O conflito do trabalho doméstico no lar

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O conflito do trabalho doméstico no lar um olhar sobre as casas burguesas em São Paulo na década de 1950

Camila Medeiros de Oliveira Santos

Orientadora: Prof. Dra. Joana Mello de Caravalho e Silva

FAPESP n. 2018/12757-2 Relatório Final | novembro de 2019


1. Resumo .......................................................................................................3 2. Introdução ...................................................................................................4 3. Anos dourados ............................................................................................9 O Cruzeiro .................................................................................................13 4. Lar doce Lar ..............................................................................................18 5. O conflito do trabalho doméstico .............................................................27 Brasil: sociedade de criados .....................................................................31 6. Racionalização e higienismo .....................................................................35 7. Arquitetura do não visto ............................................................................45 8. Mulheres: patroa e empregada .................................................................62 9. Divisão sexual do trabalho ........................................................................72 10. Construindo gênero.................................................................................85 11. Conclusão................................................................................................90 12. Referências bibliográficas .......................................................................93


Resumo A pesquisa busca analisar as relações entre arquitetura e trabalho doméstico e precisar o papel das mulheres responsáveis por este a partir de um recorte - as residências unifamiliares em São Paulo na década de 1950, tendo como ponto de partida a existência de um conflito no lar moderno que se dá pela própria presença do trabalho doméstico. Através de um panorama da passagem do século XIX para o XX, compreende-se que o ideal de domesticidade moderna foi forjado numa oposição entre casa e trabalho que estabeleceu o trabalho doméstico como uma contradição. Para apaziguar esse conflito, no Brasil, o trabalho dentro do lar sofre uma série de investidas de naturezas diversas, em função dos papeis da dona de casa e da empregada doméstica, na busca por seu apagamento. A hipótese da pesquisa é a de que essas investidas se dariam também pela arquitetura, a partir do apagamento das áreas de serviço da casa e da própria empregada doméstica enquanto corporificação do trabalho. Assim, a casa se configura num frágil equilíbrio de mundos desiguais, no qual o trabalho será apagado pela arquitetura e pelos limites impostos à atuação da empregada doméstica no lar.

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Introdução

Tendo como recorte a cidade de São Paulo na década de 1950, a presente pesquisa

busca estabelecer relações entre trabalho doméstico e arquitetura e precisar o lugar das mulheres responsáveis pela sua realização dentro da casa. A partir da compreensão do lar como o lugar por excelência da intimidade familiar e da privacidade, narrativas que vêm sendo construídas pelo culto à domesticidade desde a passagem do século XIX para o XX, a pesquisa têm como ponto de partida um conflito que se estabelece pela própria presença do trabalho doméstico no lar – seja sob encargo da dona de casa ou da empregada doméstica.

Inicialmente, esse conflito e suas repercussões eram analisados somente segundo o

personagem da dona de casa, conforme a leitura da bibliografia, que observava processos ocorridos no Hemisfério Norte. A interpretação desses acontecimentos era adaptada para o contexto brasileiro, mas, conforme avançava o desenvolvimento da pesquisa, essa adequação passou a ser insuficiente para a compreensão da realidade local em função da presença extensiva e duradoura da empregada doméstica. Logo, tornou-se indispensável um olhar para essas outras mulheres no lar como principais agentes do trabalho doméstico nas casas de classe média e alta no Brasil, na forma do emprego.

A partir daí, as referências bibliográficas passaram a ser voltadas para o tema da

escravidão e como esse longo período da nossa história e sua abolição tardia afetou as relações sociais que envolvem os trabalhos do lar no Brasil. Aberto esse novo caminho, surgiram diversas possibilidades a partir do conceito de divisão sexual do trabalho, apresentado por essa bibliografia. Autoras como Heleith Saffioti (1976), Daniele Kergoat, Helena Hirata (2007) e Betânia Ávila (2009)1 e faziam uma revisão do que seria o trabalho produtivo e reprodutivo, e, em se tratando do Brasil, esclareciam também sobre o papel 1

O tema da divisão sexual do trabalho têm sido estudado por diversas autoras feministas e essas mencionadas

produziram trabalhos de refêrencia tanto para a pesquisa como para esse campo do pensamento em geral, como A mulher na sociedade de classes: mito e realidade de Heleith Saffioti (1976), Novas configuraçãoes de divisão sexual do trabalho (2007) por Daniele Kergoat e Helena Hirata, a tese de doutorado de Betânia Ávila, O tempo do trabalho das empregas domésticas: tensões entre dominação/exploração e resistência (2009)

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da empregada doméstica. A relação desta última com a figura da dona de casa transformada na patroa foi elucidada por Maria Suely Kofes de Almeida (2001), que observa o conflituoso relacionamento entre essas duas mulheres no espaço doméstico.

Dessa forma, as questões iniciais da pesquisa acerca do conflito do trabalho doméstico,

da racionalização da casa e do trabalho, do culto da domesticidade, dos papéis de gênero e da figura da dona de casa ganharam maior profundidade quando adicionada a presença da empregada doméstica nesse cenário. Dessa forma, a casa torna-se não somente o lugar do conflito da presença do trabalho doméstico no lugar do não trabalho, mas da presença da empregada como sujeito estranho responsável por esse trabalho. O apagamento na tentativa de resolução desse conflito, portanto, não será somente das áreas de serviço da casa, mas também do próprio corpo e da pessoa da empregada, através de mecanismos de ordem material e imaterial.

A metodologia da pesquisa pautou-se, além revisão bibliográfica a partir dos temas a

serem investigados, pela análise de fontes documentais, mais especificamente das revistas O Cruzeiro e Acrópole. A primeira foi escolhida e serviu para olhar para os discursos da época e o papel das mulheres, enquanto a segunda possibilitou uma aproximação da arquitetura dos anos 1950 em São Paulo e para como essas questões relativas ao trabalho doméstico refletiam-se sobre os espaços da casa.

Na revista O Cruzeiro, foi realizada uma busca por palavras-chave em todos os

exemplares da década de 1950, a saber: dona de casa, patroa, criada e empregada. A partir desse método de busca, procurava-se precisar qual o papel dessas mulheres no lar, como elas eram representadas pela revista, e como elas se relacionavam entre si. Assim, buscou-se analisar os discursos de época, mas também a atuação da própria revista enquanto documento e tecnologia e gênero na acepção de Tereza de Lauretis (1987).

Na revista Acrópole, foram analisadas todas as residências unifamiliares em São

Paulo na década de 1950, a partir de uma setorização programática por cor das áreas de serviço da casa. Objetivava-se enxergar a relação estabelecida entre as áreas de serviço e o restante da residência, procurando indícios de apagamento dessas zonas através de barreiras, circulações exclusivas, diferenças de nível, janelas, escadas e outros objetos arquitetônicos.

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Acima está um exemplo da tabela utilizada

para organizar a busca por palavra chave na revista O Cruzeiro, indicando um campo para inserção de trechos relevantes retirados da revista para cada palavra. E abaixo desta está a reunião de todos os trechos, organizados por ano e palavra chave, sobre os quais há ainda uma diferenciação por cor, indicando o tema a que se referiam: relacionamento patroa x empregada, escravidão, estrelas de Hollywood, propagandas, realidade brasileira, desvalorização do trabalho doméstico, entre muitos outros.

Do lado direito, está um exemplo da

análise feita sobre os exemplares da revista Acrópole através da setorização por cor. Vermelho representa as depencias de serviço - mais escuro para quarto e banheiro de empregada e lavanderia e mais claro para pátio de serviço. Em azul está copa e cozinha, em rosa, circulação exclusiva de serviço e em laranja, barreiras que separam área de serviço de área social. 6

Acrópole, 1956, ed.218, p. 140


Foi observado também os discursos dos arquitetos que acompanhavam o projeto da residência, analisando qual era o partido defendido pelo autor do projeto e qual era seu objetivo com aquele agenciamento do programa e, por vezes, da linguagem estética.

Nesse relatório, procurou-se demonstrar quais foram os caminhos percorridos

para o entendimento do objeto de estudo e as conclusões a que se chegaram quanto às relações entre papel da mulher, trabalho doméstico e arquitetura. No primeiro capítulo, Anos dourados, realiza-se um panorama de São Paulo nos anos 1950. O clima de entusiasmo com a industrialização e metropolização da cidade era acompanhado pela difusão do American Way of Life como narrativa cultural dominante. O alargamento das classes médias, fruto desse processo de crescimento urbano, impulsionou a sociedade de consumo que transformou o lar num amplo mercado para os novos produtos industrializados advindos dos Estados Unidos

No capítulo seguinte, Lar doce Lar, revela-se a relação desses produtos com o ideal

da domesticidade que vinha sendo construído desde a passagem do século XIX para o XX. Os anos 1950 são o apogeu da narrativa burguesa de privacidade, intimidade e conforto que coloca a casa no centro dos debates como o lugar do refúgio frente as mazelas da vida moderna e urbana. Nela, a dona de casa é a figura chave, responsável pelo agenciamento do lar e cuidado da família. Argumenta-se que essa narrativa foi essencial para a venda dos eletrodomésticos como sinônimos de conforto, eficiência e modernidade. Além disso, ao explicar que a racionalização no Brasil toma a face do higienismo, adiantam-se questões fundamentais quanto ao trabalho doméstico e seu lugar no país, que serão explicitadas no próximo capítulo, O conflito do trabalho no lar, no qual se apresenta a problemática da pesquisa. Ao retornar para a passagem para o século XX, revela-se como a casa se conformou como o lugar de oposição ao trabalho, o que faz com que o trabalho doméstico seja objeto de apagamento por diversos mecanismos.

No capítulo Brasil: sociedade de criados, explicita-se a especificidade do trabalho

doméstico no país pela presença constante da empregada doméstica. Argumenta-se que a escravidão e a persistência de traços arcaicos sobre a modernidade conformaram uma modernidade incompleta que caracteriza a sociedade brasileira como uma sociedade de

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criados.

A partir daí, os próximos capítulos pretendem elucidar sobre os diversos mecanismos

de apagamento e invisibilização do trabalho doméstico tanto no âmbito material da área de serviço da casa, quanto no imaterial na figura da empregada doméstica. No capítulo Racionalização e higienismo, argumenta-se que a dimensão higiênica da racionalização do lar no Brasil está profundamente imbricada pela questão do emprego doméstico e da escravidão. Uma vez que será a empregada responsável pelo trabalho no lar, a racionalização é um agente na sua domesticação e disciplinamento.

No capítulo seguinte, Arquitetura do não visto, elabora-se o raciocínio de que a

arquitetura seria mais um mecanismo de apagamento, e, a partir de diversos exemplos da revista Acrópole, analisam-se as plantas das residências procurando indícios dessa empreitada. Em Mulheres: patroa e empregada, procura-se analisar o relacionamento entre as duas mulheres no lar a partir da literatura de Maria Suely Kofes de Almeida (2001) e também de exemplos de passagens da revista O Cruzeiro que evidenciam essa relação conflituosa, enxergando nela também instrumentos de apagamento do trabalho, agora na figura da empregada.

Para melhor compreensão das problemáticas do trabalho doméstico em si, é

apresentado o conceito de divisão sexual do trabalho no próximo capítulo, procurando entender, com o apoio do trabalho de Silvia Federici (2006), as raízes da desvalorização do trabalho doméstico e da sua naturalização como atividade feminina. Elucidados esses conceitos, o panorama da cidade de São Paulo nos anos 1950 é revisto segundo a perspectiva do emprego feminino a partir de dados fornecidos por Felícia Madeira e Paul Singer (1973) e uma análise estrutural de Heleith Saffioti (1976) acerca da participação feminina nas atividades produtivas. Finalmente, em Construindo gênero, a revista e a arquitetura são analisadas enquanto agentes na construção do gênero feminino, a partir da elaboração feita por Teresa di Lauretis (1987). Conclui-se que esses dois meios, um no âmbito do discurso e outro no âmbito da materialidade, são tecnologias do gênero e contribuem para produção do gênero feminino de maneira desigual.

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Anos dourados

A década de 1950 em São Paulo foi marcada por um forte sentimento de otimismo.

Consolidada sua hegemonia como polo industrial do Brasil, estava em jogo a transformação de um país subdesenvolvido em uma nação moderna e a expectativa que se projetava era de um futuro prestes a acontecer. (JANJULIO, 2015)

Como aponta Maria Arminda do Nascimento Arruda, “A cidade burguesa que

emergira nos fins do século XIX atingia, após meio século, genuíno estilo urbano de vida, ligado a um universo valorativo de ordem diversa, respaldado na ideia do progresso inelutável” (1997, p.40)

Desde os anos 1930, o projeto desenvolvimentista implantado por Getúlio Vargas

e continuado por Juscelino Kubistchek, inseriu o país na esteira do rápido crescimento urbano e industrial. que teve como um dos principais centros a cidade de São Paulo. Sobre esse processo, Florestan Fernandes afirma, em 1954, no âmbito das comemorações do IV Centenário de São Paulo, que como a história não se faz em um dia, aí temos mais uma evidência de que o nosso presente é rico de forças que trabalham juntas para um futuro melhor. Os que pensam o Brasil como ‘país do futuro’ têm em vista, naturalmente, cidades como São Paulo, nas quais se está forjando, verdadeiramente, a sociedade brasileira da era científica e tecnológica (FERNANDES 1974ª, p.303 apud ARRUDA, 1997, p. 40)

Essa nova era, industrializada e tão louvada à época como símbolo do progresso,

implicou na concentração de investimentos e capitais em São Paulo, cujo desenvolvimento levou a atração da maior parte dos fluxos migratórios do país. Em um período de dez anos, sua população passou de pouco mais de 2 milhões para 3,5 milhões de habitantes. Somente entre 1950 e 1955, chegaram à São Paulo 42% do total de 2 milhões de

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imigrantes que viriam, sobretudo, compor a força de trabalho da cidade. Esse processo de industrialização, aliado à política de bem-estar social que o acompanhou durante os anos de 1930 e 1960, resultou num alargamento dos estratos médios da sociedade e na intensificação da mobilidade social, essencial para a conformação de um novo ideal de domesticidade, como veremos.

A partir da segunda metade da década de 1950, inicia-se, então, o primeiro ciclo de

industrialização pesada, incentivado pelo Plano de Metas do governo de JK. Instaura-se em definitivo naquele momento - um novo padrão de urbanização e de inserção do Brasil na economia internacional, embora ainda em posição de dependência em relação ao capital internacional (SCHIFFER, 1999). Afinal, se o Plano de Metas prezou pela fabricação de bens de consumo e de produção nacionais, num processo de substituição de importações, grande parte das empresas produtoras ainda eram de capital estrangeiro, notadamente norte-americano, como no caso da indústria automobilística. De fato, é nesse período que se nota, uma entrada maciça de empresas multinacionais no mercado brasileiro e com elas, todo uma nova gama de produtos modernos a serem consumidos.

A classe média que, como apontamos, cresceu junto ao desenvolvimento urbano e

industrial, é o principal alvo dessas empresas que vendiam conforto, progresso e futuro na forma de produtos. Nesse sentido, é possível afirmar que a modernidade passa a ser objeto de consumo por si só, pautada em um ideal de vida norte-americana que se projetava como o modelo a ser seguido nesse momento.

A presença do capital estrangeiro veio, portanto, acompanhada da influência cultural

norte-americana sob a forma do American Way of Life. Esse modo de viver penetrava no imaginário das classes médias paulistanas, disseminado pelos principais meios de comunicação de massa sob a forma de filmes, propagandas e eletrodomésticos. Nesse cenário, as estrelas de Hollywood eram o modelo da dona de casa dos anos 1950, os subúrbios estampados nas capas da revista Life eram o desejo de qualquer habitante da caótica São Paulo, assim como a casa de arquitetura moderna e o Cadillac na garagem, ou melhor, carport eram um sonho comum. Progressivamente, construía-se uma imagem

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de modernidade brasileira pautada na norte-americana, de tal forma que modernizar-se passou a ser sinônimo de americanizar-se. (TOUCEDA, 2005)

A venda do American Way of Life como produto a ser consumido foi parte integrante

da estratégia estadunidense de aproximação com o Brasil, que se deu no âmbito cultural, político e econômico. Tal afinidade resultou, entre outras medidas na adoção, em 1946, de uma política de livre importação pelo governo Dutra, que em um primeiro momento significou uma onda de produtos norte-americanos sobre o mercado brasileiro – de eletrodomésticos e automóveis à sabonetes e cereais. No ano seguinte, a importação de maquinaria para indústria brasileira foi privilegiada, porém os Estados Unidos continuaram sendo responsáveis por 47% do total das importações brasileiras.

No plano cultural, o United States Information Service (USIS) atuou sobre o Brasil

e a América Latina afim de influenciar a opinião local em direção favorável aos interesses norte-americanos e também com a intenção de neutralizar a propaganda comunista. A campanha se concentrou sobre os meios de comunicação através da distribuição de artigos para as revistas O Globo e O Cruzeiro, de ampla circulação no país. No governo Einsenhower, a USIS foi responsável pela difusão do American Way of Life de maneira direta, e, conforme a cidade de São Paulo avançava sobre os anos 1960, a adoção da cultura americana passava a ser um movimento voluntário mais do que uma imposição: Muitos brasileiros já haviam optado pelo modelo de consumo americano, seu estilo de vida, filmes, moda, música, arquitetura e tecnologia. (...) Em uma cidade em vias de se modernizar, de se renovar, os hábitos de consumo se diversificavam, as formas de comportamento se alteravam. (TOUCEDA, 2005, p. 79)

Não é por acaso, portanto, que o século XX passou a ser conhecido como o “século

americano”. Os EUA se projetavam sobre o mundo expandindo-se não somente política e economicamente, mas também culturalmente. Desse modo, o capital norte-americano e a vinda das empresas multinacionais são parte do processo de disseminação do estilo de vida estadunidense que assume também um papel importante na expansão do seu

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mercado consumidor. Constituía-se um novo modo de vida, pautado na americanização e no consumo dos produtos daquele país, aqui disponíveis após a Segunda Guerra Mundial, vendidos como sinônimos de modernidade.

Esses produtos seriam consumidos, como se disse, em grande medida pela

classe média paulistana que fora forjada no processo de consolidação da industrialização e o desenvolvimento urbano de São Paulo. O seu consumo, contudo, para além da disponibilidade no mercado local de compra e venda, teve que contar com o impulso da propaganda que, divulgada pelos meios midiáticos daquele período, construía de maneira convincente a associação entre produtos industrializados e modos de vida moderno, argumentando em favor da sua necessidade e comodidade. A revista O Cruzeiro veiculada por todo o país desde 1928 foi um destes grandes meios de disseminação não somente dos produtos, como também do American Way of Life. O Cruzeiro Lançada por Assis Chateubriand, a revista foi ativa de 1928 a 1985, e em seu auge, entre os anos 1950 e 1960, atingiu a marca de 850 mil exemplares. Em publicações semanais, tratava de assuntos de atualidades, humor, cinema e, em grande medida, de temas relativos ao chamado mundo feminino. Ao longo de todos seus anos de atividade, a revista tornou-se um dos principais meios de disseminação cultural do Brasil, mas analisada à luz do tempo, também meio de difusão de uma série de valores morais e expectativas sobre o mundo e seus atores conforme o contexto histórico em que se inseria. Mais do que um retrato físico de uma época, o periódico é também reflexo da mentalidade daqueles que escreviam, que escolhiam quais artigos e propagandas seriam publicados, e quais discursos serviriam para alimentar o imaginário da sociedade. Nesse sentido, como um documento (LE GOFF, 1990), O Cruzeiro é muito mais do que uma fonte meramente ilustrativa.

Apesar de seu enorme alcance, até mesmo para além das fronteiras brasileiras, a

revista era destinada à uma população de classe alta, mais especificamente mulheres.

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Os temas femininos eram abordados em colunas como Elegância e Beleza, Da mulher pra Mulher, e Lar Doce Lar, que tinham um forte tom aconselhador e revelam o que era esperado da mulher. Nelas também ressoa a influência cultural norte-americana que se faz presente de diversas maneiras, marcando o conjunto de artigos do periódico: nas histórias que se passavam nos EUA ou foram escritas por autores estadunidenses, na coluna de cinema Cinelândia que tratava dos filmes Hollywoodianos, e também de suas estrelas – da vida cotidiana das atrizes e atores, algo que indica um interesse especial pela vida privada desses agente sociais modelares. Mas, principalmente, a presença norte-americana está nas incontáveis propagandas de produtos estrangeiros, vetores principais do American Way of Life.

Para além de somente uma ideia de modernidade, o estilo de vida norte-americano

tem um componente fundamental que é a construção de um tipo ideal de domesticidade e de relações de gênero. Trata-se da residência unifamiliar, erguida no subúrbio, longe do centro onde o marido, que trabalha na cidade, refugia-se ao fim do dia. E a esposa o espera com a casa limpa, o jantar pronto, um sorriso no rosto e o filho no colo. É essa imagem da dona de casa perfeita que é amplamente divulgada pela revista, seja nas propagandas, nas histórias, nos conselhos ou nas colunas sobre as atrizes Hollywoodianas. Todas elas tratam do seu importante papel na criação da desejada e necessária harmonia perfeita do lar e o tom aconselhador vai no sentido de adequar a mulher a esse ideal.

A mesa está tranquila, cada qual no seu lugar: os pais, os filhos. Mas há uma pessoa responsável por essa quietude, por esse recato: é a mulher, a esposa, a mãe, a dona de casa, a quem incumbe zelar pela respeitabilidade do ambiente doméstico, pela sua aparência de finura e de decência. A mesa de jantar - com razão se diz - é a prova real da educação moral e cívica do cidadão. E a mulher é a professora, a mestre eximia, a catedrática sem par dessa disciplina difícil. (O Cruzeiro, 1951, n°36, p.108)

Ao tratar do cinema, a abordagem é também no sentido de reforçar os papéis da

mulher como dona de casa. Logo, a referência à cultura norte-americana vem sempre carregada de valores morais que, embora associados a modernidade, são pautados por

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t...

O Cruzeiro, 1957, ed. 38, p. 24

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costumes tradicionais. A matéria sobre a atriz inglesa Audrey Hepburn, grande sucesso em Hollywood, é paradigmática desses papéis e associaçãoes:

Audrey não é vaidosa, nem exibicionista, como outras estrelas. Seu desejo sempre foi o de ser dona de casa, ter familia, viver no lar. (O Cruzeiro, 1957, p.68.)

As propagandas revelam também a inserção dos produtos norte-americanos no

mercado brasileiro. Como vimos, a industrialização dependente do capital estrangeiro significou uma onda de produtos norte-americanos e também europeus que, pela quantidade e variedade, tornavam mais papável a ideia de futuro. Logo, a possibilidade de consumo tornou-se sinônimo de modernidade, ao mesmo tempo em que os papeis de gênero tradicionais eram afirmados, como nota-se na fala de um jogador de futebol entrevistado: “A coisa comigo vai bem: televisão, geladeira, radio, vitrola, piano, enfim

tenho de tudo. E a minha patroa fica em casa” (O Cruzeiro, 1958, p. 38)

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Lar doce lar

Os anos 1950 e 1960 representam o ápice de uma construção de papeis sociais

e costumes que vêm se conformando desde a passagem do século XIX para o XX, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Os eletrodomésticos eram a luz do fim do túnel da indústria da guerra dos Estados Unidos. Cessado o conflito, a indústria armamentista vê nesses produtos um novo uso para a tecnologia desenvolvida nos anos anteriores. A casa se torna a unidade fundamental do consumo e o universo doméstico, no centro das atenções no pós-guerra, é o principal tema a ser mobilizado, a partir dos ideais da domesticidade. A tecnologia criada durante a guerra pelas indústrias estadunidenses teria sua aplicação nos tempos de paz. Às técnicas de desidratar os alimentos – como o leite e o café para alimentar as tropas que combatiam do outro lado do oceano – se somariam ao desenvolvimento de novos materiais como o nylon, que permitiu agasalhar os soldados aliados vestindo uma segunda pele de alto poder de isolamento térmico. Enquanto trabalhavam, as indústrias já desenhavam o seu aproveitamento para um mercado concebido como feminino (GLICK, 2017, p. 146).

A revolução industrial e a progressiva passagem da vida rural para vida urbana

significaram a mudança de uma série de comportamentos, relativos também às novas formas burguesas de sociabilidade que passam a ser preponderantes, como a noção de privacidade e de sujeito. Por isso, não só o universo público da cidade é representativo desse cenário de transformações, mas também o universo privado da casa. Afinal, o lar, como um dos lugares da mediação das relações sociais, passa a assumir um papel central na conformação de novas práticas e também na manutenção de costumes.

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Desse ponto de vista, as fábricas e a vida urbana são claramente um resultado

da industrialização, e o lar, e toda uma série de noções de ordem moral atribuídas a ele, também é fruto da mesma revolução. A saída do trabalho da casa para a concentração da atividade produtiva nas fábricas levou à uma ressignificação do conceito do lar que se reafirmou nos anos 1950, e se conformou no ideal da casa suburbana liderada pela dona de casa, mãe, e esposa como uma verdadeira administradora econômica e sentimental.

Desde o fim do século XIX, na Inglaterra, o lar passou a ser fonte de bem-estar moral

e físico, ao mesmo tempo em que se tornava o principal foco da política de ampliação dos mercados consumidores. Dentro desse contexto, o design foi responsável por adaptar, em certa medida, objetos que anteriormente não configuravam parte de um imaginário doméstico. A máquina de costura, por exemplo, foi remodelada e ornamentada para que pudesse ser consumida como um objeto necessário e adequado ao universo familiar. O design, portanto, foi uma criação fundamental para que objetos aparentemente sem vocação doméstica pudessem ser associados a esse mundo para se tornarem objetos de desejo. (FORTY, 2007)

A casa convertia-se não somente no lugar fundamental do consumo, mas também

de mediação das relações de sociabilidade de classe, gênero, raça e familiares que se afirmavam nesse momento. Os manuais de economia doméstica, veiculados desde o século passado e com muita força nos anos 1920, são um exemplo notório desse processo, que repercute também na revista O Cruzeiro, na qual há extensas seções sobre a casa e o trabalho doméstico, orientando a dona de casa em qual a melhor maneira de cozinhar, de limpar, de cuidar dos seus filhos, de receber visitas e toda uma série de comportamentos. Assim, embora não fosse propriamente um manual, a revista também oferecia instruções para uma mulher cuja função primeira era o cuidado da casa, dos filhos, do marido, e na maioria das vezes, da empregada. Por meio dessas instruções tratava não apenas de regular o trabalho doméstico, como os sentimentos e papeis de gênero:

“a dona de casa levante para acolher a todos os convidados” (O Cruzeiro,1956, p.28); “em tal caso, á a dona de casa que compete ser gentil e mostrar-se agradavelmente

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O Cruzeiro, 1951, ed. 02, p. 32

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surpreendida mesmo se em realidade não está” (O Cruzeiro, 1995, p.90) “A dona de casa tem de receber bem, dando-lhes atenção e um serviço perfeito, com várias mudanças de pratos, vinhos diferentes servidos a cada mudança.”(O Cruzeiro, 1958, p. 44)

“a mulher perfeita não é aquela que não tem falhas, mas aquela que compreende a importância do seu papel dentro da família e procura tornar o lar feliz. (...) o que todo marido deseja é uma criatura normal, equilibrada, que saiba tolerar as suas pequenas falhas como ele saberá tolerar as delas” (O Cruzeiro, 1953, p.81)

Os manuais reforçam, portanto, o papel central da mulher para o conjunto da

sociedade. Na esteira das transformações do início do século, a figura da mãe e esposa passa a ser fundamental no sentido de liderar o processo de modernização industrial no campo privado. Por isso, recorrentemente, o papel da mulher é elevado à condição de uma missão cívica, um trabalho para com a nação no qual a mulher era responsável pela promoção e adequação da família e de seus membros aos novos valores burgueses.

A industrialização, o crescimento vertiginoso das cidades e a saída do trabalho do

lar impuseram um movimento de oposição entre o universo público da cidade e o universo privado do lar, mediado por uma série de valores, como explica Adrian Forty: O lar passou a ser considerado um repositório das virtudes perdidas ou negadas no mundo exterior. Para as classes medias do século XIX, lar significava sentimento, sinceridade, honestidade, verdade e amor. Essa representação do lar compreendia uma dissociação completa de todas as coisas boas do mundo público e de todas as coisas ruins do mundo doméstico. Era transformar o lar em um lugar de ficção, um lugar onde florescia ilusão. (FORTY, 2007, p. 140)

A dissociação entre casa e trabalho significou também uma divisão sexual dos

sujeitos responsáveis por cada uma dessas esferas: o homem foi identificado ao trabalho produtivo da fábrica e a mulher ao trabalho reprodutivo do lar, e toda uma série de noções morais atribuídas a esses espaços em oposição foram transferidas também a esses

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personagens. A figura feminina se configura, portanto, sempre em relação ao doméstico e as suas atribuições de amor, moralidade e, mais à frente no século XX, ordem e eficiência.

No momento em que se configuram os conceitos de sujeito, individualidade e

privacidade, a identidade feminina se constituirá sempre voltada à família e às tarefas do lar num processo de naturalização do vínculo entre a mulher e o espaço doméstico que data do início da era capitalista. Fica a cargo da mulher, como esposa e mãe, administrar a casa num sentido econômico e moral. Em oposição à cidade, o lar passou a ser identificado com uma ideia de refúgio, um ninho na tempestade, como coloca Liernur (2014) livre da imoralidade da vida urbana, incorruptível frente às malícias da modernidade. Essa paz deve ser mantida pela mulher através da regulação dos afetos, tanto seus, como de seu marido:

o bom humor da dona de casa é o pêndulo que decide o equilíbrio das relações dos membros da família. Se a esposa está bem-humorada, vence os obstáculos que surgem a todo momento. Em caso contrário, é como se transmitisse a todos um mal-estar geral de resultados desagradáveis (O Cruzeiro, 1955, p.69)

A mulher deve aprender a doçura, a paciência e a bondade para que possa mediar

os conflitos do lar versus cidade, ou seja, domar os instintos brutos dos homens e maridos, identificados ao mundo público. Mas não só isso, ela deve domar seus próprios instintos. Os manuais de Economia Doméstica desse período apresentavam a mulher como um ser de má índole em essência que deveria aprender a controlar seus instintos num esforço de dominar-se ou domesticar-se para, assim, poder atuar como a esposa amorosa ideal, protegendo o marido das tempestades do mundo moderno: Según estos manuales, la vida metropolitana parece provocar en el hombre un explosivo cúmulo de tensiones, y si la mujer no hace de ella misma e de la casa un bálsamo, él no tendrá donde reconstruir una ilusión de armonía que el ‘mundo’ desmiente a cada día. La discreción, el silencio, esa dulzura son necesarias para que el hombre recupere sus fuerzas morales y salga de casa con el corazón satisfecho (LIERNUR, 2014, p. 508) 22


Fica claro que o papel esperado da mulher possui uma dimensão pública fundamental,

embora sua atuação se dê na esfera doméstica. É nesse momento, no século XX, que o ideal da beleza e harmonia que imperava sobre a domesticidade perde força em prol da ideia da casa como uma fonte de bem-estar físico que tem como base o princípio da higiene, racionalização e eficiência do trabalho doméstico. A casa continua a identificarse em oposição à cidade, no entanto a questão do trabalho doméstico adquire uma centralidade que antes era ocupada pela valorização do ócio, na chave do antagonismo entre casa e trabalho.

Nos Estados Unidos, a transformação do lar de um lugar do não trabalho para

o lugar da racionalidade do trabalho se projetou em função de profundas mudanças na sua estrutura social, ocorridas na passagem para o século XX. A industrialização e o crescimento da população urbana acarretaram um afluxo imenso de mão de obra para indústria que teve como consequência, já nas primeiras décadas do século, a carência de oferta de empregados domésticos e, em uma sociedade altamente dependente de serviçais, todas as atenções voltaram-se para esse fato.

Além disso, os produtos industrializados destinam-se para a casa como mercado

em crescimento nesse momento. Vendidos como instrumentos que facilitariam o trabalho doméstico, os eletrodomésticos, contudo, aumentaram o trabalho feminino pois ampliavam os níveis de existência de limpeza e produção de alimentos, além de trazerem para a casa atividades que antes eram realizadas em outros espaços. Dessa forma, diante numerosos artefatos para limpeza, novas possibilidades de cozinhar e de produzir uma maior diversidade de pratos, da tarefa de lavar roupas, houve um aumento de tarefas a serem realizadas pelas mulheres que agora não possuíam mais serviçais – ou nem tantos assim.

O trabalho doméstico passa, portanto, a estar no centro das discussões dos

intelectuais homens e mulheres norte-americanas no começo do século e a matriz para abordagem desse problema foi a fábrica, espaço onde e para a qual se desenvolveram novas teorias de produção como o taylorismo. (CARVALHO, 2008) O taylorismo consistia

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O Cruzeiro, 1954, ed. 16, p. 84

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O Cruzeiro, 1956, ed. 34 p. 12

O Cruzeiro, 1956, ed. 09, p.11


no método de racionalizar a produção afim de possibilitar o aumento da produtividade no trabalho, economizando-se tempo ao suprimir gestos desnecessários e comportamentos supérfluos no processo produtivo (MOREIRA & RAGO, 1984) Essa teoria foi transposta para o trabalho doméstico, tendo a dona de casa como receptora.

A racionalização do lar resulta numa intensa atenção ao trabalho doméstico,

reforçando o papel da mulher como um dos mais importantes agentes na missão cívica de fortalecer a nação. A casa passou a ser alterada em função da maior produtividade e eficiência do trabalho e a cozinha foi o principal cômodo a ser transformado. A questão espacial, do agenciamento dos cômodos e dos mobiliários foi central no contexto norteamericano. (FORTY, 2007) Por outro lado, na Europa e especialmente na Alemanha no contexto da política habitacional coordenada por Ernst May em Frankfurt, a questão da forma e da funcionalidade foi preponderante e têm como maior exemplo a cozinha projetada por Margarete Schütte-Lihotzky, que materializa o conceito da cozinha em linha – em uma alusão à linha de produção fabril. (ELEB, 2017)

Seja nos Estados Unidos ou na Europa, a racionalização do espaço doméstico passa

a ser um tema recorrente, no qual a questão do tempo é um ponto chave. A busca, nos dois casos, estava sempre na economia de tempo, manifestada num esforço por maior eficiência. Logo, assim como, na fábrica, o trabalhador perdia controle de seu tempo, a dona de casa tornava-se refém dele: Tanto o más que en la fábrica, para ser manejado por una única operadora – la madre -, el mecanismo eficiente necesita de un orden perfecto que, como la contabilidad, impida el derroche: del tiempo y del espacio (LIERNUR, 2014, p. 526)

O relógio passa a ser expressão do controle do tempo e da eficiência do trabalho. A

aplicação dos princípios tayloristas sobre a casa significa também que o lar não é apenas uma unidade puramente do consumo, parte dela sendo voltada também para produção, ou seja, o espaço doméstico não abriga somente atividades de repouso, mas também de trabalho - um trabalho que deve ser racional, porque mais rápido e eficiente. As propagandas

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revelam isso com muita clareza: mais trabalho em menos tempo, ou seja, menos tempo gasto em trabalho para poder gastá-lo em outra atividade. Os produtos eletrodomésticos produzidos em larga escala pela indústria se valem dessa ideia para atingir a posição de objeto de desejo universal da sociedade, inclusive a brasileira nos anos 1950.

O panorama da passagem do século XIX para o XX permite revelar como o ideal

doméstico se transforma a partir das mudanças econômicas e sociais, adequando-se a elas no sentido de reproduzi-las, de tal forma que fazer a história do universo doméstico seria então fazer a história dos múltiplos operadores da domesticação; estudar em quais circunstâncias, para responder a quais exigências, técnicas e aparelhos deram lugar a versões domésticas e quais circuitos prestaram-se à sua difusão.(BEGUIN, 1991, p. 53) A domesticidade deve ser entendida, portanto, como um processo histórico, no qual diversos operadores atuam para transfigurá-la. A racionalização, a eficiência e o design seriam operadores dessas transformações que atuam conforme os tempos.

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O conflito do trabalho doméstico no lar

Como apontado anteriormente, a Revolução Industrial proporciona as condições

adequadas para que o trabalho deixe o lar e passe a ser realizado na indústria, por excelência. Nessa passagem, contudo, algumas atividades ainda realizadas em casa, mas que já não eram consideradas produtivas e nem regidas pelo tempo social, ou seja, pelo tempo da fábrica, perdem seu valor. Dito de outro modo, a saída do trabalho do ambiente doméstico foi marcada pela criação de dois universos em oposição e pautados por hierarquias claras: o público, espaço do trabalho e do homem, mais valorizado; e o privado, espaço do lar e da mulher, menos valorizado.

Se a casa e a fábrica surgiram discursivamente como polos em negação: o público

versus o privado, a paz versus o caos, o homem versus a mulher, então, o trabalho versus não-trabalho deveria também prevalecer. A necessidade de trabalho doméstico é o entrave fundamental para que essa oposição se complete plenamente. Em função de aproximar ao máximo do real essa ilusão, o trabalho doméstico será objeto de contínuas investidas para sua invisibilização.

A casa, portanto, será o espaço do conflito entre um mundo privado que deveria

idealmente ser desprovida de trabalho. O culto à domesticidade se converte, nessa lógica, no culto da negação ao trabalho no lar, que é uma elaboração também reguladora desse conflito. Dessa forma, as noções de conforto, privacidade, racionalidade, eficiência e tudo aquilo que compõe esse ideal terão também uma dimensão que busca apagar o trabalho.

A mulher, como responsável pelo lar, será receptora de todas essas investidas

de apagamento dos traços do trabalho. Para tanto, contribuirão os vários componentes que atuam sobre a casa, sejam eles materiais como a arquitetura, mobiliário, artefatos de decoração e eletrodomésticos; ou imateriais como as narrativas em vários suportes discursivos. No entanto, há de se relativizar a categoria Mulher, e consequentemente,

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O Cruzeiro, 1954, ed. 14 p. 58

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quais mulheres serão objeto de apagamento. A empregada doméstica faz da vivência do gênero feminino no universo doméstico uma experiencia desigual, e então, assim como o trabalho, o corpo feminino responsável por ele será também apagado e invisibilizado através desses mecanismos.

A identidade feminina, além de ser construída a partir da família e do lar enquanto

instituição familiar burguesa, será construída diariamente pelo trabalho doméstico, um trabalho, contudo, que não será nomeado desta maneira. No caso da dona de casa, esse trabalho será teatral, que se faz ver no retrato da dona de casa que espera o marido no fim do dia com o jantar pronto e a casa arrumada: nenhum resquício de trabalho à vista, encenando uma vida muito diferente da realidade dura das tarefas diárias.

Um exemplo de uma forma clara de apagamento do trabalho doméstico, de ordem

material, e parte dessa tradição é a confecção de peças de crochê e macramé para efeitos de camuflagem de certos objetos identificados ao mundo feminino ou do trabalho. Este tipo de produção faz parte do rol de trabalhos que podem ser feitos em casa e servem para esconder ambientes inteiros, uma porta muito feia ou estreita, a máquina de costura ou o cesto de trabalhos. Herança dos modelos de decoração ecléticos e vitorianos, os artesanatos caseiros buscam ocultar vestígios de trabalho doméstico ou objetos mecânicos que tenham na sua forma o valor de uso explicitado (CARVALHO, 2008, p. 71)

Dessa forma, além de esconder os objetos que remetessem ao trabalho doméstico,

a dona de casa adornava sua casa, o que refletia diretamente sobre ela e seu esforço, assim como seu gosto pela ornamentação da casa. A identidade feminina e o apagamento do trabalho se misturam e atuam os dois a uma só vez na confecção dessas peças à primeira vista inofensivas.

No Brasil, contudo, as problemáticas que envolvem o trabalho doméstico possuem

uma especificidade potente que advém da persistência da escravidão até fins do século

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Na residência de Rubens Carneiro

de Viana percebe-se claramente a presença da edícula no lote - segregada do corpo principal da residência e acessada pela entrada exclusiva de serviço. O pátio de serviço está separado por uma parede do pátio social e terraço, impedindo que este se integre visualmente ao espaço mais privilegiado da casa. Além disso, a cozinha é acessada diretamente pela área externa de serviço, sem que haja necessidade de circular pela área social, de maneira que a totalidade da zona de serviço está completamente independente do restante da casa, como coloca o próprio arquiteto: “peças e áreas de serviço com entrada e circulação independente”

Acrópole, 1957, ed.222, p. 218

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XIX, de tal sorte que a constituição da modernidade esbarra em formas arcaicas de sociabilidade e de produção. A carga negativa atribuída ao trabalho adquire aqui uma profundidade ainda maior, que resultam em outras formas de apagamento, sutis e tão naturalizadas que conformam parte da cultura brasileira, como por exemplo o apartamento e a invisibilidade, por meio de agenciamentos espaciais e materiais das áreas de serviço, onde se insere o quarto de empregada. Neste caso, a própria organização do programa delimita a área e o local de ocupação da área de serviço, além de sua conexão com os outros ambientes da casa, ou seja, com seus outros habitantes procedendo-se assim uma divisão social, de gênero e de classe.

Essas e outras questões referentes ao espaço construído da arquitetura e as decisões

que o envolvem serão melhor enfrentadas mais a frente uma vez que a especificidade brasileira seja mais bem elucidada. Já se indica, no entanto, que o conflito do trabalho doméstico no lar se faz ver de diversas maneiras – seja num simples crochê sobre o liquidificador ou na edícula de serviço que persiste aos fundos de casas modernistas – e que a sua problemática reflete a conformação da sociedade brasileira e seus caminhos até a euforia da década de 1950. Brasil: sociedade de criados No Brasil, a persistência do emprego doméstico impede que a problemática do trabalho no lar seja analisada pela mesma ótica dos acontecimentos que se deram nos Estados Unidos e na Europa. É necessário voltar no tempo para que os processos históricos específicos do caso brasileiro elucidem essa diferença.

É claro que no âmbito geopolítico global, Europa e Estados Unidos compõem a

esfera central do poder e a América Latina constitui a periferia desse sistema, numa relação permanente desigual. (SAFFIOTI, 1976) Este é um ponto de fácil percepção e se reflete, entre outras coisas, no fato de que a modernidade brasileira, enquanto dependente, é referenciada na norte-americana, fazendo dos nossos ideais a realidade dos países centrais, como revela a apropriação do American Way of Life.

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Porém, ainda que inserido neste contexto geopolítico, no qual o caminho da cultura

percorre todo o contexto ocidental, os processos não se passam no mesmo tempo, nem são a decorrência do outro num tempo futuro, o que leva a contradições gritantes no caso brasileiro. Enquanto tratávamos, nos capítulos anteriores, da saída do trabalho do lar, dos manuais de Economia Doméstica, dos mecanismos do design e da moda para transformar o lar numa unidade de consumo, estávamos enfocando sobretudo a passagem do século XIX para o XX nos países centrais, embora paralelos com o Brasil dos anos 1950 tenha sido traçados, com o objetivo de apontar as continuidades e descontinuidades do processo de constituição da domesticidade moderna. Há que se marcar, contudo, que enquanto estes processos se davam no Hemisfério Norte, no Brasil se dava a abolição da escravidão – momento primeiro da passagem para o assalariamento e para o modo de produção capitalista.

A nossa ideia de modernidade foi sendo conformada, portanto, em meio a uma

realidade profundamente desigual em que, ao mesmo tempo que eliminava o trabalho escravo, assegurava a propriedade da terra na mão daqueles – e somente – que possuíram a propriedade das pessoas na forma de trabalho. A Lei de Terras garantiu a marginalização desse contingente populacional e em São Paulo foi ainda aprofundada por uma política de imigração racial que visava não apenas colaborar para a constituição de um mercado de trabalho livre como objetivava investir no embranquecimento do povo brasileiro. Nesse sentido, a passagem da sociedade brasileira para a modernidade foi marcada pela persistência dos valores tradicionais, o que repercutiu de modo estrutural em várias esferas da sociedade. Por isso, Csába (1999) qualifica a sociedade brasileira, como uma sociedade de criado, uma sociedade, portanto, em perpétua contradição, num equilíbrio entre a progressão ao futuro e a persistência do passado, que, se de um lado garante a constituição de grupos de elite vinculados à indústria, de outro, mantém formas de trabalho pouco regulamentadas e sob forte discriminação.

Roberto Schawrtz analisa esse mesmo traço da sociedade brasileira a partir do

conceito do paternalismo, que se manifesta em relações desiguais nas quais a fronteira

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entre a autoridade e a vontade pessoal não é clara. Esta seria, para ele, a sociedade de favores, na qual a autoridade se legitima pela gratidão ou respeito em relações permeadas de informalidade e afetividade. E acrescenta, refletindo sobre como essas relações permanecem na sociedade brasileira, em que há “alguma coisa do gênero talvez do que é hoje a situação da empregada doméstica” (SCHWARTZ, 1981, p.103 apud ALMEIDA, 2001, p.138)

Na sombra da escravidão que se projeta sobre o século XX, o trabalho doméstico será,

no Brasil, duplamente desvalorizado como trabalho de mulher e de negros, convertendose em uma problemática não somente de gênero e classe, mas também de raça. Por isso, diferentemente dos países do Norte, no Brasil, o conflito do trabalho presente na casa como lugar do não-trabalho se reflete muito mais na figura da empregada doméstica do que na da dona de casa. Assim como tudo que envolve o culto à domesticidade: as noções do indivíduo, do íntimo e do familiar serão confrontadas pela presença de uma pessoa estranha no lar, paga para exercer um trabalho que sofre contínuas tentativas de apagamento.

A sociedade de criados interpreta o trabalho não sob uma perspectiva calvinista

de valorização, como nos Estados Unidos, mas sob um olhar arcaico que o associa à uma profusão de cargas negativas. A sociedade brasileira é tradicionalmente avessa ao trabalho braçal numa persistente conexão ao trabalho escravo, construindo um estigma que atravessa gerações e se coloca como mais um fator de desvalorização do trabalho doméstico. Esse cenário se verifica no fato de que, em 1914, São Paulo possuía quarenta mil criados de servir, equivalente a um para cada dez habitantes. (CARVALHO, 2008, p. 248)

Se, no Brasil, a empregada doméstica desempenhará um papel central na execução

e invisibilidade do trabalho doméstico, a dona de casa não desaparece, embora seu papel no lar se transforme em outro: o de disciplinamento da empregada, a partir da sua figura transformada na patroa. Assim, o lar se transforma num campo de confronto entre mulheres, mediado por relações ambíguas, distantes na sua condição de classe e raça, mas próximas

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na condição de gênero. Esta relação entre dona de casa/patroa e empregada está sempre atravessada pelo trabalho: ser mulher seria, portanto, constituir-se a partir do mundo doméstico e ser parte constitutiva dele. Espaço que não é apenas de tarefas, de esferas desenhadas pela divisão social e sexual do trabalho. Mas local definidor da feminilidade. Ser mulher seria ser dona do espaço doméstico. É também ser doméstica. O doméstico seria ele próprio feminino. (ALMEIDA, 2001, p. 186)

Os mecanismos que atuam sobre o lar terão como objeto a empregada doméstica

e o culto à domesticidade se conformará não somente em oposição ao trabalho, mas, à sua própria figura. Os instrumentos de apagamento atuarão para negar à empregada a sua condição de pessoa e, quando em confronto com a patroa, a sua condição de mulher, dando ao debate sobre domesticidade e gênero no Brasil outros contornos e especificidades.

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Racionalização e higienismo

Se nos Estados Unidos a modernização da casa foi liderada pelos engenheiros,

e na Europa pelos arquitetos, no Brasil ela foi levada à cabo, sobretudo, pelos médicos. (CARVALHO, 2008) A face brasileira da racionalização, da eficiência e da produtividade foi a ordem e a limpeza, marcadas por uma profusão de significados simbólicos relativos à sujeira, ao trabalho e, por fim, ao emprego doméstico. Por isso: o estudo minucioso do serviço doméstico com o objetivo de poupar trinta segundos aqui, um minuto ali devia parecer algo mesquinho em uma sociedade que dispunha de grande quantidade de criados, continuava essencialmente artesanal e extremamente preconceituosa a tudo que dizia respeito ao trabalho braçal (CARVALHO, 2008 p. 250)

A cidade de São Paulo no início do século XX era marcada por um embate entre o

moderno e o arcaico: a cidade se modernizava, mas os costumes populares e rurais ainda prevaleciam sobre as vivências do urbano. A abolição, o êxodo rural e o projeto imigrantista levaram à um crescimento abrupto da população paulistana que, sem um setor produtivo suficientemente amplo para sua absorção, acarretou uma situação crítica de precariedade.

Os surtos epidêmicos que resultaram em episódios fatídicos como o da Revolta da

Vacina, e a proliferação de cortiços instauraram a conjuntura para o fortalecimento das ideias higienistas, relacionando moralidade e higiene. Os médicos encabeçaram as teorias, assim como as novas normas que atuariam sobre a casa para adequá-la aos parâmetros de asseio. Em consonância, o Estado atuava na escala da cidade, embelezando as grandes avenidas à moda europeia e removendo as moradias precárias que seriam o foco das epidemias, num processo urbano-arquitetônico que “era a institucionalização da violência como legítimo instrumento da ação nas campanhas sanitárias” (MOTA, SANTOS, 2003, p. 166)

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As formas arquitetônicas, o modo de distribuição dos serviços vão dissociar o que era indiscriminado, privatizar o que era público, confinar o que se fazia ao ar livre e modificar, pouco a pouco, todo o regime de práticas do habitante. A função domesticadora das formas e dos serviços deve, portanto, ser relacionada com um grande empreendimento de reorientação autoritária de todo o território urbano (BEGUIN, 1991, p. 53)

Todo um aparato discursivo foi necessário para legitimar as investidas estatais contra

a população pobre. A associação entre essas formas “arcaicas” do viver à imoralidade foi uma delas, que diz respeito também à oposição entre casa e trabalho que se colocava nesse momento. Os cortiços logo se tornaram a expressão da imoralidade e deveriam ser adequados à casa asseada estabelecida pelos parâmetros de salubridade (MOTA, SANTOS, 2003) e ao ideal de domesticidade calcado na família mononuclear e no lar como local de repouso.

A cozinha foi também aqui e como parte dessas campanhas higienistas, o principal

cômodo a ser transformado, assemelhando-se progressivamente à um laboratório. Não somente por sua clara identificação com o trabalho, mas principalmente pela identificação com a empregada. Nela estariam reificados além do trabalho doméstico, os valores da imoralidade, da rua e do espaço público numa persistente associação da figura da empregada com o outro, o estranho. (MCCLINTOCK, 1995)

A interpretação brasileira do processo de racionalização da casa na forma da ordem

e da limpeza dos espaços diz muito também da sua relação com aquilo que se quer extirpar: a sujeira. Nada é inerentemente sujo, a sujeira exprime um valor sobre a desordem social: uma vassoura no armário da lavanderia não é suja, mas se estiver sobre a cama sim. A iconografia da sujeira é a evidência excedente do trabalho manual, é o que sobra depois que o valor de troca foi extraído, é por definição inútil. A relação corporal com a sujeira portanto, exibe e escancara a existência de trabalho manual, como explica Mcclintock, Se como observou Marx, o fetichismo da mercadoria exibe com

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ostentação a superestimação da troca comercial como princípio fundamental da comunidade social, então a obsessão vitoriana com a sujeira configura uma dialética: a subestimação fetichizada do trabalho humano. (...) A sujeira, como todos os fetiches, assim, expressa uma crise de valores, pois contradiz o ditado liberal de que a riqueza social é criada pelos princípios racionais abstratos do mercado e não pelo trabalho (MCCLINTOCK, 1995, p. 230)

A obsessão brasileira pela limpeza, manifesta no higienismo, pode ser considerada,

nessa lógica, também um fetiche. Uma vez que a sujeira evidência a marca do trabalho, o fetiche surge na forma de algo que deve ser completamente abolido. A empregada doméstica entra nesse raciocínio como expressão do trabalho e, consequentemente, da sujeira. É somente lógico que a cozinha, como lugar por excelência do estereótipo da boa cozinheira no Brasil, seja o principal cômodo a se enquadrar nos parâmetros higienistas.

A tradição brasileira – calcada também na presença de serviçais – delegava todos

os espaços de serviço da casa ao quintal. No início do século, a cozinha era um cômodo do lado de fora da casa, no qual, não só se preparavam os alimentos, mas também eram realizadas todo tipo de tarefa doméstica. Talvez nem pudesse ser ao menos chamado de cozinha. O fogão a lenha tinha um papel definidor da identificação do espaço com a sujeira uma vez que a fumaça do carvão enegrecia as paredes, aumentando o aspecto da precariedade. (SILVA, 2008)

A partir da intervenção higienista, a cozinha foi se delineando como tal e inserida

no espaço da casa, por meio de legislações que surgiam no início do século XX, como o código sanitário: “É terminantemente proibido cozinhar, a não ser nas cozinhas, que deverão ser instaladas, munidas de fogão e pias para a lavagem da louça” (código sanitário de 1918 no artigo 389). Concomitantemente, conformavam-se as zonas de dormir, estar e servir e também parâmetros inclusive para sua separação: “as cozinhas devem satisfazer as seguintes exigências: não terem comunicação direta com os compartimentos da habitação noturna (...)” (lei municipal n. 2232 de 9/11/1920, art 138)

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O Cruzeiro, 1955, ed. 34, p. 58 A propaganda acima aponta, em referência à pesquisas feitas nos Estados Unidos acerca da racionalização do trabalho, que “as estatísticas demonstram que uma dona de casa percorre cerca de 192 quilometros por ano, trabalhando numa cozinha antiquada. A cozinha moderna, concebida cientificamente em armários e gabinetes de aço, poupa para a senhora nada menos do que 150 kms em pasos e movimentos habitualmente efetuados”

num

claro

movimento

de

assimilação das ideias de racionalização norte-americana para a realidade brasileira - ainda que pouco importe essa economia aqui. A propaganda ao lado aponta para o mesmo caminho: “concentra as atividades da dona de casa numa pequena área, poupando energias e acelerando o trabalho” O Cruzeiro, 1955, ed. 21, p. 87

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O fogão a gás, em contraposição ao fogão à lenha, é outro elemento central na

adequação do espaço da cozinha moderna, tornando-se. símbolo de funcionalidade e praticidade, idealizada para esse ambiente por seus botões eficientes, a sua aparência de um móvel asseado, a economia de tempos e movimentos que empreendia, e além de tudo, a completa ausência de sujeira. O próprio gás dizia respeito às transformações que ocorriam na escala da cidade: a sua introdução e, posteriormente da eletricidade, como sistemas urbanos eram o reflexo da modernidade.

Em todos os sentidos, a cozinha passa a ser um elemento central na casa. Do

cômodo mais desprestigiado, associado ao trabalho feminino, à empregada doméstica e à sujeira, a cozinha passa por uma série de alterações e domesticações para se tornar um elemento inerte no centro da casa moderna. Liderado pelos médicos higienistas, a cozinha modelo vai se conformando como um verdadeiro consultório médico, cuja gerenciadora era a dona de casa.

Nesse processo de oficialização dos espaços segundo os parâmetros sanitaristas,

os costumes e a maneira de vivenciar a casa também se alteram. O conforto estabelecido pelo higienismo prevê uma série de práticas adequadas à esse novo viver moderno. Os antigos saberes vão sendo progressivamente eliminados tanto pelo discurso quanto pela nova materialidade que se coloca: a cozinha laboratório está totalmente transformada em relação àquela do quintal, assim como o modo de operá-la.

O fogão a gás é a sintetização desse processo: eliminando a sujeira e o trabalho

braçal, representa a superação dos antigos hábitos tradicionais. A cozinha passa a ser de domínio da dona da casa como figura gerenciadora do lar. Sua ascensão como pessoa responsável pela ordenação desse ambiente, é também a desvalorização da empregada doméstica e o desprestígio dos seus saberes tradicionais. A autoridade da dona de casa a coloca em posição de disciplinar a empregada quanto ao manuseio dos novos equipamentos e também quanto as novas noções de higiene. (SILVA, 2008)

O processo de introdução dos novos parâmetros de asseio sobre a casa não

representa, portanto, somente uma transformação material e arquitetônica. Mais do que

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Em uma

escancarada

apologia

ao

disciplinamento da empregada doméstica, a propaganda aconselha: “Se a sua empregada não sabe ler, saberá por certo ver figuras. Ensina, repita, insista que o legítimo Sabão Platino traz estampado do tablete a figura de um farol assim”. O discurso é acompanhado da imagem de uma dona de casa/patroa branca empenhando uma britadeira sobre uma empregada negra, que remete aos dizeres “água mole em pedra dura”. O

ato

de

disciplinar

é

posto

como

responsabilidade da dona de casa em relação à empregada e é carregado de um forte significado racista, aludindo à incapacidade da empregada, legitimando o seu “ensinamento”.

O Cruzeiro, 1950, ed. 14, p. 26

A propaganda se vale da ideia da economia como objeto de desejo: “você pode fazer compras uma vez por semana, economizando tempo e dinheiro”, de maneira que o consumo, nesse caso da geladeira, mas também a partir de um novo padrão propiciado pelos supermercados, é vendido como ele próprio um bem almejado. A geladeira seria o aparelho que tornaria possível essa realidade e vai se configurando como um dos eletrodomésticos mais desejados pela família na década de 1950 e 1960.

O Cruzeiro, 1955, ed. 9, p. 27

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isso, o conforto é uma disciplina que rege comportamentos e práticas a partir de um ideal. Assim, os costumes vão pouco a pouco sendo oficializados, assim como o viver. Os saberes populares são gradualmente transformados em ciência e passam a atuar como mecanismos disciplinadores. No caso da cozinha, significa a perda da autonomia da empregada doméstica, que passa a depender dos ensinamentos – e supervisão – da patroa como condutora desse espaço.

A sujeira, assim como o trabalho doméstico, vai se tornando cada vez mais invisível.

A face brasileira da racionalização, portanto, serviu, em certa medida, para elevar o trabalho doméstico à condição de um saber oficial, que teve como consequência imediata a desvalorização da sabedoria tradicional da empregada. Submetida ao disciplinamento da patroa, seu corpo será mais controlado, assim como seu trabalho. A ordem e a limpeza do espaço são reificadas sobre sua pessoa: na medida em que se controlam as tarefas domésticas, também se controla quem as realiza. A racionalização atua sobre o trabalho, mas também sobre o corpo.

Assim como o higienismo buscou oficializar os saberes tradicionais a fim de impor

novas formas de viver baseadas nos parâmetros sanitaristas, a propaganda e o discurso por trás dela busca associar os produtos industrializados à modernidade e à saberes e modos de vida específicos.

Entre modernidade e tradição, o que se nota é a assimilação do conjunto de

eletrodomésticos que passam a integrar os lares paulistas e, “no final da década, o número de casas onde havia enceradeira, liquidificador, refrigerador, colchão de molas era maior do que aquelas onde não existiam” (JANJULIO, 2015, p. 66). Notam-se formas muito peculiares de apropriação de seus usos e sentidos e, através da imagem dos anúncios, pode-se de fato perceber mudanças na sociedade em direção ao “progresso”. Na propaganda da Frigidaire da General Motors nota-se que a personagem realiza compras em supermercado: uma novidade para a época.

Por outro lado, havia propagandas recorrentes nos periódicos, mas que não tinham

grande adesão do público, como a máquina de lavar. Como revela uma pesquisa realizada

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pelo IBOPE, entre 1957 e 1960, somente 20% das casas paulistana as possuía. Isso porque a máquina de lavar está diretamente relacionada à presença de empregada: era um item de alto custo que não seria comprado enquanto houvesse uma lavadeira na casa. Dito de outro modo, era um item que executava tarefas que poderiam ser executadas ainda manualmente, não fazendo a sua compra algo essencial. O mesmo se nota com outros eletrodomésticos, cuja aquisição demorou a se realizar entre os brasileiros, ao contrário do que ocorre em relação à geladeira e a televisão.

A despeito dessa variação, o fato é que as propagandas se valem, também no Brasil,

da narrativa da dona de casa como esposa, mãe e gerenciadora do lar, mas principalmente, como responsável pelo trabalho doméstico. Assim, o percurso histórico dos países do Norte se impõe sobre a realidade brasileira como se houvesse uma reivindicação da dona de casa por menos trabalho no Brasil – principalmente entre o público alvo da revista de mulheres de classes abastadas.

A praticidade que o eletrodoméstico oferece à vida de árduas tarefas domésticas

da dona de casa é o principal atributo levantado pelas propagandas: menos trabalho na cozinha, mais coisas gostosas na mesa; elimine o cansaço etc. Havia toda uma teoria elaborada em torno da ideia de que esses aparelhos dariam mais autonomia à mulher, possibilitando que realizasse o trabalho em menos tempo, ou, como parece mais verossímil, mais tarefas em menos tempo.

As propagandas, ainda em meados do século XX, refletem a preocupação histórica

pela racionalização do espaço doméstico e suas tarefas. Por isso a questão da economia do tempo é a mais recorrente como narrativa, e, provavelmente, deveria ser o atributo mais atrativo desses objetos. O constrangimento com o trabalho se mantém, no entanto, em uma continua busca de fazê-lo menos visível e realizá-lo mais rapidamente.

Algumas empresas brasileiras, por outro lado, reconheciam a realidade brasileira

de seu público alvo, retratando a figura da dona de casa como gerenciadora do lar e da empregada doméstica responsável pelas tarefas domésticas. O eletrodoméstico aparece, portanto, como o aparelho que auxilia a dona de casa quando a empregada

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não vem trabalhar, o que revela a dependência da patroa em relação à essa outra mulher a quem delegou seu trabalho. E, numa versão ainda mais gritante das desigualdades que se projetam sobre o lar: como uma criada mecânica. O liquidificador, a batedeira, a máquina de lavar são retratados como aparelhos que dispensam a presença indesejada da empregada no lar e toda a carga negativa de representações que a acompanha. O trabalho não seria realizado nem pela empregada nem pela dona de casa, mas pelo próprio aparelho: o cúmulo do fetiche do não trabalho.

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Acrรณpole, 1957, n. 229, p.24

Acrรณpole, 1957, n. 220, p.126

Acrรณpole, 1957, n. 229, p.24

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Arquitetura do não visto

A presença econômica e cultural dos Estados Unidos sobre o Brasil significou a sua

exaltação nos mais diversos campos, sobretudo no Segundo Pós Guerra: no cinema e no rádio, nas propagandas dos eletrodomésticos, dos carros, das comidas e até da tinta da parede. A narrativa por trás era a da vida doméstica perfeita, de valores tradicionais no seu elogia à família mononuclear e estilo de vida moderno na valorização da industrialização e mecanização do ambiente doméstico. É justamente nesse momento surgem os ícones da casa moderna norte-americana que nos serviram de modelo: a cozinha americana, o living room e o carport, que encontrarão soluções especialmente influentes no programa californiano. As Case Study Houses foram um programa de arquitetura da Califórnia que teve início em 1945 e que propôs a criação de casas experimentais. Aliavam-se dois conceitos de grande importância para época: a adaptação de materiais industriais para a construção civil, num contexto de readequação do parque industrial norte-americana em função do final do conflito mundial, e a criação de uma nova forma arquitetônica capaz de redefinir o conceito do habitar de acordo com a vida moderna. (TOUCEDA, 2005)

A casa ideal dos anos 1950 na ensolarada Califórnia era uma casa térrea, isolada

dos limites do terreno e suburbana. Os espaços eram luminosos e flexíveis graças ao uso da estrutura metálica independente que garantia também a desejada fluidez dos espaços. Os ambientes eram dotados dos aparelhos mais modernos e a família gozava de espaços privados bem delimitados, mas também de amplos espaços de convivência como o living que se integrava ao jardim dos fundos onde havia uma grande piscina. No carport reluzia um moderno automóvel, a face urbana do American Way of Life. Na cozinha americana, a dona de casa detinha total controle sobre as suas tarefas minunciosamente organizadas e também sobre o resto da casa, graças à sua integração com a sala e a visão do resto da

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fotografias de Julius Shulman da ase Study House House de nĂşmero 22. Ao lado a vista para Los Angeles, abaixo, a famosa cozinha americana, o centro da vida domĂŠstica.

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casa proporcionada pelas cortinas de vidro. Ao fundo, a paisagem era uma vista aérea de Los Angeles e Hollywood, como na Case Study House de número 22, a icônica casa de Pierre Koening. “A imagem da mulher transmitida pelo cinema e pela publicidade exalava o glamour de uma estrela de Hollywood. Ao mesmo tempo, dava entender que se tratava de uma dona de casa pragmática e responsável, capaz de resolver todos os problemas domésticos sem estragar o esmalte de suas unhas” (IRIGOYEN, 2005, p. 192)

A simplificação das áreas de serviço foi uma das transformações mais proeminentes

da casa moderna. A racionalização elevou a área de serviço à condição de elemento central da casa nos novos tempos de eficiência e produtividade. Passou a ser um espaço visual e espacialmente integrado à zona de estar a partir da diminuição da sua área, possibilitada pela inserção dos novos equipamentos eletrodomésticos e também pela eliminação das dependências de empregados. A arquitetura californiana se tornou um ícone para muitos arquitetos brasileiros e, na década de 1950, dominou os debates num extenso intercâmbio cultural e arquitetônico entre Brasil e Estados Unidos.

As revistas de arquitetura, tanto as norte-americanas quanto as brasileiras, foram

o principal meio de difusão dessa arquitetura californiana e também do que se estava produzindo aqui em relação a ela. Em São Paulo, foram publicadas em revistas da Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie como a Pilotis baseada na californiana Arts & Architecture e gerenciada por um grupo de jovens arquitetos que mais tarde se converteriam em símbolos da década de 1950 como Carlos Millan, Salvador Candia, Jorge Willheim.

A revista de maior importância no meio arquitetônico do período, porém, foi a

Acrópole. Publicada de 1938 a 1971, a revista detém um imenso conjunto de projetos arquitetônicos. A decisão editorial de não negar a publicação de nenhum projeto faz do conjunto da sua história uma amostra variada da produção arquitetônica desse período, mais próxima do que de fato era executado pelos arquitetos para a sua clientela. A arquitetura moderna, no entanto, foi protagonista, principalmente a partir da compra da

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editora em 1952 pelo austríaco Max Gruenwald, amante do modernismo.

A revista circulou tanto no Brasil quanto no exterior e deu visibilidade à arquitetura

nacional e estrangeira, principalmente norte-americana. À frente da revista colaboravam um dos mais importantes arquitetos da história da arquitetura brasileira, e na década de 1950 os mais recorrentes foram Luis Saia, Carlos Lemos, Oswaldo Bratke, Eduardo Corona, Rodolpho Ortenblad Filho, Vilanova Artigas, Arnaldo Furquim Paolielo, Roberto Aflalo, Plinio Croce, Franz Heep, Rubens Carneiro Viana, David Libeskind, Sérgio Bernardes, Alberto Botti e Marc Rubin, entre tantos outros arquitetos destacados. A maioria deles compunha o grupo de arquitetos recém-formados pela Faculdade de Arquitetura do Mackenzie e tinham em comum o apreço pela produção dos Estados Unidos.

A influência da arquitetura norte-americana sobre a arquitetura moderna brasileira

é claramente encontrada na revista, seja nos nomes dos ambientes em inglês seja na publicação de matérias dedicadas à arquitetos estadunidenses como Frank Lloyd Wright. O fato é que, apesar da difusão do American Way of Life e suas formas arquitetônicas, a realidade brasileira estava muito longe de ser a americana na década de 1950. Ainda que fascinados, os arquitetos brasileiros tiveram que adaptá-la.

Como já vimos, a racionalização não significou para o Brasil o mesmo que para os

Estados Unidos e para Europa. Assim, a busca por eficiência no espaço doméstico esbarra num ponto crucial da estrutura social brasileira: a presença de criadas. A produtividade e a eficiência se transvestirão de ordem e limpeza numa tentativa de apagar o trabalho e disciplinar o corpo da empregada doméstica.

A difusão no American Way of Life sobre o campo arquitetônico significou,

portanto, a sua adaptação à sociedade de criados. A espacialidade moderna resultado do enxugamento e integração das áreas de serviço deu lugar à segregação e ao apagamento na casa brasileira. Uma série de mecanismos tiveram de ser agregados ao projeto das residências para dar conta do equilíbrio entre a forma moderna e a persistência de amplas áreas de serviço para empregadas, que deveriam estar espacial e visualmente apartadas dos cômodos privilegiados da casa.

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Na residência de Eduardo Corona, apesar do arquiteto ter passado o volume da cozinha e da copa para a parte poste’rior da casa, a persitência da área de serviço e da edícula ao fundo fez necessária uma barreira vegetal. O mesmo acontece em outra residência do mesmo bairro, projetada por Nilo Ramos Vilaboim em 1953, em que o arquiteto ainda aponta que o Jardim não é depreciado pelas instalações de serviço por conta da barreira entre eles.

Residência no Alto de Pinheiros

Residência no Alto de Pinheiros

por Eduardo Corona

por Nilo Ramos Vilaboim

Acrópole, 1956, n. 215, p.424

Acrópole, 1953, n. 178, p.364

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A cozinha, ainda que não fosse mais aquela no quintal do início do século, continuava

a ser identificava com o emprego doméstico e, por isso, jamais poderia ser a cozinha americana integrada ao living como na arquitetura californiana. Os eletrodomésticos fizeram o papel da modernização nesse caso, e a cozinha permaneceu segregada da casa e surgiu ainda um espaço de mediação entre essa zona de serviço e a de estar: a copa, filtrando personagens e comportamentos.

O discurso de diversos arquitetos na revista Acrópole revela como a separação

entre as três zonas é um elemento central. Acompanhado do projeto da residência, os textos reafirmam a distinção entre as áreas, alçando-a à condição de partido do projeto, como se a garantia dessa separação fosse o maior atributo da casa. Por trás dessa especificação está a necessidade de separação da empregada doméstica da intimidade da família. Quanto menor fosse seu contato com zonas sociais, quanto menos fosse vista, melhor. Afinal, a sua presença era a incorporação do trabalho doméstico: ao esconder a empregada, escondia-se também o trabalho.

Dessa forma, como resultado desse esforço de adaptação, a arquitetura moderna

brasileira dos anos 1950 está repleta de filtros: os cobogós, revestimentos, murais, paisagismo, pérgolas, mobiliário, desníveis, escadas, portas, copa. O componente, no entanto, que mais escancara a modernidade incompleta brasileira é a edícula: uma solução arquitetônica eminentemente brasileira que nasceu da necessidade de se manter empregados domésticos a uma distância prudente da casa. (...) A edícula, por que não, ajuda a manter vivo o espírito da senzala (TOUCEDA, p. 213) A edícula é o símbolo da sociedade de criados. Combatê-la seria um enorme esforço por parte dos arquitetos modernos, principalmente em contraposição ao jardim e a sucessão de pátios internos que ganhavam cada vez mais espaço nessa arquitetura. Na tentativa de conciliar os atributos do moderno com a persistência das grandes áreas de reviço, os arquitetos brasileiros percorrem um caminho contrário dos norte-americanos.

As casas de Frank Loyd Wright eram motivo de grande admiração entre os arquitetos

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À

direita,

a

casa

de

Giancarlo Fongaro em que a planta de tipo Usonia é desfigurada pelas áreas de serviço. À esquerda, a planta do mesmo arquiteto, similiar à uma casa tipo Praire.

Acrópole, 1951, n. 158, p.74

Acrópole, 1952, n. 172, p.8

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paulistas dos anos 1950. Na tentativa de suprimir o volume da edícula do fundo do lote e integrá-lo à residência, os arquitetos recorreram às plantas das Prairie Houses de Wright “expoentes de um período em que as estruturas familiares, com frequência, contemplavam [ainda] a presença de serviçais” (TOUCEDA, 2005, p. 212). Em três ou quatro zonas, essa planta permitia agenciar todas as áreas de maneira independente, porém conectadas.

As plantas das Usonia Houses de Wright são de um período posterior de sua atuação

e, a partir de adaptações, também foram utilizada pelos arquitetos paulistas para driblar a questão dos serviços. As casas usonianas têm plantas em forma de L que abrigam ampla área de estar de um lado, dormitórios de outro, e o ângulo do L é destinado ao serviço. Na arquitetura paulista, o que foi feito foi transformar esta tipologia em uma mais próxima às Prairie Houses, invertendo a progressão histórica dos acontecimentos que levaram à essa “evolução”. Em um manual para a transformação de uma casa Prairie em uma Usonia, Wright aponta: Então, reduza a cozinha, a despensa e o espaço para empregada a uma ‘área de trabalho’ compacta, apropriada para o preparo das refeições da família pela moderna mulher americana (STORRER, 1993, p.219 apud TOUCEDA, 2005 p. 217)

A dimensões avantajadas da área de serviço fizeram com que a volumetria em L

fosse desconfigurada e surgissem anexos à casa, que a tornaram mais parecida com uma Prairie no sentido de áreas independentes, porém conectadas, do que uma Usonia que segue a coesão de uma forma fechada. A área de serviço aumenta tanto em relação àquela da Usonia no ângulo do L, que passa a ter dimensões parecidas com as outras zonas, aproximando a volumetria da casa à de uma planta Prairie.

Na década de 1950, a linguagem moderna da arquitetura já estava difundida entre

os segmentos médios da sociedade. Essa estética havia se tornado objeto de desejo de parte da classe média e, ao lado de linguagens mais conservadores, passava a integrar o conjunto da cidade, ainda que em proporção bem menor. As classes médias passaram a se identificar com a linguagem modernista, erguendo suas residências em bairros

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A separação entre as áreas de serviço e sociais aparece nesses Acrópole, 1958, n. 238, p.400

dois projetos como requisitos para

o

desenvolvimento

intimidade

familiar.

da

Assim,

os espaços de trabalho são trazidos para a frente do terreno, deixando “livre” o jardim ao fundo e ainda proporcionando entrada

independente

para

empregada. Nos dois projetos, as

dependencias

de

serviço

configuram empenas cegas na fachada da casa.

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Acrópole, 1956, n. 215, p.426


jardins surgem na esteira desses processos: Jardim América, Alto de Pinheiros, Sumaré, Pacaembu, Morumbi, numa espécie de subúrbio abrasileirado.

Os ideais da domesticidade norte-americana foram, então, transportados para cá,

sofrendo um conjunto de transformações que vai aos poucos definindo um novo tipo de residência que deveria adaptar-se ao terreno, com garagem abaixo do corpo principal da casa; ter tamanho adequado ao morador, mas com ambientes amplos; apresentar integração com os jardins, utilizados como área de lazer, possuir equipamentos modernos que facilitariam o conforto (JANJULIO, 2015, p. 97)

Essas características vão sendo agregadas à elementos típicos da linguagem

modernista: o teto plano, a geometria bem definida e horizontal, as rampas, os pilotis, e uma profusão de outros elementos que, pouco a pouco, vão se tornando banais e, algumas vezes, clichês, como aponta o arquiteto Luis Saia: Com efeito, as cartas do atual baralho são poucas e fáceis, eficientes e rendosas: meia dúzia de soluções formais e algumas palavras de poder mágico: ‘brise-soleil’, ‘colunas em V’, ‘pilotis’, ‘’amebas’, ‘panos contínuos de vidro’, ‘moderno’, ‘funcional’ etc. (SAIA, 1987, p.200 apud JANJULIO, 2015, p. 179)

Em relação ao programa da casa, as transformações são igualmente diversas, porém

foi se conformando um agenciamento característico dos ambientes que consistia numa espécie de inversão da casa tradicional paulistana. Sob a égide da casa como refúgio, as áreas sociais e de lazer voltaram-se para os fundos, protegidas da rua pelo volume da residência e conformando um grande jardim ao fundo, que em alguns casos se distribuiu em uma sucessão de pátios.

As zonas sociais e privadas passaram, então, a voltar-se para os fundos do lote,

constituindo uma grande área íntima da família, que se conformava também com a ampla sala de estar: o living. Esse novo programa presumia uma família menos formal que viveria

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pav. superior

pav. inferior Acrópole, 1953, n. 215, p.426

Em ambas as residências, a localização das áreas de serviço num pavimento inferior da casa é apresentada como a solução do projeto. Na residência de Gregório Zolko ao lado, o arquiteto aponta que essa opção projetual garante a área para ajardinamento ao fundo. Ao contrário de outros projetos, não optou-se pela localização do serviço na frente, mas sim enterrado, sob a justificativa “do lote ser relativamente pequeno para uma residência de 600 metros quadrados”. pav. inferior

pav. superior Acrópole, 1958, n. 232, p.138

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coletivamente sobre os espaços abrangentes, sem a necessidade de muitos cômodos e divisórias. O living e o pátio interno seriam quase um único ambiente, onde se pode dar festas, ter uma reunião familiar em torno da televisão, ler enquanto o outro ouve o rádio entre tantas outras possibilidades de uma vida moderna.

Essa mudança logo acarretou outra: a passagem da área de serviço para frente

da casa, ao lado da garagem. Em conflito com o espaço do lazer que voltou-se para os fundos, os serviços foram na direção oposta: a garagem transfigurada no carport na frente da residência conformava uma barreira à visão do pátio de serviço que foi posto ao lado, junto da cozinha. Assim, criava-se um grande espaço “cego” na frente da casa, apartando-a ainda mais da rua e da cidade e consolidando a residência como refúgio.

Outra solução nesse sentido, foi a da casa em dois planos, com pilotis e térreo

livre, que conformava uma tipologia tipicamente moderna. A casa elevada em pilotis e conectada por rampas possibilitou alocar a zona de serviços no andar térreo, deixando o pavimento superior livre de qualquer interação com essa área. Assim, o quarto da empregada doméstica, a lavanderia e o pátio de serviços estariam no térreo e havia ainda uma conexão por escada separada da circulação comum por rampa que conectava diretamente área de serviço à cozinha.

O discurso que usualmente acompanhava a escolha por esse tipo de residência

era de que a casa “flutuava” sobre o chão e frequentemente eram utilizadas estratégias para que esse volume no térreo fosse realmente apagado, com o uso de cores ou painéis decorativos como no caso da Residência Michel Abu Jamra, conhecida como Casa dos Cavalos, em que a decoração do exterior da parede do quarto da empregada transforma o volume num plano ornamentado, alienando o conteúdo e o símbolo daquele espaço. Fica claro, portanto, que a arquitetura participa ativamente da empreitada da invisibilização do trabalho e da empregada.

O mesmo acontece na residência do Morumbi de Bratke, em que o arquiteto optou

pela adequação da casa ao desnível do terreno de modo que todas as áreas de serviço ficaram enterradas. Havia, portanto, uma orientação comum dos arquitetos modernos por

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ResidĂŞncia Michel Abu Jamra, Casa dos Cavalos

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ResidĂŞncia Oscar Americano, no Morumby


manter uma imagem imaculada da casa, num entendimento da área de serviço como algo que não fazia parte do programa: era uma área perdida que deveria ser encaixada em algum ponto no qual causasse menos ruído.

A arquitetura, ao perseguir as novas formas projetuais do momento, foi obrigada

a criar barreiras que funcionassem como filtros entre as áreas de serviço e as áreas sociais, que alargavam-se. A orientação da área social da casa para os fundos necessita, portanto, de mecanismos que a separe do pátio de serviço. Quando não se manifesta nesses dois últimos já mencionados, não resta outra opção a não ser a edícula. Ainda que carregue significados simbólicos profundos que a relacionam à senzala e escancaram o conservadorismo da sociedade brasileira, esse volume persiste sobre a quase maioria dos projetos da década de 1950 apresentados na revista Acrópole.

A sua presença ao lado da principal área de intimidade e sociabilidade da família

coloca a necessidade de barreiras que a apaguem. Alguns desses obstáculos são paredes, outros elementos vazados, outras são vegetais. Não importa a forma, os limites representam a necessidade de a casa manter-se performática em relação ao trabalho: tirar do campo de visão é ignorar sua existência.

As barreiras, a transferência para frente ou o aterro não demonstram somente o

apagamento do espaço, mas também do corpo que o ocupa. A atuação da empregada é condicionada a esses mecanismos de apagamento desde o momento que adentra à casa pela circulação exclusiva até o momento em que deve transpor essas barreiras para limpar a sala, o quarto do patrão ou cuidar das crianças. As barreiras pressupõem um caminho de exercício do trabalho.

A imagem da casa-refúgio vem imediatamente acompanhada do fetiche do não

trabalho. O movimento de introversão da casa e o apagamento das áreas de serviço são, em realidade, parte do mesmo mecanismo arquitetônico de mediar as formas de sociabilidade modernas e o ideal da domesticidade, ao qual a presença da empregada doméstica é sempre um entrave. A função da arquitetura nesse sentido torna-se a de apaziguamento dessas tensões: esconder as áreas de serviço, separar circulações, articular filtros entre as

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Acrópole, 1955, n. 200, p.365

Acrópole, 1956, n. 208, p.140

Nas três residências, a área de serviço é colocada como um elemento que deve estar apartado da intimidade familiar. Na residência de Aluisio da Rocha Leão, está diretamente colocada empregada

com

espaço

da

domésitca

e,

por isso, independente. Na Residência da Aclimação, sua separação do restante da casa é alçada a condição de partido, e na de Rubens Carneiro Viana, é o entreposto entre a casa e a rua, que garante a casa como refúgio. Acrópole, 1953, n. 178, p.351

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áreas sociais e de serviço, para assim atenuar o conflito inerente à presença do trabalho na casa.

Enquanto a racionalização e o higienismo atuam como mecanismos imateriais na

resolução desse conflito, a arquitetura se apresenta como um instrumento brutalmente material. A arquitetura condiciona vivências, interações, movimentos e percursos. O seu papel, sob a perspectiva de apagamento do trabalho, é justamente o oposto: é criar os espaços invisíveis, os entraves à atuação, ao convívio, ao diálogo, é, portanto, fazer das pessoas invisíveis também. É produzir uma arquitetura do que não é visto, quase como num jogo de ilusão de ótica. É o exercício de esconder, de se fazer não ver tanto corpos como espaços.

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Mulheres: patroa e empregada

A casa, a partir da figura central da empregada doméstica nesse conflito, se

configura como cenário de um precário equilíbrio entre mundos desiguais e contrastantes. O doméstico, como o lugar feminino por excelência, é tensionado pelo convívio de duas mulheres responsáveis pelo lar que dividirão terrenos comuns enquanto mulheres e distantes enquanto classe e raça. Várias diferenças se entrecruzam no doméstico: diferenças de classe, de relações familiares, de comportamentos culturais, de experiências individuais, de dimensões do público e do privado. E finalmente de gênero, compartilhado, mas diferentemente e desigualmente vivenciado (ALMEIDA, 2001, p. 163)

A presença do trabalho corporificado na empregada doméstica coloca à prova a

domesticidade moderna e seus valores. A empregada carrega consigo para dentro do lar uma série de categorias avessas ao ideal doméstico: a esfera pública, o trabalho, a sujeira, a desigualdade, a escravidão, e, sobretudo, a figura de uma estranha, indesejada, porém necessária.

A própria concepção da casa como universo essencialmente privado é questionável

tendo como ponto de partida sua presença. Não somente pela presença da empregada, a linha pública perpassa o lar de diversas maneiras, inclusive na própria conotação das áreas sociais: o living, o jardim, a entrada social, são lugares que preveem a família e a casa como lugar de exibição à sociedade. Mais profundamente, o tensionamento da casa como domínio exclusivo do privadose faz ver também na própria presença de criados em resposta à aversão ao trabalho braçal advinda de séculos de escravidão. As empregadas domésticas refletem o imbricamento dessas duas esferas desde tempos coloniais, passando pelos anos 1950 e até os dias atuais:

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Poderíamos supor também que não há um domínio estritamente privado. Principalmente em uma sociedade que tem, estruturalmente presente em sua história, unidades domésticas compostas de relações familiares e de relações de classes desiguais. Concretamente servos, escravos domésticos, empregadas domésticas (ALMEIDA, 2001, p. 94)

O lar como o lugar essencial do desenvolvimento do privado, mas principalmente,

da privacidade da família e do indivíduo, é desafiado pela empregada doméstica, vista enquanto uma figura estranha no universo íntimo familiar. Como maneira de mascarar essa contradição, transforma-se, na esteira do patriarcalismo escravocrata brasileiro, a relação de trabalho em relação familiar: a empregada passa a ser “membro da família”. Essa transformação é um mecanismo ideológico no sentido de adequar a relação para que ela seja possível de ser enfrentada: é a condição de membro da família que permite que a empregada seja aceita dentro da casa e compartilhe o cotidiano da família. (ALMEIDA,2001)

Essa anulação do conteúdo profissional do emprego doméstico aparece em

passagens da revista O Cruzeiro que valorizam a fidelidade da empregada à família:

“-quem é Sebastiana? - Foi nossa empregada, muito tempo - informa Eloisa - sabe Carlos, que ela ficou conosco até desfazermos a casa da Rua Gago Coutinho? - E o filho dela? As irmãs contam que hoje o filho de Sebastiana, doméstica fiel e amiga de muitos anos, é sargento e tipógrafo (...) A lembrança da antiga empregada faz com que comente: - Vocês precisam arranjar uma pessoa para ajudar em casa. Como vai ser?’ - Difícil” (O Cruzeiro, 1958, p. 9) Em outras passagens, a dona de casa fala sobre a empregada:

“Mary Burke, moça de excelente caráter e alta inteligência que se tornara criada e amiga devotada durante meu período de dificuldades” (O Cruzeiro, 1956, p. 40) “A arrumadeira, Maria José, tão fiel e tão antiga que era considerada a família” (O

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Cruzeiro, 1951, p. 22) e também em “uma pessoa de absoluta confiança” (O Cruzeiro, 1951, p.118). Essa circunstância coloca a relação profissional do emprego doméstico num campo ambíguo, que resulta na irregularidade do trabalho, como será analisado mais a frente.

Ao mesmo tempo, a presença da empregada doméstica enquanto elemento estranho,

faz da invisibilidade a sua condição de aceitação. Quanto menos se puder notar a sua presença, mais facilmente se dão as relações, principalmente entre patroa e empregada. Na revista O Cruzeiro diversas são as passagens em que a empregada é representada como uma pessoa que interrompe a vida cotidiana:

“a empregada interrompeu a conversa, vinha servir o cafezinho”(O Cruzeiro, 1958, p. 76) “Rimos muito enquanto jantávamos. Não havia ninguém. Eu dera folga a empregada” (O Cruzeiro, 1950, p.55)

Em histórias policiais, a empregada e os outros criados da casa são sempre usados

como testemunhas aos acontecimentos:

“as várias testemunhas que foram: a senhora Ivone, seus três filhos, uma empregada e seu Marcio, mecânico” (O Cruzeiro, 1958, p.55) “passemos a terceira testemunha, D. Maria, costureira, vizinha do Coronel. Ouvira da criada do mesmo que o seu patrão dizia ter pensa do que ia suceder a Amorim Garcia” (O Cruzeiro, 1956, p.25) Essas passagens demonstram a percepção da empregada doméstica como alguém que está dentro e fora do convívio familiar, que o testemunha, mas não é parte integrante dele, a despeito da narrativa que a coloca como membro seleto daquele grupo.

O universo doméstico não só como lugar da privacidade, mas principalmente como

lugar definidor do feminino, coloca patroa e empregada numa relação contraditória sob a qual compartilham o domínio comum do lar. A empregada doméstica é uma figura que ameaça, na sua condição de mulher, a soberania da patroa, pois poderia vir a substitui-la, fosse no seu papel de mãe, fosse no de dona de casa e esposa. Também por essa razão, então, a relação entre patroa e empregada será mediada por diversos limites, de ordem

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simbólica e material. A patroa procurará diferenciar-se na sua condição de mulher, relegando à empregada somente a sua condição de trabalhadora. Será exercido um controle sobre suas roupas, uso de maquiagem, relacionamentos, sexualidade, entre outros que, por fim, acabam por negar a condição de pessoa da empregada. “Quais são os limites do desempenho do trabalho e dos papéis? A leitura simbólica das tentativas desta delimitação indicam que é como se houvesse uma pergunta que ambas, patroa e empregada se fizessem incessantemente: qual o meu lugar e qual o seu lugar aqui dentro?” (ALMEIDA, 1982, p. 188) Na passagem a seguir, o uniforme é aquilo que define a empregada em oposição à patroa:

“ah, sim, nisso ela [patroa] era intransigente, não admitia empregada sem uniforme pois achava que isso diminuía sua importância” (O Cruzeiro, 1951, p.17) Conflitos entre a relação da empregada com a família, principalmente com o marido também aparecem na revista revelando o medo da patroa em ser substituída:

“Um tipo ordinário é o que você é, nojento! Agora eu vi, eu vi você beijando a criada, esta sonsa aí! Negue! Negue se é homem! Se merece as calças que veste!” (O Cruzeiro, 1954, ed. 08, p. 101) A representação da empregada, que pode ser vista na próxima página, muito mais feminina do que a patroa revela a expressão da sua condição de mulher, em detrimento da dona de casa.

A negação da condição de pessoa à empregada, aparece com muita potência

também nas propagandas de eletrodomésticos brasileiros. A publicidade se vale da presença indesejada da empregada e utiliza de comparações que equiparam sua pessoa à uma máquina. Segundo os anúncios, o eletrodoméstico faria o trabalho da empregada doméstica, porém sem o inconveniente da sua presença. A máquina, nesse caso, apresentase como um conciliador das tensões geradas pela presença da empregada doméstica, ou melhor, pelo próprio trabalho doméstico reificado nela.

As propagandas transformam a empregada doméstica num conjunto de atributos:

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O Cruzeiro, 1951, ed. 27, p. 108

O Cruzeiro, 1953, ed. 03, p. 37)

O Cruzeiro, 1954, ed. 08, p. 101 As

propagandas

da

Walita

de

diversos

eletrodomésticos faziam uso desse discurso que aludia à substiuição do trabalho da empregada doméstica: “essa criada elétrica me ajuda na copa e na cozinha”; “quando a empregada está de folga, o meu liquidificador Walita fica de plantão”;“tão útil como uma boa empregada”; “essa criada elétrica bate bolos para mim. A batedeira elétrica Walita liberta a dona de casa do cansativo trabalho de bater bolos”. As propagandas da máquina de lavar Ritemp dizem: “a senhora não precisa mais depender das impontuais lavadeiras. Ritemp é a criada dócil que a senhora terá a seu serviço por muitos anos - comodidade, ergonomia e higiene - a grande conquista da mulher moderna”

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O Cruzeiro, 1954, ed. 06, p. 44


lavar, passar, bater, e o eletrodoméstico é capaz de fazer tudo isso, sem o esforço necessário para a tradicional realização dessas tarefas que levou a dona de casa a contratar uma empregada em primeiro lugar. Assim, a máquina a substitui: é a criada dócil, elétrica, pontual, útil. O eletrodoméstico por si só, torna-se um mecanismo para lidar com o constrangimento do trabalho no lar.

A conversão da figura da dona de casa em patroa significa que o seu papel

como responsável pelo lar se manifesta no gerenciamento das tarefas e da empregada. A racionalização pela qual passou o lar levou também à uma oficialização dos saberes, como já foi mostrado nos capítulos anteriores. A empregada passou a estar subordinada aos ensinamentos da patroa, na forma de disciplinamento. Na revista, essa relação está expressa de diversas formas, principalmente nos discursos das patroas:

“o que queria você com essas empregadas de hoje? A boa dona de casa faz a boa empregada” (O Cruzeiro, 1957, p. 48) “vocês não podem pretender que suas criadas conheçam as regras de etiqueta. Ensinelhes que não se grita de um aposento ao outro quando são chamadas. A criada deve apresentar-se onde você está e perguntar-lhe o que deseja” (O Cruzeiro, 1955, p.90).

A revista vai apontando por meio dos diálogos entre personagens ou em colunas

de etiqueta, qual é o papel da dona de casa enquanto patroa e qual o papel da criada. Dessa forma, são estabelecidos as diferenças entre mulheres no lar na forma da hierarquia, frisando a posição de poder da patroa como disciplinadora. Mais do que isso, como domesticadora da empregada que deve adequar-se ao cotidiano doméstico do trabalho e da família segundo os gostos e ensinamentos da patroa.

A revista contém uma seção de humor intitulada pif-paf, na qual são publicadas

tirinhas de conteúdo cômico, mas que na maioria das vezes estão carregadas de preconceitos de toda sorte. Em uma delas fica clara essa relação hierárquica entre patroa e empregada: “palavras que precisam ser inventadas: “servagem = criada indomesticável” (O Cruzeiro, 1953, p.118). É comum que o papel esperado da empregada apareça de forma pejorativa nas páginas da revista, como uma função que não está e nunca será cumprida.

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Nesse caso, a criada que jamais será domesticada, permanecerá, apesar dos esforços da patroa, uma selvagem. A domesticação da empregada seria, nesse sentido, adequá-la segundo o papel que é esperado que ela desempenhe no lar, ou seja, segundo as regras da patroa. Assim, além da definição da domesticidade pelo doméstico, para a empregada, será definida pelos hábitos da patroa.

Sob essa análise é possível acrescentar uma outra camada de significado para

a compreensão da domesticidade não como uma construção finita, mas sim como um processo histórico, construído e reconstruído pelos operadores da domesticação, como sugere Beguin. Na sua compreensão, o limite do universo doméstico não seria mais dado pela arquitetura, ou ao menos, somente pela arquitetura, mas por tudo que permite operar a domesticação do universo (BEGUIN, 1991, p. 52) Entendendo o feminino como doméstico por si próprio, como coloca Suely Kofes (2001), o disciplinamento da empregada poderia ser ele próprio um operador da domesticidade, na medida em que seu corpo e sua atuação se adequariam ao universo do lar na busca pelo apaziguamento das tensões provocadas pela sua presença. A domesticidade, em conflito pela presença da empregada doméstica, reinventa-se através do disciplinamento enquanto operador na construção desse universo.

O relacionamento hierárquico estabelecido entre patroa e empregada se dá através

de uma relação baseada no mando e na obediência. Ambas mulheres detém o domínio do saber doméstico, porém, uma para mandar e outra para obedecer e essa forma de funcionamento se estabelece desde a socialização da patroa enquanto mulher: “O cotidiano familiar das classes superiores funciona incorporando mulheres de classes inferiores, e o universo doméstico é recriado nos termos de uma relação mando/obediência que possibilita que mulheres vivenciem seu papel conotado por esta incorporação. A socialização da mulher empregada-doméstica é o exercício do seu papel sob mando. De outra mulher.” (ALMEIDA, 2001, p. 190)

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A persistência de referências entre a empregada doméstica e a escravidão também

é uma constante no discurso da revista e permeia, de maneira geral, as apreensões da sociedade acerca do emprego doméstico. Os quatro séculos de escravidão e a abolição tardia no Brasil acabaram por conotar o trabalho manual com um significado aviltante e, mesmo no regime de assalariamento, a população negra sustenta a representação degradante do trabalho braçal. Na revista, diversas vezes negra ou preta aparecem como sinônimos de empregada ou criada:

“’está é a nossa babá, D. Palmira. É a mãe preta desses meninos, muito querida por nós’ O olhar esverdeado examinou a criada e uma espécie de sorriso flutuou nos lábios finos. Mas a preta não lhe devolveu a gentileza e afastou-se para atender ao pedido do senhor” (O Cruzeiro, 1950, p. 10)

“A verdadeira dona de casa era a preta Tertuliana. Alta e ossuda, com um jeito masculino e a voz muito grossa, sempre ativa e decidida, cuidava das crianças. Com seus dedos ásperos e rudes, vestia-lhes (...) dedicava-se a eles o dia inteiro.” (O Cruzeiro, 1950, p.55)

A sustentação do passado escravista na figura da empregada, se manifesta também

no medo da patroa em ser roubada. Além do atributo não pertencente que caracteriza a empregada, na referência à escravidão, diversos outros serão atribuídos a ela, carregados de preconceitos de raça e classe. Na revista, são inúmeros os diálogos em histórias que tratam desse tema:

“Há pouco tempo uma criada que fazia a limpeza da casa roubou-lhe todas as joias, inclusive um anel de brilhante valendo mais de dez contos” (O Cruzeiro, 1951, p.10)

“uma doméstica, empregada na residência do Oficial-médico da Marinha, era procurada pela delegacia de roubos e furtos, por suspeita de desvios de objetos da casa do patrão. Localizada pela polícia, o investigador a interrogou para saber suas relações. A empregada, no entanto, era volúvel e tinhas diversos casos sentimentais em sua vida. O investigador se viu forçado a visitar todas as casas de seus amantes” (O Cruzeiro, 1952, p. 16)

Como vimos, o espectro da escravidão conota um significado ainda mais pejorativo 69


ao trabalho doméstico, já desvalorizado como trabalho de mulher, o é também como trabalho de negro. O discurso da revista se coloca sempre no sentido de reforçar essa desvalorização, geralmente no discurso das patroas que se comparam à empregada de maneira pejorativa:

“mas esse rapaz é de condição muito humilde minha filha! ora, criar uma filha com todo carinho e sacrifício para dá-la depois a um sujeito sem eira nem beira que a fará levar uma vida de criada!” (O Cruzeiro, 1952, p.45) “chegou à conclusão que ela não gostava dele porque não era filho de Gilberto e sim de uma mulher ordinária como a própria criada” (O Cruzeiro, 1950, p.85) ou em: “requereu divórcio alegando que seis semanas depois de seu casamento, o marido declarou que ela não deveria mais considerar-se sua esposa e sim apenas sua criada” (O Cruzeiro, 1954, p.20)

“Ela [patroa] logo começou a implicar com a criada, reclamando que tinham posto água no leite: ‘a gente paga um dinherão pra tudo quanto é negra comer e ainda por cima roubam a gente!’” (O Cruzeiro, 1951, p.83)

A empregada doméstica é, portanto, uma figura que coloca em xeque os preceitos

da separação público e privado e escancara a existência do trabalho produtivo dentro da casa. Desafia a domesticidade e o domínio da patroa sobre o universo do lar. É a presença estranha que só é tolerada quando não percebida pela família: além de apagado o trabalho doméstico através dos mecanismos da arquitetura, é apagado também o seu corpo como usuária desse espaço. Constroem-se na casa lugares nos quais ela pode estar porque não se é vista e lugares que podem existir desde que não sejam vistos.

A empregada doméstica é a pessoa que corporifica o trabalho doméstico e todas

as categorias degradantes que advém da sua desvalorização enquanto trabalho feminino e trabalho escravo. Frente à essa condição, a empregada é sempre uma mulher que não teve outra opção de emprego a não ser o trabalho doméstico na casa de outros. Geralmente uma mulher jovem, solteira, que vê no emprego doméstico uma possibilidade de moradia e alimentação.

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Uma carta publicada na revista trata precisamente desse cenário:

“Rogo-lhe que esta carta te encontre com saúde e felicidade. Vou bem graças à Deus com o meu filho. Já sai da Santa Casa, estou na casa da minha patroa e espero sua decisão - se você vai ficar comigo ou não - porque não posso ficar na casa dos outros com criança” (O Cruzeiro, 1951, p.67) que revela que a empregada doméstica vive na casa de sua patroa como alternativa a habitação, que alcançaria se pudesse se casar.

A questão da moradia é mais um ruído que também vai se colocando sobre a

casa e as relações entre família e empregada. O déficit habitacional nos anos 1950 já era considerável e vinha crescendo nos últimos anos, o que tornava atrativa – ou pelo menos aceitável – a possibilidade de se morar no lugar do emprego para as empregadas domésticas. O morar, cada vez mais, aproximava-se de um caso de calamidade, que se revelava no espraiamento da cidade através das periferias.

O quarto da empregada, frente a esse cenário, vai tomando a forma de uma pequena

parte da periferia dentro do lar. Um canto na casa que, por pior que fosse, precisava estar lá, o mais afastado possível do corpo principal da residência. O emprego doméstico, nesse sentido, é uma alternativa não só à baixa inserção da mulher no mercado de trabalho, mas também à precariedade urbana que essa mulher era obrigada a enfrentar. A vida cotidiana e o trabalho confundem-se e tomam a mesma forma da rotina. Dormir na casa de seus patrões, vai conferir mais um agravante ao problema da irregularidade do emprego doméstico.

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Desvalorização do trabalho doméstico

Já foi tratado, nos primeiros capítulos, do cenário de industrialização e metropolização

em São Paulo nos anos 1950. Eram tempos de euforia em que a capital paulista era a cidade que mais crescia no mundo. Não só no campo econômico, mas também cultural, a cidade e seus habitantes encontravam um novo mundo, de novos cinemas, bares, teatros e até mesmo a inauguração do parque Ibirapuera do renomado arquiteto Oscar Niemeyer na ocasião do IV Centenário de São Paulo.

No que tange o trabalho, mas também a condição social da mulher, o desenvolvimento

industrial não significou necessariamente a sua inserção no mercado de trabalho formal. O que se demonstra, na realidade, é a expulsão das mulheres das forças produtivas, seja no campo, na casa ou no mercado de trabalho. O desenvolvimento industrial em São Paulo acarreta a absorção de mão de obra em gera também é a causa da imigração e do êxodo rural. No entanto, a força de trabalho feminino possui características singulares, que advém da própria naturalização do gênero e que a coloca na condição de reguladora da atividade econômica, mas não a partir da sua apropriação como mão de obra e sim, da sua expulsão. Esse é um processo essencial que se utiliza da desvalorização do trabalho feminino e doméstico como chave para o desenvolvimento econômico. O cenário de crescimento da capital paulista precisa ser entendido também a partir dessa perspectiva.

A presença da mão de obra feminina no mercado de trabalho é objeto do estudo

que Felícia Reicher Madeira e Paul Singer desenvolvem ao realizar um panorama do emprego feminino no Brasil de 1920 a 1970, no qual procuram “determinar de que maneira as mudanças tecnológicas atuaram na economia e quais as suas consequências sobre a divisão social e sexual do trabalho” (MADEIRA & SINGER, 1973, p.7)

Como fonte, os autores utilizaram Censos Demográficos, Censos Agrícolas e

a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio e pontuam que surgem divergências

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dependendo do que é considerado como sendo a principal atividade feminina. No percurso temporal do recorte, os parâmetros para realização dos censos mudam, resultando, na maioria das vezes, na subestimação do número de mulheres ocupadas na força de trabalho. No Censo Demográfico, por exemplo, o trabalho exercido paralelamente às ocupações domésticas é considerado uma subocupação. Assim, torna-se relevante o questionamento do próprio dado como fonte documental, compreendendo que mesmo a informação mais técnica possui, por vezes, motivações de ordem ideológica, colocando a fonte fora de uma categoria natural, mas sim entendida como produto histórico.

Vale ressaltar que o trabalho referido se utiliza de dados relativos à ocupação agrícola

e que essa é uma fonte determinante para flutuação do emprego feminino no período analisado. Ainda que São Paulo crescesse em ritmo impressionante, o Brasil mantinha-se um país essencialmente agrário. Assim, o trabalho no campo é fundamental tanto para o país, mas principalmente para as mulheres, uma vez que é um trabalho – nesse momento dos anos 1950 – que conta majoritariamente com baixa inserção de tecnologia. Na pequena e média propriedade, a economia de subsistência permite, ao mesmo tempo, a autonomia feminina e a sua contribuição na atividade produtiva, que é considerada no cálculo do emprego feminino.

Assim, grande parte das disparidades da participação feminina na produção está

relacionada com os processos no campo: de extensão ou diminuição da pequena e média propriedade ou do latifúndio. O alargamento desse último vem sempre acompanhado da especialização e da tecnologia, que resultam na diminuição da participação da mulher no emprego: o trabalho feminino na agricultura, em geral, é combinado com tarefas domésticas, soe ser mais fácil o aproveitamento da mulher nas pequenas propriedades, onde são mais frequentes certas atividades, como a criação de pequenos animais e a horticultura, em contraposição às grandes que, em geral, são mais especializadas, dedicando-se a um numero limitado de cultivos em grande escala (p.18)

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Esse processo se faz visível nas variações do emprego feminino entre 1940 e 1960.

Na década de 1940, o número de mulheres na força de trabalho diminui 2% e isso se deve, principalmente, à sua redução de 10,3% na agricultura, que por sua vez, está ligada a concentração da propriedade fundiária, com mais de 90% do acréscimo da área ocupada sendo incorporado às grandes propriedades. Na década de 1950, o número de mulheres ocupadas na força de trabalho aumenta 51%, que em parte está relacionado ao aumento do emprego feminino na agricultura que cresce 44,9%, relacionado também a multiplicação das pequenas propriedades, que quase dobraram no período. Ao longo desses vinte anos, no entanto, as mulheres constituíram sempre um terço do total de trabalhadores nãoassalariados.

A industrialização, segue uma lógica parecida: a medida em que se substitui a

produção artesanal pela fabril, a mão de obra feminina vai sendo substituída pela masculina “já que o afastamento da mulher encontrava obstáculos tanto objetivos (a necessidade de cuidar das tarefas domésticas) quanto subjetivos (preconceitos contra o trabalho da mulher fora do lar)” (MADEIRA & SINGER, 1973, p.26)

Na década de 1940, o número total de mulheres empregadas no Setor Secundário

aumentou vigorosamente em 83%, porém de maneira desigual entre o Secundário I, na fábrica, que aumentou 31,9% e no Secundário II, de produção doméstica artesanal, que diminuiu 37,5%. O aumento do emprego feminino no setor fabril advém da absorção da mão de obra feminina na indústria têxtil e a sua diminuição na produção artesanal advém também da sua substituição pela fabril, mas principalmente do viés do censo demográfico, cujo método de pesquisa acarretou numa subnumeração das mulheres que trabalhavam por conta própria.

Na década de 1950, a intensa concentração de capital industrial promoveu a

expansão da indústria pesada como a metalúrgica e a fabricação de material de transporte, acarretando a decadência da indústria têxtil. Em consonância com esse processo de redirecionamento da indústria, a participação das mulheres cai tanto no Secundário I, em que a mão de obra masculina passa a substituir a feminina, e no II em que a produção

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artesanal doméstica decresce ainda mais. Assim, o total de aumento da inserção de mão de obra feminina no secundário cai para 29% de 1950 a 1960.

O Setor Terciário, por fim, é o que detém a maior capacidade de absorção da força de

trabalho feminina. Por abarcar uma grande diversidade de profissões, pode ser dividido em três categorias: de produção – comércio, finanças, transporte, comunicações; de consumo individual e de consumo coletivo. Progressivamente as mulheres vão adentrar o mercado de trabalho na categoria de serviços, ainda que em 1950, o Censo Demográfico não tenha levado em conta as mulheres que combinavam atividades produtivas e domésticas, corroborando novamente para subestimação do número geral na categoria de produção.

O crescimento da participação feminina nesse setor, assim como no de consumo

coletivo está diretamente relacionado à expansão urbana e o aumento do número de estabelecimentos comerciais na cidade. O emprego feminino crescia nesses ramos e a mulher passa a exercer profissões liberais como enfermeira, professora, médica, ou assistente social, integrando-se a atividade produtiva coletiva.

O maior contingente feminino empregado no terciário, no entanto, está na categoria

de consumo individual, sob a forma do emprego doméstico. Tanto o trabalho quanto o emprego doméstico, são considerados sob a visão dos autores, mas também dos censos, como atividades não produtivas e, por isso de consumo individual, na medida em que não produzem um valor coletivo para o conjunto da sociedade. Essa noção, porém, será questionada mais a frente, levando em conta o caráter estruturante da reprodução da força de trabalho que constitui o trabalho doméstico.

A proporção de mulheres ocupadas em serviços de consumo individual cresce 71%

de 1950 para 1960, muito superior ao incremento do emprego feminino geral, o que deve ter contribuído para que um número ponderável de mulheres passasse da situação de desempregadas ocultas a empregadas domésticas, ou, em outros termos, elas deixaram de se dedicar a tarefas domésticas unicamente em suas próprias casas para passar a realiza-las em casa de outros, em troca de sustento e

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salário (p. 35)

Os dados revelam que, na cidade, a maior chance de integração da mulher nas

atividades produtivas é como empregada doméstica, excluindo-a do processo de produção social e relegando-a a ocupações naturalizadas como femininas. Em 1960, quatro quintos das mulheres economicamente ativas se ocupavam no emprego doméstico ou na agricultura de subsistência. O processo de industrialização, portanto, não ofereceu maiores oportunidades de trabalho no mercado formal às mulheres, sobretudo as de menor poder aquisitivo. Quanto à sua participação na indústria, ainda que tenha existido em um certo período na década de 1940, as mulheres vão sendo progressivamente expulsas na medida em que o desenvolvimento industrial e a incorporação de mão de obra masculina avança.

Sobre esse processo de exclusão da mulher da força de trabalho, Heleith Saffioti

(1976) também pontua que em 1950, 90% do total das mulheres economicamente ativas dedicavam-se aos serviços domésticos. O invólucro ideológico das sociedades capitalistas induz a crença de que o número de mulheres economicamente ativas aumenta à medida em que se desenvolve a sociedade social e economicamente. Na verdade, o movimento real é inverso (SAFFIOTI, 1976, p. 328)

A autora atenta não somente para o panorama do emprego feminino nas primeiras

décadas do século XX, mas também fornece as razões para essas flutuações. Segundo Saffioti, de maneira geral no sistema capitalista, o desenvolvimento industrial significaria uma absorção da mão de obra feminina num momento inicial. Em função da desvalorização do trabalho feminino, a mulher poderia ser mais explorada através do pagamento de menores salários, possibilitando um acúmulo de capital ainda maior – necessário à essa fase de industrialização incipiente. Conforme avança o desenvolvimento, a inserção de tecnologia acabaria por resultar na substituição da mão de obra feminina pela masculina– o que, ao mesmo tempo, manteria a condição desvalorizada do trabalho feminino, permitindo que este fosse mobilizado em outros momentos de maior acumulação.

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Nos países periféricos, no entanto, esse processo não se dá da mesma forma.

Por sua industrialização tardia, o momento inicial de baixa tecnologia e absorção da mão de obra feminina não se efetiva. Já de início, a tecnologia é importada dos países centrais, resultando em um baixo aproveitamento da mão de obra. Assim, no processo de industrialização dos países de economia dependente, no qual se inclui o Brasil, há sempre um grande contingente de força de trabalho não absorvido, fazendo com que a participação feminina seja ainda menor.

Os dados apresentados por Felícia Madeira e Paul Singer confirmam essa

elaboração. Ainda que tenha havido uma absorção da mão de obra feminina na década de 1940, essa se deu em função da especialização da indústria no setor têxtil – notadamente de caráter feminino, aproveitando-se da naturalização para legitimar a exploração das mulheres através de baixos salários. O fato de que na década de 1950, quatro quintos das mulheres se dedicavam a atividades que estavam à margem da produção social também corroboram com essa análise, uma vez que a mulher não se insere no mercado de trabalho industrial e secundário, e há uma diminuição na sua participação no emprego fabril.

Existe, ainda, um componente de primordial importância para compreender os

processos que se dão na década de 1950 em São Paulo: a divisão sexual do trabalho - desde as suas raízes na separação entre as esferas público e privada, até as suas consequências sobre o assalariamento e, mais a frente, à urbanização.

Assim como o culto à domesticidade, a figura da dona de casa que o acompanha

é resultado do processo de divisão sexual do trabalho. A saída do trabalho da casa e a atribuição da mulher como responsável pelo lar pode ser também entendida como a separação entre as atividades produtivas e reprodutivas, que vem acompanhada da separação de gênero. O homem passa a ser atribuído ao mundo público-produtivo-do trabalho e a mulher ao mundo privado da reprodução. (FEDERICI, 2004)

A divisão sexual do trabalho tem dois princípios: o de separação – que designa

trabalho produtivo ao homem e trabalho reprodutivo, ou doméstico, à mulher – e o de hierarquização, no qual o trabalho do homem vale mais. E esses dois princípios são

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aplicados através de uma ordem ideológica naturalista que legitima a desvalorização do trabalho feminino como condição inata à vivência feminina, natural, portanto. (HIRATA, 2004; KERGOAT, 2007; AVILA, 2009, FEDERICI, 2004)

O momento da consolidação da modernidade na passagem do século XIX para o

XX se configura não somente como o da separação das esferas público e privada, mas também da divisão sexual do trabalho. Será essa divisão responsável pela conformação da domesticidade como princípio legitimador que impõe sobre a mulher a responsabilidade pela casa, os filhos, o marido e o trabalho doméstico, ou seja, pela reprodução. De modo geral, no momento em que a industrialização absorveu várias das atividades outrora exercidas na unidade doméstica – a fabricação de tecidos, pão, manteiga, doces, vela, fósforo - desvalorizou os serviços relacionados ao lar. Ao mesmo tempo, a ideologia da maternidade foi revigorada pelo discurso masculino: ser mãe, mais do que nunca, tornou-se a principal missão num mundo em que se procurava estabelecer fronteiras rígidas entre a esfera pública, definida essencialmente como masculina, e a privada, vista como lugar natural da esposa-mãe-dona de casa e de seus filhos (RAGO, 2000, p. 591)

A narrativa da domesticidade associa trabalho doméstico e gênero feminino também

pela mobilização da correspondência entre trabalho e afetividade. A realização do papel doméstico esperado da mulher seria um ato de amor e atenção para com a sua família, de tal forma que performar a dona de casa, patroa, mãe e esposa ideal se transfigura em cuidado e carinho, que seriam qualidades inatas à essência feminina.

Em algumas publicações da revista O Cruzeiro, fica latente a insatisfação relativa a

compulsoriedade do trabalho doméstico sob responsabilidade da mulher:

“Devido a tradições ancestrais e aos deveres da maternidade, cabe-lhe [mulher] a obrigação dos trabalhos caseiros que se repetem, monotonamente, ano após ano, século após século, na mesma rotina. Ainda quando a mulher procura, fora do lar, uma outra ocupação, nem assim se liberta dos afazeres domésticos que, dentro da casa, lhe roubam

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horas que, para o marido são de repouso. Consequência: ela passa a desempenhar as duas funções a de homem, fora do lar, e a de dona de casa, dentro dele. Trabalho e canseira dobradas” (O Cruzeiro, 1951, ed.013, p.87). Esse fragmento revela que o discurso veiculado pela revista não questiona a divisão sexual do trabalho: ainda que a mulher se dedique a ocupações fora do lar, o trabalho doméstico e de reprodução continuavam sob seu encargo, tendo que trabalhar o dobro, ou seja, realizar dupla jornada de trabalho.

Essas categorias tidas como naturalmente femininas serão mobilizadas para

legitimar a progressiva expulsão das mulheres da esfera produtiva de 1940 a 1960, em consonância com a narrativa da missão da mulher no lar. O trabalho feminino fora da unidade doméstica passa a ser associado à imoralidade: o mundo do trabalho seria uma ameaça à honra da mulher e destruiria a família uma vez que ela não poderia mais dedicarse à vida doméstica. Ao negar o seu papel na reprodução, a mulher estaria negando o amor e o cuidado à família.

A revista surge como mais um canal de veiculação dessa narrativa:

“as mães que trabalham fora, em geral, chegam em casa muito cansadas. Tem uma sobrecarga de trabalho físico e mental. No escritório são os trabalhos do momento e a preocupação das crianças que ficaram em casa, muitas vezes entregues a uma empregada qualquer, sem responsabilidade” (O Cruzeiro, 1956, p.89) A mulher que dedica-se à uma atividade profissional é retratada como uma mãe e dona de casa relapsa, que relega todas as suas responsabilidades ao cuidado da empregada, até mesmo seu papel de mãe.

Saffioti argumenta ainda que a desvalorização do trabalho feminino possui uma

dimensão fundamental para a estruturação das relações capitalistas de produção. A desvalorização, aliada à naturalização, é o mecanismo que permite transformar a mão de obra feminina em trabalho potencial, e, consequentemente, em reguladores dos salários da mão de obra efetivamente empregada. Segundo a autora, a marginalização da mulher do contingente economicamente ativo coloca-a em condição de exército de reserva,

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possibilitando o rebaixamento dos salários.

Outras autoras, como Betânia Ávila (2009) e Silvia Federici (2004), sustentam que

o trabalho reprodutivo realizado pela mulher no lar na forma de trabalho não pago seria, por si só, um regulador de salários na medida em que eleva o padrão de vida da classe trabalhadora. Serviços que poderiam ser pagos ou realizados pelo Estado são feitos pela mulher disfarçados de missão ou amor e permitem que o trabalhador receba menores salários, pois não tem que arcar com os custos da reprodução. Em qualquer forma histórica da sociedade patriarcal (feudal, capitalista) um sistema de sexo-gênero e um sistema de relações produtivas operam simultaneamente para reproduzir as estruturas socioeconômicas e o domínio masculino sobre a ordem social dominante (LAURETIS, 1987, p. 216)

No retrato da São Paulo da década de 1950, é possível enxergar com clareza essa

relação entre o sistema de sexo-gênero e de relações produtivas da qual fala Teresa di Lauretis. O desenvolvimento industrial e a metropolização desenfreada da cidade significou a um só tempo o caminho rumo ao progresso e o avanço da precariedade, principalmente no campo da habitação. O crescimento urbano se deu alastrando-se desordenadamente em direção as periferias - a todo momento, lotes clandestinos cada vez mais longe do centro eram ocupados por trabalhadores que construíam suas próprias casas. Não contemplados pela provisão habitacional do Estado, acessada somente pelas classes médias, os trabalhadores tinham como única opção a produção da sua própria moradia. Seus salários eram muito baixos e não alcançavam a renda de um aluguel, conformando um ciclo que se retroalimentava: na medida em que ficavam responsáveis pela produção habitacional, seu salário poderia ser rebaixado e vice-versa (MAUTNER, 1999)

Assim, da mesma forma que há um trabalho não pago dos trabalhadores ao

construírem suas próprias moradias, há um trabalho não pago das mulheres de classes baixas no exercício do trabalho doméstico, uma vez que não havia custos com a reprodução na forma da contratação da empregada. Logo, o trabalho reprodutivo, na forma de trabalho

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não pago travestido de amor, missão ou natureza, permitia que o salário do trabalhador fosse ainda menor.

Fica claro, então, que a desvalorização do trabalho da mulher – no âmbito doméstico

– é de primordial importância para a estruturação da produção capitalista e incidiu diretamente sobre os processos que se deram no contexto do desenvolvimento paulista. O fundamento da desvalorização, por outro lado, ainda está por desvendar e se relaciona com o funcionamento do trabalho doméstico sob uma perspectiva do tempo.

A separação entre as atividades produtivas e reprodutivas determinou que o tempo

social, ou seja, o uso do tempo que tem valor, é aquele empregado na produção da mercadoria. Em contraposição, o tempo do trabalho doméstico e do cuidado relativo à reprodução foi excluído da contagem social do tempo, uma vez que não tem a mercadoria com produto. Assim, o trabalho reprodutivo, naturalizado enquanto trabalho feminino, foi destituído de valor. (ÁVILA, 2009)

A importância que o tempo tem sobre a desvalorização do trabalho doméstico é

fundamental para a compreensão de uma série de características próprias dessa atividade. A sua exclusão do tempo sociallhe confere o caráter de total disponibilidade, que significa, em primeiro lugar, no caso do trabalho doméstico, ter o uso do seu tempo voltado para as demandas do/as outros/as; mas não é só, deve implicar também, para as mulheres, em manter-se em um estado de atenção e vigília para com as necessidades domésticas e do lar. (ÁVILA, 2009 p. 106)

Se vista pela perspectiva do trabalho, a reprodução é uma atividade que está

condicionada aos desejos e vontades de quem se beneficia delas. As tarefas domésticas não têm um fim em si próprias e estão sempre sendo repetidas, num movimento cíclico e não linear. Travestidas de afeto, não são reguladas pelo tempo nem por um objetivo último, fazendo com que seu exercício não tenha final nem começo: nem quanto à atividade em si mesma, nem quanto à sua duração. O trabalho da dona de casa e da empregada é regulado somente pelos desejos da família, acarretando na exaustão no primeiro caso e na

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exploração no segundo.

Ainda que a disponibilidade da mulher no lar seja um elemento inato à própria

atividade, a busca pelo ordenamento do tempo do trabalho doméstico se manifesta de diversas maneiras. O processo de racionalização do lar, a partir da introdução do modo de produção taylorista sobre a casa, têm como questão central o ordenamento do tempo. Isso porque, o tempo social vai se sobrepondo ao tempo privado que passa a ser consumido, vendido, utilizado em consonância com a transformação do lar em unidade fundamental do consumo. (LIERNUR, 2014).

As propagandas publicadas na revista O Cruzeiro exprimem essa preocupação: a

dona de casa está a todo momento buscando ganhar tempo, economizar em uma tarefa para poder gastar em outra, com se esse tempo realmente fosse finito quando na realidade, o trabalho doméstico é cíclico e a dona de casa não tem seu tempo regulado. Paira no ar um constrangimento com a ausência do tempo social sobre o trabalho doméstico, que tenta ser resolvido pelos eletrodomésticos no uso eficiente do tempo.

A característica da total disponibilidade é transferida do trabalho para o emprego

doméstico, conferindo à uma atividade profissional a qualidade da não regulamentação do tempo. Isso se manifesta, por vezes, no fato da empregada dormir no emprego, confundindo casa e trabalho e tempo privado com tempo social. A total disponibilidade aliada a presença ininterrupta da empregada doméstica na casa dos patrões é um elemento fundamental na construção de uma relação ambígua do emprego doméstico enquanto atividade profissional. Esses fatores junto à relação familiar ou de amizade que se sobrepõe a relação de trabalho, coloca essa atividade num campo dúbio que assegura sua não regulamentação pela lei. (ALMEIDA, 2001)

A referência à escravidão aparece no discurso das empregadas como uma

metáfora para a informalidade do emprego. Dormir na casa dos patrões, não ter horas de trabalho regulamentadas, não ter um salário determinado, e não ter a garantia dos direitos trabalhistas vão se colocando como características do emprego doméstico e escancaram o caráter retrógrado dessa atividade.

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Diversas vezes na revista O Cruzeiro surge um discurso que se refere à crise das

empregadas domésticas: a cada vez maior dificuldade das patroas em encontrar uma empregada, como se houvesse um menor número de mulheres dispostas a realizar esse trabalho. Como já foi exposto nos dados apresentados anteriormente, em 1950, 90% das mulheres economicamente ativas dedicavam-se ao emprego doméstico, então é difícil de acreditar que de fato houvesse uma crise nesse setor. Mais crível, no entanto, é que as empregadas não aceitassem mais as condições exigidas pela patroa, revelando que o clichê já não se encontram empregadas como antigamente, refere-se não à ausência literal, mas a natureza da profissão: já não se encontram empregadas que aceitem às mesmas condições de irregularidade e disponibilidade como antigamente.

Em uma edição da revista há uma publicação que sintetiza os conflitos gerados

pela divisão sexual do trabalho e pela naturalização do trabalho doméstico como atividade feminina, inserindo, ainda, a empregada doméstica como parte desse embate:

“as crises domésticas com falta de empregada se repetem em todos os lares, pelo menos nas cidades grandes. Cada vez rareia mais a ajuda, ainda que bem remunerada, às donas de casa. Moças que ontem viviam em casa de seus pais sem tomar nenhum conhecimento do trabalho caseiro, agora casadas, com responsabilidades da família não sabem para que lado se virem para dar conta, sozinhas, dos múltiplos afazeres. É próprio da época em que vivemos e temos que nos adaptar a esse novo – e cansativo – ritmo de vida. Os maridos latinos, porém, parece que ainda não sofreram nenhum efeito da falta de empregada com que lutam suas esposas. Querem ser servidos a tempo e a hora... e ainda reclamam porque a mulher não lhes presta a devida atenção! Acharão por ventura que ela trabalha incessantemente em serviços rústicos, materiais, que de forma alguma aprecia, por mero diletantismo? E que não lhe presta atenção porque não lhes liga mais? Seria interessante estudar o caso desapaixonadamente. Parece que quem não ama ao outro é o marido a mulher, porque não se lembra jamais de ajudá-la. Ele nunca sai da sua rotina! Não foi ao escritório? Não trabalhou bastante hoje? Chegado em casa, é hora de descansar. A esposa, porém, essa não tem hora. As crianças precisam dela a

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qualquer momento, ou melhor, a todo momento. Quantas vezes cansada de trabalhar durante o dia, ela tem de levantar várias vezes para atender a um filhinho a noite, e no dia seguinte, não pode descansar porque a cozinheira não apareceu ou simplesmente não há cozinheira – mas a família toda precisa ser alimentada, precisa de roupa limpa e a casa tem que ser asseada. E ela trabalha, trabalha sem cessar. Não seria romântico, animador, que os maridos, espontaneamente, se dispusessem a ajudar um pouco? Essa colaboração não seria uma prova prática – e indiscutível – de amor?” (O Cruzeiro, 1955, ed.044, p.97)

Essa matéria revela, muito didaticamente, a insatisfação da mulher quanto à

compulsoriedade do trabalho doméstico tanto como atividade feminina, isentando o homem de responsabilidade, quanto como atividade não regulada pelo tempo, que não tem hora para começar nem acabar, portanto, não tem descanso: a mulher “trabalha sem cessar”. Está sendo questionada a própria divisão sexual do trabalho. No entanto, a mulher teria uma saída que não se concretiza, a ajuda da empregada doméstica. Somente na falta desta, em razão da dita crise, que a dona de casa é obrigada a realizar todas as incansáveis e infinitas tarefas do lar.

No Brasil, portanto, a divisão sexual do trabalho não é tensionada, porque a recusa

da dona de casa em realizar as tarefas domésticas não significa o questionamento do fundamento sexual da divisão, ou seja, numa demanda pelo papel do homem na reprodução, mas sim a delegação das tarefas para outra mulher, paga para realizá-lo. Assim, mantêmse a naturalização do trabalho doméstico como atividade feminina, agora sob encargo da empregada doméstica. A liberação de uma mulher se concretiza na maior exploração de outra.

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Construindo gênero

A divisão sexual do trabalho, como já foi visto, não somente separa as esferas

produtiva e reprodutiva, mas também identifica o homem à primeira e a mulher a segunda. Nessa construção de mundos opostos, a estigmatização e a naturalização são fundamentais enquanto princípios legitimadores. O trabalho doméstico, parte da reprodução ao lado do cuidado da família, é desvalorizado e ao mesmo tempo considerado naturalmente feminino, numa associação que acaba por depreciar a atividade doméstica e o trabalho da mulher a uma só vez. (FEDERICI, 2004)

A domesticidade atua para dar forma à essa legitimação segundo um ideal. A

naturalização do trabalho doméstico como feminino aparece na forma de amor e de missão cívica da mulher frente à sociedade e a à nação. A reprodução é revestida de afetividades que atuam para transformar as tarefas do lar em naturais à índole feminina. A identidade da mulher vai se conformando, portanto, sempre em relação ao mundo doméstico, e, na operação da domesticidade, o doméstico se torna ele próprio feminino.

Vânia Carneiro de Carvalho (2008) denomina a construção da identidade feminina

uma ação centrífuga, na qual a feminilidade se imprime sobre a casa e seus objetos e também é determinada a partir dela. Corpo feminino e espaço doméstico constituem uma relação fluida quase que de simbiose, em que um depende do outro para se consolidar. Dessa maneira, vai se constituindo gênero enquanto autorrepresentação e representação, não como uma categoria inerte, mas sim histórica, e, portanto, passível de mudança (SCOTT, 1989). Esta categoria é construída historicamente e mobilizando outras diferentes em cada momento histórico. Na década de 1950, a construção do gênero feminino estava calcada na imagem da dona de casa, mãe, esposa, patroa.

Ao teorizar sobre o gênero enquanto categoria historicamente construída, Teresa di

Lauretis argumenta que

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a construção do gênero ocorre hoje através das várias tecnologias do gênero (p. ex., o cinema) e discursos institucionais (p. ex., a teoria) com poder de controlar o campo de significado social e assim produzir, promover e ‘implantar’ representações de gênero (LAURETIS, 1987, p. 228)

Desta forma, é possível pensar a produção de um ideal de mulher nos anos 1950

sendo permanentemente inventada e reinventada por essas tecnologias em voga na época, nas quais a revista O Cruzeiro e arquitetura se inserem.

A revista em suas publicações, imagens e propagandas, está constantemente

estabelecendo padrões ideais de comportamento e construindo um modelo de mulher a ser perseguido. Por vezes em tom aconselhador e imperativo, colunistas determinam o que é esperado da mulher na casa e em relação a seus filhos, maridos e até empregada, como se procurou demonstrar.

Nas histórias veiculadas, o juízo de valor feito de cada personagem determinava

códigos de conduta aceitáveis ou não. Nas propagandas, afirma-se o seu papel como administradora do lar e responsável pelas tarefas domésticas, feitas com amor e cuidado. Em geral, a revista produzia a imagem da mulher como a dona de casa, mãe e esposa carinhosa com a sua família, porém firme na delegação do controle do trabalho doméstico e da empregada. Uma mulher sempre preocupada com o bem-estar daqueles ao seu redor, e que recebe suas visitas com decoro e cumpre corretamente com as normas de etiqueta, assim como garante o mesmo de sua empregada doméstica. Nos termos da época,

o trabalho de dona de casa poderá parecer inglório para muitas mulheres que preferirão talvez o trabalho num escritório ou numa repartição. Este, porém, é um trabalho árido. O trabalho do lar é fartamente compensado do ponto de vista afetivo. A esposa deverá sempre subordinar seus interesses aos do marido, procurando compreendê-lo e ajudando-o com o seu conselho e o seu estímulo a consecução do ideal (O Cruzeiro, 1953, p.111)

O próprio conteúdo da revista revela o que se é esperado da mulher. Dedicada ao

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publico feminino O Cruzeiro publica assuntos majoritariamente de culinária, cuidado com os filhos e maridos, moda e gerenciamento do lar e das tarefas domésticas, determinando que o universo da mulher está circunscrito ao mundo doméstico da reprodução, assim como devem estar também seus interesses.

Por outro lado, ao construir Mulher enquanto categoria de gênero e ao mesmo

tempo tratar do seu relacionamento com a empregada doméstica, a revista acaba por expandir essa categoria e conceituar, portanto, mulheres. Em oposição à dona de casa, a empregada doméstica é sempre retratada como uma mulher de má índole, estúpida, ignorante, ingrata e invejosa. Não possui decoro nem noção das normas de etiqueta. Sempre que lhe é perguntado algo, entende o contrário por pura estupidez. Como mulher, a construção pejorativa da empregada doméstica distende a categoria de gênero universal, e cria duas mulheres: uma para mandar e outra para obedecer, naturalmente separadas.

Na sessão pif-paf, o retrato desigual na construção da figura feminina é escancarado:

“sim, sim - dizia a empregada para a patroa que achava péssimo o aspecto da carne - eu reclamei quando ele me deu essa carne, sim senhora! Eu até disse a ele que só trazia isso porque hoje não ia jantar em casa!” (O Cruzeiro, 1952, p. 94) “Dizia a patroa - Minha filha, é um velho costume nessa casa servir o café na cama. Dizia a nova empregada: Na minha ou na sua madame?” (O Cruzeiro, 1959, p.56) “E como há moral e há moral daquela empregadinha, indagada pela patroa quando seriam suas núpcias, respondeu de nariz para o ar: ‘no dia do casamento madame, no dia do casamento. Eu não sou dessas não” (O Cruzeiro, 1950, p.87) “mole era ela. Levava horas varrendo a casa, horas para cozinhar um bife, horas para afzer uma compra na rua, horas para lavar uma peça de roupa. E quando a patroa lhe perguntou se não havia nada no mundo que ela fizesse rapidamente, respondeu:’sim senhora, eu me canso muito rapido’” (O Cruzeiro, 1958, p.23)

Como tecnologia do gênero, a revista O Cruzeiro, está permanentemente construindo

essas personagens na produção de uma narrativa da modernidade. A revista é uma representação do gênero feminino e das mulheres de mundo e experienciais desiguais

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enquanto mulheres que o compõem. A partir dela, as leitoras se autorrepresentarão na perseguição do ideal da mulher doméstica difundido. O doméstico se imprime na mulher e vice-versa, fazendo deste um espaço também generificado, ou, com outras palavras, engendrando espaços.

Sob essa lógica, a arquitetura, como produtora do espaço doméstico, também

constrói gênero na medida em que constrói o espaço feminino - e, portanto, pode ser inserida também na categoria de tecnologia do gênero.

Os espaços não são constituídos somente de sua materialidade, mas também de

cargas de representação que se dão pela arquitetura e pelos objetos, móveis e pessoas inseridos neles, assim como a atividade que se espera que seja exercida lá. O conteúdo do espaço mais artefato pode ser ele próprio generificado a partir da mobilização das categorias simbólicas: o escritório e a biblioteca são espaços tradicionalmente associados ao universo masculino, conectando o homem à atividade intelectual. Já a sala de costura, a cozinha, a área de serviço, a lavanderia, o quarto das crianças são associados ao feminino e, não por acaso, abrigam programas ligados à reprodução.

Ao agenciar os espaços na casa, a arquitetura mobiliza esses significados simbólicos

e as pessoas que os integrarão. Ao construir o doméstico, a arquitetura constrói Mulher e ao construir o espaço do trabalho doméstico, a arquitetura constrói mulheres, diferenciando patroa e empregada. Os símbolos impressos nos espaços dizem respeito também aos sujeitos pertencentes ou não aqueles espaços: da mesma forma que a imponência do escritório diz que a mulher não pertence aquele lugar, a reclusão da edícula diz à empregada que ela não pertence aquela casa.

A preocupação do arquiteto em diferenciar as três áreas: social, íntima e de serviço

vai justamente no sentido de estabelecer corpos pertencentes à cada espaço, dotandoos de significados simbólicos através da materialidade da arquitetura e assegurando que estes não se misturem. O espaço arquitetônico da casa, suas conexões e separações materiais são também a construção de cotidianos vivenciados de maneiras desiguais. A arquitetura baliza personagens, situações e, finalmente, vidas por completo.

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Além do conceito de tecnologia do gênero, Teresa di Lauretis se utiliza da concepção

do space-off do cinema, para tratar do posicionamento das mulheres feministas ao mesmo tempo dentro e fora da ideologia de gênero. O space-off é “o espaço não visível no quadro, mas que pode ser inferido a partir daquilo que a imagem torna visível”, (1987, p.237) e pode ser mobilizado segundo um ponto de vista arquitetônico. Na busca por esconder as áreas de serviço e as dependências da empregada doméstica, o arquiteto produz space-offs da vida cotidiana: o trabalho doméstico é retirado do quadro, mas infere-se que ele está lá. Assim como a empregada doméstica: o sujeito invisível.

Ao segregar as áreas do trabalho na casa, a arquitetura está segregando a existência

da empregada no universo doméstico. A construção dos espaços de serviço na casa é a determinação dos corpos pertencentes somente àquela área e não ao restante da casa. Na construção do gênero mulheres, a arquitetura determina a mulher dona de casa em sua condição de domínio do lar e a mulher empregada doméstico em sua condição de invisibilidade, na tentativa de passar desapercebida, sempre relegada ao espaço do trabalho que à define como trabalhadora e nada mais. A empregada doméstica que dorme no emprego sofre ainda mais fortemente as consequências da construção de uma identidade feminina calcada na inexistência.

Transitam sobre essa casa os corpos pertencentes e não pertencentes, balizados

pelas fronteiras materiais da arquitetura e imateriais dos significados simbólicos e sexuados dos diferentes espaços. Os espaços de serviço se transformam em arquiteturas do não visto, que abrigam mulheres não vistas também. O gênero feminino imbricado com o doméstico é construído segundo o apagamento, representado pela invisibilidade e autorrepresentado pelo silenciamento. A arquitetura enquanto tecnologia do gênero compete para construção de duas mulheres, mediando sua vida cotidiana segundo seus lugares de pertencimento. De forma análoga, a revista O Cruzeiro contribui para construir o gênero feminino de maneira desigual na oposição entre dona de casa e empregada doméstica.

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Conclusão

A década de 1950 em São Paulo foi um momento de intensas transformações:

a industrialização fazia multidões de trabalhadores migrar à cidade e a indústria abria, finalmente, o caminho rumo à modernidade. São Paulo era a cidade que mais crescia no mundo: novos museus, parques, cinemas, lojas - um clima de euforia tomava conta do imaginário dessa população. Inclusive dos arquitetos, que sonhavam em construir aqui o que se fazia nos Estados Unidos, o grande referencial dessa sociedade cada vez mais americanizada.

No plano da casa, diversas mudanças também se projetavam em direção à novas

formas de vida moderna. Os eletrodomésticos tomavam conta dos lares das classes médias que se alargavam nesse momento. Um novo ideal de domesticidade se colocava, conectando a mulher brasileira à dona de casa americana. No entanto, as relações sociais brasileiras pouco se alteraram, calcadas ainda no modo paternalista de operar, configurando dentre as classes abastadas, uma sociedade servil. A empregada doméstica, portanto, é um personagem constante na história privada brasileira, que tensiona o cotidiano familiar e o ideal doméstico.

A década de 1950 é o momento do apogeu de uma série de transformações que

vinham operando desde o salto à modernidade na passagem do século XIX para o XX. A domesticidade foi cunhada nesse momento mobilizando o arquétipo do lar como o lugar por excelência da privacidade e da mulher. Nos anos 1950, isso toma a forma do American Way of Life através da transformação da vocação da unidade doméstica para o consumo. No quesito arquitetônico, a casa também se transforma à moda norte-americana, os programas se superpõem e a residência se volta para dentro, em torno do amplo e moderno living.

As noções de privacidade nas quais se baseiam tanto a domesticidade quanto a

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arquitetura são postas à prova pela figura da empregada doméstica no lar, que invoca ruídos da ordem do conflito do trabalho doméstico e da presença do universo público na esfera privada. Sua presença transforma a casa num cenário de um frágil equilíbrio de valores desiguais. Incorporando o trabalho doméstico e tensionando o domínio da dona de casa, a empregada sofrerá constantes investidas para seu apagamento, assim como o das áreas de trabalho da casa.

No campo da arquitetura, a persistência das amplas áreas de serviço em consequência

do caráter servil da sociedade, fará da adaptação uma palavra de ordem das mudanças projetuais que se colocavam nos anos 1950, advindas dos Estados Unidos. A zona de serviço da casa será constantemente objeto de apagamento por parte dos arquitetos, através de diversos mecanismos que a apartavam do corpo principal da residência, a segregavam das zonas sociais e a retiravam do campo de visão de seus moradores. Barreiras, desníveis, aterros e painéis serão instrumentos mobilizados na busca por tornar o trabalho invisível na casa e, concomitantemente, a empregada doméstica como figura responsável por ele.

A presença contraditória da empregada doméstica no lar - necessária, porém

indesejada – é também objeto do apagamento. Através de dispositivos como circulações apartadas, barreiras e filtros, a sua existência é mascarada, fazendo com que ela sempre passe desapercebida. Mas não somente na arquitetura se manifesta esse esforço, que também se revela no seu relacionamento com a patroa e a família.

No Brasil, a figura da dona de casa se transforma na patroa e seu papel se torna o

de gerenciamento das tarefas do lar, e consequentemente, da empregada. Duas mulheres passam a atuar no mesmo espaço doméstico e feminino, condicionando um relacionamento conflituoso em que se aproximam na sua condição de gênero e se distanciam na sua condição de raça e classe. Limites e barreiras imateriais vão se construindo entre essas duas mulheres, que tem por objetivo final tornar a empregada invisível. É cerceada em seu comportamento, suas roupas, sua sexualidade, seu contato com a família, e enfim, sua vida fora do trabalho, procurando negá-la na sua condição de mulher para objetivá-la

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como trabalhadora.

Logo, o mundo do trabalho na casa, seja no âmbito arquitetônico, seja corporificado

no sujeito da empregada, é progressivamente invisibilizado na busca por manter imaculado o ideal da domesticidade e da família burguesa. A análise documental da revista O Cruzeiro e da revista Acrópole permitem revelar justamente este fato e, enquanto agentes ativos nessa narrativa, atuam para construir o gênero feminino de maneira desigual e diferenciada entre patroa e empregada.

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