Camaradas do tempo Boris Groys
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Deyson Gilbert 1.b teoria: Concentro-me para fazer parar uma escada rolante em Munich, 2001 Obra do artista brasileiro que integra a série O desconjuntamento da práxis 1.b theory: I concentrate in order to make an escalator stop in Munich, 2001 Work by the Brazilian artist from the series O desconjuntamento da práxis
arte contemporânea merece seu cia no coração da presença, e que a história, innome na medida em que manifesta cluindo a história da arte, não pode ser interpresua própria contemporaneidade – e tada como uma “procissão de presenças”, para isso não diz respeito somente a ter usar uma expressão de Derrida.1 sido feita ou exibida recentemente. Assim, a perMas em vez de analisar mais a fundo as engregunta “O que é a arte contemporânea?” implica nagens da desconstrução de Derrida, gostaria de a questão “O que é contemdar um passo atrás, e pergunporâneo?” Como poderia ser tar: O que há no presente – o De que modo o mostrado o contemporâneo aqui e agora – que nos interespresente se manifesta sa tanto? Wittgenstein já era como tal? Ser contemporâneo pode muito irônico em relação a em nosso cotidiano ser entendido como ser imeseus colegas filósofos que, de antes de ser uma diatamente presente, como tempos em tempos, repenestar aqui e agora. Nesse sen- questão de especulação tinamente se voltavam para tido, a arte parece ser verdaa contemplação do presenmetafísica ou de deiramente contemporânea te, em vez de simplesmente crítica filosófica? se é autêntica, se ela, por cuidarem de seus próprios exemplo, captura e expressa a assuntos e seguirem com o presença do presente de um modo que é radicalseu dia a dia. Para Wittgenstein, a contemplação mente inadulterado pelas tradições do passado passiva do presente, do imediatamente dado, é ou estratégias que visam o sucesso no futuro. Ao uma ocupação não natural ditada pela tradição mesmo tempo, no entanto, estamos familiarizametafísica, que ignora o fluxo do cotidiano – o dos com a crítica da presença, particularmente fluxo que sempre transborda o presente sem priconforme formulada por Jacques Derrida, que vilegiá-lo de modo algum. De acordo com Wittmostrou – de modo suficientemente convincengenstein, o interesse no presente é simplesmente – que o presente é originalmente corrompido te uma déformation professionnelle filosófica – e pelo passado e pelo futuro, que sempre há ausêntalvez também artística –, uma doença metafísi-
ca que deveria ser curada pela crítica filosófica.2 velam uma espécie de verdade oculta que transÉ por isso que acho a seguinte pergunta particende sua efetividade imediata. Elas mostram cularmente relevante para nossa discussão que é possível desvencilhar-se de muito – tradiaqui: Como é que o presente se manifesta em ções, esperanças, habilidades e pensamentos – nossa experiência cotidiana – antes que ele coe ainda levar adiante um projeto pessoal nessa mece a ser uma questão de forma reduzida. Essa verdade especulação metafísica ou 1. Jacques Derrida, Marges de la philosophie (Paris: também fez com que as reEditions de Minuit, 1972), p. 377. Traduzido para de crítica filosófica? duções modernistas fossem o português como Margens da filosofia (Campinas: Agora, parece-me que o Papirus, 1991). transculturalmente eficienpresente inicialmente é algo tes – atravessar uma fronteira 2. Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philoque nos impede de realizar sophicus, trad. C.K. Ogden (Londres: Routledge, cultural é de muitos modos nossos projetos cotidianos 1922), 6.45. Traduzido para o português com mes- semelhante a atravessar o li(ou não cotidianos), algo que mo título em 3ª edição (São Paulo: Edusp, 2001). mite do presente. impossibilita uma transição Assim, durante o período sem solavancos do passado para o futuro, algo da modernidade, a força do presente só podia ser que nos obstrui, faz com que nossos planos e detectada indiretamente, por meio de traços de esperanças se tornem inoportunos, se desatuareduções deixados no corpo da arte e, de modo lizem, ou simplesmente se tornem impossíveis mais geral, no corpo da cultura. O presente como de realizar. Vira e mexe, somos obrigados a dizer: tal era visto no contexto da modernidade em geSim, é um bom projeto, mas no momento não teral como algo negativo, como algo que deveria mos dinheiro, ou tempo, ou energia, e assim por ser superado em nome do futuro, algo que desadiante, para realizá-lo. Ou: Essa tradição é maracelera a realização dos nossos projetos, algo que vilhosa, mas no momento não há interesse nela atrasa a chegada do futuro. Um dos slogans da era e ninguém quer dar continuidade a ela. Ou: Essa soviética era “Tempo, para frente!” Ilf e Petrov, utopia é bela, mas, infelizmente, hoje ninguém dois romancistas soviéticos dos anos 1920, aproacredita em utopias, e por aí afora. O presente é priadamente parodiaram esse sentimento moum momento no tempo quando decidimos baiderno com o slogan “Camaradas, durmam mais xar nossas expectativas do futuro ou abandonar depressa!” De fato, naqueles tempos, seria prealgumas das tradições caras ao passado, de modo ferível passar o presente dormindo – cair no sono a poder passar pelo portal estreito do aqui e agora. no passado e acordar nos momentos finais do É famosa a frase de Ernst Jünger que diz que progresso, depois da chegada do futuro radiante. a modernidade – a era dos projetos e planos, por excelência – ensinou-nos a viajar com bagagem DESCRENÇA leve (mit leichtem Gepäck). Para poder caminhar Mas quando começamos a questionar nossos mais adiante na passagem estreita do presente, projetos, a duvidar deles ou reformulá-los, a modernidade livrou-se de tudo que parecia o presente, o contemporâneo, torna-se immuito pesado, muito carregado de significado, portante, até central para nós. Isso porque o da mimese, dos critérios tradicionais de maescontemporâneo na verdade é constituído pela tria, das convenções éticas e estéticas herdadas, dúvida, hesitação, incerteza, indecisão – pela e assim por diante. O reducionismo moderno é necessidade de reflexão prolongada, de um uma estratégia para sobreviver à difícil jornada adiamento. Queremos postergar nossas deciatravés do presente. A arte, a literatura, a música sões e ações para ter mais tempo para análise, e a filosofia sobreviveram ao século 20, porque reflexão e consideração. E isso é exatamente o jogaram fora toda a bagagem desnecessária. Ao que o contemporâneo é – um período prolongamesmo tempo, essas cargas aliviadas também redo, potencialmente até infinito, de adiamento.
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É notório que Søren Kierkegaard perguntou o A hesitação quanto aos projetos modernos que significaria ser um contemporâneo de relaciona-se principalmente com uma crescenCristo, e sua resposta foi: Significaria hesitar te descrença em suas promessas. A modernidaaceitar Cristo como Salvador.3 A aceitação do de clássica acreditava que o futuro seria infinito cristianismo coloca Cristo necessariamente – mesmo depois da morte de Deus, mesmo deno passado. Na verdade, Descartes já definia pois da perda da fé na imortalidade da alma. A o presente como um tempo de dúvida – de noção de uma coleção de arte permanente diz dúvida que se espera que eventualmente abra tudo: arquivo, biblioteca e museu prometiam um futuro de pensamentos claros e distintos, permanência secular, uma infinitude que subsaté evidentes. tituía a promessa religiosa da Agora, pode-se argumen- 3. Ver Søren Kierkegaard, Training in Christianity ressurreição e da vida eterna. tar que no atual momento (Nova York: Vintage, 2004). Durante o período da moderhistórico estejamos exata- 4. Ver Martin Heidegger, “What is Metaphysics?”, nidade, o “corpo de trabalho” mente em tal situação, por- em Existence and Being, W. Brock (ed.) (Chicago: tomou o lugar da alma como que o nosso é um tempo no Henry Regnery Co., 1949), pp. 325–349. A pales- a par te potencialmente tra “O que é metafísica?” está disponível em porqual reconsideramos – não tuguês (São Paulo: Duas Cidades, 1969). imortal do Self. É sabido que abandonamos, não rejeitaFoucault denominou esses 5. Ver http://foucault.info/documents/heteromos, mas analisamos e re- Topia/foucault.heteroTopia.en.html. Tradução lugares modernos, nos quais consideramos – os projetos para o português disponível em http://www.viro- o tempo era acumulado, em modernos. A razão mais se.pt/vector/periferia/foucault_pt.html. vez de simplesmente perdiimediata para essa reconsido, de heterotopias.5 Politideração é, claro, o abandono do projeto comucamente, podemos falar das utopias modernas nista na Rússia e na Europa Oriental. Política e como espaços pós-históricos de tempo acumuculturalmente, o projeto comunista dominou lado, nos quais a finitude do presente foi enteno século 20. Houve a Guerra Fria, houve partidida como potencialmente compensada pelo dos comunistas no Ocidente, movimentos distempo infinito do projeto realizado: o de uma sidentes no Oriente, revoluções progressistas, obra de arte, ou de uma utopia política. É claro, revoluções conservadoras, discussões sobre essa chamada compensação destrói o tempo inarte pura e engajada – na maioria dos casos, vestido na produção de um determinado produesses projetos, programas e movimentos esto – quando o produto final é realizado, o tempo tavam interligados pela sua oposição uns aos que foi utilizado em sua produção desaparece. outros. Mas agora eles podem e devem ser inNo entanto, o tempo perdido na realização do teiramente reconsiderados. Assim, a arte conproduto foi compensado, na modernidade, por temporânea pode ser vista como arte que está uma narrativa histórica que de algum modo o envolvida na reconsideração dos projetos morestaurou, usando uma narrativa que glorifica dernos. Pode-se dizer que hoje vivemos num as vidas dos artistas, cientistas ou revolucionátempo de indecisão, de adiamento – um tempo rios que trabalharam em prol do futuro. enfadonho. Martin Heidegger explicou o tédio Mas hoje, essa promessa de um futuro inexatamente como a precondição para nossa cafinito que conserva os resultados de nosso trapacidade de experienciar a presença do presenbalho perdeu sua plausibilidade. Os museus te – experienciar o mundo como um todo por tornaram-se lugares de exposições temporárias, estar igualmente entediado por todos os seus em vez de espaços para acervos permanentes. O aspectos, por não estar cativado por este ou futuro é sempre planejado de novo e de novo – a aquele objetivo específico, tal como era o caso mudança permanente das tendências culturais e no contexto dos projetos modernos.4 modas torna improvável qualquer promessa de
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um futuro estável para uma obra de arte ou para transcorrem no tempo, mas que não levam à um projeto político. E o passado também é percriação de nenhum produto definido. Mesmo se manentemente reescrito – nomes e eventos apaessas atividades levarem a tal produto, elas são recem, desaparecem, reaparecem e desaparecem apresentadas como partes isoladas do seu resuloutra vez. O presente deixou de ser um ponto de tado, não completamente investidas no produto, transição do passado para o futuro, tornando-se, nem absorvidas por ele. Encontramos exemplos em vez disso, um lugar de permanente reescritude tempo excedente, aquele que não é completara tanto do passado quanto do futuro – de prolifemente absorvido pelo processo histórico. rações constantes de narrativas históricas, além Como exemplo, consideremos a animação de qualquer domínio individual ou de qualquer de Francis Alÿs Song for Lupita (1998). Nesse tracontrole. A única coisa sobre a qual podemos ter balho, encontramos uma atividade sem começo certeza em nosso presente e sem fim, nenhum resultado é que essas narrativas históou produto claros: uma muricas vão proliferar amanhã Estamos empacados no lher despeja água de um copo como proliferam agora – e que presente. Ele deixou em outro, e depois despeja de reagiremos a elas com a mesvolta no primeiro copo. Conde ser uma transição, frontamo-nos com um ritual ma sensação de descrença. Hoje, estamos empacados no puro e repetitivo de despertornando-se lugar presente na medida em que dício de tempo – um ritual de permanente ele se reproduz, sem levar secular além de qualquer prereescritura do a futuro nenhum. Nós simtensão de poder mágico, além plesmente perdemos nosso de qualquer tradição religiosa passado e do futuro tempo, sem sermos capazes ou convenção cultural. de investi-lo seguramente, de Pode-se recordar aqui acumulá-lo, seja utópica ou heterotopicamente. do Sísifo de Camus, um artista protocontempoA perda da perspectiva histórica infinita gera o râneo cuja tarefa sem sentido nem objetivo de fenômeno da improdutividade, tempo perdirolar repetidamente uma pedra enorme para o do. No entanto, também é possível abordar esse alto de uma montanha pode ser vista como um tempo perdido mais positivamente, como temprotótipo para a arte contemporânea com base po excedente – como tempo que atesta à nossa no tempo. Essa prática não produtiva, esse exvida como puro ser no tempo, para além de seu cesso de tempo aprisionado em um padrão não valor dentro da estrutura das histórico de repetição eterna, projeções políticas e econô- 6. A expressão no original em inglês é “time-based constitui para Camus a verart”, que diz respeito à arte que tem como elemenmicas modernas. dadeira imagem do que chato constitutivo o próprio tempo, que tem base temporal, ou seja, a arte que ocorre no tempo. (NT) mamos “vida”7 – um período TEMPO EXCEDENTE irredutível a qualquer “sen7. O termo original é “lifetime”, que numa tradução Agora, se olharmos para a literal seria “tempo de vida”, mas em inglês usa-se tido da vida”, qualquer “recena atual da arte, parece-me “lifetime” com sentido de existência, vida. (NT) alização de vida”, qualquer que um certo tipo de arte charelevância histórica. A noção mada de arte com base no tempo6 reflete bem de repetição torna-se central aqui. A repetitiviessa condição contemporânea. Ela o faz porque dade inerente à arte contemporânea com base no tematiza o tempo não produtivo, desperdiçado, tempo a distingue nitidamente dos happenings e não histórico, excedente – um tempo suspenso, performances dos anos 1960. Agora, uma atividapara usar uma noção heideggeriana, o “stehende de documentada não é uma performance única, Zeit”. Ela captura e demonstra atividades que isolada – um evento individual, autêntico, origi-
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Joseph Beuys canta no videoclipe de Sonne statt Reagan (1982), canção que assumiu a forma de protesto contra o governo de Ronald Reagan, em mais uma ação de performance pública e midiática capitaneada pelo artista alemão. O título da música faz um trocadilho com seu sentido em alemão: “o sol no lugar da chuva” Joseph Beuys sings in the music video for Sonne statt Reagan (1982), a protest song against the Ronald Reagan administration, in one more public and mediatic performatic action by the German artist. The song title is a play on the words in German: “sun instead of rain”
nal que acontece no aqui e agora. Em vez disso, essa atividade é em si repetitiva – mesmo antes de ter sido documentada por, digamos, um vídeo em loop. Assim, o gesto repetitivo projetado por Alÿs funciona como um gesto programaticamente impessoal – pode ser repetido por qualquer um, gravado, depois repetido novamente. Aqui, um ser humano vivo perde sua diferença da sua imagem midiática. A oposição entre organismo vivo e mecanismo morto é obscurecida pelo caráter originalmente mecânico, repetitivo e sem propósito do gesto documentado. Francis Alÿs também falou sobre o tempo do ensaio como tempo igualmente desperdiçado, não teleológico que não leva a nenhum resultado, nenhum ponto final, nenhum clímax. Um exemplo que ele oferece – seu vídeo Politics of Rehearsal (2007), que se centra em um ensaio de striptease – é de certo modo um ensaio de um ensaio, na medida em que o desejo sexual provocado pelo striptease em si é anulado. No
vídeo, o ensaio é acompanhado por um comentário do artista, que interpreta o cenário como modelo de modernidade, que sempre deixa sua promessa por cumprir. Para o artista, o da modernidade é o tempo da permanente modernização, que nunca realmente alcança seu objetivo de se tornar verdadeiramente moderno e nunca satisfaz o desejo que provocou. Nesse sentido, o processo de modernização começa a ser visto como tempo excedente, desperdiçado, que pode e deve ser documentado – exatamente porque nunca leva a nenhum resultado real. Em outra obra, Alÿs apresenta o trabalho de um limpador de sapato como um exemplo de um tipo de trabalho que não produz nenhum valor no sentido marxista do termo, porque o tempo gasto limpando sapatos não pode resultar em nenhum tipo de produto final como requer a teoria de valor de Marx. Mas é exatamente porque esse tempo desperdiçado, suspenso, não histórico, não pode ser
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acumulado e absorvido por seu produto que ele mente o momento no qual a arte com base no pode ser repetido – impessoalmente e, potentempo pode ajudar o tempo, colaborar, tornar-se cialmente, infinitamente. Nietzsche já declarou um camarada do tempo – porque a arte com base que a única possibilidade de imaginar o infinito no tempo é, de fato, tempo com base na arte. após a morte de Deus, após o fim da transcendênObviamente, obras de arte tradicionais (pincia, encontra-se no eterno retorno do mesmo. E turas, estátuas e assim por diante) também são Georges Bataille tematizou o excesso repetitivo baseadas no tempo, porque são feitas com a exde tempo, o desperdício improdutivo de tempo, pectativa de que terão tempo – até muito tempo, como a única possibilidade de escapatória da idese forem incluídas em museus ou coleções parologia moderna de progresso. Certamente amticulares importantes. Mas a arte com base no bos Nietzsche e Bataille conceberam a repetição tempo não é baseada no tempo como fundação como algo naturalmente dado. Mas no seu livro sólida, como perspectiva garantida; pelo conDiferença e repetição (1968) Gilles Deleuze fala da trário, a arte com base no tempo documenta o repetição literal como algo radicalmente artificial tempo que está em risco de ser perdido como ree, nesse sentido, em conflito sultado de seu caráter improcom todas as coisas naturais, 8. Ver Gilles Deleuze, Difference and Repetition, dutivo – uma característica vivas, que mudam e se desen- trad. Paul Patton (Londres: Continuum, [1968] da vida pura, ou, como colo2004). Traduzido para o português como Diferença volvem, incluindo a lei natural e repetição (São Paulo: Graal Edições, 2006). caria Giorgio Agamben, “vida e a lei moral.8 Por isso, a prátinua”.9 Mas essa mudança na ca da repetição literal pode ser 9. Ver Giorgio Agamben, Homo Sacer: Sovereign relação entre arte e tempo Power and Bare Life, 1st ed. (Stanford: Stanford entendida como o início de University Press, 1998). Traduzido para o portu- também modifica a tempouma ruptura na continuidade guês como Homo Sacer – O poder soberano e a vida ralidade da arte em si. A arte da vida porque cria, por meio nua (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002). deixa de ser presente, de criar da arte, um excesso de tempo o efeito de presença –, mas não histórico. É neste ponto que a arte pode de fato também deixa de estar “no presente”, entenditornar-se verdadeiramente contemporânea. do como a singularidade do aqui e agora. Em vez disso, a arte começa a documentar um presente VITA ACTIVA repetitivo, indefinido, talvez até infinito – um Aqui eu gostaria de mobilizar um sentido difepresente que sempre esteve lá, e que pode se prorente da palavra “contemporâneo”. Ser con-temlongar indefinidamente no futuro. porâneo não significa necessariamente ser preUma obra de arte é tradicionalmente comsente, estar aqui e agora; significa estar “com preendida como algo que incorpora a arte inteitempo”, em vez de “no tempo”. “Con-temporâramente, conferindo-lhe imediatismo e presença neo” em alemão é zeitgenössich. Já que Genosse visível e palpável. Quando vamos a uma exposição significa “camarada”, ser con-temporâneo – zeitde arte, geralmente presumimos que o que quer genössich – pode se entender como “camarada do que esteja sendo mostrado – pinturas, esculturas, tempo” – como colaborador do tempo, que ajuda desenhos, fotografias, vídeos, readymades ou inso tempo quando ele tem problemas, quando tem talações – deva ser arte. As obras individualmente dificuldades. E sob as condições de nossa civilizapodem, é claro, fazer referência, de uma maneira ção contemporânea focada em produtos, o temou de outra, a coisas que elas não são, talvez a obpo de fato tem problemas quando é concebido jetos do mundo real ou a certas questões políticas, como improdutivo, desperdiçado, sem sentido. mas eles não são considerados referentes à arte Tal tempo improdutivo é excluído das narrativas em si mesma, já que eles mesmos são arte. No enhistóricas, colocado em risco de extinção pela tanto, essa suposição tradicional tem se provado perspectiva de total apagamento. Esse é exatacada vez mais enganosa para definir visitas a expo-
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sições e museus. Além de encontrar obras de arte, tos de forças materiais. Se a vita contemplativa nos espaços de arte de hoje nos confrontamos tamfoi por um longo tempo concebida como forma bém com a documentação da arte. Vemos figuras, ideal de existência humana, tornou-se despredesenhos, fotografias, vídeos, textos e instalações zada e rejeitada ao longo do período da moder– em outras palavras, as mesmas formas e mídias nidade, como manifestação de uma fraqueza nas quais a arte é comumente apresentada. Mas de vida, de falta de energia. E o filme desempequando se trata de documentação de arte, a arte nhava o papel principal na nova adoração da vita não é mais apresentada por meio dessas mídias, activa. Desde o seu princípio, o filme celebramas simplesmente guardada dentro delas. Isto va tudo o que se move em altas velocidades – porque a documentação da arte, per definitionem, trens, carros, aviões –, mas também tudo o que não é arte. Exatamente por apenas se referir à arte, corre por baixo da superfície – lâminas, boma documentação da arte deixa bem claro que a arte bas, balas. em si não está mais disponível, mas sim ausente No entanto, enquanto o filme como tal é uma e escondida. Assim, é interessante comparar arte celebração do movimento, em comparação com em filme tradicional e a arte contemporânea com as formas de arte tradicionais, paradoxalmente base no tempo – que tem suas raízes no filme – para leva a audiência a novos extremos de imobilidade entender melhor o que aconteceu com nossa vida. física. Se um leitor ou visitante de exposição pode Desde o começo, o filme pretendia ser camover o corpo com relativa liberdade, o espectapaz de documentar e representar a vida de uma dor em uma sala de cinema é colocado no escuro e forma que era inacessível para as artes tradicioé praticamente grudado a um assento. A situação nais. De fato, como um meio do movimento, o peculiar do frequentador de cinema na verdade se filme frequentemente mostrou sua superioriparece com uma mirabolante paródia da própria dade sobre as outras mídias (cujas maiores reavita contemplativa que o filme em si denuncia, lizações são preservadas na forma de tesouros porque o cinema encarna precisamente a vita cone monumentos culturais imóveis) ao encenar e templativa como ela seria vista da perspectiva do celebrar a destruição desses monumentos. Essa seu crítico mais radical – digamos, um nietzschetendência também demonstra a aderência do ano inflexível – a saber, como produto do desejo filme à crença tipicamente frustrado, falta de iniciativa moderna na superioridade 10. O termo que aparece no original é “specta- pessoal, um indício de contorship”; conforme Vanessa R. Schwartz (em L. da vita activa em relação à Charney e V. R. Schwartz, O cinema e a invenção solação compensatória e um vita contemplativa. Nesse da vida moderna”, p. 358, 2ª ed. (São Paulo: Cosac sinal da inadequação de um sentido, o filme manifesta Naify, 2004), refere-se literalmente ao “ato de indivíduo na vida real. Esse é assistir a um espetáculo de qualquer natureza” e sua cumplicidade com as fi- diz respeito aos dados da recepção do espectador, o ponto de partida de muitas losofias de praxis, de Lebens- a tudo o que envolve a experiência de uma pla- críticas modernas do filme. drang, de élan vital, e de de- teia. Seguindo sugestão da autora, para evitar o Sergei Eisenstein, por exemneologismo “espectância” ou termos vagos como sejo; demonstra seu conluio “assistência”, optou-se aqui pelo uso da tradução plo, foi exemplar na maneira com ideias que, seguindo os “espectador”. (NT) como combinou o choque espassos de Marx e Nietzsche, tético com propaganda polítiincendiaram a imaginação da humanidade euca em uma tentativa de mobilizar o espectador e ropeia no final do século 19 e começo do 20 – em liberá-lo de sua condição passiva, contemplativa. outras palavras, exatamente durante o período A ideologia da modernidade – em todas as que deu origem ao filme como mídia. Essa foi a suas formas – era direcionada contra a contemera quando a atitude de contemplação passiva, plação, contra o espectador,10 contra a passividaaté então prevalecente, foi descreditada e subsde das massas paralisadas pelo espetáculo da vida tituída pela celebração dos potentes movimenmoderna. Ao longo da modernidade, podemos
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identificar essa oposição entre consumo passivo Mais ainda, pode-se falar sobre a nossa soda cultura de massa e uma oposição militante a ciedade contemporânea como uma sociedade ela – política, estética ou uma mistura das duas. A do espetáculo. Entretanto, não estamos vivendo arte moderna, progressiva, constituiu-se duranagora entre as massas de espectadores passivos, te o período da modernidade em oposição a tais conforme descreveu Guy Debord, mas entre as modos passivos de consumo, seja propaganda massas de artistas. A fim de reconhecer-se a si política ou kitsch comercial. Conhecemos essas mesmo no contexto contemporâneo de produreações militantes – desde as diferentes vanguarção em massa, o artista precisa de um espectador das do começo do século 20 a Clement Greenberg que possa negligenciar a quantidade imensurá(vanguarda e kitsch), Adorno (indústria cultural) vel de produção artística e formular um julgaou Guy Debord (sociedade do espetáculo), cujos mento estético que possa destacar esse artista temas e figuras retóricas continuam a ecoar em em particular da massa de outros artistas. Mas todas as partes do atual debate sobre nossa cultuestá claro que tal espectador não existe – ainda ra.11 Para Debord, o mundo inteiro se tornou uma que pudesse ser Deus, já fomos informados do sala de cinema na qual as pessoas estão complefato de que Deus está morto. Se a sociedade contamente isoladas umas das outras e da vida real, temporânea é, portanto, ainda uma sociedade e consequentemente condenadas a uma existêndo espetáculo, então parece ser um espetáculo cia de completa passividade. sem espectadores. No entanto, na virada do 11. Ver Guy Debord, Society of the Spectacle Por outro lado, o espectaséculo 21, a arte entrou em (Oakland: AKPress, 2005). Traduzido para o por- dor hoje – a vita contemplativa uma nova era – uma de pro- tuguês como Sociedade do espetáculo (São Paulo: – também tornou-se bastante Contraponto Editora, 1997). dução artística em massa, e diferente do que era antes. não só de consumo em mas- 12. No original: “mass art consumption”. Conside- Aqui de novo o sujeito da rando que “mass art” isoladamente normalmente sa de arte.12 Fazer um vídeo e se refere ao conceito “arte de massa”, há ambigui- contemplação não pode mais colocá-lo em exibição na in- dade no sentido da expressão. No contexto, e pelo confiar em recursos de tempo ternet tornou-se uma opera- sentido da oração anterior, que fala em “mass artis- infinito, perspectivas tempotic production”, optou-se pela tradução “consumo ção simples, acessível a quase em massa de arte”. Essa opção é mantida nas frases rais infinitas – uma expectatodos. A autodocumentação seguintes, mesmo que no original ainda persista tiva que era constitutiva das tornou-se hoje uma prática nelas o sentido ambíguo, que aparece em registros tradições de contemplação variáveis. (NT) em massa e mesmo uma obplatônica, cristã ou budista. sessão em massa. Os meios de Os espectadores contempocomunicação contemporâneos e redes como râneos são espectadores em movimento; primaFacebook, MySpace, YouTube, Second Life e riamente, eles são viajantes. A vita contemplativa Twitter dão a populações globais a possibilidade contemporânea coincide com a circulação ativa de apresentar suas fotos, vídeos e textos de uma permanente. O ato de contemplação em si funmaneira que não pode ser distinguida de qualciona hoje como um gesto repetitivo que não quer trabalho de arte pós-conceitual, incluindo pode levar e não leva a nenhum resultado – a obras de arte com base no tempo. E isso signiqualquer julgamento estético conclusivo e bem fica que a arte contemporânea tornou-se hoje fundamentado, por exemplo. uma prática cultural em massa. Então surge a Tradicionalmente, em nossa cultura, tivepergunta: Como pode o artista contemporâneo mos à nossa disposição dois modos fundamensobreviver a esse sucesso popular da arte contalmente diferentes de contemplação para temporânea? Ou, como pode o artista sobreviver controlar o tempo que gastamos olhando para em um mundo no qual qualquer um pode, afinal, imagens: a imobilização da imagem no espaço tornar-se um artista? expositivo e a imobilização do espectador no ci-
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nema. No entanto, ambos os modos entram em ativa. Entretanto, quando senta em frente ao colapso quando as imagens em movimento são computador e usa a internet, você está sozinho transferidas para museus ou espaços expositi– e extremamente concentrado. Se a internet é vos. As imagens continuarão a se mover – mas o participativa, ela o é no mesmo sentido que o espectador também o fará. Como regra, sob as espaço literário. Aqui e ali, qualquer coisa que condições de uma visita normal a uma exposiadentre esses espaços é percebida por outros ção, é impossível assistir a um vídeo ou filme do participantes, provocando reações deles, que começo ao fim, se o filme ou vídeo for relativapor sua vez provocam mais reações, e assim por mente longo – particularmente se houver muidiante. Contudo, essa participação ativa acontos trabalhos igualmente batece somente no interior da seados no tempo no mesmo imaginação do usuário, deiA “arte com base no espaço expositivo. E na verxando seu corpo imóvel. dade tal esforço estaria desInversamente, os espatempo” transforma locado. Para ver um filme ou ços expositivos que incluem escassez de tempo vídeo por inteiro, deve-se ir a arte com base no tempo são ao cinema ou ficar diante de em excesso de tempo – frios porque fazem com que um computador. Todo o prose concentrar em objetos ine se demonstra uma pósito de ver uma exposição dividuais seja desnecessário camarada do tempo, ou mesmo impossível. É por de arte com base no tempo é dar uma olhada nela e desua con-temporânea isso que tais espaços também pois dar outra olhada e outra são capazes de incluir todos olhada – mas não a ver na sua os tipos de mídias quentes – totalidade. Aqui, pode-se dizer que o próprio ato texto, música, imagens individuais – fazendo, da contemplação é colocado em loop. assim, com que esfriem. A contemplação fria A arte com base no tempo tal como mostra(cool) não tem como objetivo produzir um julgada em espaços de exposição é uma mídia fria, mento ou escolha estética. A contemplação fria para usar a noção introduzida por Marshall (cool) é simplesmente a repetição permanente McLuhan. 13 De acordo com McLuhan, mídias do gesto de olhar, uma consciência da falta de quentes levam à fragmentatempo necessária para fazer ção social: quando lê um li- 13. Marshall McLuhan, Understanding Media: um julgamento informado vro, você está sozinho e num The Extensions of Man (Cambridge, MA: The MIT por meio de uma contemplaPress, 1994). estado de espírito concenção abrangente. Aqui, a arte trado. E em uma exposição com base no tempo demonsconvencional, você vaga sozinho de um objeto tra negativamente a infinidade do tempo exceao outro, igualmente concentrado – separado dente, desperdiçado, que não pode ser absorvido da realidade exterior, em isolamento interno. pelo espectador. No entanto, ao mesmo tempo, McLuhan achava que somente as mídias eleela remove da vita contemplativa o estigma motrônicas tais como a televisão seriam capazes derno da passividade. Nesse sentido, é possível de superar o isolamento do espectador individizer que a documentação da arte com base no dual. Mas essa análise de McLuhan não pode ser tempo apaga a diferença entre vita activa e vita aplicada à mais importante mídia eletrônica de contemplativa. Aqui outra vez a arte com base no hoje – a internet. À primeira vista, a internet tempo transforma uma escassez de tempo num parece ser tão fria, se não mais fria que a teleexcesso de tempo – e se demonstra uma colabovisão, porque ela ativa os usuários, seduzinradora, uma camarada do tempo, sua verdadeira do-os, ou mesmo forçando-os à participação con-temporânea.
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