o outro lado da chuva

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o outro lado da chuva caio resende


Revisão Adriana Tino Eder Amaral Fabiana Leite Flávia Vieira Franklin Morais Luís Altério Marcelo Delgado Edição Franklin Morais Fotografia da capa Caio Resende Ensaio fotográfico Giselli Moreira Projeto gráfico editorial Thiago Suiten Diagramação eletrônica Estúdio Imboré

R429o Resende, Caio. 1984 O outro lado da chuva / Caio Resende, Vitória da Conquista - Bahia: Editora Nzamba, Co-edição Estúdio Imboré, 2017. 100 p. ISBN: 978-85-94132-01-7 1. Literatura brasileira. 2. Poesia.

CDD: 82-1 CDU: B869

Copyright © by Caio Resende, Imboré Edições www.caioresende.net | caioresende23@gmail.com


Mas não damos ouvidos, não ouvimos a ninguém e, subitamente, mergulhamos nas horas perdidas e tão esperadas de reconhecer os anseios que um dia estagnados tinham a importância dos créditos de um filme pornô. Pablo Luz


Sumário Prefácio............................................................................. 8 (nervura) Aos que fodem................................................................. 14 A cidade, no caso............................................................. 16 Poesia................................................................................ 18 Pessoa............................................................................... 20 Pedra, vidraça.................................................................. 21 Rítmica.............................................................................. 22 E agora aqui...................................................................... 23 Bosch................................................................................. 25 Pássaro turvo................................................................... 26 Do desejo.......................................................................... 30 Nós..................................................................................... 31 (evocação) Nietzsche.......................................................................... 34 Correndo pelos cabelos da canção excelsa .............. 35 O poema é a mão estendida......................................... 37 Camposanto..................................................................... 39 Precipitação..................................................................... 41 Oração............................................................................... 43 (ritual) Urdidura............................................................................ 46 São Paulo, 27 de janeiro de 2013................................. 47 Laura.................................................................................. 49


Devir................................................................................... 52 Giramundo........................................................................ 53 Poema para uma porta fechando................................ 55 Conversa para um espelho............................................ 56 Para uma avenca............................................................. 57 Serendipite....................................................................... 58 O silêncio não pode ser uma harpa............................. 61 Bilhete............................................................................... 62 Spinoza.............................................................................. 63 Maria.................................................................................. 64 Guernica............................................................................ 65 (dobra) Vitória da Conquista, 28 de novembro de 2010....... 68 Piva.................................................................................... 73 Epifanias........................................................................... 74 Solipsismo........................................................................ 76 Vitória da Conquista, julho de 2012 ........................... 77 Parecença......................................................................... 80 Urgência............................................................................ 81 Retrato para Lúcia.......................................................... 82 Hiato.................................................................................. 84 Sertânia............................................................................. 85 Lá fora, a noite se parte dentro de mim..................... 90 O primeiro poema........................................................... 94 Posfácio............................................................................. 96


Prefácio

Toda grande escritora, todo grande escritor, todo grande poeta

sabe que a matéria-prima do seu fazer não é a palavra, mas aquilo que nela lhe escapa. Seus extravios, suas impossibilidades e seus fracassos que abrem silêncios na textura do texto. Escreve-se aquilo que não se sabe, aquilo que não se deixa escrever. Kafka chamou isso de indubitável; Valéry, desordem; Joyce, inapropriável; Arendt, o nascimento; Clarice, it ou sensações intraduzíveis. É possível que na experiência do Caio esse movimento se anuncie já no título: O outro lado da chuva. Ao contrário do que gostaria qualquer metafísico, o outro lado não supõe nenhum sentido oculto, nenhum extra mundo, o outro lado supõe uma travessia. Como travessia, o outro lado não tem porta de entrada nem saída. Escreve-se por todas as partes, por mil janelas, pelas frestas. O poema é a mão estendida que oferece seu vazio. O poema é uma mão de menino, perdida, desconhecida que alcança o centro da escrita por desvios, pelas bordas, em dobras.

Há um livro estrangeiro dentro do livro do Caio. Um livro nas-

cido da memória do ritmo. As nervuras são cordas que tocam o mundo, porém o mundo está no livro como diáspora, como linhas de fugas que o livro não explica, mas implica nas suas sombras, na sua carne, nas suas an’danças: Lá fora, a noite se parte dentro de mim. O que se escreve é esse estilhaço, esse ruído de coisa partida, esse estremecimento. Essa escuta. O poema é uma voz que escuta, é uma evocação. Escreve-se para ouvir o outro: Nietzsche, Pessoa, Spinoza, a si mesmo, a escrita. Não se escreve o que se escuta: a escuta escreve aquilo que não é audível: a escuta é o verso mudo que se manifesta como ritmo. Algo serpenteia no texto, no vazio entre as estrofes, convertido em sopros, em abraços clandestinos, em

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pólen no sangue das estrelas. O livro é a vibração de uma contingência. Sacode o aparelho da linguagem para tirar um timbre novo, informulado, informulável que se deixa desfazer-se e refazer-se pelas forças do caos. É o ritual do poema que anda pela praça e se perde. Perde-se e traz consigo os sismos e os rastros desse gesto. E escreve-se esse sentido nascente na beira, na ternura das curvas, nos contornos dos torvelinhos. Escreve-se por um fio, escreve-se os signos não assinaláveis que deslizam pelas pontas dos dedos Pingos: Riscos: Respiração. Escreve-se o assombro de um instante que nasce no sêmen do vulcão. Interseções cósmicas, cócegas no pensamento. Escreve-se aquilo que foi sensibilizado no contato com o mundo e restituído como dis’ritmia aos traços da mão, às artérias das palavras. Escreve-se aquilo que grita e cala. Aquilo que passa e persiste na correnteza de suas mutações. Escreve-se essa pulsação que articula o outro lado à vertigem dos passos.

Carla Carbatti Santiago de Compostela, 2017

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Ninguém vê quando o silêncio atravessa a rua



(nervura)


Aos que fodem Porque, antes de nós, outros vieram e provaram do mundo e souberam da guerra e do sal sob a pele de cada homem e mulher. Antes, como nós, outros se puseram entre paredes, com esquinas soterradas em seus olhos, e perfuraram o tecido das horas; beberam da noite e morreram; nasceram novamente e outra vez; e outra vez se repetiram exaustivamente até que brotasse de uma roseira um espectro de luz ou de lama. Porque, fora do sangue, não haveria esse furor de terra, essa caldeira de olhos e braços, uma vontade de pão que morre em cada boca feito sertão que se esgota sem promessa. Porque, fora de nossos corpos, eu não seria o rei eternamente deposto no barro e no azeite dessa vigília, destilando sob a ossada de tuas dores um amor breve e bastardo. Não, eu não seria a tua vergonha, o medo de caminhar nesse labirinto de odores, e meu pau não se deitaria em tua face – cobrindo inteira a tua face – erguendo uma Ítaca atrás do semblante. Não estaríamos vivos como a terra e o sol, arando a febre com nossas correntes, engravidando, pelos poros do silêncio de uma coruja, aquele primeiro beijo que nunca nos demos, aquela adolescência ridiculamente torpe e distante. Pois nunca acreditamos nesse fantasma de amor e em cada mulher ou homem clamando num canto de bar por uma última dose ou cigarro, o minuto a mais de um tiro dado quando queriam aquela linda torre,

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aquele cachorro-elefante correndo na grama, aquela promessa de futuro próspero, aquela foda plástica num Camaro amarelo tão estúpido quanto uma foda plástica. Porque, fora de nossos corpos, não estaríamos soletrando com a ponta da língua toda a nossa beleza enrustida num banheiro de feira às dez da manhã, fazendo vista grossa a quem nos fazia vista grossa, enquanto uma miragem estrangulava o próprio horizonte. Nem estaríamos rendidos numa noite fria, aliciando coveiros pela madrugada, por sermos nós os amantes desse século, os únicos capazes de tocar a insípida máscara dos solitários e fazer erguer dela um sorriso maroto e bendizer a compaixão, plantando uma cruz sem braços no rabo de um mendigo. Somos nós os amantes sem resina, aqueles de cuja pele brota o sereno e de quem a vida tomou tudo para dar a estranha comoção das horas em que passamos pelo fogo, com nossa espada zombeteira arrastando em cada veia a aguda consciência da morte e da vida. Porque fora de nossos corpos não morreríamos da mesma febre, com um punhal de carne a destroçar a fé amarga do amor etéreo no rio de uma borboleta. Não caminharíamos iletrados sobre o pavimento de lugar algum escoando pelos olhos uma infância sem rumo

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Poesia A moça no ponto de ônibus, passando a mão sobre o cabelo, não sabe que o dia inteiro atravessa, num só facho de luz, cada poro do seu corpo. Eu, então resistente, teimando algum verso que a poesia do meu quarto sujo escondeu no ermo de tudo – à Poesia, pouco importa se sou poeta – não poderia imaginar que essa coisa de poema, seja cuspida ou bem pensada, é fechar os olhos e se deixar, não saber onde nem quando, não saber qual verso vai sangrando. Que fazer poema é não saber poema, é ter os olhos abertos de tão fechados. Não basta a boa palavra, e de pouco vale a frase de efeito, um bom poema é mais que isso. É substância um bom poema, vontade de ser modificado por qualquer brisa equivocada. A madrugada é um bom poema, porque nela persiste a ideia do mistério

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sem que haja, por real, qualquer fagulha de mistério. Também o vagabundo é um bom poema, porque este se cerca de todas as coisas, porque dele é a falta de objetivo. Qualquer coisa inútil é um bom poema, visto que poemas são qualquer coisa de inútil. Para se fazer um bom poema é preciso estar desatento como quem espera, sem saber, por um susto. É preciso braços abertos, um peito de amores ausentes, também algum vazio, e mais do que tudo é preciso esquecer a tudo isso, é preciso esquecer urgentemente desse poema e levar apenas o que ficou de afeto e incerteza. Poesia, pedra na vidraça! Poesia, poro dilatado!

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Pessoa Eu escrevo para correr até a margem dessa página. Para colher de tuas mãos o silêncio imponderável. Filho de tudo que é inútil, tropeiro de estradas abissais. Tu, Fernando... Tua lua sorumbática desconhece a minha calma. Oh, amante dos presságios sem futuro. Ratazana que rói em minha boca a abstrata covardia desse mundo. Tua alma-cachoeira jorra o rio do que calo. Oh, enxada clandestina a revolver a terra dos meus olhos, devolvendo para a luz deste cinzeiro a infatigável argúcia do felino. Oh, velho menino, tristeza de clown a suscitar o riso dessa noite, eu escrevo para iluminar a tua face com a sombra cega de uma foice

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Bosch Uma morte roça os meus desejos. Uma morte como a de todos e de nenhum. Um desespero feito um martelo. Um estrondo fora, sempre fora , onde ninguém – nem eu mesmo – posso ouvir. Com a infância soterrada até os ombros , longe, sempre longe, a noite me acossa. Eu tenho mãos embebidas de vazio, sob os meus pés naufragaram horizontes, uma tesoura decepa meus átomos, cães copulam nas cavidades do meu crânio

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Rítmica Sou um delírio ambulante, portulano sob o qual se encobre o dia. Farsa fome enleio. Tudo corre em mim sendo pó ou meio. Tenho pão e vertigem. O que não morro, incendeio. Dose a dose, encontro o mar quando ninguém está comigo. Essa, a minha única certeza. O caminho e mais nada. Se os anos pesam sobre os ombros, se o tempo ergue suas catedrais, eu tenho a mim e nada mais

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Nós

(a partir de uma tela de Egon Schiele)

A hora-vertigem, a hora derradeira em que o corpo, então entregue, se arvora no silêncio de tudo. Essa a hora em que o sangue é de todo passagem, terra convulsa na infância das coisas. É nessa hora sem lugar que o teu rosto se esconde, escorrendo na lama do agora sua veste de sombra – seu gesto perdido: a voz subtraída da eternidade. E sem saber eu invento o teu nome. Sob teus olhos dorme o caminho da nossa distância. Como quem morde, como quem nasce da boca secreta do instante, essa foz me alcança: já não somos dois. Somos o fora, a vertigem, o hiato. Uma dança povoa nossa febre e derramamos uma orla no vazio. Calados, abraçamos nossa sombra com a língua com os dentes com a morte. Calados, com uma figueira sangrando sob os poros, destilamos nossa vida com a morte: o amor é uma guerra sem pátria

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