ENTRE LUGARES
André Hauck
Camila Otto
ENTRE LUGARES
AndrĂŠ Hauck
Camila Otto
Relato de um quarto país: foz, fronteiras e entre-lugares visitados por André HaucK & Camila Otto Júlio Martins
Uma hipótese inicial, em meio às tantas incertezas cultivadas neste texto, deve admitir que as distâncias se passam sob diferente duração quando duas pessoas viajam juntas. Talvez o viajante solitário experimente a temporalidade arraigada a seu estado psíquico e busque ânimo renovado ao harmonizar suas paisagens íntimas à geografia desconhecida que contempla e percorre silenciosamente ao longo da viagem. Talvez por isso Rudyard Kipling tenha escrito que se viaja mais rápido quando se viaja sozinho. Entretanto, viagens em casal, como num pas de deux, implicam num adensamento do diálogo, em reconhecer as distâncias e equacionar vontades ao buscar estabelecer proximidade. Ao que corresponde ainda uma desaceleração do olhar, que decanta a paisagem entre os enquadramentos de cada um e aqueles que produzem juntos, por entre as diferenças e as conciliações que se estabelecem pelo olhar quando dois pontos de vista, muito próximos, ou pousam sobre o mesmo objeto ou encontram, nele, facetas levemente divergentes. As motivações de André Hauck e Camila Otto em compartilhar o olhar numa viagem para Foz do Iguaçu encontram na literatura dois exemplos fascinantes, dois relatos de viagens escritos a quatro mãos, por casais. O primeiro é o de Osman Lins
e Julieta de Godoy Ladeira, que narram uma passagem pela America Latina em sucessivos incidentes, que por fim revelam a pobreza de um continente e levam os autores a perguntar no título: La Paz existe? A princípio, o casal começaria a viagem no Peru e chegaria à Bolívia, em La Paz, simbolicamente o destino final. Contudo, a precariedade de circunstâncias profundamente adversas frustra o roteiro, redefine o programa e afeta o olhar do casal, como lemos nas reflexões de Osman Lins sobre a condição de “viajar e não ver”. Em Os Autonautas da Cosmopista, Julio Cortázar e Carol Dunlop relatam suas expedições ao longo da estrada que liga Paris a Marselha, um trecho que comumente se completa em 8 horas, mas que foi realizado em 33 dias. O casal definiu regras para explorar todos os parkings pela estrada, diariamente. Assim, a viagem proporcionou momentos de intimidade entre os dois, fora do tempo e do espaço, tendo por pano de fundo os prognósticos ruins de saúde de ambos. Meses depois Carol Dunlop morreria de leucemia, Julio Cortazar no ano seguinte. O livro conta através de seus diversos registros a última viagem que fizeram juntos, foi a maneira que encontraram para prolongar o adeus. É curioso que em ambas as aventuras o destino final não define a vocação da viagem, que se concentra no caminho percorrido e nas múltiplas sensações colhidas ao longo do trajeto, as narrativas se passam exatamente nos deslocamentos juntos, quando as relações entre os autores se intensificam. Porém, embora sejam notáveis os recursos literários e os experimentos com o foco narrativo nos dois livros, as próprias marcações gráficas indicadas no texto definem autorias independentes, que se complementam no enredo. O duplo relato na linguagem escrita limita, talvez, um
amálgama entre as vozes. Já no ensaio fotográfico apresentado em Entre Lugares, por outro lado, a autoria das fotos é dissolvida entre André Hauck e Camila Otto. A linguagem fotográfica é álibi para compor certo anonimato, que é também uma partilha, e que permite inserir o leitor na mesma incerteza dos viajantes e adere às imagens a condição estrangeira que eles experimentaram, necessariamente parcial, suportada por dúvidas e suposições. Muitas das fotos lidam mesmo com circunstâncias de indefinição, entre o desconhecido e o insignificante. A impessoalidade nos temas, nas escolhas e nos enquadramentos, afastada de qualquer apelo sedutor e “turístico” da imagem, é ainda reforçada pelo fato de não se acoplar nenhuma referência ou legenda informativa ao que a fotografia expõe. O estranhamento é reposto nas imagens. Mais que dar a ver determinada geografia ou território, as imagens impõem um efeito de presença, uma noção de olhar indireto, como nas fotografias de fundos das casas, de lugares ermos, de frestas que propõem aberturas estreitas ao olhar, de arquiteturas e paisagens inexpressivas, placas e línguas indecifráveis, em que se manifestam modalidades de invisibilidade. Outro dado interessante foi a utilização exclusiva de filme em película, o que diminuiu o controle na produção das imagens. Desde o início, os artistas desejavam mergulhar na fenomenologia do encontro, contaminar o olhar na indeterminação da viagem como busca pelo desconhecido. Em Foz do Iguaçu, André Hauck e Camila Otto se esforçaram em obliterar noções espaciais, mais que exceder fronteiras, interessados justamente em explorar a dimensão de “entre lugar” que a cidade oferece ao estabelecer a tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Contudo, somente a artificialidade desses limites se deixa ver
pelos olhos dos fotógrafos. A fronteira que experimentam é líquida, com a fluidez do Rio Paraguai, instável e flexível, animada e atravessada constantemente por contágios identitários, geográficos, políticos e sociais. Pelas fotografias, nos aproximamos de situações cujos trânsitos e dinâmicas mostram-se incontornáveis. Como definido por Romi Bhabha, o “entre lugar” inaugura e oferece um espaço de subjetivação. O olhar nômade e cúmplice de André Hauck e Camila Otto desagua na foz – lugar sem pertencimento a lugar nenhum – e nos conduz por uma visita a um território disperso, outro, que escapa de sua localização entre Brasil, Paraguai e Argentina, e cujas singularidades inventam um quarto país.
Tale of a fourth country: Outfall, frontiers and in-between places visited by Andre Hauck & Camila Otto JĂşlio Martins
An initial hypothesis, amid so many uncertainties grown in this text, must admit that distances go by under different durations, when two people travel together. Perhaps the lonely rider experience the temporality rooted in her/his mental state and seek renewed mood by harmonizing their intimate landscapes to the unknown geography she or he contemplate quietly along the journey. Maybe that is why Rudyard Kipling once wrote that one travels faster when traveling alone. However, traveling as a couple, as a pas de deux, imply an intensification of the dialogue in recognizing distances and equate wills, while seeking to establish proximity. This also would still mean a slowdown look, one which decants the landscape between the frameworks of each, and those they produce together, through differences and reconciliations that are established by seeing; when two points of view, very close one to another, either land on the same object or find in it slightly divergent facets. Andre Hauck and Camila Otto’s motivations to share their sights on a trip to Foz do Iguaçu find correspondence in Literature, in two fascinating examples; two travel accounts written by four hands, by couples. The first is the one by Osman Lins and Julieta de Godoy Ladeira, which tells their passage in Latin America in successive incidents, which finally reveal the poverty of a continent and led the authors to ask in the title: La Paz exists? At first, the couple would begin to trip in Peru and end it in La Paz, Bolivia,
symbolically the final destination. However, the precariousness of deeply adverse circumstances frustrates the script and resets the program, affecting the view of the couple, as we can read in Osman Lins’ reflections on the condition of “traveling and not seeing.” In Os Autonautas da Cosmopista, Julio Cortázar and Carol Dunlop report their expeditions along the road connecting Paris to Marseille, a stretch that usually is completed in 8 hours, but that was conducted in 33 days. The couple set rules to explore all parkings on the road, daily. Thus, the trip provided them moments of intimacy, out of time and space, with the backdrop of the bad health prognostic of both. Months later, Carol Dunlop died of leukemia, and Julio Cortazar died in the following year. The book reveals various records of their last trip together, that was the way they found to prolong their farewell. It is curious that in both cases the final destination doesn’t define the vocation of the trips, which focus on the progress made and the multiple sensations collected along the ways, the narratives happen exactly in the shifts they make together, when relations between the authors intensify. However, while literary resources and experiments with the narrative focus are notable in both books, and the very graphic markings indicated in the text define independent authorship, complementing one another in the storyline. The double report, in written language, perhaps limits an amalgam between the voices. But in the photo essay Between Places, on the other hand, the authorship of the photos is dissolved among Andre Hauck and Camila Otto. The photographic language is alibi to a making of certain anonymity, which is also a share, and allows the reader to enter the same uncertainty as travelers do, adhering to the images the foreign condition they experienced, necessarily partial, supported by doubts and assumptions. Many of the photos deal, indeed, with circumstances of uncertainty, something between the unknown
and insignificant. The impersonality in themes, choices and frameworks, away from any seductive appeal or “tourist” glance, is further enhanced by the fact of the pictures sets not being engaged with any references or informative captions to it. Estrangement is reset back onto the images. More than giving us a certain geography or territory, the images impose a presence effect, a notion of indirect look, as in the photographs of the background of houses, deserted places, cracks, which propose narrow openings to the sight, meaningless architectures and landscapes, signs and indecipherable languages, all which manifest some invisibility arrangements. Another interesting fact was the exclusive use of film, which decreases control in image production. From the beginning, the artists wanted to dive in the phenomenology of the encounter, and contaminate their looks on the indeterminacy of the trip and the search for the unknown. In Foz do Iguaçu, Andre Hauck and Camila Otto made efforts to obliterate spatial notions; more than exceeding borders, they were rather interested in exploring the dimension of a “in-between place” that the city offers just by being the triple border between Brazil, Paraguay and Argentina. However, only the artificiality of these limits is allowed to be seen through the eyes of the photographers. The border they experience is liquid, with the fluidity of the Paraguay River, unstable and flexible, lively and constantly crossed by identity, geographical, political and social inoculations. Through the photos we approach situations whose transits and dynamics are compelling, unavoidable. As defined by Romi Bhabha, the “in-between place” inaugurates and offers a subjectivity space. The nomadic and accomplice sight of Andre Hauck and Camila Otto flows into the river mouth - a place without belonging to anywhere - and takes us on a visit to a disperse territory, another, escaping from its location between Brazil, Paraguay and Argentina, and whose singularities invent a fourth country.
ENTRE LUGARES Fotografias | Photographs André Hauck Camila Otto Edição | Edition André Hauck Camila Otto Clarice Lacerda
PROJETO GRÁFICO | Graphic DesigN Clarice Lacerda
PRODUçÃO | PRODUCTION Guilherme Machado
Texto | TexT Júlio Martins Tradução | Translation Luciana Tanure
edições de artista www.nunc-livros.com
Projeto contemplado pelo 13º Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia. Distribuição Gratuita | Venda Proibida
Apoio
Este livro foi composto nas fontes Interstate Mono, Arno Pro e família Univers LT Std. Capa impressa em papel Couché 150 g/m2,, miolo impresso em papel Offset 150 g/m2. Impressão e acabamento da 1a edição, de 500 exemplares, realizados pela TCS Soluções Gráficas e Editora, em Belo Horizonte, no mês de fevereiro de 2015.