JORNALIRISMO Florianópolis, 10 de novembro de 2015
Edição 1 Ano 1
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JORNALIRISMO
Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Camila Valgas Serviços editoriais: Fórum das Letras e FENAJ Impressão: Post Mix Novembro de 2015
Um tempo de boas reportagens O livro é uma coletânea de matérias com personagens e narrativas que renderiam bons filmes
No primeiro capítulo temos O diário de uma favelada: a reportagem que não terminou, trabalho que começou por conta de uma ideia de Audálio: queria acompanhar uma favela localizada
no bairro Canindé, ao lado do Tietê. Voltou à redação três dias depois, havia conhecido Carolina Maria de Jesus - uma favelada que mantinha diários relatando sua rotina e da família. “Isso dá um livro!”, comentou seu chefe da época, entusiasmado. De fato, após uma reportagem na Folha da Noite que despertou o emocional do público, Carolina tornou-se uma autora publicada, vivenciando uma realidade antes muito distante: hotéis luxuosos, restaurantes caros e roupas novas. Esta era a dimensão de uma matéria dele - a mudança completa na vida de “alguém que antes era ninguém”. Como estudante de jornalismo, um dos textos que mais prendeu minha atenção foi Nossos desamados irmãos loucos, que através do título já sucinta a curiosidade do leitor. Audálio descreve a situação do hospital
Mais histórias no papel Jornalista e escritor, Audálio Dantas é autor de doze livros. Somente em 2012 lançou Tempo de reportagem (São Paulo, Editora Leya) e As duas guerras de Vlado Herzog (Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira), reconstituição do episódio do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar em 1975. Entre suas obras destacam-se também livros infanto-juvenis, como A infância de Graciliano Ramos, premiado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. A sinopse afirma que o livro retrata “a aridez do nordeste brasileiro que Graciliano quando menino fez as primeiras descoberta sobre o mundo”. Dantas escreveu também O circo do desespero, antiga versão do atual Tempo de
psiquiátrico mantido pelo governo de São Paulo, o Juqueri. Na introdução que antecede todas as reportagens contidas na obra, ele discorre sobre a dificuldade em encontrar palavras para descrever o indescritível, uma verdadeira situação subhumana. “O difícil era suportar
Reportagem. Já sua obra O menino Lula conta “a história do pequeno retirante que chegou à presidência da República”, e ao escrevê-la, ele não escolhe as palavras, não omite fatos - assim como em todos os seus outros trabalhos. Ainda temos com O Chão de Graciliano, vencedor do Prêmio APCA 2007. O livro é resultado de várias viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco, a partir de 2002, e foi considerado o mais importante até hoje realizado sobre a vida e a obra do escritor. Audálio através de suas obras registrou fatos históricos e dramas cotidianos que marcaram a trajetória recente de um Brasil que ele sempre amou e, cumprindo a ética de seu ofício, ajudou a libertar.
o espetáculo de miséria humana que aquele lugar expunha”, relata Dantas enquanto faz duras críticas ao sistema de saúde e à instituição. Ao longo das 287 páginas, suas reportagens massacram para o leitor a miséria e a desigualdade. O circo do desespero e A maratona do beijo discorrem sobre competições onde os participantes encaram o frio, o calor, a fome, o cansaço - tudo em busca de um determinado prêmio que os ajude a ter uma vida mais digna. A primeira narra uma competição de dança carnavalesca com duração de quatro dias, a outra uma maratona de resistência entre casais: quais se beijariam por mais tempo? Perpetuou-se por 62 dias intermináveis para cada casal competidor. Inacreditável, chocante, o livro mostra a cara do Brasil de forma sincera e, certamente por isso, triste sobre alguns as-
pectos. Joaquim Salário-Mínimo machuca o leitor com o rigor de apuração feito para “revelar a realidade sombria dos trabalhadores com renda mínima”: a riqueza em detalhes nos faz entrar diretamente na rotina de Joaquim Gonçalves da Cruz, Dona Ana e seus quatro filhos - todos vivendo em um quarto de madeira sem banheiro e com apenas uma cama. Não só reportagens com redação instigante compõem a obra, mas também reflexões sobre a arte do jornalismo. Audálio, aos 80 anos, atenta-se à sua escrita, seu modo de ver o mundo e descrevê-lo. Faz críticas a si mesmo, especifica detalhes antes de conhecimento apenas pessoal. Uma verdadeira aula para quem busca aprimorar suas palavras e sua apuração - perfeito para quem gosta de contar histórias, ou melhor, boas histórias.
Além de escrever, ele cativa a liderança por onde passa Audálio é escritor e jornalista, mas ainda tem atuação em entidades culturais e profissionais. Teve destacada atuação no sindicalismo e na política sendo presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, da Federação Nacional dos Jornalistas e do Conselho da Fundação Cásper Líbero, além de vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e deputado federal por São Paulo. Atualmente é conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE) e do Instituito Vladimir Herzog. Para completar, em 1982 recebeu pela ONU um prêmio por sua atuação em defesa dos Direitos Humanos.
“Eu costumo dizer que estive várias vezes em condição de liderança, sempre levado de baixo para cima. Sempre foi algo que veio da base”, relata Dantas. O jornalista ainda afirma que quando abraçou a profissão, ele a entendeu como sendo realmente fundamental do serviço público. As posições importantes que veio a ocupar “são frutos de um trabalho sempre honesto. Não gastei um real com minha campanha para deputado federal: apenas fui levado, fui conduzido.”
Foto: arquivo pessoal
Audálio Dantas é, antes de jornalista, um homem que serve ao povo. Seu livro Tempo de repor- tagem, publicado pela Editora Leya, demonstra isso por si só - todas as matérias possuem uma veia humanística, de compromisso com a sociedade: uma verdadeira coletânea de seus me lhores momentos como repórter. Com prefácio de Fernando Morais intitulado Um outro Audálio, tão bom quanto o que peitou a ditadura, a obra apresenta treze reportagens originalmente publicadas entre 1958 a 1993 nas revistas Realidade e O Cruzeiro, que permeiam entre desigualdades sociais, lutas políticas e sobretudo um jornalismo que serve como relato histórico.
“Às vezes, os repórteres pensam que podem mudar o mundo…” Audálio Dantas em Tempo de Reportagem
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Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Camila Valgas Serviços editoriais: Fórum das Letras e FENAJ Impressão: Post Mix Novembro de 2015
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Um brinde à verdade, mesmo tardia A Comissão da Verdade quer trazer à tona violações e crimes ocorridos durante governo militar A lei da Anistia, nome popular para a lei nº 6.683 promulgada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente João Batista Figueiredo concedia anistia a “todos (...) no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 que cometeram crimes políticos ou conexos com estes (...) punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. Entretanto, com o perdão político, não apenas os presos, torturados e exilados podiam caminhar livremente pelo Brasil, mas também os torturadores
e assassinos que trabalharam a serviço do regime. Por este motivo nasceu a Comissão da Verdade, com finalidade de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas durante o período do governo militar. A Comissão Nacional da Verdade dos Jornalistas, em especial, é composta por Audálio Dantas, Nilmário Miranda, Rose Nogueira, Carlos Alberto Caó e Sérgio Murillo de Andrade. Foram constituídas Comissões da Verdade dos Jornalistas em Alagoas, Amazonas, Bahia,
O absurdo caso de Vlado Herzog, vítima da ditatura Um Ato Inter-Religioso em São Paulo homenageou os 40 anos sem Vladimir Herzog no último dia 25, na Catedral da Sé. “Foi o momento de maior tensão dos protestos iniciados pelo Sindicato dos Jornalistas. A catedral não coube a multidão de 8 mil pessoas. Poderia, ali, ocorrer uma grande tragédia. Mas a multidão deu uma lição de civilidade à truculência. Não houve o pretexto que os militares esperavam para justificá-la”, relata Dantas sobre o grande protesto de 75.
Audálio, em especial, possui uma perspectiva única dos fatos: presidia o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo havia seis meses quando, depois de
A semana seguinte, que culminou com o ato ecumênico na Catedral da Sé, foi tensa e entrou para a história como um divisor de águas. O então presidente Ernesto Geisel, que defendia a abertura política, estava no dia do culto e mediu forças com a linha-dura do Exército. Venceu meses depois, após outro assassinato, do metalúrgico Manoel Fiel Filho, quando demitiu o comando militar de São Paulo. “A morte do Vlado fez com que alguns jornalistas tomassem vergonha e começassem a perder o medo, assim como alguns donos de jornais”, afirma Audálio. Foto: arquivo pessoal
O livro dele, As duas guerras de Vlado Herzog ganhou o mais tradicional prêmio literário, o Jabuti. Venceu sem concorrentes que não quiseram disputar em respeito a sua trajetória. Recebeu também o prêmio Intelectual do Ano da União Brasileira de Escritores (UBE). Nenhum outro fato da história do jornalismo brasileiro foi mais estudado do que o assassinato de Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Segundo Exército, em São Paulo. Há pelo menos meia dúzia de livros sobre o tema, com a reconstituição das circunstâncias e depoimentos de protagonistas.
uma escalada de violência da ditadura militar, Vlado morreu na cela em que se encontrava detido. A versão oficial, de que teria se suicidado, foi posta em xeque em nota do sindicato. O texto, publicado por quase todos os jornais, era cuidadoso e não falava em assassinato, mas foi a primeira manifestação pública que não endossava a versão do regime.
Vlado era diretor da TV Cultura
Ceará, Distrito Federal, Grande Dourados, Rio de Janeiro, Goiás, Norte do Paraná, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins. Deve constar nos relatórios produzidos por essa Comissão todos os profissionais vítimas de perseguição, demissão ou impedimento de trabalhar, exílio, prisão, tortura ou morte, data e local dos acontecimentos, identificação de possíveis perseguidores ou torturadores e resumos
dos depoimentos e entrevistas. Além disso, veículos de comunicação fechados entre o período 1964/1985 devem constar igualmente nos documentos, assim como empresas que tenham colaborado de alguma forma com a ditadura. Todos os relatórios, incluindo os arquivos de imagem e vídeo, devem ser enviados à Secretaria da FENAJ até 5 de dezembro deste ano. A ideia é construir o mais amplo levantamento documental e iconográfico possível, recuperando a história dos
jornalistas vítimas da ditadura militar. “Integro atualmente a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo com o objetivo de esclarecer crimes praticados por agentes do poder municipal da maior cidade do país contra seus servidores e cidadãos em geral. Participar de uma comissão da verdade significa para mim a oportunidade de poder contribuir para que a sociedade tenha acesso a informações sobre um período escuro da nossa história”, conclui Audálio.
O grande mestre do jornalismo fala sobre suas ideias e trabalhos
S
ereno, incisivo, sem sinal de vaidade e com uma trajetória de vida exemplar. Das grandes reportagens em jornais e revistas, da coragem na condução do Sindicato dos Jornalistas em sua hora mais dramática, a do assassinato de Vladimir Herzog nos porões durante a ditadura militar: conheça Audálio Dantas.
cipal valor da informação é a sua credibilidade: precisa-se de apuração dos fatos.
“O toque emocional faz parte do meu estilo de escrever”
O que pensa sobre hoje qualquer um pode ser produtor de conteúdo? Eu acho que isso é a apropriação legítima da tecnologia. Mas dizer que qualquer um pode ser jornalista é uma falácia. O prin-
No meu caso, isso está estritamente ligado a minha formação e a minha personalidade, sempre fui preocupado com as questões sociais do Brasil. Eu acho importante tratar os assuntos como de interesse humano. Como o senhor conseguiu focar no trabalho de repórter nas suas matérias e distanciar o emocional? Ou acredita que os dois se complementam?
O senhor abraçou o desafio de transformar vida em texto jornalístico em cada reportagem. O que acredita ser necessário para um bom repórter? Essa é difícil [risos]. O principal é ter vocação e consciência do papel social que o jornalista deve exercer. Ou seja, o papel de informar. Em segundo, é muito importante a questão da qualidade do texto, ele precisa ser escrito de maneira que atraia o interesse do leitor. O senhor circulou por grandes veículos, como O Cruzeiro, Quatro Rodas, Realidade… se pudesse escolher qualquer uma das publicações existentes hoje para trabalhar, qual seria? Escreveria para a revista Piauí, um veículo com textos excelentes. Acho que é a única que eu gostaria de publicar minhas matérias atualmente. É a única que oferece o que oferecia a Realidade: condições de trabalho, tempo para apurar.
função do jornalismo neste quesito?
Esse toque emocional faz parte do meu estilo de contar as coisas. Acho que isso revela muito de mim mesmo, da minha sensibilidade e do meu olhar. Eu revelo a emoção mesmo, acho importante passar isso para o leitor. Só que sempre lembrando: a informação vem em primeiro lugar. Audálio têm 12 livros publicados
O senhor já publicou vários livros. Algum deles lhe deu mais prazer ao escrever? A questão do prazer não significa que resulte no meu melhor trabalho. Tive muito prazer ao escrever minha série de livros infantis. Mas o livro que me deu mais trabalho e que ao mesmo tempo considero o mais significativo foi As duas guerras de Vlado Herzog, pelo tema exposto. Falando de Tempo de Reportagem, o livro é uma coletânea dos seus melhores trabalhos, todos com caráter social. Como o senhor enxerga a
O senhor responsabilizou os militares pelo assassinato de Vladimir Herzog. Como arranjou forças para permanecer na luta pela democracia? A questão do Herzog tem a ver com um traço da minha personalidade. Sou contra a violência e aquele episódio foi uma demonstração de que a violência chegava aos limites, era um terror de estado do qual o Vlado foi vítima. Quando fui eleito presidente do sindicato nunca havia sentido desejo por uma carreira sindical, mas ali vi que tinha um papel político a desempenhar. Era uma função que me permitia exercer meu papel de cidadão contrário à ditadura militar, e foi isso que aconteceu.
“Uma lei do bom jornalismo manda que se ouça o outro lado…” Audálio Dantas em Tempo de Reportagem