MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
De casa em casa Desde que nasci até sair de casa dos meus pais, morei numa das mais movimentadas artérias da capital, e às vezes dizem-me que ainda trago o cheiro da gasolina agarrado à pele. É talvez por isso que, em quase tudo o que escrevi – poemas, crónicas, livros juvenis, letras de fados –, não é fácil encontrar descrições de paisagens, a não ser as que me serviram de metáfora para determinados estados de alma: ventos que apontam para a desarrumação dos corações ou campos de feno para as tardes de amor. De facto, são sobretudo os interiores das casas que os meus textos evocam (camas vazias, roupa nas arcas, jarras sem flores, livros, livros e mais livros); e, ainda que ao leitor seja impossível saber que esses interiores não pertencem todos à mesma casa, a mim basta-me reler uma linha para recordar em qual delas o escrevi. 1
Avenida da República
O bairro onde nasci inspirou por exemplo Rua das Sardinheiras (um fado que Camané me faz o favor de cantar acompanhado ao piano por Mário Laginha, também autor da música) quando tudo levaria a crer que o “bairro antigo” lá referido fosse bastante mais antigo. Para mim, porém, as Avenidas Novas já são velhas há muito tempo e, entre a época em que, na esquina da Barbosa du Bocage, a minha avó chamava o senhor Filipe da janela quando precisava de um táxi e a invasão das ciclovias no corredor central vai quase toda a idade que tenho...
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Lumiar
Aprendi a ler e a gostar de dizer poesia no Lar Educativo João de Deus, numa secção só para raparigas instalada numa vivenda com jardim que então existia na Alameda das Linhas de Torres. Lá, recitei poemas do patrono da escola nas festas de fim de ano e escrevi a minha primeira quadra, dessas em que “coração” rima com “limão”, para oferecer no Dia da Mãe... Seria o início de uma carreira? 3
Campo Grande
A educação a sério veio depois, na Faculdade de Letras, num tempo em que, cansados do cinzentismo do país e alegres com as portas abertas da Revolução, aprender era uma festa e todos os assuntos mereciam debate. Foram os anos das descobertas de autores dilectos e professores incríveis, mas também aqueles em que escrevi os meus primeiros poemas publicados, no I Anuário de Poesia Inédita, da editora Assírio & Alvim: Pedro (que depois figuraria no meu primeiro livro) e outros dois que estão para aí numa gaveta. 4
Avenida Miguel Bombarda
Quando o prédio onde passei a infância teve de ser demolido, a família atravessou a rua e instalou-se noutra esquina da mesma avenida. É nessa casa que decorre a noite de Natal do capítulo com que se inicia o romance Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu;