Revista Escrita Pulsante

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Transpassar @ - travessia


GUILHERME LIMA


GUILHERME LIMA

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MICHELLE MENDONÇA

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MICHELLE MENDONÇA


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TRANSPASSAR @ - TRAVESSIA

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ESCRITAS PULSANTES: A PONTE POSSÍVEL, O PONTO PROVÁVEL, A-TRAVESSIA

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À FLOR DA PELE: AS MULHERES QUE NINGUÉM VÊ

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ESCRITAS PULSANTES: A PONTE POSSÍVEL, O PONTO PROVÁVEL, A-TRAVESSIA

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ESCRITAS PULSANTES: A PONTE POSSÍVEL, O PONTO PROVÁVEL, A-TRAVESSIA



Escritas pulsantes: a ponte possível, o ponto provável, a-travessia Por Débora Duarte Em Fragmentos de um Discurso Amoroso, Barthes dizia: “A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos nas pontas das palavras”. Com Barthes percebemos que a linguagem é o elo entre as palavras, as coisas e, sobretudo, oser, já que é a vida e o coração da experiência que busca se traduzir ininterruptamente. Para que haja experiência é imprescindível que exista a pulsação do ser e que este mesmo ser se vivifique e encontre-se movido pelo desejo de dizer algo por meio da palavra, mas não qualquer palavra, há que ser a palavra em suas duas faces: imponência conjugada à pura poesia. A palavra, aqui entendida como escrita, é a parteira dos sonhos: dela viemos e nela nos regozijamos. A identidade está no duelo, este que constitui a essência humana — veja você que não há como ser cartesiano diante dos abismos do ser. A palavra, por ser fonte de vida, habita o movimento paradoxal: ao inscrever-se, escreve a si mesma; ao traduzir, se oculta, deixando em suspenso o enigma e tornando-se, dessa forma, a ponte possível — o ponto provável. É, justamente, dessa cadência que emerge uma pulsação desconcertante e, ao mesmo tempo, indispensável. Assim, para que pulse é preciso que haja febre nas pontas dos dedos, febre louçã capaz de anuviar pensamentos e de colocar em

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xeque a pretensa exatidão do ser. A escrita não pede para ser, ela simplesmente é, e está no entremeio: aquele espaço entre o dito e o que ficou por dizer, o vão que se quer apagar, mas que insiste em aparecer, a insinuação desejosa… Ela é a própria linha tênue e seus caminhos por desbravar. Dela extraímos a vida, principalmente quando, com a boca seca de palavras, o ser carece de comunicar-se, de dizer-se, enfim, de desvencilhar-se do peso da história por ele tecida cotidianamente. Diante deste cotidiano é que o ser busca sangrar suas inquietudes, para isso há que se viver a escrita e nela latejar, assim como pulsa o coração-correnteza. É por meio da escrita que pulsa o desassossego desmedido que corrói a experiência humana. Certa vez, Clarice Lispector em Um sopro de vida chegou a dizer: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos, porque neles vivemos. […] Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem


medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras […]. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo”, mas, de igual modo, escrever é viver… Escrever é estar atento às minúcias que se aconchegam à vida, que nos ausentam das zonas de conforto e nos proíbem de congelar o sorriso pela trépida força da necessidade. A escrita pulsante pulsa porque é vida; pulsa porque se faz e refaz daquilo que de mais belo e grotesco tem o ser: Viver —, e assim correr o risco da existência que acontece neste exato momento (ou nem tão exato assim).

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À flor da pele: as mulheres que ninguém vê POR HANNA OLIVEIRA

MICHELLE MENDONÇA

Esperava por ela na estação Anhangabaú da linha três vermelha do metrô de São Paulo, num dia típico de outono na cidade: o sol brando que alegra os olhos, com um vento gelado de doer os ossos - aquela era minha terceira tentativa de entrevistá-la. O ponteiro do relógio mostrava que seu atraso já era de 15 minutos. Ela, então, me ligou e, com voz branda e acanhada, me disse: "Hanna, é a Margarida*. Vou me atrasar um pouco, mas vou" e desligou o telefone.

Gosto de pensar que escolher a temática do aborto para um livro-reportagem transcende o fato jornalístico empírico que trata o aborto como uma temática em si mesma. Quando o espermatozoide triunfante carrega em si o cromossomo X e, dali um tempinho, descobre-se que de lá vem uma menina, uma carga pré-estabelecida é acoplada a nossa existência e terá de ser carregada pelo resto de nossos dias.

Dali mais 10 minutos de espera, surge uma moça jovem, de grandes olhos amendoados e desconfiados. Era ela.

Ter uma vagina numa sociedade misógina e falocêntrica é como carregar uma bomba-relógio, à revelia, de disparo diário e sequencial que fere a carne e o ser. A gestação e o aborto, são alguns desses disparos que dilaceram.

"Poderia ser eu!", pensei e ali se determinou: não poderia ter escolhido outras histórias para contar. Margarida é uma das personagens reais do meu livro-reportagem “À flor da pele: as mulheres que ninguém vê”, que traz as histórias de quatro mulheres criminalizadas pelo aborto.

Ir além, transcender o debate filosófico-científico e, no Brasil, também religioso, foi um caminho que me pareceu pungente e necessário. Afinal, perguntar-se, acima de qualquer outra questão, qual o destino das mulheres que praticam o aborto e são incri-

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minadas, é de urgência e preocupação. Com uma legislação datada dos anos 40, as regulações sobre o aborto preveem prisão e tribunal do júri as mulheres que sejam pegas cometendo esta contravenção, visto como "crime contra a vida". Dados do SUS (Sistema Único de Saúde) apontam uma média anual de 150 mil abortos provocados no país. Estes abortos acontecem, em grande parte, em condições insalubres, causando riscos à saúde física dessas mulheres. Além disso, a gestação indesejada pode causar severos danos psíquicos. O aborto, ainda lança luz sobre questões sociais, no Brasil. Aborta-se em clínicas de bairros de alto padrão e esses números tampouco são tangibilidades. Mulheres pobres abortam em verdadeiros açougues de gente, grande parte das vezes, sozinhas. Neste ponto, as questões de gênero se revelam ainda mais. Em meus estudos de caso, todas as mulheres já vinham de outras gestações e

nenhuma delas possuía qualquer tipo de apoio de seus companheiros ou pais da criança. Todas se viam na difícil situação de criar mais um filho por si só. A contracepção também era de preocupação exclusiva da mulher Todas elas temiam o julgamento de amiliares e escolhiam por não revelar a gravidez às pessoas mais próximas. Assim, chegamos num cenário de múltiplas violências a que essas mulheres são submetidas. Por último e, talvez, ainda mais delicado, o atendimento médico e a denúncia de seu ato de desespero. Grande parte das mulheres incriminadas pela prática do aborto são denunciadas pelos médicos que lhe prestaram atendimento após complicações em decorrência do aborto em condições insalubres. Mesmo fragilizadas, algumas chegam a receber atendimento e logo seguir para delegacia. Carmim*, uma das mulheres que compõe o livro-reportagem, foi dos raros casos de denúncia anônima, o que não faz sua história menos dolorosa. Ela chegou a ficar cinco dias presa, por ter

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sido “pega” em “flagrante”. Carmim é uma mulher humilde do extremo leste da cidade de São Paulo. Mãe de cinco filhos, com uma renda mensal de R$800,00, se viu grávida de uma relação extraconjugal. Esse parceiro se eximiu de quaisquer responsabilidades com relação a criança que Carmim esperava. Ela levou a gestação até o sétimo mês. Acreditava que conseguia escondê-la de seu marido, que havia feito vasectomia após o quinto filho do casal. Começou a tentar um aborto com chá de uma erva intitulado “pau de tenente”, sem força relevante para causar um aborto em gravidez tão avançada. Ao longo de seu processo e análises de psicólogos, constatou-se que a grande causa do aborto de Carmim fora uma crise traumática de estresse agudo. Abortou espontaneamente. Porém, crente de sua culpa, fruto de seu anseio, pariu sozinha o feto já morto no banheiro de sua pequena casa, em silêncio, e enterrou-o em seu quintal. Nesse momento, foi vista e denunciada. Respondeu processo por dois anos e chegou a ir a júri popular, mesmo os laudos dos exames serem inclusivos para aborto. Troquei meias palavras com Carmim, tentando entrevistá-la. Simplicidade e resignação foi como me soaram suas palavras: ela desapareceu antes que pudesse me conta sua história.

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São as mulheres que ninguém vê. Antes mesmo disso: são mulheres que não querem ver a si mesmas. O processo de desumanização e invisibilidade delas, assim, se torna mais fácil e conveniente. Olhar para elas é olhar para nossas próprias feridas e mazelas, seja quanto sociedade, seja quanto humanos. Aquele dia, numa manhã de outono, quando olhei para Margarida, pensei que aquela menina poderia ser eu. E foi nesse momento que eu apenas quis abraçá-la. Abracei. *nome fictício.


Saliva, confete e sangue na caneta cortante de Carolina Maria de Jesus POR RAFFAELLA FERNANDEZ

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Da publicação de seu primeiro livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” publicado em 1960 com o apoio do jornalista Audálio Dantas devemos dizer que a tiragem inicial, que seria de três mil exemplares, foi de trinta mil, que se esgotaram em apenas três dias na cidade de São Paulo. No Brasil só em 1960 foi reimpresso sete vezes. Foi traduzido em 14 línguas, publicado em 20 países e circulou 40 países, cuja venda alcançou a marca de um milhão de exemplares. Foram produzidas edições na Dinamarca, Holanda e Argentina. Em 1961 na França, Alemanha (Ocidental), Suécia, Itália, Checoslováquia, Romênia, Inglaterra, Estados Unidos e Japão, em 1962; Polônia, em 1963; Hungria, em 1964; Cuba, em 1965 e, entre 1962 e 1963, na União Soviética, chegou inclusive a ser proibido na Portugal de Salazar. Portanto, falamos de um best seller que definiu a favela como o “quarto de despejo” da sociedade em contraposição a “sala de estar”. Mas a criatividade e sabedoria de Carolina de Jesus não se encerram nessa impactante obra. A autora possui mais de 5 mil páginas manuscritas, totalizando 58 cadernos que contém

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7 romances, mais de 60 textos com características de crônicas, fábulas, autobiografia e contos, mais de 100 poemas, 4 peças de teatro e 12 marchinhas de carnaval, até o momento mapeados na pesquisa de doutorado “Processo criativo das narrativas esparsas no espólio Carolina Maria de Jesus” desenvolvida junto ao IEL- Unicamp. A obra literária de Carolina de Jesus ainda não foi totalmente publicada tão pouco do modo como ela definiu ou sinalizou em seu processo criativo. As editoras interessam-se apenas pelo caráter testemunhal da obra de “uma escritora favelada” a mantendo nesse estereótipo. Recheando com coloridos confetes de sangue, a saliva e a caneta cortante da autora. No entanto, a potência da escrita Carolina de Jesus pulsa nos fólios manuscritos, como podemos ler em novas publicações que trazem outros prismas da autora, seja na recente publicação da narrativa “O escravo” e o poema “Os feijões” na Revista O Menelick- Ato 2 e na publicação da crônica autobiográfica “Favela” e de um de seus contos inédito “Onde estais felicidade?” homônimo do livro publicado em ocasião


do centenário celebrado em 2014. Certamente estas mostras invocarão novas possibilidades de publicação da obra dessa importante autora da história da cultura brasileira, sobretudo, porque as transcrições procuraram atender aos projetos de escrita da autora cultivando a linguagem “oculta” da língua portuguesa que ela carrega como marca estilística. Além disso, vale dizer que poucas pessoas conhecem as excentricidades de Carolina de Jesus, atitudes próprias de alguém que vivenciava um devir artista em seus gestos quixotescos, forma de ser que foram julgadas por seus contemporâneos como “loucura” proveniente das condições de marginalidade insana em que sobrevivia. A escritora usava apenas sapatos de homens, escrevia a noite sob luz de velas ou debaixo de árvores quando foi morar no sítio ou sobre o corpo de Vera Eunice adormecida. Confeccionou três fantasias de carnaval, uma de paetês, outra com diversas lâmpadas amarradas num lençol que chamava de luz do universo e a primeira com penas de galinha da angola, em contraposição às plumas das grandes vedetes, que foi recosturada a cada car-

naval no período em que viveu a beira do rio Tietê. Passados cerca de cem anos de sua existência ainda nos perguntamos junto com Carolina Maria de Jesus “onde estaes felicidade?” E oferecemos um pouco mais de sua literatura tão atual e interditada que aos poucos se aproxima do público. Segue a transcrição de uma das versões dos poemas “Negros” e outra do poema “Rebotalho”, que curiosamente não fazem parte da “Antologia pessoal”, cujos versos foram publicados em 1996, e demonstram, junto com o poema “O feijões” que a temática da negritude perpassa as “escrevivências” do corpo-texto de Carolina de Jesus.

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NEGROS Negro tem todos defeitos Sofre sempre humilhação Se reclama o seu direito Nunca o negro tem razão. O negro não tem defeito Tem qualidade e valor O Judas não era prêto E vendeu Nósso Senhór. Tua existência é Um estertor Seu sofrimento é profundo Por causa de sua côr És infeliz neste mundo. Sufocando os nossos clamores Quando somos perseguidos Só Jesus Nosso Senhor É quem ouve os nossos gemidos Jesus nosso senhor Não implantou a desigualdade Não condenou o homem de côr Não lhe baniu da comunidade.

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Museu de Sacramento II 3026


Em vida, Carolina Maria de Jesus publicou: JESUS, Carolina Maria de. A favela como quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960. ______. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Editora Paulo de Azevedo LTDA, 1961. ______. Pedaços da Fome. São Paulo: Editora Áquila, 1963. ______. Provérbios. São Paulo: S/N, 1965. Outros livros póstumos: ______. Journal de Bitita. Paris: A.M. Métailié, 1982. Traduzido do francês para o português somente em 1984 (ainda não temos uma edição mais genuína desse livro) em ______. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ______. Meu estranho diário. Meihy e Levine (Orgs.). São Paulo: Xamã, 1996. ______. Antologia pessoal. Meihy e Levine (Org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. ______. Onde estaes felicidade? São Paulo: Me Parió Revolução, 2014.

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Se eu me sinto latino-americana? POR ELLEN MARIA VASCONCELLOS

PRISCILA MONTANIA

Se roubam a prata como às uruguaias Se me matam de fome como às peruanas Se me secam de sede como às bolivianas Se me arrancam a língua como às paraguaias Se me tiram os olhos como às jamaicanas Se me desaparecem as veias como às panamenhas Se me queimam a pele como às dominicanas Se me comem a carne como às brasileiras Se me querem distante como às cubanas Se me querem invisível como às guianas Se me querem pequena como às equatorianas Se me querem muda como às nicaraguenses Se me querem surda como às salvadorenhas Se me querem puta como às porto-riquenhas Se me querem escrava como às mexicanas Se me querem pobre como às haitianas Se me querem morta como às guatemaltecas, Sim, me sinto latino-americana e inclusive depois de morta seguirei sendo desta terra.

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PRISCILA MONTANIA

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Campos do Jordão: a literatura vence a tuberculose POR BENILSON TONIOLO

Não é segredo para ninguém que Campos do Jordão, encravada no alto da Serra da Mantiqueira, nasceu com clara e rara destinação: salvar pessoas da morte. Literal e literariamente. Senão, vejamos: fundada em 1874 por um empreiteiro português (de Pindamonhangaba, ó pá!) chamado Matheus da Costa Pinto, que sofria dos pulmões (era o que se chamava, à época, de ‘respirante’) e que, tendo adquirido parte das terras do Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão, para cá se transferiu tamanho o bem-estar que sentia quando por aqui aportava. E o clima do alto da Serra da Mantiqueira fazia tão bem ao gajo que não titubeou em mandar construir, em suas terras (denominada Vila de São Mateus do Imbiri), um pouso para respirantes, uma escola e uma igreja em louvor a Nossa Senhora da Saúde, cuja imagem mandou vir do Rio de Janeiro. Assim começou, portanto, o po-

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voamento daquela que no futuro seria chamada, entre outros epítetos heroicos, de ‘Altar da Solidariedade Humana’. Com a construção da Estrada de Ferro em 1914 (iniciativa dos médicos sanitaristas Emilio Ribas e Victor Godinho), que tornou possível e menos penosa a subida da serra (cujo acesso até então se dava somente através de liteiras, banguês e no lombo dos cavalos e mulas) a Cidade passou a ficar conhecida pela eficácia no tratamento de uma das grandes moléstias do final do século XIX e começo do XX: a tuberculose, cujo contágio direto, de pessoa para pessoa, aliado aos hábitos de tabagismo e alcoolismo, entre outros, dizimou muitos de nossos grandes valores intelectuais e artísticos. Não é por outro motivo que a doença ganhou um apelido raro: ‘doença dos poetas’, tamanha a quantidade deles a perder a vida em razão do mal. Só pra ficar na esfera dos versejado-


res tupiniquins, lá vai: Castro Alves, morto aos 24 anos; Cruz e Sousa (cuja qualidade literária dava engulhos em Anatole France pela indiferença que lhe dedicava a academia brasileira), aos 36 e Álvares de Azevedo, aos 20 – quase um púbere. Vida desregrada, boemia, álcool e tabagismo: era – e é!- este o quadro perfeito para o desenvolvimento do ‘mal do século’ entre os escribas brasileiros antes, claro, da popularização da penicilina.Com o passar do tempo, graças às características do clima (muito parecido com o da Suíça, mundialmente conhecido pela eficácia no tratamento) e dos hábitos da Cidade, aliadas aos recursos dos sanatórios que, ao longo do tempo, foram sendo construídos, Campos do Jordão ganhou notoriedade nacional pelo alto índice de recuperação de pacientes que, ao chegar, estavam desenganados e subiam a serra ‘para morrer’.

de pneumotórax (o mesmo de Manuel Bandeira, que aliás visitou a Cidade e detestou a calmaria) aplicado em um companheiro de quarto que acabou indo a óbito. Paulo Dantas, sergipano, autor regionalista e romancista de vulto, grande estudioso de Guimarães Rosa e que obteve de Monteiro Lobato carta de recomendação para poder se tratar em uma das pensões da Cidade. “Não tinha roupa, ou só tinha um terno; não tinha meias, e só tinha um par de sapatos; trabalhava demais e quase não dormia; e, quantas vezes, almocei uma média e não jantei nada? Tudo isso era a minha fome, e tudo isso foi a minha tuberculose”. Nelson Rodrigues.

Orides. Entre eles, claro, muitos poetas e escritores. O pernambucarioca Nelson Rodrigues, por exemplo, narrou com terror e resignação o procedimento

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O próprio José Bento, que teve os filhos Guilherme (o caçula) e Edgard (o mais velho) internados na Cidade e perdeu-os para a doença, pouco tempo após terem obtido alta médica (o local onde existia o sobrado onde a família Lobato residiu durante esse período foi recentemente identificado com uma placa), Martins Fontes, Rui Ribeiro Couto (pra ficar só nos santistas), Guilherme de Almeida e, mais recentemente, a celebrada Orides Fontella, cujos despojos somente agora foram exumados e enviados para sua cidade natal, São João da Boa Vista, foram apenas alguns nomes de grandes autores brasileiros que buscaram os altos da Serra da Mantiqueira para tentar recuperar a saúde. Nem todos conseguiram, como a própria O que pouca gente sabe, entretanto, é que a presença de doentes ‘ilustres’ durante a parte grande parte de sua História, e que antecedeu o Ciclo de Turismo, fez com que Campos do Jordão acabasse por se tornar um núcleo considerável de produção literária. É que durante o período de internação, quando a reclusão e o descanso absolutos eram fundamentais e a recupe-

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ração e o restabelecimento já se avizinhavam, os internos eram obrigados a enfrentar a tediosa rotina, a inescapável solidão e a vontade de voltar pra casa. Tudo isso, aliado à bucólica paisagem da montanha, se constituía no convite perfeito para os ‘formigamentos do espírito’ e à beletragem (como dizia José Bento), à qual invariavelmente se dedicavam. Daí para a organização de saraus foi um pequeno passo. Em pouquíssimo tempo, as pensões e os sanatórios passaram a se converter em palco para inesquecíveis encontros. A própria dona Purezinha Lobato tinha uma prima – de mesmo nome e apelido- proprietária da Pensão Azul, em Abernéssia, para onde as pessoas se dirigiam para celebrar entre cantorias e declamações a amizade, a saúde e, claro, a Literatura, que acabava por atuar como elo indivisível entre a Vida –que esteve por um fio- e a Esperança que, renovada, trazia de volta à superfície alguns dos mais relevantes nome do pensamento brasileiro – que, graças ao clima e ao tratamento que receberam em Campos do Jordão, a morte não conseguiu levar. .


Gramática social POR REINALDO DIAS

Domingo acordei com uma disposição! Final de semana acabando, último dia de descanso, chegando segunda. Olhei lentamente para o pó de café… a água, elementos separados. Como não sou bom na alquimia resolvi colocar uma camiseta e ir até a “padoca” do Portuga, pedir o de sempre! Um chapado e uma média. Enquanto, aguardava o meu pedido no balcão da padaria, um senhor de muitos Janeiros, cujas marcas no seu rosto não negavam a minha dedução, pegara o cardápio do recinto a procura de um prato, mas não o encontrou. Com uma voz altiva, chamou o funcionário da padoca. Era um distinto fidalgo gritando de maneira enfática, solicitando ao jovem rapaz que encontrasse um prato de filé com fritas. O menino ficou assustado com a delicadeza do pedido, e com mãos trêmulas não localizou nem o filé, quanto mais as fritas. O velho burguês, inconformado com a situação, bateu com seu anel de formatura no balcão e exigiu a presença do dono do estabelecimento, pois achava inadmissível que um empregado não conhecesse sua função, afinal, era pago para servir. Ao final da celeuma, o velho aristocrático mandou uma enunciação que estou decodificando até agora: “- eu se irrito com isso!” Não foi a primeira vez que ouvi aquele tipo de construção gramatical em que o pronome reflexivo de terceira pessoa, ou seja, o “se”, está no lugar

do pronome de primeira pessoa “me”. Entre um gole de café e uma mordida no pão fiquei matutando em alguns ensinamentos, de um velho amigo, que sempre comentara que a língua tem uma norma forjada nas manifestações de enunciação popular, gramática tecida na interação social e cultural de uma sociedade, e por isso falamos o latim do vendedor de peixes, dizia. Naquele momento lembrei-me da folheada que fiz em um livro antigo de linguística, o qual mencionava a mudança do “você”, aglutinação de um pronome de tratamento antigo, da época da escravidão do Brasil, “vossa mercê”, logo, concluímos que um simples “vc” carrega em si uma história de 300 anos de escravidão. Minha média esfriou, mas continuei pensando no maldito “se” no lugar do “me”, ora, se o “eu” sempre é a pessoa que fala, o “tu” aquele que ouve, portanto o “ele” é o assunto da conversa, logo o “se”, seria para referir-se ao objeto, e não à pessoa que fala. É engraçado como as relações sociais se manifestam na linguagem. Aquele idoso tratou um balconista com tanta arrogância que me lembrou de quando eu era pequeno, e fazia birra quando minha mãe não comprava um brinquedo para mim. Engoli o café frio, e continuei a pensar. Uma criança, quando se olha no espelho, não reconhece o seu reflexo, porque ainda não possui a subjetividade e a consciência de si, pois vive no mundo da objetividade,

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logo, aquela construção sintática, misturando as pessoas e pronomes, é típica de uma criança que está adquirindo as competências de fala, então estaria eu diante de uma enunciação infantilizada? Ou de um comportamento infantil? Para azedar o feijão, continuei nas indagações. Será que estamos caminhando para uma sociedade materialista, objetiva e infantilizada, e a linguagem só está evidenciando esse processo? Pedi outro pão e outra média, pois meu estômago estava roncando. Indaguei-me sobre aquela cena narcisista a qual tive o desprazer de acompanhar em meu desjejum: aquilo foi um ato de infantilidade? Ou talvez aquele

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“se” demonstrasse o quanto nos eximimos da culpa, afinal eu nunca me atraso, o trânsito é que estava travado. Podemos lançar a seguinte desculpa: “eu se perdi”, portanto, a culpa foi do caminho confuso. Outro velho amigo dizia-me para prestar atenção no não dito, pois é no silêncio que exala o preconceito, porque é de pausa que se faz a música, e é na “padoca” que o “me” torna-se “se”. Nesse caminhar do dito e não dito, do subjetivo e objetivo, em meio a comunicações narcísicas e manifestações infantis, eu termino meu pão e penduro a conta.


Exílio POR CAMILA MOROTTI

Desprendi meus pés do chão em forma de lágrimas. Não houvesse outra forma de refletir a infinitude da dor ou do prazer alheio em deter-me: da dor ou do sabor de uma loucura ainda imaginária para mim. Houvesse sabor maior de existir o inexistível sabor de ser um número: 211-B. Medicamentos: 22. Ao dia. Por dia. 48 (infinitos) dias. Meus dias. Nossos dias. Afiados dias. Dilaceraram meu coração. Alicerçaram meu punhal em obras. Eternidades. Discreta eternidade. Sombria solidão. 28 internas. Interesse. Mistério. Penumbras perplexas. Nasce hora. Morre dia. Concretizar melodias. Medrosas, melodias. Honrar a chance. Morrer a chance. Viver. Morrer. Um pouco, todo dia. Já é o vigésimo quarto dia. Olho pra parede. É verde. É água. Sem gosto. Tem arroto. Vem do Posto I. A Gaiola das Doidas. Dividimos parede com elas. Eu e Dona Odith. Atende por Odete.

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