagueja , inventa palavras ou pergunta: “como é mesmo que se diz?”.

Exceto quando é convidada para assistir a um filme na casa de um amigo ou precisar ir até a universidade para cumprir suas obrigações de estudante de Design, Morgan não sai de seu quarto. Possui um blog onde publica seus desenhos, amizades online e alguns namoros com navegantes oriundos de países de língua inglesa, que ela domina. A webcam ganha beijos e o teclado afagos com a ponta dos dedos. Para Morgan, são relacionamentos reais. “É mais fácil encontrar pessoas parecidas comigo na internet. Não só pela minha identidade de gênero, mas pelo meu gosto por jogos. A rede ajuda quando você tem interesses específicos”, comenta. Declaradamente pansexual, a estudante conta que se sente mais atraída por pessoas do espectro feminino, o que inclui homens andrógenos. “Ser pansexual não significa ser atraída por qualquer tipo de pessoa, mas que posso me interessar por pessoas de todos os gêneros, cis ou trans”. Embora sejam muitas, as interações na web deixam espaço para que os próprios super-heróis sejam criados. “Adoro fazer design de personagens. Eu queria ver mais personagens parecidos comigo e menos homens brancos cis, sérios e pouco coloridos, então comecei a desenhá-los eu mesma e postar no blog”, diz. Apesar da inspiração japonesa, os traços são um idioma compreendido em qualquer lugar do mundo. Às vezes, ganham formas inumanas. Talvez nosso corpo tenha se tornado obsoleto.

No blog de Morgan você irá encontrar uma galeria com trabalhos da designer. Acesse o QR Code ao lado.


Entrevista

Psicólogo e pesquisador do GEMA (Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades) da Universidade Federal de Pernambuco. Em seu estudo intitulado “'Tá pensando que travesti é bagunça?' Repertórios sobre travestilidade, em contextos de criminalidade, por jornais de Pernambuco” analisou a abordagem da imprensa pernambucana em relação as travestis.

Bruno Robson

Como você explica a diferença entre gênero, sexualidade e sexo? Texto e Fotografia

Caio Castro Mello

A entrevista continua na internet. Acesse o QR Code ao lado.

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Como psicólogo, eu trabalho numa perspectiva, principalmente da Judith Buthler, que é a do pós-construcionismo, o qual separa gênero e sexo. Historicamente sempre se achou que gênero é a construção social e sexo é a construção biológica, é inato. Hoje, o debate que a gente faz é que o sexo também é construído. Então, por mais que a gente nasça com um pênis ou uma vagina, tudo que a gente constrói ao redor disso é social, é uma construção. É uma perspectiva que diz que não há nada inato: seu sexo não é inato, seu gênero não é inato. A sexualidade é a expressão afetiva sexual das pessoas. O sexo é, de fato, ligado a questões biológicas, mas não determinantes, é importante frisar isso. O sexo não nos determina. O modo como a gente vai dialogando e construindo essas duas coisas dizem da expressão da nossa sexualidade.


Como você explica a diferença entre gênero, sexualidade e sexo?

se constroem a partir de suas experiências e aprendizados.

Como psicólogo, eu trabalho numa perspectiva, principalmente da Judith Buthler, que é a do pós-construcionismo, o qual separa gênero e sexo.

Então, se você tivesse nascido em outro contexto, você poderia ter sido um transgênero, ou um outro homem completamente diferente. Sua identidade diz de você e suas relações ao longo da vida. E é por isso que é tão difícil trabalhar esses conceitos, porque a identidade é algo que vai contra as amarrações: é ser heterossexual hoje, e amanhã descobrir que sou homossexual e, noutro dia, um transgênero.

Historicamente sempre se achou que gênero é a construção social e sexo é a construção biológiMulher, homem, isso não existe, ca, é inato. Hoje, o debate que a gente faz é que o sexo também porque é construído. Então, por mais a categoria que a gente nasça com um pênis ou uma não dá conta vagina, tudo que a gente constrói ao redor disso é social, é uma construção. É uma perspectiva que diz que não há nada inato: seu sexo não é inato, seu gênero não é inato. A sexualidade é a expressão afetiva sexual das pessoas. O sexo é, de fato, ligado a questões biológicas, mas não determinantes, é importante frisar isso. O sexo não nos determina. O modo como a gente vai dialogando e construindo essas duas coisas dizem da expressão da nossa sexualidade. O gênero é uma construção social. Ou seja, se eu tivesse nascido em outro contexto, eu poderia ser trans*? Hoje a gente considera a identidade uma construção fluida, inclusive você vai encontrar pessoas que vão dizer que a identidade sequer existe, porque a identidade vai falar de um eu, de um centro. Sendo que hoje a gente trabalha numa perspectiva de identidade como "algo" e "projeto" ao mesmo tempo. Ela é um vir a ser. Você é, mas amanhã você pode vir a ser outra coisa completamente diferente. Sua identidade vai se alterando. As pessoas gostam de aproximar um pouco identidade de personalidade, porém, deve-se entender as duas coisas não como sinônimos, mas como coisas fluidas, que

Ao mesmo tempo, hoje a gente pensa identidade como um meio de garantia de direitos. Nenhum gay é igual, nenhuma lésbica é igual, a gente precisa dessa identidade pra requisitar direitos. Ou seja: “a população LGBT, enquanto identidade, requisita que seus direitos sejam respeitados”. Ao mesmo tempo que a gente tá dizendo que a identidade não é algo preso, a gente se prende a esses conceitos por necessidade de direitos. Como lidar com tanta diversidade que muitas vezes não compreendemos? A gente precisa dar um passo atrás pra responder a tua pergunta, que é exatamente a pergunta com a qual a Judith Buttler começa o livro “Problemas de gênero”: O que é uma mulher? A autora desconstrói a categoria de o que é uma mulher. Mulher, homem, isso não existe, porque a categoria não dá conta. Para ser uma mulher você precisa ser passiva, ter uma vagina (útero) e ser heterossexual. Então, se você não tem útero você é menos mulher? Se você é lésbica você é menos mulher? Se você é uma mulher que opta por não praticar sexo, você é menos mulher? Então, ela vai analisando isso pra dizer: “não, você continua sendo uma

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mulher?”. “É porque ela nasceu com um pênis e fez a cirurgia? Se é que ela fez a cirurgia”. Sobre a sua pesquisa, de onde surgiu o interesse? Eu sempre fiquei muito incomodado com a abordagem (notícias impressas e vídeos) dos travestis na mídia. Vanessão, as meninas que assaltam, etc. Tudo está sempre em contexto de criminalidade - na delegacia - além de ser sempre piada. Travesti é uma coisa engraçada, jocosa. É bagunça. Eu achei que isso era um assunto que deveria ser pesquisado. Como é que elas aparecem na mídia pernambucana? A gente pensava que, como elas eram a bagunça, apareceriam como autoras dos crimes. Mas, nos surpreendemos quando a maioria das notícias eram de homicídios. As notícias eram de que “os travestis foram mortos”. Foi algo assustador. Nenhuma das notícias respeitava a identidade de gênero das travestis. Quando eu jogava, ao contrário, o nome “promotor” na pesquisa, encontrava reportagens de capa. Daí vem a questão, porque esse corpo é mais importante? Porque a travesti vale tão pouco? Por que é que um promotor vale mais, se ambos foram assassinados? Por que nenhuma notícia esteve presente dos 3 jornais? Resposta: porque é um corpo que não merece atenção, é uma morte que a gente não precisa chorar. Meu objetivo geral era como os jornais qualificam as vidas. As matérias trazem os bairros onde aconteceram os assassinatos e nenhum foi em Casa Forte. Tudo ocorreu em comunidades da periferia. Sobre a profissão: nenhuma travesti era advogada ou psicóloga. Eram prostituas, atendentes de bar, cabelereiras.

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Então estamos falando de travesti pobre e negra, que é assassinada e ninguém se importa. Quando se constrói uma notícia de assassinato, as informações da vítima são geralmente positivas (mãe de família, advogada, psicóloga, pai de três filhos). Já a pessoa que cometeu o crime vem acompanhada de informações de seus antecedentes criminais (assaltante, ladrão). O que isso faz? Isso me aproxima da vítima e me afasta do autor da violência. No caso das travestis, o que acontece? Ela é vítima. Mas a construção da notícia diz que ela é prostituta, traficante, etc. A qual conclusão a matéria nos leva? "Essa pessoa procurou pela morte". Ela é coautora do assassinato dela. Se ela não fosse travesti, se ela não fosse garota de programa, se ela não tivesse no lugar onde ocorre venda de drogas, ela não estaria morta. Assim, a culpa da morte dela, é dela. Quem quer que leia não vai se compadecer dessa morte. Como foi trabalhado o conceito de "abjeção" em sua pesquisa? Julia Kristeva é uma psicóloga que pegou de Lacan (Jacques Lacan) o conceito de "abjeção". Kristeva trabalhou o conceito de forma intrapsíquica: o abjeto é o que o sujeito psiquicamente coloca pra fora para se subjetivar – construir sua identidade. Buttler, entretanto, pega isso e diz que não é apenas um movimento intrapsíquico, mas também, social. Para uma categoria se firmar como categoria, ela joga algo para fora. Daí, algumas pessoas dizem que a travesti é um "corpo abjeto". A leitura que eu faço é a seguinte: a abjeção não é personificada – “eu não sou o abjeto, eu habito


a abjeção”. O gay é abjeto por que não é heterossexual. Só que, se você é gay afeminado, você é mais abjeto. Se você é gay professor de universidade federal ou um gay cabelereiro, a zona de abjeção atua de forma diferente. E aí, o que acontece com essas travestis dos jornais: elas não habitam somente a zona de abjeção da travestilidade. Elas habitam as zonas da travestilidade, do uso de drogas, da prostituição, da pobreza e da negritude. Então são 5 zonas de abjeção que tornam seu corpo pior, de menos valia. E o que a Buttler diz é que são corpos que não importam.

Precisa existir um compromisso jornalístico em relação a isso.

Como essa realidade pode ser alterada no que se refere à mídia? Existem documentos oficiais lançados a público onde a instituição máxima dos transgêneros (a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais) requisita aos jornalistas que respeitem a sua identidade de gênero. Mas isso não acontece.

Confira a dissertação completa do pesquisador na página do GEMA. Acesse o QR Code ao lado.

Os jornalistas escrevem como se estivessem apenas reportando, apenas descrevendo um assassinato. Mas ao mesmo tempo em que descrevem, eles constroem aquele assassinato pra quem tá lendo. O discurso constrói a realidade e para que a gente altere a realidade, a gente deve alterar os discursos. Algumas pessoas dizem: “que besteira, qual a diferença entre ‘o’ travesti e ‘a’ travesti?” A travesti significa que estou me referindo a uma mulher. ‘O’ travesti é um homem vestido de mulher. Quando eu me refiro a travesti usando o nome social dela, dizendo que foi uma pessoa do gênero feminino que foi morta, eu estou contribuindo para a construção de um respeito a identidade de gênero das pessoas trans*.

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coluna

foto: facebook/reprodução

Visibilidade Trans

Texto por

Para quem?

Estar visível não significa necessariamente algo que converta-se em um feedback saudável. Eu tenho uma relação agridoce com a visibilidade, costumo andar pelas bordas quando estou na rua, quase esbarrando nos muros, como se eu quisesse entrar neles e ser invisível. Finjo não estar atenta a qualquer sinal de que a minha identidade foi percebida, ela é berrante! Acho, aliás, chego a ter certeza que a palavra "aberração" está escrita em minha testa. O preço que pago quando observam e apontam a minha travestilidade é muito alto, torno-me alvo de agressões, chacotas e deboches. Descobri que é mais fácil camuflar-me entre os considerados normais e tentar viver em paz. 28

Sofia F. Ricardo

"Olha lá a sua namorada passando!" Gritam para alguém enquanto ferem-me junto. Os dedos que me denunciam e são apontados para mim anunciam uma realidade: é um crime ser travesti. Quer dizer, quem sabe criminosos conseguem ter um reconhecimento social maior! Ou até mesmo um caso clássico onde uma conhecida afirmava que havia mostrado fotos minhas para um primo, no desejo de ridicularizá-lo. "Bonita, né?" Ela perguntou antes de contar - "É travesti!" Não são todos que podem dizer que já viram travestis durante o dia, a sociedade chega a acreditar que as travestis são criaturas noturnas.


Saem do chão quando anoitece, vão prostituir-se e voltam para o chão quando o sol começa a surgir. Afinal, o chão é o lugar determinado previamente para "gente" como eu. Estudo em uma faculdade na qual sou considerada pelos discentes um corpo estranho que deve ser repelido. As pessoas reduzem a instituição de ensino superior a sala de aula e esquecem dos corredores, praças, banheiros e outros recintos. Em todos eles posso ouvir os cochichos, as mãos que são usadas para minimizá-los, os cotovelos que são empurrados, os olhos esbugalhados... Expressões corporais que sussurram-me: esse lugar não é pra você. Quando Jared Leto ganhou o Oscar por interpretar Rayon, imediatamente lembrei-me dos teatros de outrora onde homens interpretavam mulheres pois a apresentação delas era proibida e, dos negros que eram zombados pelos brancos na caricatura abominável conhecida pelo termo "blackface". Será que não existia nenhuma pessoa trans qualificada para interpretar aquele papel? E a respeito de todos os outros filmes sobre o tema? Quantos foram interpretados por travestis, transexuais ou transgêneros? Dois? Um? Zero? Se formos pegar a mídia brasileira iremos ter um longo histórico de pessoas cis parodiando pessoas trans em novelas. Em um caso recente uma travesti foi chamada para interpretar - pasmem - uma prostituta. Até porque esse é o destino dogmático de toda travesti, não é mesmo? Não existe travesti gerente, professora, faxineira, vendedora ou empresária. Imagina se colocam uma travesti médica na novela? O revertério que isso não iria dar na cabeça do telespectador! "Quem esse povo da margem pensa que é? Até ontem estavam na esquina! Agora querem dizer na tv que conseguem um emprego formal?"

Eu tinha 18 anos quando assisti a Lea T em uma das suas primeiras entrevistas, até aquele momento eu havia internalizado que o meu ponto de chegada seria - em caso de sorte - o salão de beleza. Ter visto na televisão essa pessoa que compartilhava uma trilha similar deixou-me esperançosa, se ela conseguiu ocupar aquele espaço eu também conseguiria ocupar outros. Só eu sei como a representatividade importa. Contudo, não quero supor que o papel das pessoas cis deva ser restrito ou que o papel das pessoas trans deva ser exclusivamente esse, eu estaria criando uma barreira indesejada. Quero propor apenas que a nossa inserção ocorra de forma que desconstrua a rede de estereótipos que orbita ao redor das esferas midiáticas. Que a falta - acarretada pela transfobia - de travestis, transexuais e transgêneros em espaços públicos seja preenchida a partir da notabilidade dessas pessoas em locais de disputa. Que essa visibilidade naturalize a nossa presença, não mais causando a tradicional repulsa. Ótimo filme, mas na minha luta nada acrescentou. Jared Leto imitando uma travesti somente consegue me dizer - novamente - uma coisa, que nem para interpretarmos a nossa própria existência nós prestamos.

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reportagem

A Escalada Texto por

Para o Mercado de trabalho

Cícera Amorim Eduarda Esteves

Se a escalada para o mercado de trabalho na vida de pessoas que atendem as normas sociais já é ardilosa, junte a essas dificuldades, seguindo o mesmo trajeto, ventos, chuvas, sede, e escorregões. Essa é a realidade de uma pessoa trans* que busca um espaço no mercado de trabalho no Recife.

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Nada é fácil para alguém que foge aos padrões sociais. Em muita coisa temos avançado, mas enquanto algumas causas de igualdade social dão saltos enormes, outras estão quase estagnadas. Esse segundo caso é o que se pode dizer do grupo de pessoas trans*. A transexualidade ainda aparece na Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde, como um tipo de transtorno de identidade de gênero. Além de um comportamento diferente, a aparência desse grupo é tida como algo exótico. A pessoa trans*, em sua esmagadora maioria, tem grandes dificuldades em ingressar no mercado de trabalho e todas as causas se juntam formando uma enorme “bola de neve” que trazem consequências arrasadoras. O Recife é a pior capital do país para se conseguir um emprego. A média é de 90 candidatos para uma vaga, segundo uma pesquisa encomendada pelo jornal O Globo. Se a concorrência já é desleal para quem está dentro do padrão imposto pela sociedade, imagine para uma pessoa que assume uma identidade de gênero trans*. O primeiro ato de repressão e distanciamento de uma vida profissional acontece logo na escola. Existem muitos casos de abandono aos estudos justamente por causa da discriminação, mas alguns, com o desejo de ingressar no ensino superior, acabam trancafiando-se em si mesmos até chegar à faculdade, onde têm esperanças de desfrutar de mais liberdade. Outro grande empecilho na luta pela igualdade e aceitação dessas pessoas é a falta de interesse governamental e grau de dificuldade em lidar com o tema, colocado como tabu social. No ano de 2014 foi a primeira vez em que transexuais puderam utilizar o nome social

no Enem, os quais puderam ficar em salas de aulas conforme a ordem alfabética do nome escolhido e utilizar o banheiro - masculino ou feminino - que preferiram. Esse foi o caso da estudante recifense Maria Clara Araújo, de 18 anos. Ela foi uma dos 95 candidatos transexuais com autorização do Ministério da Educação para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) usando seu nome social. Ela foi selecionada através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) logo na primeira chamada e agora irá cursar pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esse grande passo serve de incentivo para toda a população trans*. A questão do nome social nos documentos é algo que deve ser prioritário, mas quando a mudança é tardia e a pessoa decide assumir uma nova identidade de gênero, já depois de estar em um emprego fixo, as dificuldades podem ser grandes. História semelhante aconteceu com Janaína Louise. Maquiadora, atriz e cantora há quinze anos, ela também é profissional da saúde e já trabalhou em muitos hospitais da Região Metropolitana. Janaína foi aprovada em um concurso da FUSAM (Fundação de Saúde Amaury de Medeiros) e cumpriu dois anos de serviço. Porém nesse período Janaína ainda não tinha assumido sua identidade de gênero e se apresentava como homossexual. Ela conta que trabalhava nessa área por influência da família, mas depois resolveu abandonar a saúde e migrar para as artes. Foi quando assumiu sua identidade de mulher trans. Militante há dez anos, foi através de sua atuação em defesa das causas LGBT que conseguiu o emprego formal no qual trabalha hoje. Janaína foi convidada para trabalhar no

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administrativo do Centro Municipal de Referência em Cidadania LGBT e, atualmente, atua com o contato direto ao público do centro. Quando pergunto a respeito do nome que usa no trabalho, ela responde: “Desde quando decidi jogar fora minhas roupas de homem e assumir minha identidade de gênero, não aceito que as pessoas me tratem por uma coisa que eu não sou (...) já estou no processo de retificação de nome, não para que esse seja meu nome social, mas que seja meu nome civil, porque é meu direito de cidadã ter a identidade a qual eu escolhi”. Em Pernambuco, o órgão responsável para a inclusão da pessoa trans* é o Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), que integra o Sistema Estadual de Proteção à Pessoa de Pernambuco. Atualmente, estão sendo atendidas 98 pessoas transexuais. Dessas 98 pessoas, 19 possuem Fundamental, 47 possuem ensino médio incompleto, 20 pessoas possuem Ensino Superior, 4 possuem ensino técnico e 8 são analfabetas. “Esses dados refletem a realidade do serviço, estando muito aquém da realidade de Pernambuco”, declarou Hugo Lima, coordenador do Centro. Não existe, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, medidas concretas para o combate à homofobia e transfobia nos ambientes de trabalho. A qualificação profissional e o incentivo à criação de empregos para a população LGBT também não é uma realidade. Isso dificulta vislumbrar um projeto de vida que tenha como horizonte a autonomia. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), 90% desse segmento tem como trabalho a prostituição, sem acesso a nenhum tipo de benefício previdenciário. A promessa é buscar mais parcerias,

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principalmente com a gestão pública, para mudar essa realidade em 2015. Para aqueles e aquelas que desejam se inserir no mercado formal, uma ferramenta na internet foi desenvolvida. Diante das poucas alternativas de ajuda para ingressar em um trabalho de carteira assinada, um grupo de pessoas trans* decidiu criar um site onde travestis e transexuais possam enviar seus currículos e encontrar empresas que buscam seus perfis. O site se chama transempregos e abrange tanto trabalho integral, quanto estágios em diversas áreas. A iniciativa corrobora com a quebra dos muros entre o mercado de trabalho formal e essa população.

Assista à entrevista em vídeo. Acesse o QR Code ao lado.


em busca de uma rotina

Dona de um semblante alegre e de uma trajetória de muita luta por oportunidades, Cristiane Falcão superou obstáculos e conseguiu realizar um de seus sonhos: ter sua carteira assinada pela primeira vez. Para muitos, ter uma rotina é algo bastante cansativo. Acordar cedo, ir trabalhar, voltar para casa no fim da tarde e repetir toda essa sequência pelos dias seguintes é comum e, às vezes, até chato. Por toda sua vida, Cristiane sempre sonhou em ter essa sensação de rotina de trabalho, mas só em 2013, aos 40 anos, conseguiu realizar o seu sonho. Ela foi a primeira mulher transexual a ocupar um cargo público no Governo de Pernambuco. O que para muitos transexuais e travestis parece mais uma utopia da vida, tornou-se realidade para Cris. Em abril de 2013, ela conseguiu se destacar em um teste e foi admitida para ocupar o cargo de auxiliar administrativa na Secretaria Executiva de Direitos Humanos de Pernambuco. Com o 'não', que se fez presente em quase toda sua vida, Cris explica como foi o processo de admição. "No mercado de trabalho sempre havia gays e lésbicas e por que não uma trans? Nós éramos o quê? Diminuídas? E aí sempre diziam que a escolha era por perfil ou que a baixa escolaridade nos prejudicava". Cristiane pensou em desistir de tentar a vaga por receio. "Na época, fiquei morrendo de medo porque fazia mais de 20 anos que eu não estudava e não tinha um currículo recheado para apresentar naquele emprego. Viajei a Europa quase toda, falava cinco idiomas, mas o currículo, de fato, eu não tinha. Mas, as pessoas começaram a me encorajar e eu sempre gostei muito de desafios", diz. No teste, ela conta que tirou 9,5 na redação e foi uma das melhores

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notas. Hoje, ocupar o cargo de Educadora Social e ter uma rotina muito corrida é motivo de felicidade para Cristiane. Aos 42 anos, Cris também já foi alvo de transfobia e preconceito em busca de uma oportunidade no mercado de trabalho. “Uma vez, realizei um teste em que a gerente adorou o meu trabalho. Dias depois, na hora de me contratar, ela viu os meus documentos e observou que o nome que constava não era o meu social e sim o de RG, na hora ela mudou de ideia”. Emocionada, Cristiane lembra do momento e o classifica como um dos mais dolorosos. “Chamei ela para conversar, eu não consegui acreditar, olhando em seus olhos, que ela não iria me contratar por uma transfobia. Perguntei se ela havia gostado do meu trabalho e ela disse: “Sim, mas não contratamos pessoas

do seu tipo”. Aquelas palavras me machucaram muito”. A transfobia sempre esteve presente na vida da Educadora. "Passei por todos os problemas que a maioria das travestis e transexuais passaram, pela falta de oportunidade e emprego e caí na prostituição como a maioria delas. Depois fui cabeleireira, enfim, as opções que a sociedade heteronormativa nos dá", explica. Ela conta que queria uma maior visibilidade e um destino diferente. "Só se vê travestis e trans* nas esquinas, nas ruas ou em salões de beleza, além de nas cozinhas como empregadas domésticas. Não que isso não deva ser valorizado, mas eu queria um emprego em que pudesse batalhar parar melhorar a situação de todas as transexuais de Pernambuco", conta, orgulhosa.


arte

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Carol Rossetti 35


reportagem

Eu me chamo

Deliylah Texto por

Cássio Oliveira

Nascida em 28 de julho de 1984, a estudante Deliylah Gomez logo percebeu que seu corpo não condizia com quem ela sentia que era. Transexual, viu o tempo mudar suas roupas, hábitos e nome. Agora, ela luta para ser legalmente reconhecida como Deliylah. “Atrapalha você aparentar ser uma mulher, mas ter um nome masculino na identidade. Não posso ir ao banheiro feminino, por exemplo, por causa de um documento”, comenta.

Foto por Érika Sylva

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Obrigada a se identificar durante o período de trabalho com seu nome de registro, Deliylah se queixa da morosidade do processo de mudança do registro civil. “Se eu pudesse mudar algo em relação ao procedimento, mudaria o tempo de espera. Já faz quase um ano que dei entrada e nada”. A advogada do Centro Estadual de Combate à Homofobia, Laura Kerstenetzky, orienta as pessoas que desejam trocar o nome a procurar um advogado particular ou buscar auxílio gratuito da Defensoria Pública. “É possível conseguir o parecer psicológico, que é necessário, de graça, através do serviço oferecido pelo Hospital das Clínicas de Pernambuco. O Centro Estadual de Combate à Homofobia também oferece ajuda na organização de toda a documentação, encaminhamento para atendimento psicológico gratuito e


Documentação necessária para mudança de prenome e gênero nos documentos

da Defensoria Pública. “É possível conseguir o parecer psicológico, que é necessário, de graça, através do serviço oferecido pelo Hospital das Clínicas de Pernambuco. O Centro Estadual de Combate à Homofobia também oferece ajuda na organização de toda a documentação, encaminhamento para atendimento psicológico gratuito e facilitação no acesso à defensoria pública”, explica. Para Laura Kerstenetzky, a alteração do prenome e do sexo no Assento de Nascimento no Registro Civil é uma questão de saúde pública. “Não se pode falar em bem-estar físico, mental e social enquanto o transexual não tiver sua identificação social corrigida. Isto está disposto nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal, que estabelecem a cirurgia da adequação do sexo e do nome no Registro Civil de Nascimento como condições para estabilidade psicológica dessas pessoas”, coloca. Como ainda não há uma legislação específica para pessoas com identidade de gênero transexual, a liberação depende da interpretação do juiz. Em alguns casos, um estudo psicossocial é exigido. “Fui a uma psicóloga e achei bacana. Para quem tenta adequar seu sexo à documentação, essa é a parte fácil”, opina Deliylah. Temorosa a respeito do mercado de trabalho, “receoso em contratar uma pessoa trans, por inconvenientes como não saber lidar com a questão do nome”, a estudante confessa: “meu sonho é que todas trans possam fazer faculdade e que entrem no mercado de trabalho”.

Confira o documento na íntegra. Acesse o QR Code ao lado.

Laudo do Psicólogo >> Pode demorar seis meses para ser conquistado. >> O paciente deverá estar frequentando as consultas semanais ou quinzenais. >> Não serve para realizar a cirurgia de transgenitalização. >> Neste laudo irá constar o constrangimento que o paciente sofre ao ser referido por um nome lhe que causa dor psicológica. Laudo do Psiquiatra >> Esse laudo pode ser conquistado na segunda consulta com o psiquiatra. >> O psiquiatra enquadra a pessoa no CID 10 F 64.0, referente à transexualidade. Laudo do Endocrinologista >> Conquistado também com seis meses. >> É preciso realizar uma bateria de exames de sangue para detectar as suas taxas hormonais. Laudo da Assistente Social >> Conquistado de acordo com a disponibilidade que esse profissional tiver. >> Nele irá constar o sofrimento que a pessoa passa ao ser referido pelo prenome que possui. Após ter os laudos, é necessário ter em mãos: >> Mais de uma foto, caracterizado do gênero ao qual você se identifica. A Transmulher deve ter foto vestida como mulher e o Transhomem deve ter foto vestido de homem. >> RG, CPF, Certidão de Nascimento, Comprovante de residência, Título de Eleitor e Reservista (Caso você seja uma Travesti ou uma Transexual). >> Nome, CPF E RG de três testemunhas (Elas irão afirmar no dia da audiência que você vive socialmente como mulher, caso você seja uma Travesti ou Transexual, e que você só é tratada pelo nome que escolheu).


depoimentos

“Bem, não sofro nenhuma dificuldade no meio em que vivo, tanto na sociedade em si, quanto no meio familiar. Sempre fui muito firme nas minhas posições e acho que a facilidade vem disso: em ate que ponto você acredita que é capaz de fazer ou conseguir algo independente do que seja, não levando ou não pensando no fato de você ser transexual, bissexual, heterossexual ou qualquer outro. Minha posição sexual não interfere na minha força de vontade ou na concepção que tenho de que se eu quiser algo, eu apenas não conseguirei se não me esforçar o bastante, pois nunca pensei em colocar nas mãos de uma pessoa preconceituosa, retrograda ou de mente fechada, qualquer passo que eu pensasse em dar pra frente. Meus pais sempre me apoiaram, me apoiam ate hoje pra falar a verdade e acredito que parte da minha força também veio deles, de saber que não estou só no mundo, que antes de enxergar minha opção sexual, minha identidade de gênero, eles me enxergam como sua filha, como alguém que os ama e que é amado. Não lembro de ter sofrido qualquer tipo de preconceito, às vezes ocorre das pessoas não saberem como se dirigir a mim, e eu não cobro delas que saibam, ou as corrijo quando “erram”, isso não me diminui ou me confunde sobre o que eu sou, penso que isso é apenas o modo das pessoas não estarem preparadas ou não saberem como agir nessa situação. Já aconteceu d’eu estar em lugares aleatórios e o funcionário, falar em um tom mais alto se referindo a mim como mulher, às vezes isso me incomoda, mas não pela colocação do gênero e sim por ele querer expor essa colocação a todos que estão perto como uma forma de me diminuir, porque percebemos quando isso é na maldade ou não. Tirando esses fatores nunca tive problema com preconceitos ou qualquer coisa do tipo”

NIRVANA LEAL

“Pelo meu estilo de me vestir, profissão, educação, quase nunca sofro preconceito. Claro que já vivenciei situações de preconceito. O importante é agradar a mim. Então, sempre mantenho essa visão. Minha transformação começou há 4 anos, quando resolvi dar uma mudada no visual. Acho que cada vez fico mais masculina – até barba já tenho”.

Giselle Veloso

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Perfil

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Perfil


O encontro dos azuis

Texto por

Eduarda Esteves


Parecia um encontro às escuras, daquelesque a gente marca e não sabe nenhuma informação de quem vamos encontrar, além do nome. O ponto de encontro era no Bairro da Boa Vista, em frente ao Shopping, onde eu deveria esperar Heitor, com quem tinha trocado algumas palavras pelo celular. Em meio àquela correria e turbulência que só o centro da cidade nos proporciona e com o celular descarregando, tive a chance de dizer que estava com uma blusa azul a espera dele e ele de me informar que também vestia uma camisa da mesma cor. Por dez minutos, que pareceu uma longa e ansiosa espera, pensei em diversas maneiras de abordagens para tornar o encontro mais descontraído. Talvez um aperto de mão, ou um abraço para soar menos formal. Pensei também em dar apenas um 'oi'. Resolvi parar de pensar e só esperar, como se isso fosse possível. Após alguns minutos, avistei ainda que de longe dois rapazes na entrada do Shopping. As características que Heitor havia me dito batiam exatamente com um dos meninos, o outro garoto que o acompanhava, no entanto, fugia do meu conhecimento. Sem hesitar muito, me aproximei e os cumprimentei gentilmente com dois beijos no rosto, como é de costume dos recifenses. Trocamos algumas palavras e decidimos subir à Praça de Alimentação. Com um andar engraçado, daqueles que quando criança nossos pais chamam de 'pé de pato', Heitor caminhava a minha frente. Seu amigo, cujo nome ainda não sabia, o acompanhava em silêncio. Quebrando aquele clima de tensão inicial, sentamos em uma mesa e com toda aquela ansiedade para conhecê-los, iniciei os procedimentos conceituais de uma entrevista informal, uma conversa, na verdade. Heitor Bruno, de 19 anos, e o seu amigo, Diego Neuskens, de 17, eram donos de personalidades opostas e destinos tão parecidos. Futuros companheiros do mesmo teto, eles, tão novos, já passaram por situações que os fizeram fortes, maduros e com um brilho a mais, que facilmente eu conseguia identificar. Nunca uma

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Praça de Alimentação se tornou tão silenciosa. A voz de Heitor era tão suave e leve que o barulho ao redor não causava interferência em nossa conversa.

Eu não aguentava mais lidar com a situação de ter o meu nome de RG na chamada. Era muito

constrangedor ser chamado pelo nome de batismo, que não condiz com a minha aparência. Eu só queria ter o direito de ser chamado do que eu quiser


Heitor explicou que a mãe sempre teve uma certa carência de um lado feminino mais presente durante sua vida e por isso escolheu adotar uma menina para suprir essa necessidade de sua única filha. "Daí quando ela me adotou, ela disse que orou para que aparecesse uma menina na casa dela. Em um dia de feira, meu irmão disse: ‘Mainha, tem uma surpresa dentro do carro!', referindo-se a mim. Esse alguém no carro era eu", diz. Heitor explica que para Dona Fátima, sua mãe, se desvincular do lado religioso para buscar a aceitação foi algo muito doloroso. Transexual, Heitor afirmou que ao longo da puberdade sempre gostou de cortar o cabelo curto, sair com meninas e fazer coisas que a sociedade heteronormativa estabelece como exclusivamente masculinas. "No meu terceiro ano do colégio, minha mãe queria me castigar por eu não ser o que ela sempre desejou: uma menina. Eu sofri muito com esse tempo e em meio a tantos distúrbios no interior, resolvi morar no Recife com a minha irmã", justifica.

Antes de sair de casa, Heitor conta que passou por um dos momentos mais difíceis de sua vida, quando sua mãe repetia "Ela quer ser um homem", "Ela só gosta de mulher". Ele explica que isso machucava muito porque ele era um homem, ele apenas tinha nascido no corpo de uma mulher. "Olhei para o meu pai e disse: Um dia vou ser mais homem do que você". "O meu apreço mostrou a minha mãe que por cima da minha transexualidade está o meu amor, e então porque por cima da religiosidade dela não estava o seu amor por mim?". Após algumas discussões, expulsões e desentendimentos, Heitor e a mãe chegaram a se 'entender'. Dona Fátima, hoje em dia, consegue aceitá-lo como filho, além do seu gênero.

um dia serei mais homem que você

Natural de Patos, no interior da Paraíba, Heitor cresceu em uma família tradicional e conservadora em que seus pais eram 'pastores' da igreja. Desde criança, ele nunca conseguiu se identificar com o corpo feminino. Aos poucos, em sua adolescência, buscou adequar o corpo a sua realidade. Filho adotivo, Heitor conta que sua mãe nunca conseguiu vê-lo como um menino. "A minha avó teve quatro filhos, três homens e a minha mãe, única mulher. Assim que a minha avó faleceu, minha mãe se viu sem um lado materno e feminino. Quando ela casou ela teve dois meninos e uma menina e ela sempre quis adotar mais uma garota para que a minha irmã não passasse pelo que ela (minha mãe) passou", conta.

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Em meio a tantos desentendimentos, Heitor foi expulso da casa da irmã e atualmente conta que sua relação com ela melhorou bastante. "Atualmente eu consigo me relacionar bem, ela até aceita e conversa com a minha namorada". Prestes a dividir o mesmo apartamento com Diego, ele conta que escuta muito que o transexual se vitimiza perante a sociedade, o que destaca como uma mentira. "Não é vitimização, é vivência. Eu sei o que é levar carreira de muitos homens com pedaços de pau na mão, sei o que é ver travestis apanhando por nada. A gente não tem prioridade, a gente só quer ter os nossos direitos a cirurgias e adequar os nossos corpos". Em 2012, uma pesquisa sobre a expectativa de vida de uma travesti ou transexual era de 30 anos, segundo o GGB (Grupo Gay da Bahia). Heitor afirma que isso se deve principalmente a falta de políticas públicas. "Em questão de hormonização, por exemplo, eu tomo ilegalmente a minha testosterona. E eu sei que é perigoso porque eu não tenho exames mensais para dizer como está a minha saúde. Mas não há o investimento necessário em resolver essa situação por parte do Governo".

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vivência transexual

No Recife, Heitor conta que sua irmã tinha dificuldade de aceitação. "Ficava aquele jogado de cruz, meus pais não me aceitavam direito e minha irmã ainda tinha complicações de entender a minha situação". Estudando no Recife, sua irmã não aceitava que Heitor namorasse uma mulher trans. "O irmão que ela gosta tanto estava se relacionando com uma mulher transexual. Ela falou: ‘Como assim? Você se transforma em menino para namorar um homem que se veste de mulher? ’. Aquelas expressões criminalistas que a sociedade impõe à travesti", expõe.



nome social: um desafio

Em meio a risadas de descontração em nossa conversa, simpático, educado e com um sotaque bem típico do interior, Heitor conta que emprego é quase impossível porque ainda há muita transfobia, discriminação relativa às pessoas transexuais e transgêneros, na sociedade brasileira. Ele conta que chegou a sair da faculdade de Arquitetura porque não aceitavam o seu nome social. "Eu não aguentava mais lidar com a situação de ter o meu nome de RG na chamada. Era muito constrangedor ser chamado pelo nome de batismo, que não condiz com a minha aparência. Eu só queria ter o direito de ser chamado do que eu quiser".

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Frequentador assíduo do Recife Antigo, Heitor gosta de jogar conversa fora com os amigos, jogar futebol, ir a bares e se divertir, da mesma forma como a maioria dos adolescentes. Militante pela causa de transexuais e travestis, ele segue em sua trajetória de muitos obstáculos, lutando por mais voz na sociedade. Atualmente voltou a cursar Arquitetura e espera conseguir um trabalho para custear as despesas com as cirurgias que tanto sonha.


“Sempre cresci me achando menino. Cortava o meu cabelo e pedia para que me chamassem de Diego”, explicou. Ele veio ao Recife estudar, mas conta que com tantas dificuldades que a universidade em que estuda impõe, está prestes a desistir do curso. “Eu vou à coordenação, tento mudar (o nome) de batismo para o social e nunca consigo. Eles dizem que não há a demanda. Mas eu sou a demanda. Eu quero ser ouvido e estou aqui.” Com um sonho de trabalhar na Polícia Militar, ele também deseja sair do Brasil por não aceitar a forma estagnada dos direitos dos transexuais e transgêneros. Heitor e Diego habitam as mesmas rodas de amigos, os mesmos locais e lutam pelos mesmos direitos. Ter visibilidade na sociedade e concretizar suas vozes pelos hiatos heteronormativos são as suas principais metas. Entre os sons das bandejas sendo despejadas no lixo, pessoas entrando e saindo da praça, subindo e descendo a escada rolante, havia dois jovens garotos com semblantes felizes, mas que a humanidade já os tinha tirado tanto, que por

trás de toda aquela felicidade era possível perceber um olhar de apreensão pelo que estar por vir. Por não saber se voltará ao seu apartamento no fim da noite, por não saber se será um dia chamado pelo nome que escolheu. Adequar-se a sua identidade de gênero não é uma tarefa fácil. Mas adequar uma sociedade que ainda esbarra em preconceitos e transfobia é, de fato, mais difícil ainda.

o companheiro de apartamento

Diego acompanhava toda a conversa calado, às vezes sorrindo, às vezes concordando. Mas só quando anoiteceu, ele resolveu simplesmente se identificar e entrar na conversa. Ele se apresentou como um homem transexual gay (sente atração sexual por pessoas do mesmo sexo). Expulso de casa pela família aos 15 anos, ele, natural de Carpina, veio ao Recife estudar Teatro. Em meio a tantas dificuldades, Diego é despojado, moleque. É o lado mais divertido e ‘sem noção’ de Heitor. Extrovertido e com uma bela, porém rápida, eloquência, Diego se abriu e contou que sempre quis fazer “coisas do gênero masculino”.

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