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O regime da transparência fiscal nas sociedades de solicitadores e agentes de execução

O regime da transparência fiscal nas sociedades de solicitadores e agentes de execução

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Suzana Fernandes da Costa

Doutorada em Direito Fiscal Advogada especialista em Direito Fiscal Docente universitária

Sara Luís Dias

Doutorada em Direito – ramo empresarial Mestre em Direito Tributário e Fiscal Advogada Docente universitária

Nota introdutória

O regime da transparência fiscal foi criado com determinados objetivos como a neutralidade e transparência fiscal, o combate à evasão fiscal e a eliminação da dupla tributação. O instituto em questão tem vindo a receber algumas críticas, por apresenta desvantagens fiscais e económicas para as sociedades que estão sujeitas à sua aplicação. A sujeição de determinadas sociedades, como acontece com as sociedades de solicitadores e agentes de execução, a este regime poderá fazer sentido se nos centrarmos na natureza pessoal das mesmas, no papel relevantes que os sócios, profissionais liberais, desempenham na sua atividade e na criação dos seus rendimentos. Contudo, o seu carácter obrigatório e vinculativo levanta, naturalmente, vários problemas para estes profissionais, principalmente num momento económico que se avizinha difícil com todos os constrangimentos gerados em torno da pandemia declarada por causa da doença Covid-19 e, mais recentemente, decorrentes da invasão da Ucrânia. A tributação na esfera do sócio independentemente de os lucros serem ou não distribuídos e o consequente desincentivo ao investimento e à criação de reservas coloca estas sociedades numa posição mais frágil face ao impacto que a crise económica e social terá nas empresas. Neste breve artigo procuraremos explicar resumidamente o regime da transparência fiscal, os seus objetivos e características, abordando a obrigatoriedade de sujeição das sociedades de solicitadores e agentes de execução e as desvantagens e limitações que a sua aplicação pode gerar na manutenção e funcionamento destas sociedades.

I. As sociedades de solicitadores e agentes de execução

A profissão de Solicitador1 ou de Agente de Execução2 pode ser exercida em regime de prática individual ou através de sociedade profissional de solicitadores e agentes de execução. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 95.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução3, aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro4, «os solicitadores e os agentes de execução estabelecidos em território nacional

1 Como determina o artigo 136.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução «além dos advogados, apenas os solicitadores com inscrição em vigor na Ordem e os profissionais equiparados a solicitadores em regime de livre prestação de serviços, podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar atos próprios da profissão, designadamente exercer o mandato judicial, nos termos da lei, em regime de profissão liberal remunerada», sendo «atos próprios» destes profissionais os estabelecidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto. 2 «O agente de execução é o auxiliar da justiça que, na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução, nas notificações, nas citações, nas apreensões, nas vendas e nas publicações no âmbito de processos judiciais, ou em atos de natureza similar que, ainda que não tenham natureza judicial, a estes podem ser equiparados ou ser dos mesmos instrutórios» (artigo 162.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução). 3 Doravante EOSAE. 4 Este diploma aprovou a transformação da Câmara dos Solicitadores em Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e o respetivo Estatuto, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais. Foi recentemente alterado pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro.

podem exercer as respetivas profissões, constituindo -se ou ingressando em sociedades profissionais de solicitadores e de agentes de execução, podendo uma mesma sociedade ter ambos os objetos sociais, nos termos do presente Estatuto». Por sua vez determina o n.º 4 do mesmo artigo que «Os membros dos órgãos de administração de sociedades de solicitadores e ou de agentes de execução devem ser profissionais inscritos na respetiva Ordem», referindo-se, no n.º 5, que não são admissíveis quaisquer sociedades multidisciplinares que integrem solicitadores ou agentes de execução, ou seja, não poderão integrar estas sociedades outros profissionais. Nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 deste normativo, à constituição e funcionamento destas sociedades aplica-se o regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais, devendo estas, adotar uma firma que contenha a menção ao regime adotado: «Sociedades de responsabilidade ilimitada, RI» ou «Sociedades de responsabilidade limitada, RL»5 . Estas sociedades estão, de acordo com o previsto no n.º 12 desta mesma disposição legal, sujeitas ao regime fiscal previsto para as sociedades constituídas sob a forma comercial6 – formulação que parece abrir a porta à tributação em IRC mas que – na prática – é limitada pela conjugação do EOSAE e o artigo 6.º do CIRC.

II. O regime da transparência fiscal

O regime da transparência fiscal, previsto no artigo 6.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas7, assenta na desconsideração da personalidade tributária da pessoa coletiva e tributa os rendimentos desta na esfera dos sócios. É um instituto controverso no nosso sistema tributário que, ainda assim, se mantem no texto da lei há mais de 30 anos, com algumas alterações pontuais, e vai encontrando novas aplicações à medida que o direito das sociedades evolui8 . Este regime foi criado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro e assenta na imputação aos sócios/membros, pessoas singulares ou coletivas, da matéria coletável das sociedades que assumam uma das formas previstas no artigo 6.º do CIRC. Assim não se

5 O projeto de contrato de sociedade, acompanhado de certificado de admissibilidade de firma, está sujeito a um controlo de mera legalidade efetuado pela Secção Regional Deontológica e, após a sua extinção, pelo Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Após notificação da aprovação do contrato de sociedade ou caso a associação pública profissional não se pronuncie no prazo de 20 dias úteis, a constituição da sociedade deve ser formalizada através da celebração de documento particular ou escritura pública. Após a formalização da constituição da sociedade, esta deve ser registada definitivamente no RNPC (Registo Nacional de Pessoas Coletivas). É com este registo que a sociedade adquire personalidade jurídica. Posteriormente, a sociedade deve ser inscrita na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, através do envio da documentação necessário para o Conselho Geral. Para maiores informações, vd. https://www.osae.pt/uploads/cms_page_media/1038 /NOV2015_soc.pdf [20/12/2020]. 6 Ou seja, sociedades por quotas, anónimas, em nome coletivo ou em comandita (artigo 1.º do Código das Sociedades Comerciais). 7 Doravante CIRC. 8 Pense-se, por exemplo, na aplicação do regime às sociedades unipessoais por quotas (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 29/9/2016, proc. 00560/12.3BECBR, disponível em www.dgsi.pt).

verifica a tributação aquando da distribuição de lucros aos sócios/membros, já que os resultados fiscais apurados nas referidas sociedades/entidades são-lhes diretamente imputados sem que dependam dessa distribuição. Segundo o artigo 6.º do CIRC, este regime aplica-se obrigatoriamente às «sociedades civis não constituídas sob forma comercial; sociedades de profissionais e sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, direta ou indiretamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa coletiva de direito público», tendo o legislador desenvolvido estes conceitos e especificado as características destas sociedades abrangidas pelo regime da transparência fiscal. Destaca-se, aqui, a posição e o papel que os sócios desempenham neste tipo de sociedades, desconsiderando-se, para efeitos de tributação em sede de IRC9, a personalidade tributária da pessoa coletiva criada, repercutindo-se na esfera dos sócios/membros a matéria coletável gerada pela sociedade. No entanto, a sujeição a este regime não tem quaisquer outras implicações a nível contabilístico, continuando esta sociedades obrigadas a cumprir outras obrigações contabilísticas e declarativas impostas aos sujeitos passivos de IRC ou na organização e funcionamento das sociedades, não assumindo qualquer caráter sancionatório10 . Não obstante encontrarmos, no artigo 12.º do CIRC, a referência a estas sociedades como estando isentas de IRC, a doutrina maioritária11 tem entendido – e em nosso entender, acertadamente – que estamos perante uma situação de não incidência (não sujeição) a este imposto, situando-se o artigo 6.º do CIRC no capítulo relativo à «incidência»12. A isenção é, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, um benefício fiscal, visando, assim, a efetivação de um fim extrafiscal, de interesse público. Ora, na aplicação deste regime, não detetamos qualquer finalidade deste tipo, que justifique a consideração deste regime como uma isenção.

9 Excetuam-se as tributações autónomas, previstas no artigo 88.º do CIRC, a que estão sujeitas estas sociedades, nos termos do disposto no artigo 12.º do CIRC. Conforme se esclareceu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2012, processo n.º 0830/11, disponível em www.dgsi.pt: «A alteração introduzida ao art. 12º do CIRC pela Lei nº 109-B/2001 não configura uma lei inovadora, porque de facto nada inovou, tendo-se limitado a explicitar o que já decorria da ordem jurídica e de forma clara por aplicação das regras de interpretação e aplicação da lei, pelo que, se a regra de direito era certa na legislação anterior e a nova lei o vem apenas confirmar de modo expresso, não se vê razão para não considerar esta norma como interpretativa, nada impedindo a sua aplicação desde o início de vigência da norma interpretada». 10 Como refere RUI DUARTE MORAIS, Sobre o IRS, Almedina, 2008, p. 212, «tais entidades (…) são, juridicamente, as titulares do rendimento (do lucro) tributável. São, pois, parte legítima e necessária em quaisquer procedimentos que digam respeito à quantificação de tal lucro, mesmo que para efeitos tributários». (11) Vd. JOSÉ LUÍS SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., pp. 241 e 242; e JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5.ª ed., pp. 565 a 567. 12 Sustentando o entendimento oposto, JORGE MAGALHÃES CORREIA, “Transparência Fiscal das Sociedades de Profissionais”, in Fisco, n.º 7, p. 5.

À criação deste regime subjazem três grandes finalidades: neutralidade fiscal, combate à evasão fiscal e a eliminação da dupla tributação dos lucros distribuídos aos sócios13 .

No que toca à neutralidade fiscal, pretende-se tributar os sócios nos mesmos termos em que seriam se exercessem estas atividades em nome individual, ressaltando-se aqui, como referimos, o papel relevante que os sócios (as suas características profissionais e desempenho profissional) desempenham na sociedade e nos seus resultados14 . O objetivo do combate à evasão fiscal verifica-se também na medida em que a aplicação deste regime visa obviar a que estas sociedades sejam criadas com o único desiderato de diminuir a carga fiscal, ou seja, a aplicação deste regime desencorajará a criação de uma pessoa coletiva distinta dos sócios com o único intuito de transferir a tributação para a sociedade15/16 . Relativamente à eliminação da dupla tributação económica, ao afastar-se da tributação em sede de IRC as sociedades e outras entidades abrangidas por esse regime, obsta-se a que o resultado nestas apurado seja duplamente tributado: na esfera da própria entidade transparente e, posteriormente, na esfera dos respetivos sócios ou membros, em sede de IRS.

III. A aplicação do regime da transparência fiscal às sociedades de solicitadores e agentes de execução

Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 6.º do CIRC, estão sujeitas a este regime as sociedades de profissionais, que se encontram definidas na alínea a) do n.º 4 da mesma disposição legal como sendo «[a] sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional17 especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa atividade» (n.º 1) ou «[a] sociedade cujos rendimentos provenham, em mais de 75%, do exercício conjunto ou isolado de atividades profissionais especificamente previstas na lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, desde que, cumulativamente, durante mais de 183 dias do período de tributação, o número de sócios não seja superior a cinco, nenhum deles seja pessoa coletiva de direito público e, pelo menos, 75% do capital social

13 Vd. ponto 3 do preâmbulo do CIRC, aprovado pelo DL n.º 442-B/88, de 30/11. 14 Referem a este propósito, RUI DUARTE MORAIS, Sobre o IRS, cit., p. 205, que o «“valor” da sociedade não resulta fundamentalmente do capital investido, mas das pessoas dos sócios, os quais, em muitos casos, nelas exercem a sua atividade profissional. O lucro dos sócios é, em larga medida, a remuneração do êxito do seu trabalho». 15 No momento da criação deste regime o risco de evasão não se verificava já que a tributação das sociedades era similar à tributação das pessoas singulares. A taxa máxima de IRC, já considerando a incidência da derrama, era de 40,12%, enquanto a taxa progressiva máxima de IRS (Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) era de 40%. 16 Não esquecer, contudo, que com a distribuição de dividendos aos sócios verifica-se uma nova tributação, na sua esfera pessoal, aplicando-se a taxa de tributação autónoma de 28%. 17 Relevando a atividade que é efetivamente exercida pela sociedade, no caso de não haver coincidência com o objeto que consta no contrato de sociedade (artigo 11.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais).

seja detido por profissionais que exercem as referidas atividades, total ou parcialmente, através da sociedade» (n.º 2)18 . Pela análise da lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, verificamos que a maior parte das profissões aí incluídas são as denominadas profissões liberais, que exigem uma habilitação superior e, na maioria dos casos, inscrição numa Ordem ou numa Câmara Profissional. Incluímos aqui as sociedades de solicitadores e agentes de execução, estando a profissão de solicitador expressamente referida na tabela de atividades do mencionado artigo 151.º do CIRS, com o código 6012. Estão em causa sociedades cuja atividade gira em torno do trabalho e características profissionais dos sócios, profissionais liberais e inscritos numa ordem profissional, a OSAE (Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução), que prestam serviços de natureza jurídica. O elemento «capital» não assume nestas sociedades (como nas demais sociedades de profissionais) grande destaque nos rendimentos gerados por estas sociedades. Cremos, todavia, que a sujeição obrigatória destas sociedades ao regime da transparência fiscal – assim como a impossibilidade de permitir que outras sociedades optem pela aplicação deste regime19 – gera uma situação discriminatória e injusta, já que implica a tributação obrigatória dos sócios mesmo no caso em que os lucros gerados pela sociedade não sejam distribuídos. A transparência fiscal não encontraria tanta resistência se fosse um regime facultativo, pois os sócios teriam liberdade para determinar em que condições a aplicação do regime lhes seria mais vantajosa e menos onerosa.

IV. Os benefícios fiscais aplicáveis ao IRC e a sua extensão aos sócios das sociedades transparentes

Como já referimos, a transparência fiscal implica a tributação dos lucros na esfera do sócio, pagando a sociedade apenas as tributações autónomas (que se aplicam, por exemplo, às despesas de representação). A aplicação deste regime desestimula o investimento na sociedade pela utilização dos resultados gerados e poder-se-á, até, verificar uma situação de descapitalização, já que, existindo sempre tributação na esfera pessoal dos sócios, desincentiva-se a constituição de reservas na sociedade. Referindo-se especificamente a sociedades de advogados, mas com um raciocínio que a nosso ver também se aplica às sociedades de solicitadores e agentes de execução,

18 Este n.º 2 foi introduzido pela Lei n.º 82-C/2014, de 31/12 (aplicável aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2015) e ampliou o número de sociedades incluídas neste regime, com o intuito de contrariar a possibilidade que anteriormente se verificava de tornar algumas sociedades multidisciplinares (bastando incluir como sócio um profissional de uma outra atividade) e escapar à sujeição ao regime da transparência fiscal. 19 Neste sentido, RUI DUARTE MORAIS; op. cit., p. 209.

JOÃO ESPANHA refere que «se o regime da transparência fiscal ainda se pode adequar ao funcionamento de algumas sociedades (…), para as sociedades com estrutura e organização empresarial e, sobretudo, para as organizações de maior dimensão, este regime revela-se de um anacronismo que constitui um obstáculo ao seu funcionamento e à sua evolução»20 . Para este autor, as principais desvantagens do regime são a tributação da reserva de investimento, a tributação de valores faturados não recebidos e a confusão entre a fiscalidade dos sócios e a das respetivas sociedades21. Problemas que se agravam num momento de crise económica, que naturalmente afeta os profissionais liberais e prestadores de serviços.

Por outro lado, com o acentuar das diferenças de taxa entre o IRS e o IRC, cria-se uma desigualdade entre os profissionais que por razões legais podem constituir sociedades tributadas em IRC (como os médicos) e os que se veem impedidos de o fazer. É o que, como vimos, sucede com as sociedades de solicitadores dispondo o n.º 5 do artigo 95.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, que «não são admissíveis quaisquer sociedades multidisciplinares que integrem solicitadores ou agentes de execução». Os sujeitos passivos enquadrados no regime da transparência fiscal não podem optar pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável em sede de IRC, pois, de acordo com o no n.º 1 do artigo 86.ºA do CIRC relativo à aplicação do regime simplificado de determinação da matéria coletável, o legislador excluiu do seu âmbito de aplicação subjectiva os sujeitos isentos de IRC e abrangidos por um regime especial de tributação, incluindo, assim, todos os sujeitos passivos abrangidos pelo regime de transparência fiscal e os sujeitos passivos a que seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS). Há depois benefícios fiscais aplicáveis em IRC que ficam vedados às sociedades transparentes – pese embora a Autoridade Tributária22 tenha evoluído nesse tema quanto ao CFEI (Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento) e à DLRR (Dedução por Lucros Retidos e Reinvestidos)23 . Relativamente ao CFEI I, AT tomou posição na Informação Vinculativa proferida no processo 3058/201324 e veio admitir que as sociedades transparentes possam apurar uma coleta virtual e, depois disso, imputar o benefício respetivo aos sócios na proporção da sua

(20) JOÃO ESPANHA, “Transparência fiscal, anacronismo e concorrência”, in Boletim da Ordem dos Advogados (BOA), Jan./Fev. 2019, p. 32. Por sua vez, António Schwalbach e Guilherme Figueiredo escrevem que “a transparência fiscal obrigatória é um entrave para os Advogados portugueses”. Para os Autores, o regime “é um convite à descapitalização das Sociedades de advogados portuguesas”– ANTÓNIO GASPAR SCHWALBACH e GUILHERME FIGUEIREDO, “As intervenções e propostas da OA”, in BOA, Jan./Fev. 2019, p. 18. (21) JOÃO ESPANHA, “Transparência fiscal, anacronismo e concorrência”, cit., pp. 32-33. 22 Doravante AT. 23 Este benefício encontra-se previsto nos artigos 27.º a 34.º do Código Fiscal ao Investimento anexo ao Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, e foi regulamentado pela Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro. 24 Despacho de 4 de dezembro de 2013.

participação do lucro. Aplicando-se ao CFEI II – aprovado pelo artigo 16º da Lei n.º 27A/2020, de 24 de julho, atualmente em curso – o mesmo raciocínio que para o CFEI I será assim possível que as sociedades de solicitadores e agentes de execução possam aproveitar as despesas de investimento feitas em ativos fixos tangíveis e intangíveis entre junho de 2020 e junho de 2021, e que esse valor possa ser deduzido à coleta de IRS dos sócios respetivos. Cabem neste incentivo as despesas relativas a ativos fixos tangíveis e ativos biológicos que não sejam consumíveis, adquiridos em estado de novo e que entrem em funcionamento ou utilização até ao final do período de tributação que se inicie em/ou após 1 de janeiro de 2021 (por exemplo, computadores). São também elegíveis as despesas de investimento em ativos intangíveis sujeitos a deperecimento, designadamente despesas com projetos de desenvolvimento ou com elementos da propriedade industrial, tais como marcas, adquiridos a título oneroso e cuja utilização exclusiva seja reconhecida por um período limitado de tempo25 . Quanto à DLRR esta não é cumulável com o CFEI II para os mesmos bens e assenta na possibilidade de deduzir até 10% dos lucros retidos que sejam reinvestidos, visando promover o investimento e reforçar a estrutura de capital das empresas. A AT também já veio admitir a possibilidade de utilização do benefício pelos sócios no seu IRS.

V. Alguns aspetos fiscais e contributivos do regime de transparência fiscal das sociedades de solicitadores e agentes de execução

Importa, antes de mais, referir que se tem entendido que a profissão de "agente da execução" integra, por extensão, a profissão de "solicitador", esta especificamente constante da Tabela anexa ao Código do IRS, para efeitos de considerar legal o acesso dos agentes de execução à constituição de sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal consagrado no artigo 6.º do Código do IRC. Tal entendimento foi sufragado pela AT26 e tem vindo a ser acolhido pela jurisprudência27 . Uma outra questão interessante e polémica nas sociedades de solicitadores e agentes de execução é a possibilidade de dedução na sociedade das quotas e das contribuições para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS).

Num primeiro momento, segundo a Informação Vinculativa proferida no processo 433/2006, relativamente a advogados mas cuja doutrina se aplicava também às sociedades de solicitadores e agentes de execução, «dos montantes despendidos por sociedade civil

25 Na proposta de Lei do Orçamento de Estado para 2022 (Proposta de Lei n.º 116/XIV/3.ª), o artigo 238.º prevê a aprovação do regime do Incentivo Fiscal à Recuperação (IFR), que parece menos benéfico que o CFEI II, pois terá um período de aplicação menor, o montante passível de dedução à coleta também será menor e impõe um limite adicional à iniciativa privada, impossibilitando a distribuição de dividendos durante 3 anos. 26 Cfr. Informação Vinculativa proferida no processo n.º 2017001951 com Despacho de 2017.10-12 da Diretora de Serviços, disponível em www.info.portaldasfinancas.gov.pt. 27 Vd., a título de exemplo, referência efetuada na decisão arbitral proferida em 22/11/2021, proferida no processo n.º 109/2021-T, disponível em www.caad.org.pt.

profissional de advogados no pagamento de quotas devidas à Ordem dos Advogados (OA), bem como no pagamento à CPAS, tanto dos seus advogados-sócios, como dos advogadosassociados, apenas são fiscalmente dedutíveis, como custos ou perdas, no seio da sociedade de advogados, nos termos dos artigos 23º e 40º do Código do IRC, as quotas mensais devidas à OA dos seus advogados-sócios e desde que não seja admitido, segundo a forma prevista no nº 4 do artigo 5º Regime Jurídico das Sociedades de Advogados, o exercício da advocacia fora do âmbito da sociedade». A AT permitia assim a dedução na esfera da sociedade das quotas da Ordem apenas dos sócios e desde que os solicitadores ou agentes de execução não exercessem essa atividade fora da sociedade.

Quanto à CPAS, a referida Informação Vinculativa não abria essa porta, no entanto essa possibilidade passou a ser admitida por força da jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou no acórdão 0771/03.2BTLRS de 12-02-2020 (em que é relatora Suzana Tavares da Silva)28, sobre a possibilidade de dedução a nível individual e societário tanto das quotas como das contribuições para a CPAS. Pese embora o acórdão se refira a advogados aplica-se o mesmo raciocínio às sociedades de solicitadores e agentes de execução. Segundo o referido acórdão: «Tal como hoje resulta de forma expressa do disposto no n.º 6 do artigo 20.º do CIRS, a imputação a título de rendimento líquido na categoria B das quantias auferidas pelos advogados das sociedades de advogados onde exercem a sua atividade profissional, não prejudica a possibilidade de dedução por estes das contribuições obrigatórias para regimes de proteção social comprovadamente suportadas, nos casos em que os mesmos exerçam a sua atividade profissional através de sociedade sujeita ao regime de transparência fiscal previsto no artigo 6.º do Código do IRC, desde que tais quantias não tenham sido objeto de dedução a outro título, designadamente, a título de gastos ou perdas, no seio da sociedade de advogados, i.e., em IRC». Como se diz, a título conclusivo, na mesma decisão «o que se revelaria inadmissível à luz das regras e dos princípios jurídicos seria tanto a dupla dedução (…) como a dupla não dedução». Assim as quantias podem ser deduzidas na esfera da sociedade como gasto fiscal ou deduzidas pelo sócio se não tiverem sido levadas a gasto pela sociedade. Um outro problema do regime da transparência fiscal é o enquadramento em Segurança Social dos sócios das sociedades transparentes, questão que está longe de estar resolvida na reforma operada em 2018 pelo Decreto-Lei n.º 2/2018, de 9/1, que altera o

28 Disponível em www.dgsi.pt.

regime contributivo dos trabalhadores independentes29. Neste momento ainda se aguarda por parte da Segurança Social a revisão das ordens internas sobre a aplicação do regime dos Trabalhadores Independentes aos sócios das sociedades transparentes, mas tem merecido muitas críticas a falta de articulação entre o novo regime e este tipo de sociedades30 . Estando os solicitadores e agentes de execução ainda abrangidos pelo regime contributivo da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, esta questão não assume, no imediato, grande relevância – embora se esperem alterações nesta matéria, já que recentemente a assembleia geral extraordinária da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução aprovou a possibilidade de os associados poderem escolher entre a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores e a Segurança Social – sendo esperável que haja desenvolvimentos políticos e legislativos sobre o tema nos próximos tempos31 .

VI. Conclusões

O regime da transparência fiscal, criado com o intuito de efetivar o princípio da neutralidade fiscal, combater à evasão fiscal e eliminar a dupla tributação económica, encontra-se regulado no artigo 6.º do CIRC, assumindo um caráter excecional, sujeito ao princípio da tipicidade fechada, já que apenas estarão abrangidas por este regime as sociedades expressamente aí elencadas: profissionais listadas no artigo 151.º do CIRS e as sociedades de simples administração de bens. Este regime tem aplicação obrigatória para estas sociedades, sendo que incluímos aqui as sociedades de solicitadores e agentes de execução, constando a profissão de «solicitador» no artigo 151.º do CIRS e tomando em consideração o papel que estes profissionais desempenham nestas sociedades, nas quais o elemento capital assume menor relevo. Embora se compreenda que é neste tipo de sociedades que mais sentido faz aplicar o regime da transparência fiscal, o seu caráter obrigatório pode gerar algumas situações discriminatórias e de injustiça fiscal, principalmente se pensarmos que há sociedades que,

29 Vd. PAULO MARQUES/SUZANA FERNANDES DA COSTA/CONCEIÇÃO SOARES/CARLOS RIBEIRO, Regime Contributivo dos Trabalhadores Independentes, Manual da OCC – Ordem dos Contabilistas Certificados para a formação eventual EVE0219B, março 2019 e ROCHA, Miguel Marques: «A transparência fiscal no Código Contributivo», Cadernos de Justiça Tributária n.º 7 – janeiro-março 2015. 30 O Código dos Regimes Contributivos da Segurança Social identifica um conjunto de trabalhadores que se consideram abrangidos pelo regime dos TI, e que incluem os sócios ou membros das sociedades de profissionais definidas na alínea a) do n.º 4 do artigo 6.º do CIRC. Nesta matéria a Segurança Social continua a aplicar a orientação técnica de 20.01.2016 que, no entanto, não resolve de forma clara quem fica abrangido pelo regime dos trabalhadores por conta de outrem e a quem se aplica o regime dos TI, sendo certo que no caso dos sócios de sociedades transparentes será em regra pelo lucro da sociedade no ano anterior imputado ao sócio que se determinará o valor a pagar de contribuições (critério diferente do que se aplica aos solicitadores e AE em prática isolada que podem optar entre contabilidade organizada ou declaração trimestral). 31 Sobre a comparação entre o regime da CPAS e o regime dos TI vd CLÁUDIO CARDOSO, «A Segurança Social dos trabalhadores independentes e dos advogados e solicitadores – algumas reflexões», in Segurança Social – Sistema, Proteção, Solidariedade e Sustentabilidade (coord. JORGE CAMPINO/ NUNO MONTEIRO AMARO/SUZANA FERNANDES DA COSTA, AAFDL, 2020, pp.453 ss.

mais facilmente, se conseguem apartar deste regime, tornando-se multidisciplinares. Possibilidade que, por razões estatutárias e deontológicas, não existe para as sociedades de solicitadores e agentes de execução. O regime da transparência fiscal apresenta algumas desvantagens, não só de natureza contabilística e fiscal como a impossibilidade de opção pelo regime simplificado de tributação (que poderia ser benéfico e menos custoso para sociedades de maior dimensão) e a não aplicação de alguns benefícios fiscais destinados a sujeitos passivos de IRC como também de natureza económica e social, já que a imputação dos rendimentos destas sociedades aos sócios e a tributação de tais valores na esfera pessoal dos mesmos, desincentiva a constituição de reservas na sociedade e o investimento societário. Limitações que assumirão maior relevo no contexto atual, em que se espera uma crise económica e social grave, com grande impacto na atividade destes profissionais. Cremos, ainda, que, na realidade, a aplicação deste regime não logrou satisfazer todos os objetivos que motivaram a sua criação. A neutralidade fiscal assume pouco relevo se pensarmos na possibilidade que existe ainda para algumas sociedades de se tornarem multidisciplinares e assim “fugir” a este regime especial e, no que diz respeito à evasão fiscal, em face da “pesada” carga fiscal que incide atualmente sobre as pessoas singulares com rendimentos mais elevados, não nos parece que a opção por este regime desincentive a adoção de estratégias que procuraram essencialmente reduzir a tributação, também na esfera pessoal dos sócios. Importa, pois, ponderar se faz ou não sentido, do ponto de vista da igualdade e justiça na tributação, manter este regime obrigatório para estas sociedades, sujeitandoas, necessariamente, a todos os constrangimentos descritos e colocando em causa a sua manutenção e subsistência.

Referências bibliográficas

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