Relatรณrio
AvaliaCaminhos 2017
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“no meio da pedra, havia um Caminhos�
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE GESTÃO DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO NA SAÚDE FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA EM SAÚDE UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
RELATÓRIO FINAL
AvaliaCaminhos
2017
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
EXPEDIENTE Ministério da Saúde (MS) Ricardo Barros
Coordenação do projeto Caminhos do Cuidado Maria Cristina Soares Guimarães
Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde (SGTES/MS) Rogério Luiz Zeirak Abdalla
Coordenação Executiva Maria Conceição Rodrigues Carvalho Ruy Casale
Departamento de Gestão da Educação na Saúde (Deges/SGTES/MS) Cláudia Brandão Gonçalves da Silva
Fotografias: Banco de Imagens AvaliaCaminhos Redação: Equipe de Análise - Analíticxs Trêmul@s
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Nísia Trindade Lima Vice-Presidência de Ensino, Informação e Comunicação (VPEIC/Fiocruz) Manoel Barral Netto Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) Rodrigo Murtinho
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FICHA TÉCNICA
PROGRAMA DE AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL EDUCATIVA - AVALIACAMINHOS Articuladores Locais
Coordenação Geral Lisiane Bôer Possa Frederico Viana Machado Ricardo Burg Ceccim
Acacia de Lima Uchiyama Escola de Formação Profissional Enf Francisca Saavedra/AM Adamo da Silva Macedo Escola Técnica do SUS Dr Antonio Marchet Callou ETSUS Cariri/CE Alessandra Dias da Silva Escola de Formação em Saúde-EFOS/SC Alessandro Augusto Soledade Reis Escola Técnica do SUS de Sergipe/SE Alessandro Pinho Salomão Escola Técnica Do Sus Prof Ena De Araújo Galvão/MS Amélia Cristina Santos Alcoforado Centro de Educação Técnico Profissional na área de Saúde Cetas/RO Caio Garcia Correia Sá Cavalcanti Escola de Saúde Pública do Ceará/CE Cione Bertoldo Zanella Tognetti Centro Formador de Recursos Humanos para Saúde/SP Claudia Cristiane Moura Silva Souza Escola de Formação Técnica em Saúde Professor Jorge Novis/BA Cristiane Maria Rotava Centro Formador de Recursos Humanos Caetano Munhoz da Rocha/PR Edelves Vieira Rodrigues Centro de Educação Tecnológico e Pesquisa em Saúde Escola GHC/RS Eliana Maura Teixeira Cardoso Centro de Educação Profissional Graziela Reis De Souza/AP Elzimar Evangelista Peixoto-Pinto Escola Técnica e Formação Profissional de Saúde Profª Ângela Maria Campos da Silva/ES Emilene Andrada Donato Escola Técnica de Saúde de Alagoas Profa Valéria Hora/AL Emmanuele de Jesus Balata Souza Escola Técnica do SUS Dra Maria Nazareth Ramos De Neiva/MA
Secretaria Executiva Simone Chaves Marisa Rolim Aliriane Almeida Luciano Agnes Sharlene Goulart Fiscal do Contrato Marcelo Carbonel Equipe AvaliaCaminhos Anna Letícia Ventre Francéli Francki dos Santos Frederico Viana Machado Karlyse Claudino Belli Lisiane Bôer Possa Pedro Augusto Papini Renata Castro Gusmão Stefanie Kulpa Equipe de Análise - Analíticxs Trêmul@s Anna Letícia Ventre Edelves Vieira Rodrigues Eliana Maura Teixeira Cardoso Elzimar Evangelista Peixoto-Pinto Inez dos Santos Gonçalves Francéli Francki dos Santos Frederico Viana Machado Gisele de Cássia Galvão Ruaro Jucineide Schmidel Karlyse Claudino Belli Lisiane Bôer Possa Luigi Deivson dos Santos Marcelo Takiishi Scrocco Nathalia Borba Raposo Pereira Pedro Augusto Papini Renata Castro Gusmão Samara Ferreira Pequeno Leite Stefanie Kulpa
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Ricardo Chaves de Carvalho Centro Formador de Recursos Humanos para Saúde/SP Rossana Mota Costa Centro de Formação de Pessoal para os Serviços de Saúde/RN Rossana Pontes Escola Técnica de Saúde de Brasília/DF Samara Ferreira Pequeno Leite Escola de Saúde Pública de Iguatu/CE Silvio Vieira De Oliveira Junior Escola Técnica de Saúde do SUS em Roraima/RR) Tania Valeria Lucas Escola Estadual de Saúde Pública Cândido Santiago/GO Vania Maria Ramos Centro Formador de Recursos Humanos para área da Saúde de Osasco/SP
Francisca Josellia Moreira da Silva Escola Técnica do SUS do Piauí Monsenhor José Luís Barbosa Cortez/PI Gisele de Cássia Galvão Ruaro Escola Técnica do Sistema Único de Saúde Blumenau/SC Inez dos Santos Gonçalves Escola Tocantinense do SUS de saúde Dr Gismar Gomes/TO Jonathan Elias Teixeira Lucena Centro Formador de Recursos Humanos da Paraíba/PB Jucineide Schmidel Escola de Saúde Pública de Mato Grosso/MT Kalinne Cabral Pinto Escola Técnica do SUS do Pará Dr Manuel Ayres/PA Ludmilla Langer Chiaradia CEFOR - ETSUS Franco da Rocha/SP Luigi Deivson dos Santos Escola de Governo de Saúde Pública de Pernambuco/PE Marcelo Takiishi Scrocco Escola Municipal de Saúde/SP Maria de Nazaré Bezerra Figueiredo Escola Técnica em Saúde Maria Moreira Da Rocha ETSUS Acre/AC Maria do Carmo Ribas dos Santos Centro Formador de Pessoal para a Saúde de Assis/SP Maria Gilda Alves De Oliveira Escola de Formação Técnica em Saúde Enf Izabel Dos Santos/RJ Maria Helena Colombo Pecin Centro de Formação de Recursos Humanos para o SUS de Araraquara/SP Maria Socorro De Araújo Dias Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia/CE Nathália Borba Raposo Pereira Núcleo de Educação e Formação em Saúde da Secretaria de Saúde do Estado do Espírito Santo / ES Raqueline Esteves Assunção Escola de Saúde Pública de Minas Gerais/MG Rejane Roesler Mocinho Escola Estadual de Educação Profissional em Saúde/RSl Renata Flávia Nobre Canela Dias Escola Técnica de Saúde do Centro de Educação Profissional e Tecnológica da Unimontes/MG
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
EQUIPE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ACOMPANHAMENTO, MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO NA EDUCAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA Coordenação Profa. Dra. Rosângela Soares
Tutoras Maria Beatriz Miranda Matias Jania Lurdes Pires Samudio Leandro Roque Neusa Goya Vania Priamo Milene Mendes Alessandra Heil Patrícia Ludmila Barbosa de Melo Maria Beatriz Miranda Matias Rosiene Rosa Pires
Secretaria Executiva Simone Chaves Gisele Martins Maciel da Rocha Sharlene Goulart Professores Prof. Dr. Frederico Viana Machado Profa. Dra. Dagmar Meyer Profa. Dra. Daniele Noal Gai Profa. Dra. Lisiane Possa Bôer Profa. Dra. Rosangela Soares Profa. Ms. Mel Bonfim
Educadores do Projeto Caminhos do Cuidado Aline Cescon Denis Petuco Marco Aurélio Jorge Marise Ramôa Pilar Belmonte Sandra Arouca Sergio Alarcon
Orientadoras/es de Aprendizagem Anna Letícia Ventre Francéli Francki dos Santos Pedro Augusto Papini Renata Castro Gusmão Renata Kroeff Stefanie Kulpa
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“no meio da pedra, havia um Caminhos�
no meio da pedra, havia um Caminhos
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................... CAPÍTULO 1 - SAZONALIDADES METODOLÓGICAS: DO PLANTIO À COLHEITA .................................................... Tempo I: Estudando o Solo: garatujas de uma Matriz Avaliativa ................................................ Tempo II: Adubando a terra: cuidando da trajetória avaliativa .................................................... Tempo IIIAnalisando a sazonalidade e as sementes: painel de especialistas .............................. Tempo IVConstruindo as ferramentas para o plantio: Matriz Avaliativa transforma-se em instrumento de avaliação ............................................................................................. Tempo VPrimeira safra de colheita: o exercício piloto ............................................................... Tempo VIPlantio-Colheita, Avaliação-experiência ....................................................................... Tempo VIIArticulação e colheita: capilarização no processo avaliativo ........................................ Tempo VIII - Da colheita: o processo analítico ..................................................................................
01 07 08 09 10 10
CAPÍTULO II - DIMENSÃO POLÍTICA ...................................................................................................................... Genealogia do projeto ........................................................................................................................... Ética, estratégia e articulação política e institucional ............................................................................ Ressonância nas Escolas Técnicas Do SUS ............................................................................................. Fortalecimento do SUS ...........................................................................................................................
31 32 35 39 40
CAPÍTULO III - DIMENSÃO GERENCIAL ................................................................................................................. Trocar a roda com o carro andando ....................................................................................................... Sobre esse trabalho a muitas mãos ....................................................................................................... Núcleo Estadual: uma gestão territorial ................................................................................................ Espaços colegiados de gestão do projeto .............................................................................................. Uma gestão moebiana ...........................................................................................................................
43 44 45 52 53 56
CAPÍTULO IV - DIMENSÃO ITINERÁRIOS FORMATIVOS ........................................................................................ Da construção da proposta pedagógica ................................................................................................. Dos arranjos, materiais e peripécias metodológicas .............................................................................. Selecionar para formar, formar para selecionar .................................................................................... Das complexidades de construir um processo de educação permanente à distância ...........................
57 57 59 64 66
CAPÍTULO V - DIMENSÃO CENÁRIOS DO CUIDADO ............................................................................................. Ressonância no processo de trabalho: jogos nas redes ......................................................................... Impasses da Permeabilidade entre Atenção Básica e Saúde Mental ....................................... Caminhos do Cuidado na equipe: Hierarquias e Permeabilidades das Rochas ....................... Uma clínica do morar: escutar, acolher, se vincular, cuidar .................................................... Jogos nas redes: tecendo espaços de cuidado ......................................................................... Veredas das ressonâncias no usuário ...................................................................................... Caminhos da mudança de si no encontro com a alteridade .................................................................. O encontro com o medo .......................................................................................................... O encontro com os preconceitos ............................................................................................. Mudança de olhar .................................................................................................................... Moebius aluno/a-usuária/o | Moebius trabalhador/a-usuária/o ............................................
71 71 72 76 82 86 92 96 98 103 106 110
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PALAVRA QUE CIRCULA ............................................................................................
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APÊNDICE - AVALIACAMINHOS: QUESTIONÁRIO NACIONAL AVALIATIVO ......................................................
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GLOSSÁRIO AVALIACAMINHOS ...................................................................................................................
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................................................
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IX
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“no meio da pedra, havia um Caminhos�
X
“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Introdução Sensação , sentido, gosto! É isso: Vi a partida, ouvi a andança e senti a chegança! Avaliar é como uma dança. Avalia-se o passo. O passo da dança em cada andança. Avaliança!
(Vania Priamo, Tutora Avalia/BA)
E
ste relatório traz em suas páginas algo de muito precioso: a experiência de cada uma e cada um. Apresentaremos um filigrama minúsculo, tal como Manoel de Barros nos ensina: ao
“ampliar a vida pra menos”, damos chance de fazer uma pequena dança em nós. Filigrama é um substantivo feminino relacionado à uma técnica de ourivesaria que consiste na aplicação de fios, geralmente de ouro ou prata, entrelaçados e soldados delicadamente. Aqui utilizamos o termo como uma imagem que expressa o entrelaçamento de algo pequeno e delicado e, exatamente por isso, valioso e significativo. Sabemos que avaliar as mudanças na percepção de temas tão sensíveis não é tarefa simples, e não raras vezes cabe muito mais aos poetas dizer sobre isso do que à literatura científica, que, ainda assim, para este caso, demandaria de mobilização de tecnologias longitudinais complexas e radicalmente participativas. Afinal, como avaliar o objetivo do Caminhos do Cuidado quanto a “mudança de olhar”, por exemplo, já que isto trata de algo tão sutil, mas que é, ao mesmo tempo, fundamental para incidir em temas polêmicos e carregados de apelo moral.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Neste sentido, os relatos que utilizamos devem ser vistos em sua sutileza, como pequenos gestos discursivos de interrupção. Acreditamos que esta forma de olhar possibilita que, pela descontinuidade, se abram fissuras, onde “as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismo de subjetivação”. (Larrosa, 2002, p. 21). Na escrita, nossos conceitos buscam uma forma de artesania, para que a análise possa ser acompanhada por todas e todos e que as palavras aqui apresentadas possam ganhar novos sentidos. Somos muitas mãos e olhos neste trabalho, cada qual com seu jeito de sentir, pensar e escrever. Este relatório buscou cuidar dos pensamentos e da escrita de cada uma e de cada um de nós, respeitando as diferentes formas de compreender e expressar, pois esta avaliação fez uma aposta na horizontalidade das relações desde o seu nascimento. Esta é uma avaliação que buscou sustentar a participação ao longo de todo seu processo de construção, e a produção dessa escrita não foge a esta regra. Assim, nossas páginas trazem diferentes artifícios, estilos e formas de narrar. Além disso, escrevem conosco mais de duas mil pessoas que emprestaram suas vozes, em números ou falas, no intuito de avaliar o Caminhos do Cuidado. Nas páginas que se seguem os excertos vocalizados são o que apresentamos de mais precioso, pois estão prenhes de múltiplas interpretações que podem ser feitas por quem os lê. Apesar dos diferentes tons, essa diversidade encontra sentido e harmonia por refletir o mosaico que foi este Projeto. O Caminhos do Cuidado se constitui de números e histórias infinitas. Histórias que contam como um curso de formação de 60 horas que seguiram reverberando em cada canto desse País, e que ganharam voz no processo avaliativo que aqui apresentamos. Histórias que pairavam sobre as/os mais de 230 mil trabalhadoras e trabalhadores que cursaram o Caminhos do Cuidado. Um curso que carregava a grandiosidade do singelo: a escuta, o olhar, o acolhimento. Nessa andança, por vezes, o caminho exige que se aperte o
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
passo, ou que se vá mais lento, mas foi no compasso do passo do outro que se dançou a andança, a avaliança. A temática da Saúde Mental e do uso de crack, álcool e outras drogas, foco do Caminhos, mostrou que o cuidado exige rede, que o acolhimento exige escuta, e a escuta, por sua vez, exige alteridade. Com as falas que nos encontramos nesse processo avaliativo, percebemos que esse tema toca forte, pois aciona histórias que nos fazem questionar o nosso próprio passo nessa dança do cuidado, elaborando tropeços em preconceitos, em medos e tabus. Acolher, nesse sentido, exigiu uma mudança de si, caminhos de um cuidado que levaram ao encontro com a alteridade e que, consequentemente, produziram ressonâncias nos processos de trabalho e na atenção com as usuárias e usuários do Sistema Único de Saúde. O Programa de Avaliação Institucional Educativa AvaliaCaminhos, contou com duas ações que se hibridizaram em todo o processo: 1) a avaliação nacional do Projeto Caminhos do Cuidado: que além do olhar avaliativo nacional sobre as ressonâncias do Caminhos do Cuidado, também contribuiu para alimentar o Observatório Caminhos do Cuidado com um grande banco de sementes; fruto de dados qualitativos e quantitativos do material plantado, cuidado e colheitado nos territórios, para que estes, possam seguir
alimentando
outros
olhares.
2)
Curso
de
Especialização
em
Acompanhamento, Monitoramento e Avaliação na Educação em Saúde Coletiva; tendo como público trabalhadores das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (ETSUS). Este curso oportunizou a elaboração de Projetos de Intervenção e trabalhos de conclusão que serviram tanto para avaliar os processos pedagógicos das ETSUS, como para aproveitar os dados colhidos na avaliação nacional do Caminhos do Cuidado e ampliar/qualificar o olhar sobre os territórios. No primeiro capítulo deste relatório - Sazonalidades Metodológicas: do plantio à colheita - apresentaremos nossos tempos metodológicos; são nove
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
tempos. Falaremos por etapas, da complexidade de planejar, estruturar, executar e monitorar as estratégias avaliativas que nos acompanharam. Tratase de como produzimos, organizamos e tratamos as informações. Esta complexidade segue a métrica da construção participativa, levando em conta fatores muito caros: a busca da capilaridade, da singularidade e da multiplicidade do Caminhos do Cuidado. Para dar liga a esta tarefa, apresentaremos conceitos que ajudaram a dar dizibilidade nas perguntas, na construção dos papéis e na produção e análise dos dados, como “colheita”, “permeabilidade”, “vaga-lume”, “fita de moebius” e, talvez a guarda-chuva destas, a “experiência”, termos que estão disponíveis para consulta em um glossário ao final do relatório e serão apresentados em itálico ao longo do texto. Como explicaremos nos tempos metodológicos, tivemos como guia deste
percurso
uma
Matriz
Avaliativa,
construída
coletivamente
por
participantes do Caminhos do Cuidado, que conta com quatro dimensões: Política, Gerencial, Itinerários Formativos e Cenários do Cuidado. Dimensões recheadas de questões com “perguntas, aberturas, inícios, janelas abertas, modos de continuar vivos, de prosseguir, caminhos de vida, possibilidade do que não se sabe” (Larrosa, 2016 p. 75). Perguntas-guias, que guiaram escolhas, conduziram buscas, articulações nos territórios, mobilizaram diversos atores, pelos mais diversos caminhos que foram sendo construídos durante o percurso. Tomaremos a ordem sequencial das dimensões como dispostas acima enquanto um recurso narrativo para apresentar esta avaliação. A Dimensão Política foi o terreno onde nasceu e se desenvolveu o Caminhos do Cuidado. Tomando aqui a política em suas macro e micro organizações discursivas; fazendo os primeiros ensejos de algumas problemáticas que permeiam todas as outras dimensões. Em seguida, na Dimensão Gerencial, traremos os pontos reflexivos da Matriz Avaliativa que se destacaram das rodas de conversa e entrevistas com
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
aquelas e aqueles que compuseram a gestão e execução do Projeto. Esta é a Dimensão que sustentou e, literalmente, alimentou as turmas, construindo uma arquitetura impressionante para abrigar o número de 292 mil vagas ofertadas. É
importante
frisar
que
estas
4
dimensões
se
hibridizaram
concomitantemente em território durante a execução do Caminhos do Cuidado. No entanto, duas delas em especial abrangem uma gama de informações que se referem não apenas ao escopo temporal da execução do Projeto, mas, também e principalmente, ao que permaneceu em memória e em prática das alunas e alunos do curso, ou seja, as “ressonâncias” que a intervenção Caminhos do Cuidado estende até o presente. Essas informações foram organizadas na Dimensão Itinerários Formativos e na Dimensão Cenários do Cuidado. O tamanho das dimensões segue a proporção da multiplicidade de informações e de atores que foram mobilizados para a avaliação. É deste modo que a dimensão Cenários do Cuidado comporta maior densidade neste relatório. Na Dimensão Itinerários Formativos trazemos o olhar dos diferentes atores sobre as rotas pedagógicas do projeto, rotas que buscaram dar passagem a uma experiência formativa que priorizou a aprendizagem a partir da reflexão sobre o cotidiano do trabalho e da vida daqueles que integraram as milhares de turmas realizadas em todo o território nacional. Aqui avaliamos os arranjos e peripécias metodológicas que constituíram o “jeito de ensinar” do Caminhos do Cuidado. Finalmente, na Dimensão Cenários do Cuidado, convidamos a leitora ou o leitor que ajeite-se na cadeira e estique as pernas. Pois aqui traçamos uma viagem em um mapa que percorre mais de mil vozes em rodas, adentrando mais de 400 cidades espalhadas em todos os estados do Brasil. E de onde emanam vozes que compõem relâmpagos de informações sobre “as ressonâncias nos processos de trabalho e nos jogos das redes” e a ”mudança de si no encontro com a alteridade”; dentro desta dimensão estes são os
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
grandes marcadores nos quais organizamos a enunciação da vida que derivou do Caminhos do Cuidado. Em todo o processo da Avaliação buscamos manter a criatividade e afetividade despertada pelo Caminhos do Cuidado, suas paixões e suas químicas. Nossa escrita reflete isso, incorporando em um mesmo nível epistemológico, teorias, poesias, gráficos, falas do cotidiano, números, fotos, organogramas, nuvens de palavras, relatórios, tabelas e outras fontes de informações. Estes elementos se integram nesta avaliação de modo a colocar em suspensão as hierarquias entre os saberes científicos e populares, integrando-os - tal como o faz o Agente Comunitário de Saúde em sua prática cotidiana. As falas que nos encontramos no processo de análise não nos deixam esquecer que nos ensinamentos do Caminhos do Cuidado há a sutil afirmação de que em todo saber há um resto, algo intangível, que só encontra sentido nos afetos. Por esta razão, este relatório vai gradativamente dando mais espaço para as falas dos territórios que ecoam em multidão nas considerações finais em um mosaico de vozes. Como de costume, nos sentamos em roda e finalizamos este relatório circulando a palavra. Das centenas de páginas que escrevemos durante o processo de análise, decantamos as dezenas aqui apresentadas. Entretanto, como desdobramentos deste processo, outros produtos serão apresentados futuramente em forma de artigos, capítulos, postagens, livros, mensagens e cartas de amor.
Equipe AvaliaCaminhos | Analíticxs Trêmulos
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
CAPÍTULO I SAZONALIDADES METODOLÓGICAS: DO PLANTIO À COLHEITA
Dá-se o nome de colheita ao ato de colher/apanhar os frutos que oferece a terra, geralmente obtidos através de cultivos. O termo também faz referência à época em que é realizada essa apanha, aos produtos apanhados e ao conjunto dos frutos. (...) A colheita, que pode ser realizada de forma manual ou com ajuda de maquinaria, é levada a cabo quando estes produtos alcançaram a sua maturidade. (...) De costume, os donos dos campos analisam qual é o melhor momento do ano para plantar e qual é o período propício para vindimar/apanhar/colher, com atenção às particularidades do clima para otimizar a produtividade a qualidade. Porém, há fatores imprevisíveis (como inundações, secas, geadas, etc.) que podem incidir nas colheitas. (...) Colheita, por último, é aquilo que se consegue como consequência das suas ações ou do destino. (http://conceito.de/colheita).
N
omeia-se colheita o ato de colher os alimentos que oferece a terra. O termo referenda um tempo particular, onde se realiza o processo de colheitar os frutos, os produtos da terra. Pode ser
realizada manualmente ou com ajuda de maquinaria. Um dado importante é que pode ser levada à cabo somente quando os produtos alcançaram certa maturidade. São as artesãs e artesãos do campo que analisam, com as aprendizagens exercitadas ao longo do ano, o melhor momento para plantar e o período propício para “vindimar|apanhar|colher”, com atenção especial ao clima, tipo solo e a fertilidade de cada território. Entretanto, há fatores que fazem-se disruptivos e imprevisíveis, como inundações, secas, geadas que podem incidir fortemente nas colheitas. Colheita, por fim, é consequência de ações e do destino. No AvaliaCaminhos trabalhamos com termos colheita de dados como forma de expressar que as informações construídas são selecionadas e colhidas de acordo com o solo de cada território, efeitos de um plantio e cuidados específicos. Nesta avaliação, fomos muitos as articultoras e os articultores que
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
compuseram uma equipe nacional que trabalhou de forma cooperativa e participativa
em
cada
um
dos
estados
do
Brasil.
A
metodologia
AvaliaCaminhos será apresentada com marcadores temporais desse percurso avaliativo, no qual apresentaremos as/os participantes e as técnicas de plantio, cultivo e colheita dos frutos deste trabalho, colhido na junção coletiva de muitos esforços.
Tempo I- Estudando o Solo: garatujas de uma Matriz Avaliativa
O AvaliaCaminhos teve como porto inicial a oficina “Caminhos do Cuidado: trajetórias”, realizada em setembro de 2015, em Brasília. Momento de nascimento da Matriz e suas perguntas
iniciais.
Participaram dessa oficina diretoras
e
diretores
das
Escolas
Técnicas
do
(ETSUS),
coordenadoras
SUS e
coordenadores estaduais e as/os integrantes da equipe nacional
do
Caminhos
do
Projeto Cuidado.
Foram dois dias de intensa construção
calcada
nas
muitas e híbridas trajetórias percorridas
com
o
Caminhos do Cuidado. Na busca
de
plantar
as
primeiras possibilidades de
Figura 1 - Desenhos produzidos por as/os participantes da oficina Caminhos do Cuidado: Trajetórias. Fonte: Banco de imagens AvaliaCaminhos.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
uma avaliação participativa e colaborativa, as/os participantes foram divididas/os em quatro grupos, quatro cores, quatro dimensões. Cada grupo ocupou-se de uma dimensão, naquele momento nomeadas: Gerencial, Território, Político e Didático-pedagógica. A tarefa: propor um texto descritor para cada dimensão, suas perguntas e possíveis fontes de resposta. De Brasília retornou um vasto material produzido com os questionamentos desses
atores.
Deste
primeiro
encontro,
firmou-se
o
compromisso
de
participação ativa das ETSUS em todo o processo avaliativo. Iniciou-se um árduo labor de lapidação do material, com o cuidado de contemplar as interrogações lançadas e sustentar a pulsação deste primeiro encontro.
Tempo II- Adubando a terra: cuidando da trajetória avaliativa
Em outubro de 2015, em Porto Alegre, aconteceu um encontro com as equipes de coordenação do Caminhos do Cuidado, juntamente com a FIOCRUZ e UFRGS. Painéis representando cada uma das dimensões da Matriz, mantendo a representação das cores da oficina de Brasília, foram distribuídos pelas paredes de uma sala para intervenções. A Matriz passa por mais uma metamorfose com a contribuição deste grupo.
Figura 2 - Encontro Painel de Especialistas Fonte: banco de imagens AvaliaCaminhos.
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Tempo III- Analisando a sazonalidade e as sementes: painel de especialistas
Em dezembro de 2015, após as contribuições de pessoas ligadas ao Caminhos do Cuidado, convidou-se profissionais com larga trajetória na Saúde Mental, Redução de Danos, avaliação em saúde e processos pedagógicos para compor o “Painel de Especialistas”. Com o envio prévio de um livreto feito artesanalmente, costurado à mão, contando o percurso da construção e explicando Matriz Avaliativa, foram discutidas sua comunicabilidade e possibilidades avaliativas. Neste terceiro tempo, as dimensões ganharam suas roupagens atuais: Gerencial; Cenários do Cuidado (incorpora o território); Político; e Itinerários Formativos (inicialmente Didático-pedagógica). De lá, uma força: era tempo de ir a campo, sentir no corpo essas transformações e experienciar a avaliabilidade da Matriz.
Tempo IV- Construindo as ferramentas para o plantio: Matriz Avaliativa transforma-se em instrumento de avaliação
Nos meses de janeiro e fevereiro de 2016 a equipe nacional do AvaliaCaminhos constrói os instrumentos de avaliação a partir da Matriz: a) roteiros de entrevistas e rodas de conversa específicos para cada um dos atores envolvidos (Tutor/as; Orientador/as, Coordenações - estadual, executiva, pedagógica
e
macrorregional
-,
Educadoras/es,
Apoios
Pedagógicos,
Gerentes de Unidades de Saúde e Alunas e Alunos da Formação do Caminhos do Cuidado); b) questionário voltado especificamente para egressas/egressos do curso, ACS e ATEnf, para ser enviado por e-mail, possibilitando uma maior amostragem sobre alguns pontos estratégicos da avaliação.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Tempo V- Primeira safra de colheita: o exercício piloto
O exercício piloto, ou a primeira colheita da avaliação do projeto Caminhos do Cuidado, operacionalizou-se com o intuito de aprimorar as ferramentas avaliativas. Exercitou-se o roteiro nutrido pela Matriz a partir de entrevistas e rodas de conversa. Foram contemplados os núcleos da Coordenação Nacional do Projeto e o material colheitado nessas rodas compôs o primeiro banco de dados da avaliação. Importante ressaltar que durante todo o percurso a Equipe Nacional de Avaliação aguçou seu olhar e seus registros sobre as interações em campo. Nas rodas de conversas adotou-se a seguinte organização: uma/um escriba,
responsável
pela
relatoria
da
roda
e
no
mínimo
uma/um
mediadora/mediador, dependendo do número de participantes da roda. O roteiro foi utilizado como um direcionador da conversa, que funcionou de forma semiestruturada, buscando responder a Matriz
Avaliativa. As/os
participantes assinaram um termo de consentimento de participação e de uso de suas palavras para compor a avaliação nacional do Projeto Caminhos do Cuidado. Todas as rodas e entrevistas foram gravadas, para que posterior revisita do material. O modelo de roda de conversa se mostrou uma potente estratégia metodológica, indicando sua relevância para sua aplicação no restante do país, pois possibilitava a flexibilidade necessária para as singularidades dos territórios.
Tempo VI- Plantio-Colheita, Avaliação-experiência
A experiência como palavra-guia, não como um conceito, como aquilo que não se pode conceituar, mas sim como a possibilidade de narrar o acontecimento, da criação e da invenção. Uma construção teórica e prática
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que nos assinala importantes singularidades que chegam com esse termo, que faz a matéria-prima desta avaliação do Projeto Caminhos do Cuidado: contornar as experiências possíveis de serem enunciadas pelos participantes do Projeto, reconhecendo o saber da experiência que se forjou com o Caminhos do Cuidado. Experiência na densidade que Jorge Larrosa nos instiga e inspira, um exercício de reconhecer aquilo que nos acontece, que nos afeta, e que permanece em cada um/a após o encontro formativo avaliado. O autor suscita um importante pensamento sobre a dobra informação/experiência, uma pista que nos pareceu estratégica para avaliação deste projeto: aproximar-se de quem realizou o curso com a abertura para colheitar as aprendizagens que ficaram e se transmutaram, após o encontro avaliativo. Larrosa argumenta que a experiência é singular, e requer parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender o automatismo da ação. Mergulhar em território para reconhecer os saberes de experiência que podem ter sido plantados, adubados ou alimentados pelo Caminhos do Cuidado, produzindo uma avaliação que reconheça que “aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”. Ao longo dos encontros do Caminhos dos Cuidado, as ETSUS apontaram a necessidade de qualificação de seus processos avaliativos. Foram citados, desde a avaliação de processos educativos internos, até de programas e políticas. Outras demandas apareceram associadas a isto, tais como: a necessidade de formação para a Educação Profissional; a sede por novos projetos; o desejo de maior autonomia na proposição das ações de educação na saúde; o interesse por aprender e experimentar um processo participativo de avaliação. Estava posto o desafio de qualificar o papel das ETSUS na educação permanente em saúde, junto aos serviços do SUS e na escuta das necessidades sociais em saúde. O AvaliaCaminhos, último tempo do Projeto
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Caminhos do Cuidado, agrega ao programa de avaliação do Caminhos do Cuidado o Curso de Especialização em Acompanhamento, Monitoramento e Avaliação na Educação em Saúde Coletiva, ampliando as possibilidades de formação e intervenção em território. Uma Especialização semipresencial, ofertada a todas as ETSUS, com uma proposta de formação visando intervenções nos territórios e principalmente a qualificação dos atores estratégicos que trabalhariam na avaliação do Caminhos do Cuidado nos territórios. Para garantir a composição com as ETSUS, o Observatório do Caminhos do Cuidado organizou visitas regionais com a participação de representações das Escolas, momento chamado de Road Show. Foram seis encontros regionais, com os pontos de referência nas escolas de Santa Catarina, São Paulo, Bahia, Brasília, Rondônia e Minas Gerais. Decantaram-se as ações do Observatório e a pactuação sobre os processos seletivos para as ações do AvaliaCaminhos nos territórios: 1. Seleção de articuladoras e articuladores locais para compor o grupo de avaliação do Caminhos do Cuidado (nos deteremos no passo 7). 2. Seleção de discentes para a Especialização: foram pactuadas 126 vagas, sendo três para cada uma das 42 ETSUS do Brasil. Destas três vagas, uma foi destinada para a articuladora ou articulador local. A especialização previa um Projeto de Intervenção (PI) para cada Escola, além de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) por aluna/aluno, relacionados com os processos pedagógicos das ETSUS, reflexões sobre processos formativos e avaliativos, incluindo a experiência da/o articulador/a no AvaliaCaminhos produzindo dados sobre o Caminhos do Cuidado no estado de referência.
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Tempo VII- Articulação e colheita: capilarização no processo avaliativo
Articulação,
como
mobilizadora
de
realidades;
de
educação
permanente em saúde no território. Tal qual nos disse Ricardo Ceccim, tomando o cotidiano como lugar aberto à revisão permanente e gerar desconforto com os lugares “como estão/como são”, tomar as relações como produção,
introdução
de
mecanismos,
espaços,
temas
que
geram
autoanálise, autogestão, implicação, mudança institucional e experimentação - em contexto, em afetividade – sendo afetado pela realidade/afecção (Ceccim, 2005 p. 162 e 166). O termo articulação se nutre, no processo do AvaliaCaminhos, das notas de Bruno Latour (2008, p. 40), principalmente quando discorre sobre a aquisição de um corpo-cientista, que seria “um empreendimento progressivo que produz simultaneamente um meio sensorial e um mundo sensível”. Latour julga apropriado o termo “articulação”, não como um falar com autoridade, mas para pensar sobre as camadas de diferenças que só tornam “um sujeito interessante, profundo ou válido quando ressoa com outros, quando é efetuado, influenciado, posto em movimento por novas entidades cujas diferenças são registradas de formas novas e inesperadas”. Um “sujeito articulado” é alguém que aprende a ser afetado pelos outros. Sobre as articuladoras e os articuladores locais, ou Artis, apelido carinhoso, de gênero indefinido, de pronúncia que se assemelha a palavra “artes”, aproveitamo-nos da coincidência fonética, para tratarmos da arte do encontro que ser Artis exigiu ao longo do processo. A proposta levada às escolas no momento do Road Show fazia-se da indicação de um/a trabalhador/a como uma “piorra louca” - expressão imagética que ilustra o movimento do AvaliaCaminhos no território - alta densidade de movimento, articulação, mobilização, propondo e inventando roteiros e rotas.
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Após a indicação, via Edital, por parte das Escolas, as/os articuladores passaram a integrar a Equipe Nacional de Avaliação e, para tal, fez-se necessário um trabalho de formação e sensibilização para as tarefas que nos esperavam. Seu papel foi estratégico para alimentar essa avaliação com a farta colheita de dados realizada em cada estado do Brasil, mas, sobretudo, por sua participação nas análises e atividades correlatas ao percurso de colheita de dados.
Tornando-se Articuladora, tornando-se Articulador Como estimular a sensibilidade e a percepção das sutilezas que escapam se não estivermos atentos ao que nos pisca como um vaga-lume, nos odores, sabores e texturas, singulares a cada território? Seria possível um kit para afetar-nos enquanto grupo de avaliação local e nacional à possibilidade de avaliação com a sua experiência? A oficina de formação de Artis ofertou um kit formativo aberto à afetação. Carregou-se uma interrogação: como avaliar um projeto da envergadura do Caminhos do Cuidado, onde o percurso metodológico instigava o reconhecimento de ferramentas sensíveis aos alunos como a escuta, o fazer-se em rede, em uma temática tão densa como a da Saúde Mental, crack, álcool e outras drogas? Como primeiro disparador do encontro, um convite para fazer terreno de plantio das sementes: Arti, o que é para ti avaliar, monitorar, mobilizar e acompanhar? Um convite à escrita, um banco de sementes a ser cultivado em encontro. Organizou-se um kit inicial para oficina, com a seguinte sustentação ética: sentar em círculo, olhar no olho e deixar a palavra circular.
1 - Fragmentos de leituras sobre a experiência: envelopes recheados com fragmentos sobre a experiência, para produzir uma conversa entre escritos dos Artis e a propositiva de olhar a experiência do Caminhos do Cuidado em
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território. Deixado na recepção do hotel onde ocorreu a formação, para chegar até as/os articuladoras/es como aquecimento do percurso. Os envelopes estavam recheados de fragmentos sobre experiência dos autores Jorge Larrosa e Maria Zambrano. Citamos alguns para ilustrar: Pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece (Jorge Larrosa). A experiência requer: parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação (Jorge Larrosa). A experiência não exige, nem convida-se a retirar do instante. Mas tão pouco o deixa abandonado, como mera irracionalidade. Extrai de seu modesto logos seu sentido, que não pode ser completo. A experiência é sempre fragmentária pois senão já deixaria de ser experiência (Maria Zambrano).
2 - Sarau D`Artis: movimento de ciranda, exercício para compor e conduzir as rodas de conversa em território com os alunos, onde cada Arti leu/mostrou sua produção: poesias, cordel, samba, textos, associações de palavras, desenhos, juntamente com os fragmentos sobre a experiência, para produzir uma conversa entre escritos prévios e a propositiva de fazer olhar a experiência do Caminhos do Cuidado em território.
3 - Contornando a Javé do Caminhos do Cuidado: utilização de recurso fílmico para construir um contorno de narratividade dentro do escopo da avaliação. O filme proposto, Narradores de Javé, conta a história de um pequeno vilarejo que será inundado pelas águas de uma hidrelétrica. Para que isso não aconteça, os moradores desse local decidem escrever sua história é tombar o local como patrimônio cultural. A narrativa da história de Javé é contada por todos os moradores do local, cada um ao seu jeito e transcrita por Biá, encarregado de dar palavras a toda essa contação. As/os articuladoras e articuladores locais, assim como o Biá, tiveram a “missão” de contar a história do Caminhos do Cuidado a partir das contações das alunas e alunos do curso.
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Tiveram a incumbência de, assim como Biá, despertar memórias, relatar suspiros e aguçar o ouvido, transcrevendo a história desta Javé-Caminhos do Cuidado; a
história
dessa
imensidão
de
gente
que
busca
cotidianamente
o
fortalecimento do SUS e um cuidado mais respeitoso.
4 - Matriz Avaliativa, Roteiros e Amostra para questionário|rodas de conversa: Apresentação e aproximação da Matriz avaliativa como os instrumentos da avaliação, os roteiros avaliativos e a construção dos planos de plantio a serem continuados no retorno dos Artis a seus territórios; desenhos possíveis de colheita dos e-mails dos alunos para o envio do questionário nacional; apresentação e disponibilização da amostragem por cidades; discussão sobre a organização e realização das rodas de conversa.
5
-
Plataforma
dos
Artis:
apresentação
da
plataforma
virtual
de
acompanhamento, monitoramento e articulação das construções em território, com espaços de fóruns coletivos, assim como um espaço-mandala particular de cada estado para as conversas e postagens singulares. Faz-se importante ressaltar que, os elementos teóricos, como a elaboração sobre experiência e articulação, fizeram parte dos elementos que criaram um vocabulário próprio da equipe, fundamental para as discussões do grupo em todo o processo avaliativo. As palavras de uma das articuladoras ilustra esse processo:
E o que tem a ver o texto de Larrosa, o filme Os Narradores de Javé e a função de articuladora no processo avaliativo do Curso Caminhos do Cuidado? Será a função de articuladora retomar a missão de Biá e tentar aglutinar narrativas plurais, mesmo sabendo que a experiência é singular e que transmitir a mensagem proferida por outrem é transmitir uma outra mensagem, diversa da original? (Arti Nathalia Borba Raposo Pereira, Escrita-experiência/ES)
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Ciclos de Colheita: ações de setembro de 2016 agosto de 2017 Assim como o Caminhos do Cuidado, esta avaliação valorizou a experiência das/dos ACS/ATENF para compor o seu itinerário formativo. Levando em consideração os ingredientes maturados na Formação Presencial, elaborou-se um conjunto de atividades divididas em ciclos para organizar a colheita dos materiais desta avaliação:
1º Ciclo: a) Exercício de aproximação com os relatórios estaduais do Projeto Caminhos do Cuidado; conversas com a equipe estadual e Escola; leituras da experimentação piloto do AvaliaCaminhos com a equipe nacional; b) Articulações e mobilizações no território para a colheita dos e-mails das/dos ACS e ATENF participantes do curso, de acordo com a amostragem definida (detalhada adiante); c) Realização de duas rodas de conversa com ACS e ATENF, que foram transcritas e postadas na plataforma virtual; d) Realização, pelos articuladores locais, de um relato de campo, nomeado de escritaexperiência, que visava relatar os afetos, acontecimentos e percepções vivenciados durante o processo de articulação/mobilização/avaliação: um ensaio sobre o que se produz de experiência durante o exercício de articular em território para esta avaliação.
2º Ciclo: a) Conversas com as tutoras e tutores do Caminhos do Cuidado: Realização pelos articuladores locais de uma entrevista e/ou roda de conversa com tutores participantes do Caminhos do Cuidado, juntamente com envio do áudio da roda ou entrevista. b) Realização de memorial descritivo/reflexivo sobre a articulação e realização da roda com tutores.
3º Ciclo: Análise dos Dados Colheitados e Produtos do Curso: Durante o período de Avaliação do Projeto Caminhos do Cuidado, os articuladores cursaram a 18
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Especialização em Avaliação, Monitoramento e Acompanhamento na Educação em Saúde Coletiva. O curso compõe o escopo formativo das atividades dos integrantes da equipe de avaliação para as ações em seus territórios. Com base nesse catálogo de intenções, este ciclo teve como produtos a produção do PI e do TCC. Alguns TCC abordaram o Caminhos do Cuidado a partir da experiência de ser articulador/a, ou utilizando os dados colhidos em seus estados, oferecendo análises singulares, proporcionando uma lupa de informações pelo recorte regional.
Adentrando o banco de sementes: detalhando o plantio e a colheita Assumido o desafio de sustentar a capilaridade e o alcance do Caminho do Cuidado, o AvaliaCaminhos elaborou instrumentos avaliativos que dessem conta de chegar ao maior número de alunas e alunos formadas/os pelo Caminhos do Cuidado e contemplassem a singularidade da experiência dando espaço para os mais variados causos que aconteceram nos territórios.
Germinando sementes: Planejamento amostral, Banco de E-mails e questionário nacional O planejamento amostral buscou contemplar a cobertura dos municípios de grande e pequeno porte, seguindo a abrangência do Caminhos do Cuidado. Para isso, partimos do banco de dados nacional do Caminhos do Cuidado para verificar qual o tamanho populacional dos municípios a serem buscados para a amostragem. Em uma planilha com todos as/os formadas/os no Brasil, verificamos que os quartis dos totais populacionais foram: Q1 = 18.397, Q2 = 44.428 e Q3 = 205.533. Sendo assim, dividimos os municípios em quatro grupos, sendo que o menor tamanho populacional foi determinado pelo
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menor município e o maior tamanho populacional foi determinado pelo maior município de formadas/os. Considerando o número total de alunos concluintes, para o cálculo do tamanho da amostra, considerou-se confiança de 99%, margem de erro de 5% e proporção de 50% para cada resposta do questionário. Assim, chegou-se ao tamanho de amostra mínimo de 662 sujeitos para as análises. Tendo em vista que o questionário seria enviado por e-mail e a taxa de resposta para esse tipo de estratégia esperada seria de 10%, o plano de sementes amostral teve como meta selecionar 6.642 formados e formadas pelo Caminhos do Cuidado.
Para que as/os 6.642 selecionadas/os para o envio do questionário representassem os quatro grupos de tamanhos populacionais e também todos os estados do Brasil, planejamos uma amostragem por cotas, na qual:
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1. Deveriam-se obter cotas iguais de 246 e-mails para cada estado brasileiro, totalizando 6.642 devido ao arredondamento das casas decimais na divisão por estado; 2. Respeitando uma proporção de 25% destes 246 em cada um dos quartis populacionais estabelecidos pelos dados do Observatório do Caminhos do Cuidado. Exceto no caso do Distrito Federal, que não havia a possibilidade dessa divisão.
Para a obtenção dos e-mails, foram organizadas estratégias com os 39 articuladores locais vinculados com as ETSUS dos 27 estados brasileiros Para chegar em todas as regiões brasileiras, o AvaliaCaminhos fez uma aposta na virtualidade, tanto na parte formativa - com a realização de uma especialização EaD, como para a colheita dos dados, que expressam a capilaridade dos locais onde o Caminhos do Cuidado chegou e as interações da equipe. Para a confecção do questionário-avaliativo utilizamos a plataforma FormSUS, cujo link enviamos eletronicamente para alunas e alunos concluintes do Caminhos do Cuidado. Uma escolha que parece simples em
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tempos de globalização e Internet - construir um banco de e-mail -, mas que ao desdobrá-la nos territórios, como no plantio, só quem conhece as adversidades do solo de cada lugar pode construir estratégias para tal. Estratégias que se fizeram a partir das realidades distintas e que exigiram criatividade, envolvimento e uma ampla rede de apoio articulada e mobilizada por cada articuladora e articulador local. As escritas-experiência abaixo expressam a riqueza destas interações nos territórios: Esse era o meu cenário: Municípios distantes, sem contato telefônico e podemos dizer que sem gestores, então, literalmente “eu estava na roça” e foi nessa inquietação que eu tive a grande sacada, me comunicar por whatsapp com os ACS (...) Solicitei que eles chamassem os ACS que moravam nos municípios distante e criassem e-mails e de alguma forma conseguiram realizar essa tarefa e para cada e-mail criado e enviado para mim, era uma explosão de felicidade na contagem regressiva, faltam 10,9,8,7,6,5,4,3,2,1, viva completou os 40 e-mails (...) Na sequência e como último recurso, convidei minha irmã que havia trabalhado em vários municípios de Macapá na área da educação, a entrar no circuito. Fomos aos municípios mais próximos, conversamos com os trabalhadores das secretarias municipais e coordenadores da ESF municipal que prontamente me ajudaram. (Eliana Maura, Escrita-Experiência/AP). A busca dos e-mails foi um processo de frustração, pois encaminhei e-mail para todos os responsáveis pela Atenção Básica do território que ficou sob minha responsabilidade, mas poucos profissionais responderam. Como essa busca não funcionou, e como ninguém chama uma ambulância de urgência dessa forma, resolvi ligar, e meu sofrimento se transformou em desespero, pois ligava, me apresentava e explicava qual meu objetivo, solicitava o encaminhamento dos contatos dos ACS e Técnicos de Enfermagem e as respostas sempre as mesmas: “não era gestora naquela época" , ou "eu era gestora, mas não realizaram o curso na minha cidade". (Gisele Ruaro, Escrita-experiência/SC). Comecei o meu trilhar deste período selecionando os municípios aos quais solicitaria os e-mails dos alunos concluintes, posteriormente liguei buscando sempre a Coordenação da Atenção Básica, parecia após cada ligação que em uma semana teria tantos e-mails, que seria fácil, todos gentis e solícitos, ledo engano, poucos retornos efetivos. Busquei uma nova estratégia, fiz um texto simples explicando a necessidade e anexei a lista dos alunos concluintes de cada município e encaminhei e-mails para Secretário de Saúde e Coordenação AB e para cada um reforcei com uma ligação (Rejane Mocinho, Escrita experiência/RS).
De posse dos e-mails de cada estado, foi traçado um plano de trabalho para o envio dos questionários. Sendo este distribuído em três etapas: (1)
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preparação dos materiais, (2) envios dos questionários e monitoramento dos emails que retornavam e (3) monitoramento das taxas de respostas. O envio dos questionários foi realizado durante 5 meses (dezembro de 2016 a abril de 2017). A variabilidade nos meses se deu pelo fato de que os articuladores dos estados enviavam os bancos de e-mail completos em momentos distintos e optou-se por realizar o envio assim que cada banco chegava na sua integralidade. As amostras enviadas totalizaram 593 cidades selecionadas e incluídas no envio dos questionários, sendo 53 cidades do grupo com o maior porte e 267 cidades do grupo de menor porte (105 e 167 nos grupos intermediários). A variabilidade no total de cidades em cada grupo populacional se deu, pois, para conseguir o total de e-mails necessários nas cidades pequenas, era preciso contatar um número maior de municípios, ao passo em que, por vezes, em uma única cidade do grupo com maior tamanho populacional já se conseguia atingir o total de e-mails necessários para aquele grupo. Monitoramento dos e-mails que retornavam: a equipe nacional registrava cada e-mail enviado, organizado por estado e pelos grupos populacionais. Verificou-se um percentual de 26% de e-mails que foram enviados, mas que não chegavam nas caixas dos seus destinatários selecionados para a amostra; 74% dos e-mails chegaram nas caixas de mensagens. Monitorou-se a taxa de respostas oriundas de cada estado brasileiro. Com o objetivo de obter a amostragem mínima de 663 questionários, de uma forma que eles estivessem minimamente distribuídos nos 27 estados brasileiros (663 / 27 = 24,55, assim a taxa mínima planejada para cada estado foi de 25 questionários respondidos). O tempo de espera para atingir a taxa mínima de resposta foi de 30 dias. Quando essa taxa não era alcançada em 30 dias, enviava-se um terceiro e-mail, com o objetivo de atingir a taxa mínima de resposta em cada estado.
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Cultivo em Círculos: Rodas de conversa com alunas, alunos e tutores do curso Cada articuladora e articulador teve como tarefa a realização de duas rodas de conversa com ACS/ATENF e uma roda ou entrevista com tutor. A escolha dos municípios para realização das rodas de conversa seguiu critérios que consideraram
as realidades
deslocamento, acesso
ao
gestor
regionais, entre eles: viabilidade
de
para
de
agendamento, diversidade
municípios e densidade demográfica, trabalhos apresentados em fóruns regionais, conhecimento de mobilização da equipe. O único critério de exclusão para a realização da roda de conversa era de que os municípios escolhidos não fossem os mesmos em que se captaram os e-mails para o questionário e, caso seja o mesmo, que os participantes fosse outros, de modo a ampliar a capilaridade e o alcance da avaliação, quanto ao número de municípios e sujeitos, evitando que um/a mesmo/a trabalhador/a respondesse aos dois instrumentos. O roteiro para a realização das rodas de conversa focou nas Dimensões Itinerários formativos e Cenários do Cuidado, da Matriz Avaliativa. Era semiestruturado, guiado conforme as realidades locais e a dinâmica da conversa durante a roda, que fazia com que novas perguntas fossem inseridas ou adaptadas. Ao todo, a equipe realizou e postou em tempo hábil 78 transcrições de rodas de conversa, de modo que todas as 27 Unidades Federativas do Brasil estão contempladas com pelo menos duas rodas de conversa
em
municípios
distintos, conforme
o
planejado,
envolvendo
aproximadamente 717 ACS/ATENF. No que tange as/aos tutoras/es, contamos com 33 encontros, em entrevistas ou rodas. Este processo merece algumas reflexões: A dinâmica de início foi ler e ver o Martelo Agalopado com todos, em roda de conversa, para começar a refletir sobre o Caminhos do Cuidado. Notava-se, na roda, uma necessidade de falar sobre o curso, avaliá-lo, bem como conversar sobre o processo de trabalho das pessoas presentes. A turma refletiu bastante sobre o universo de singularidade do fazer do ACS. Destacaram-se aspectos
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desse trabalho: o ACS como alguém que mora nesta comunidade que, por vezes, tem poucos canais de escuta na equipe, há pouca capacitação para esse fazer, esse trabalhador visto como um interlocutor das demandas de saúde e, muitas vezes, sociais, como uma porta inicial da área da saúde, inclusive, na sua própria casa (Edelves Vieira, Escrita-experiência/RS). Conversei com a tutora de alguns municípios do Agreste, que nos sugeriu realizar uma roda em Toritama (172 Km de Recife), os alunos de lá se destacaram bastante com os trabalhos de conclusão do curso na amostra de experiências que aconteceu em Recife sobre os trabalhos produzidos no Caminhos do Cuidado. [...] para viabilizar a roda no município. [...] buscar representação das várias equipes da cidade que se envolveram nos trabalhos de conclusão de curso que tiveram destaque na Mostra Caminhos PE. Durante as conversas com o ACS, fui informado que o tema ainda continua a mobilizar a equipe dele, que inclusive tinham um colega de trabalho que foi vítima da violência relacionada ao uso de drogas, fora assassinado por conta de dívidas com traficantes (Luigi Santos, Escrita-experiência/Pernambuco).
Tempo VIII - Da colheita: o processo analítico Queremos falar aqui de pequenas experiências, ou de experiências menores, que foi a escuta das experiências (...) E afirmar que a experiência é indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos da noite (Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos Vagalumes, 2011).
O resultado desses passos deságua no volumoso material dos áudios e das transcrições, como uma cachoeira cuja força da queda cava o poço onde repousa um calmo lago. Trata-se de 78 rodas de conversa do primeiro ciclo com alunos, 33 rodas/entrevistas do segundo ciclo com tutores, de modo a contemplar pelo menos duas por cada estado do país. Somado a isso temos também uma vertente de 36 escritas-experiência dos Artis, além dos resultados do questionário (1151 respondentes), cujo poder de amostra abrange o território nacional e a diversidade entre cidades de diferentes portes. Olhando para os números do AvaliaCaminhos, chegamos ao total de 82 municípios, pelas rodas com alunos, e em aproximadamente 340, pelo questionário. A artesania na colheita fez-se num cuidadoso processo de levantamento de dados em sua forma de sementes, com mais de 1000 paginas de palavras transcritas das rodas, 200 páginas em ensaio de experiência, além de mais de
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200 páginas de fragmentos extraídos de falas e causos para colocar em conversa com a Matriz Avaliativa. Frente ao desafio de analisar esta enorme quantidade de material e de organizar uma equipe espalhada por diversos estados do Brasil, para a análise dos dados e sistematização das informações, foi primordial, não apenas uma boa quantidade de olhos, mas, em especial, contar com a experiência das/dos articuladoras/articuladores locais, que viveram o processo e que carregam os sussurros e vociferações do território mobilizado para a avaliação: seu papel traz a marca de um saber da experiência no território. Assim, para cultivar esse imenso banco de sementes, formou-se uma equipe de análise: foi ensejado um convite bastante particular aos Artis, via plataforma, evocando as águas de Javé, para esse tempo um tanto Biá, para que participassem do processo de análise e escrita do relatório. No retorno, dez Artis manifestaram o desejo de compor a Equipe de Análise. Seguido de um vídeo-convite, surgiu o grupo “Analíticxs Trêmul@s”, composto por coordenadores, equipe nacional, articuladoras e articuladores locais (ver Expediente). Foram os responsáveis pelo processo de escrita e de análise do material encontrado, foi organizado conforme os marcadores da Matriz Avaliativa. Neste momento, buscamos os vaga-lumes, metáfora que tomamos para falar sobre o que é importante falar, o que não se pode deixar de dar visibilidade, estes que emitem uma luz e que nos saltaram aos olhos ao ler e ouvir as rodas de conversa, que ajudaram a compor as escritas com o corpo, com a experiência e os sentidos. O vaga-lume, esse ser em risco de extinção em função do excesso de luz em nossas cidades. Trazemos aqui a fala de uma articuladora que fez parte do processo analítico, na qual aponta a complexidade, a delicadeza e o rigor desta busca: Minhas rodas são maiores que o mundo. Sou apanhador de falas. Amo as falas como os bons vaga-lumes, queria que a minha tivesse formato de canto. Porque eu não sou da informática, eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. Atravessada por Manoel de Barros. Se sentiu, fez sentido
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(Inez Gonçalves, Articuladora/Tocantins - mensagem escrita no grupo de whatsapp).
Da organização das colheitas: Processo de Curadoria, análise e textualidade Frente a todo o material colheitado, utilizamos como um dispositivo para a análise a noção de curadoria e de curador/a. Pegando emprestado do mundo dos museus e salões de arte, pensamos nesta figura como a responsável pela seleção, organização e montagem de uma narrativa e de um sentido. Para a curadoria foram criados arquivos compartilhados (google docs), nos quais o material foi organizado por grupos de curadorias; após a leitura das transcrições das rodas de conversa, os fragmentos de falas foram selecionados e organizados, considerando os marcadores da Matriz Avaliativa. As falas extravasaram as perguntas e marcadores da Matriz, tendo em vista que a mesma foi base para a construção de roteiros disparadores de conversa, ampliaram a potência de escuta dos diferentes atores que participaram da avaliação, pois permitiram que pontos e questões não previstos tomassem vida. O refinamento deste tempo de curadoria foi deixar lampejante que cada experiência, ao olhar de quem a recortou, é singular e expressiva. Deste modo, o trabalho de textualidade operacionalizou efeitos de experiência no próprio percurso de escrita (e também de quem escreve). Após a leitura das Rodas e a organização das falas nos marcadores da Matriz, seguirmos lendo exaustivamente cada um dos agrupamentos de dados e organizando-os em temas e argumentos. Paralelamente, o material textual bruto (Transcrições das Rodas, Entrevistas e Escritas-Experiência) foi tratado no QSR International's NVivo 11.
Quando
termos
importantes
para
a
análise
demandavam
uma
investigação comparativa mais precisa, uma busca por localização de conteúdo foi estratégica para contemplar as diferentes perspectivas pelas quais um determinado tema era abordado.
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A consulta por frequência de palavras também foi útil para analisar a força das palavras e algumas relações entre elas. Este procedimento foi importante tanto para refinar o trabalho de análise, como para produzir impacto visual e numérico do uso das palavras, ampliando nossa compreensão global das discussões. No NVivo utilizamos os recursos de Análise de Cluster, Mapa de Árvore e, sobretudo, a Nuvem de Palavras, que não respondem questões de pesquisa, mas apontaram caminhos e ajudaram a medir alguns argumentos. Os encontros desse percurso de colheita e curadoria de análise serão apresentados seguindo as dimensões da Matriz Avaliativa: Gerencial, Política, itinerários formativo e Cenários do Cuidado. Sendo esta última, a estação na qual floresce os frutos plantados nas demais dimensões, composta de um laborioso e cuidadoso plantio, onde se marca as características do solo de cada território em que colheitamos.
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NÚMEROS AVALIACAMINHOS: Avaliação do Projeto Caminhos do Cuidado 27 40 40 06 1151
78 33 12
Estados envolvidos Escolas Técnicas do SUS Articuladoras ou Articuladores Local Equipe AvaliaCaminhos Questionários respondidos (6642 questionários enviados para 593 cidades, aproximadamente 340 responderam; os resultados do questionário estão disponíveis na íntegra no apêndice 1 (p. 91)) Rodas de conversa com alunas e alunos (717 trabalhadoras e trabalhadores, 82 municípios) Rodas de conversa ou entrevistas com tutoras/tutores Rodas de conversa-piloto (4 municípios envolvidos, 3 estados, 6 apoios pedagógicos; 07 educadoras e educadores; 1 coordenadora estadual; 1 diretora de escola; 04 coordenadores executivos; 1 coordenadora pedagógica; 1 orientadora de aprendizagem; 04 tutoras; 5 agentes comunitários de saúde; 2 coordenadora de UBS; 01 coordenadora macrorregional).
Curso de Especialização em Acompanhamento, Monitoramento e Avaliação na Educação em Saúde Coletiva 27 40 09 05 126 38 101
Estados Envolvidos Escolas Técnica do SUS (37 concluíram) Tutoras/es Orientadoras e orientadores de Aprendizagens Alunos iniciam a formação (101 concluíram) Projetos de Intervenção Trabalhos de Conclusão de Curso
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CAPÍTULO II DIMENSÃO POLÍTICA
Havia um contexto delicado que ocupávamos, uma linha contra hegemônica, a justiça queria prender e matar e nós não (Coordenadora Pedagógica).
N
esta dimensão analisamos entrevistas gestores e envolvidos na
execução do Caminhos do Cuidado e também materiais elaborados pelo próprio Projeto (relatórios, boletins etc.), para
tornar dizível esse emaranhado de relações e articulações que foram programados e inventados neste percurso. Buscamos cotejar esta análise com elementos encontrados nas rodas de conversas e escritas-experiência, quando encontramos relações políticas destacadas nos territórios. É importante ressaltar, em função das mudanças políticas recentes no país, não acessamos informantes envolvidos diretamente no governo federal. Apresentaremos a síntese das informações seguindo os marcadores que compõem a Matriz: genealogia do projeto; ética, estratégica e articulação política e institucional; ressonâncias na ETSUS; fortalecimento do SUS.
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Genealogia do projeto Caminhos do Cuidado nasce do programa Crack é Possível Vencer, como uma ação da Saúde. Foi gerido em um cenário no qual o crack ocupava um espaço de grande visibilidade na mídia, sendo apresentado como uma epidemia cujo poder público se vê obrigado a responder, uma pauta complexa que esbarra em questões políticas, morais e religiosas. O tema das drogas era tratado principalmente pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, estando mais relacionado às políticas de segurança pública do que às de saúde. Neste espaço, porém, coexistiam correntes com concepções diferentes, desafiando a interlocução com os setores da saúde, educação e segurança. Neste contexto, o Caminhos do Cuidado foi um projeto que fez uma aposta contra hegemônica na relação entre drogas e saúde mental na atenção básica, investindo na qualificação do cuidado para alguns invisíveis: os usuários de drogas, o louco, o profissional do nível médio (ACS e ATEnf), as Escolas Técnicas, a redução de danos, a reforma psiquiátrica, a atenção básica, a escuta, a horizontalidade do ensinar. Esta aposta envolveu diversos tensionamentos políticos. Naquele momento, integrante da coordenação executiva do CC, relata que inicialmente a proposta do curso se aproximava aos oferecidos pela SENAD. Ela nos aponta que “dentro” do próprio programa Crack é Possível Vencer haviam disputas por concepções sobre como lidar com a questão das drogas, mesmo que já se previsse a interlocução entre saúde, educação e segurança. No Caminhos do Cuidado prevaleceu a interlocução entre saúde e educação tecida no território. A
cronologia
do
Caminhos
do
Cuidado
foi
marcada
pela
descentralização da execução, que se tornou mais participativa, incluindo as Escolas Técnicas do SUS que, nos primeiros meses eram apenas executoras. Nos
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
momentos iniciais surge a parceria entre Grupo Hospitalar Conceição, que já tinha experiência na capacitação de ACS, e o Instituto de Comunicação e Informação
Científica
e
Tecnológica
em
Saúde
(ICICT/Fiocruz),
com
capacidade técnica para gerir os recursos financeiros. Foi esta parceria que viabilizou a realização do projeto, pois até então não havia sido possível apostar numa formação presencial por falta de atores com capacidade de executar os ambiciosos objetivos do projeto. Outro aspecto identificado foi que houveram discussões sobre os investimentos serem destinados às ETSUS. Porém, no processo decisório de construção do Caminhos do Cuidado, prevaleceu a crença de que, além da dimensão organizativa e gerencial necessária, as escolas não discutiriam satisfatoriamente uma temática de tamanha disputa de conceitos. A análise da genealogia do Caminhos do Cuidado demonstra que, do ponto
de
vista
teórico-metodológico,
prevaleceu
a
aposta
na
problematização do processo de trabalho e sua compreensão sobre a integralidade do cuidado, em ampliar a possibilidade de atenção ao usuário, seguindo o princípio da equidade e a diretriz da redução de danos. É importante notar que no momento em que foi viabilizado o projeto, o Brasil se preparava para receber grandes eventos, como a Copa do Mundo de Futebol
e
as
Olimpíadas,
produzindo
um
conjunto
de
discussões
e
tensionamentos: a gentrificação das cidades e a especulação imobiliária; os bolsões urbanos de miséria; a visibilidade midiática em torno das drogas, com a imagem social especialmente trágica dos usuários de crack e a relação desta droga com a violência; as políticas de “tolerância zero” contra as drogas; os debates em torno da crescente insegurança pública e violência. Também destacam-se tematizações em torno da internação compulsória e das comunidades terapêuticas, com forte protagonismo de lideranças e instituições religiosas.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Por outro lado, também identificam-se discursos em defesa da autonomia dos sujeitos e das noções de “redução de danos” e “uso prejudicial”, com focos de militância política em torno da Saúde mental, da Luta Antimanicomial, pela descriminalização das drogas, a Marcha da Maconha, etc. Naquele momento, estavam dadas oportunidades políticas que propiciaram a entrada de discursos afinados com estes grupos para os espaços de gestão, oferecendo subsídios políticos e teóricos para a construção de políticas públicas mais afinadas com os princípios da redução de danos. Este conjunto de fatores acabam por constituir pelo menos duas comunidades políticas heterogêneas e antagônicas, que contextualizam as demandas sociais, as articulações e o contexto político que tornaram possível e necessário a existência do Caminhos do Cuidado nos moldes propostos.
Interesses Conservadores
Discursos Políticos em conflito
Interesses Reformistas
Gentrificação das cidades (especulação imobiliária) Bolsões urbanos de miséria Visibilidade na mídia Imagem social trágica do
Uso do crack como pretexto para punição da pobreza (discurso individualizante); Uso de armas;
Crack e seus usuários Relação do Crack com a
Vs
violência Tolerância zero contra as drogas Políticas de segurança pública Religiões
Uso prejudicial do Crack como expressão da pobreza e da desigualdade social; A ideia de que a droga é inerente à sociedade (coletivização do fenômeno); Desarmamento;
Comunidades terapêuticas Internação Compulsória
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Autonomia dos sujeitos Redução de danos Saúde mental Militância (Luta Antimanicomial, marcha da maconha, luta pela descriminalização das drogas entre outras;) Noção de uso prejudicial;
“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Ética, estratégia e articulação política e institucional
O Caminhos do Cuidado nasce na pactuação do Ministério da Saúde como uma das prioridades da Presidência da República no plano de enfrentamento ao crack. O projeto calcou-se nos princípios e diretrizes do SUS, na Política Nacional de Saúde Mental, Política de Atenção Básica e a Política de Atenção Integral aos usuários de álcool e outras drogas. Além de trazer à cena a Reforma Psiquiátrica e a Redução de Danos como pano de fundo, marcando o contorno da palavra “enfrentamento” nas suas ações, sua execução articulou as Escolas Técnicas do SUS, as Escolas de Saúde Pública, as áreas da Saúde Mental e Atenção Básica dos três entes federativos, entre diversas outras organizações do SUS, constituindo uma estratégia de educação permanente em saúde para os trabalhadores de nível técnico – ACS e ATEnf. Em um primeiro momento, quando estava sendo idealizado, foi um período de colocar muito a cara a tapa, muito solitário, muito pela militância – tanto na saúde mental, como na transversalidade da Saúde Mental na Atenção Básica, com um olhar voltado para o ACS e ATEnf (Coordenadora Macrorregional).
O Caminhos do Cuidado foi um projeto ousado no número de formações propostas, mas também por levar temas polêmicos para a diversidade do território nacional: “eu acho que um momento mais tenso dos projetos é como ele chega, aí tem que articular Saúde Mental e Escola, um cuidado para não criar conflitos.” (diretora de Escola). Ao se aproximar dos Estados, percebeu-se que as articulações almejadas/planejadas não estavam dadas: “o Caminhos tornou claro o quanto as Escolas [a maioria delas] estavam afastadas das discussões da Saúde Mental e da Atenção Básica do Estado” (Coordenadora Macrorregional). Na interação entre os entes federativos e esferas de governo, mapeamos conflitos administrativos, éticos, morais e político-partidários que dificultaram a execução e cumprimento das metas. Assim, embora houvesse um fluxo
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
gerencial estabelecido, diversos relatos mostram que a execução muitas vezes exigia negociações com atores diversos: A gestão estadual; áreas técnicas e a escola. Nas regionais também envolveu, os coordenadores de NURESC, coordenador ou responsável pela Saúde Mental e Atenção Básica. Esse movimento também houve nas regionais e na Secretaria. Os gestores municipais, tanto no território, como nos fóruns, passou pela Bipartite, COSEMS, foi pauta nesses espaços (diretora de Escola).
Descobrindo instâncias de gestão, como o Ministério e os Estados se organizam em seus planejamentos (…) vendo a relação das Escolas (ETSUS) e os processos formativos (Coordenadora Macrorregional).
A quantidade e diversidade de atores envolvidos e os conflitos que daí derivaram podem ser constatadas nos relatórios regionais e nacionais do projeto. Como resultado da avaliação interessa dizer que as Escritasexperiência, as entrevistas e rodas de conversa apontam que estes arranjos tiveram efeitos significativos na capacidade política dos atores que passaram a acessar de forma mais efetiva redes formais e informais dos territórios, o que já havia sido apontado nas entrevistas: O Caminhos do Cuidado também foi uma ação que potencializou essa articulação que era uma prioridade (…) isso nos aproximava dos gestores (diretora da escola). Eu podia observar a diversidade no operar a política em cada território (…) eu podia ver o que era possível naquele território e impossível naquele outro pela forma que se colocava a política em cada lugar (…) Teve municípios que aceitavam a formação, mas não facilitavam, ou seja, existia todo um jogo político (…) em alguns municípios ficava nítido que havia uma resistência do gestor em viabilizar (Orientadora).
Apesar de direcionado para profissionais de nível médio, o Caminhos do Cuidado refletiu também nos profissionais de nível superior que foram responsáveis pela tutoria e orientação: Os tutores referiam que havia uma sensibilização, principalmente, em relação a política de Saúde Mental, inclusive, na política de redução de danos (...) tanto os tutores como os alunos aprenderam a acolher, independente de haver uma política a priori ou não (Orientadora).
Encontramos uma posição praticamente consensual quanto à ética e os valores que fundamentaram o Caminhos do Cuidado entre os atores
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
envolvidos em sua execução, indicando a sensibilização sobre os princípios da Redução de danos e da Reforma Sanitária e Psiquiátrica (o que ficará mais nítido na Dimensão Cenários do Cuidado). Aqui é importante destacar que identificamos reflexos desta sensibilização no processo político, o que ajudou a elaborar e enfrentar dissensos: Havia uma ética de cuidado em todos os componentes do projeto, mesmo que essa identidade não fosse metodológica, mas todos sabiam como queriam cuidar em saúde mental, por isso a Redução de Danos. Nunca foi questionada a RD como forma de cuidado, mas houveram diferenças políticas no percurso, “coisas” que não poderiam ser ditas (Coordenadora Pedagógica).
Conflitos relacionados à redução de danos e saúde mental, encontrados nos depoimentos de informantes que trabalharam na execução do projeto, também se expressaram na fala dos ACS e ATENF que analisamos, como podemos visualizar na nuvem de palavras abaixo, extraída das rodas de conversa com alunos do curso. Outros conflitos políticos igualmente reverberam nestas rodas, ao redor de termos como “gestor”, “político”, “avaliação”, “rede”, membros da equipe e outros.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
O curso trouxe à cena do cuidado uma maneira não hegemônica do encontro com o outro. A Redução de Danos pode ser vista como uma lupa para olhar a integralidade do sujeito, uma ferramenta para apurar as sensações como forma de fortalecer o trabalho do ACS. Neste contexto, alguns conflitos expressaram deficiências na gestão em saúde, nas hierarquias profissionais e condições de trabalho: “muitos gestores não sabem trabalhar com a política da ESF” (orientadora); “Tinham lugares que os ACS queriam levar situações para a reunião de equipe e não podiam nem participar das reuniões de equipe” (orientadora); “Tornaram-se evidentes situações de precarização do trabalho, do trabalhador, das condições de trabalho.” (orientadora). A avaliação pôde identificar também a fragilidade política e a precariedade de recursos enfrentadas por muitas ETSUS: Eu fui aprendendo isso indo para os estados e vendo, na CIB, nos COSEMS, vendo a relação das Escolas (ETSUS) e os processos formativos, onde se via coisas bem escassas, algumas escolas bem sucateadas, paradas, e ao mesmo tempo querendo enxergar potências para existirem (coordenadora macrorregional).
Estas questões fomentaram rearticulações políticas, por vezes exitosas, para enfrentar deficiências e fragilidades, o que aponta para efeitos no fortalecimento do SUS para além das competências em saúde mental e redução de danos adquiridas com a formação (que discutiremos na Dimensão Cenários do Cuidado). A própria inclusão dos articuladores, representantes das ETSUS, nesta avaliação, é resultado de enfrentamentos e parcerias fomentadas pelo Caminhos do Cuidado, como apresentamos na metodologia. Contudo,
é
importante
ressaltar
que,
apesar
da
diversidade
organizacional, política, territorial, como resultado de inumeráveis conflitos e articulações políticas, chega a ser assombroso constatar que o Caminhos do Cuidado foi executado em praticamente todos os municípios brasileiros.
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Ressonância nas Escolas Técnicas do SUS “Tinham Escolas bem atuantes, que aconteciam outros projetos, mas outras estavam muito sucateadas, sem recursos (...). Algumas escolas também tinham residência, tinham muitas realidades. (...) recordo [uma escola] que disse: finalmente o Ministério olhou para nós, porque estavam sem vida, quase sem projetos, tentando recursos” (Coordenadora Macrorregional).
O Caminhos do Cuidado evidenciou o quanto muitas Escolas Técnicas, assim como as próprias políticas para educação profissional, se encontravam insuladas e em descrédito: “Quando chegou o Caminhos do Cuidado a escola estava parada” (coordenadora estadual). O Caminhos do Cuidado também aprendeu que não basta criar um projeto para as Escolas Técnicas do SUS, fazse necessário incluí-las no processo. As equipes estaduais também vendiam uma proposta sem conhecer, porque eles não tinham vivenciado a proposta pedagógica (…) no final do Caminhos teve a formação para as Escolas, lembro de uma que disse: agora, finalmente, eu entendi (Coordenadora Macrorregional). A primeira [formação de tutores] foi só para tutores e coordenadores (...) as escolas estavam de fora. Depois quando a gente fez a segunda formação, já buscamos inserir trabalhadores da escola, de áreas estratégicas, para que a gente pudesse levar essa discussão e abordagem para as residências e para os outros cursos realizados, como para a própria formação de agentes comunitários de saúde, como a pós-graduação (diretora de escola). O Caminhos potencializou a nossa estratégia enquanto escola, no âmbito estadual e descentralizado (diretora de escola). Se no início do projeto, o diálogo entre as diretrizes pedagógicas do curso com a Educação Profissional das Escolas apresentou conflitos, aos poucos as discussões foram sendo assimiladas pelas escolas que incorporaram o projeto em suas agendas e multiplicaram alguns de seus princípios e metodologias. Além disto, nossa colheita é contundente ao afirmar as marcas positivas do curso nas ETSUS:
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Teve diferenças em cada fase do projeto: primeira, segunda ou terceira. Na terceira, o Caminhos era visto como uma agenda da Escola. Isso foi se ressignificando como uma ação. O caminhos deixou um legado, teve estados que a equipe estadual foi absorvida para continuar outros projetos nas ETSUS. Mas no início a equipe estadual sentia-se ocupando uma sala da escola apenas. Teve estados que isso não foi agenda da escola (Coordenação Macrorregional). O que a gente sente, que começamos a participar do processo da metade para o fim, tu não recupera o tempo que não participou, ficava um pouco estranho, algumas coisas poderiam ter sido diferentes, alguns problemas resolvidos antes, se as escolas tivessem representatividade desde o início (Diretora de Escola).
Como uma ressonância do Caminhos do Cuidado, vale destacar que também que identificamos a criação de espaços coletivos de gestão em cada território (grupo condutor e colegiado gestor), com o desejo ampliar o “sentar junto”. Uma estratégia de articulação político-gerencial entre atores chaves para a execução do projeto, que abordaremos na dimensão Gerencial. Estas ressonâncias seguiram com mais vigor durante o trabalho com os Articuladores Locais junto às suas Escolas, que passam a compor com mais sistematicidade a avaliação do Projeto.
Fortalecimento do SUS A formação do Caminhos do Cuidado trazia em sua proposta uma mudança na forma de sentir, olhar, pensar, experimentar o SUS. Os dados indicam nítidas contribuições do projeto para quebrar preconceitos e questionar certezas sobre o SUS, como ilustra uma de nossas entrevistadas: Muitos alunos diziam ‘o SUS não funciona’ (...) Os alunos conseguiam trazer para si a responsabilidade do SUS, responsabilizar o profissional com a execução do SUS. (...) A dinâmica do teatro fazia eles se colocarem como protagonistas, mesmo em situações de precariedade (orientadora).
O formato e a metodologia do curso valorizaram os profissionais de nível médio, o que foi expressado nas rodas de conversa com ACS e por diversos informantes, como a seguir: O Caminhos do Cuidado resgatava a valorização desses profissionais no SUS, apesar da desvalorização que eles experimentam
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
no cotidiano” (Orientadora). A valorização destes profissionais significa a valorização e a qualificação da atenção básica, fundamental para o fortalecimento do SUS. Nas inserções de campo, ouvimos sobre o quanto experienciar a potência do coletivo estimulou muitos alunos que “passaram a se interessar por organizarem-se” (orientadora). Inclusive, por intermédio das atividades de dispersão, propostas no itinerário formativo do projeto, tinham vivências que problematizavam o Controle Social, como princípio do SUS na atividade de construção do mapa, onde os alunos (ACS/ATEnf) eram convidados a pensarem, mapearem, os recursos, as possibilidades de agenciamentos coletivos locais, como ferramentas, dispositivos da “clínica do ACS”: “Claro que tem histórias dos ACS, pelas atividades de dispersão, foram visitar a associação do bairro” (Coordenadora Macrorregional). Entretanto, no que tange ao controle social, identificamos poucas referências nas rodas de conversa e, quando aparece, se relaciona à discursos sobre a importância e necessidade de se “efetivar” o controle social ou de mobilizar, sem relatos de ações realizadas. O Conselho Municipal de Saúde foi citado em apenas 5 rodas, Conselho Local em uma, Conselho Estadual em duas escritas-experiência, Conselho Nacional não foi citado, Conselho Gestor foi citado uma vez... Também foi inexpressiva a menção às comissões intergestores e de representação de gestores (CIB, CIT, CONASS, CONASEMS, COSEMS). Isto pode indicar que as instâncias de controle social não chegaram de forma expressiva nas discussões do curso, tendo circulado mais fortemente nos espaços de coordenação e gerência do projeto, que se detiveram nos casos nos quais isso foi relevante. Termos relacionados às associações de bairro, moradores, comunitárias e outras foram pouco citadas nas rodas, mesmo que os relatos sobre estas articulações tenham aparecido nas entrevistas. Da mesma forma, nas rodas não foram citados movimentos sociais como parte
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
das redes informais acessadas pelos ACS. Temos notícias de movimentos sociais, sobretudo envolvidos com a luta antimanicomial, que participaram de seminários, fóruns etc., mas não expressam o cotidiano dos ACS. Apenas o Coletivo Alagoas Antimanicomial foi mencionado em uma escrita-experiência. O termo "sindicato" foi citado em cinco rodas (sendo que duas se referem a uma gíria utilizada para locais de socialização, típica do Estado de Pernambuco). Termos relacionados à participação são frequentes, mas estão pouco relacionados à política ou aos arranjos de controle social. Se referem mais à participação nos processos de trabalho cotidianos, reuniões e na própria roda de conversa. segundo observações de campo, em Toritama/PE, um técnico de enfermagem se elegeu vereador nas últimas eleições, em boa parte pelo trabalho de ACS que mobilizaram a população para isso. Não é um exemplo de ativismo em movimentos sociais ou nas instâncias de participação do SUS, mas é exemplo de exercício cidadão! Talvez possamos argumentar acerca de um maior acesso à formas diferenciadas de mobilização, no sentido contemporâneo atribuído aos “coletivos” pouco institucionalizados, mais flexíveis em suas formas de organização e estratégias políticas. Isto talvez qualifique os 32 % de respondentes terem assinalado como “interessante” na formação: “reconhecer a potência das mobilizações coletivas”. Diversas observações nos territórios identificaram o protagonismo dos ACS na mobilização e militância pelo SUS, porém, o movimento dos territórios se expressa em processos coletivos que excedem os arranjos institucionais de participação. Este dinamismo e criatividade social produzem cotidianamente modos de organização das comunidades que podem servir de inspiração para a renovação dos mecanismos de controle social.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
CAPÍTULO III DIMENSÃO GERENCIAL
A complexidade residia na multiplicidade de articulações necessárias para executar um projeto com uma demanda enorme (Coordenação de Infraestrutura e Logística).
A
gestão do Caminhos do Cuidado contou com diferentes
instituições e equipes que atuaram nacional e regionalmente
de forma articulada, em um complexo arranjo que teve o
desafio de construir um processo que contemplasse as singularidades dos territórios. Na coordenação nacional o projeto contou com o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz) e a Escola Técnica do Grupo Hospitalar Conceição, responsáveis pela elaboração e gestão do processo formativo, contando com o apoio da Rede de Governo Colaborativo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nas coordenações estaduais, foi fundamental a parceria das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (ETSUS) e de algumas Escolas de Saúde Pública (ESP). As dezenas de Escolas envolvidas na execução foram o eixo de sustentação nos territórios para operacionalização e efetiva composição do projeto nos municípios. Este contexto, somado à abrangência, diversidade territorial e metas ambiciosas, demandou estratégias de gestão que foram sendo experimentadas nas múltiplas trilhas que o projeto percorreu.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Aqui serão abordados espectros das perguntas-guia da Matriz Avaliativa, que buscaram avaliar as estratégias de gestão, a atuação e interação das diferentes equipes que compunham a execução do projeto. Apresentaremos os pontos que se destacaram nas narrativas de quem compôs o projeto, articulados a registros presentes em diferentes materiais e relatórios do Caminhos do Cuidado, que buscam agregar as reverberações da dimensão gerencial nos territórios. Estes processos de gestão estão marcados por uma verdadeira artesania, construída em ato, para dar conta de desafios tão grandes quanto o território brasileiro.
1. Trocar a roda com o carro andando A equipe nacional foi composta conforme as necessidades da operacionalização do Projeto: uma invenção em ato. Começou com uma equipe mínima, que desse conta de organizar o processo de realização do projeto nos primeiros estados a implementarem turmas. Pois, segundo um dos nossos entrevistados, não se tinha a noção exata da necessidade e complexidade executiva de cada momento. Na medida em que o projeto foi se expandindo, o processo de trabalho exigia novas configurações. Com esse movimento foi possível desenhar um complexo e desafiador organograma com a composição de todos os atores que integraram a equipe nacional. O planejamento inicial “não foi muito fácil de ser operacionalizado, pois os custos se apresentaram mais elevados do que o que havia sido planejado” (Coordenador de infraestrutura e logística). Além disto, os fazeres dos atores não estavam definidos à priori: “a construção dos papéis foi em ato” (Coordenação Executiva). Uma das frases que figurava nas reuniões do projeto era “vamos trocar a roda com o carro andando” (Coordenação Macrorregional). Durante o AvaliaCaminhos, essa frase seguiu ecoando, como podemos ver nas palavras
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
da coordenação executiva, quando nos conta sobre a infraestrutura, que também foi sendo desenvolvida com o projeto em andamento: “[Somente] 3 a 4 meses depois da primeira turma fomos ter o sistema pronto” (Coordenação Executiva). As regras iam sendo implementadas conforme as coisas iam acontecendo, quando os tutores começaram a reclamar que já tinham feito as cinco turmas e não tinham recebido a bolsa, nem a ajuda de custo (…) Aí essas coisas foram aparecendo para dentro da FIOTEC, aí começou a se criar os fluxos. (…) A gente teve que ir atrás de documentação dos tutores para se criar o fluxo e eles poderem receber (…) O projeto ia acontecendo junto com as coisas, a experiência (...) (Coordenação Macrorregional).
Assim foram sendo implementados arranjos operacionais que envolvia uma série de fluxos, por exemplo, o fluxo de gestão acadêmica através do SAGU (Sistema Aberto de Gestão Unificada), necessário para a matrícula e certificação dos alunos e o Workflow, sistema fundamental para a formação das
turmas, pagamento de
bolsas/ajudas de custo, contratação
de
alimentação, entrega de materiais e autorização de deslocamentos.
2. Sobre esse trabalho a muitas mãos Na medida em que o projeto ia sendo implementado, cada núcleo foi compondo seu modo de trabalho cotidiano com organizações muito peculiares, uma multiplicidade de modos de fazer gestão dos processos, mais ou menos influenciados pelos tensionamentos dos territórios, na medida em que estes iam acontecendo.
Coordenação de infraestrutura e logística e coordenação acadêmica A coordenação de infraestrutura e logística e coordenação acadêmica foram caracterizadas por um processo mais estruturado “organizados em unidades de produção taylorista” (Coordenação Executiva), que propunha a
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
divisão dos processos de trabalho em células: individualizado e com certa automaticidade. Aqui notamos os empecilhos presentes na busca de harmonia do projeto entre “estar funcionando sempre” e, ao mesmo tempo, trabalhando com os tensionamentos
do
território.
Esta
situação
foi
produzindo
diferentes
transformações e reestruturações dos processos de trabalho, na medida em que a estrutura apresentava dificuldade de dar conta das demandas locais, para que mesmo as intempéries dos territórios não impedisse que o Projeto chegasse em alguma região, como podemos ver na fala abaixo: Trago a memória de como foi difícil a realização no Estado do Amazonas, para a realização de uma turma. Por vezes, o tutor usava no percurso todos os tipos de transporte, aéreo, terrestre e fluvial, chegando a levar quase 3 dias para chegar no local de execução da turma, tamanha a dificuldade de acesso (Coordenação Executiva).
Na
percepção
transformações
foi
das
coordenações
fundamental
para
o
estaduais, sucesso
este na
processo
de
implementação
infralogística e acadêmica do projeto, que inicialmente apresentou muitas dificuldades. O curso previa 40 horas-aula presenciais e 20 em atividade de dispersão, distribuídas em cinco dias; dois tutores para 40 alunos. Para a infraestrutura e logística, coube o pagamento das alimentações (que correspondia a almoço e lanche), bolsas, deslocamentos dos tutores e o envio dos materiais para as aulas (mochila contendo o caderno do aluno, guia de Saúde Mental, bloco, caneta e uma camiseta do Caminhos do Cuidado). O deslocamento dos alunos e o fornecimento de local adequado para as aulas eram contrapartidas dos municípios. Os alunos deveriam ser devidamente certificados. Conforme o relato de entrevistados, foi necessário flexibilizar essas exigências. A variância de imprevistos que ocorreram foi enorme. Além de um planejamento muito organizado, foi necessário capacidade de moldar-se a diferentes problemas.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Um aspecto gerencial que apresentou muitas variações foi a distribuição de alunos por tutor, que originalmente não deveria exceder o limite de 20 alunos, seguindo uma diretriz de turmas de 40 alunos com 2 tutores. Segundo informações do coordenador de infraestrutura e logística, foram abertas 2094 turmas com mais de 40 alunos; sendo que, destas, 1916 turmas efetivamente tiveram 40 alunos matriculados; dessas, uma boa parte com apenas um tutor. Alguns entrevistados relatam que, para cumprir a meta de vagas ofertadas pelo projeto em cada estado, as turmas foram sendo adaptadas. Foram flexibilizados: o número de alunos, o número de tutores, os dias da semana, a distância que um tutor poderia percorrer para ministrar o curso, o tempo de intervalo entre as dispersões, entre outras. Flexibilizou-se o prazo para a abertura de turmas no Workflow, o que implicou em turmas com material sendo entregue com atraso, dificultando o trabalho do tutor. Atrasos ocorreram na entrega dos materiais a cada estado, um problema referido por 56% pelas coordenações estaduais. Em situações de atraso, a equipe estadual e as tutoras e tutores construíam possibilidades para garantir a continuidade do processo, sendo que, vale destacar, iniciar uma turma sem material, por vezes, também foi uma estratégia para garantir a execução em algum município, principalmente, quando o projeto foi chegando ao final e a preocupação com a meta aumentou. No workflow se preenchia “tutor ciente que o material não chegará para primeira aula”, sendo que o atraso do material algumas vezes foi menos importante que colocar a meta em risco. O projeto era muito complexo, no papel inicial era bem simples: fazer isso, isso e isso. Mas na prática com as pessoas, no contexto político (…) nem tudo estava tão dado assim, a infraestrutura foi um problema (…) começava aula sem material, aí se improvisava, se inventava, os tutores foram criando suas estratégias: quando faltava barbante para apresentação, faziam outra dinâmica que conheciam. Outros tutores faziam o que o curso pedia, mas acrescentavam um filme, um artigo, um outro texto etc. (Orientadora).
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Os pagamentos de bolsa e ajuda de custo também sofreram atrasos, sendo referidos como problema por 78% das coordenações estaduais. Os motivos levantados: atrasos internos da fundação gestora do recurso, devido ao volume de bolsas que expandia em muito o cotidiano da instituição; documentação incompleta recolhida durante a formação de tutores; erros nos dados bancários. Há também destaque para dificuldades relacionadas à contratação do fornecimento de alimentação (74%), muito embora este fornecimento tenha sido considerado fundamental para a implementação do projeto, de forma relevante nas entrevistas, questionários e rodas de conversa. Foram
1.530.835
refeições
contratadas
(Brasil,
2015).
As
respostas
do
questionário sobre a opinião em relação a oferta de alimentação, demonstram que a alimentação teve um papel importante para participação e permanência das alunas e alunos no curso, como podemos ver no gráfico abaixo:
Gráfico 1 - Resultados referentes ao fornecimento de alimentação.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Apesar de 40,82 das/dos participantes afirmarem que realizariam a formação mesmo sem alimentação, e 16,76% que não fez diferença para entrada
ou
permanência
no
curso,
percebemos,
nas
palavras
da
Coordenação Executiva e na escrita-experiência de uma Articuladora Local, que a oferta de alimentação serviu para trazer humanização ao processo formativo, considerando a precarização dos vínculos tão frequente entre as/os ACS. A alimentação é uma forma de cuidado (...) Não tem a função de resolver um problema social, da precarização dos vínculos dos ACS, ela é a condição para um espaço humanizado dentro de um processo de formação (Coordenação Executiva). Outro ponto relevante que foi apontado pelos entrevistados foi a disponibilidade da alimentação, do material, segundo eles, isso significou dignidade e respeito com os profissionais (Escrita-Experiência/PA - Kalinne Cabral Pinto)
Sobre a coordenação acadêmica, entre as fragilidades apontadas são destacadas as dificuldades iniciais no uso do Workflow (48%), bem como dificuldades locais, tais como a inconsistência dos dados de alunos disponibilizados pelos gestores locais (55%) e falta de tutores em algumas regiões (48%). Houve também referência, nas rodas de conversa com alunos, sobre a dificuldade de muitos egressos para acessarem seus certificados, que eram disponibilizados no site do Projeto. No país ainda temos uma grande demanda por inclusão digital, o que também foi sentido na construção do banco de e-mails para o questionário nacional avaliativo, apontando desafios adicionais para formações em EAD para este público. Apesar de todas essas dificuldades apontadas, há referência de que estes problemas foram sendo resolvidos ao longo do projeto, o que produziu uma
avaliação
positiva
destas
coordenações,
sendo
destacada
a
capacidade das mesmas de aprimorarem os fluxos e processos de acordo com as necessidades dos territórios.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Coordenação Macrorregional Outra
instância
macrorregionais,
que
de
gestão
do
se
organizavam
projeto
foram
regionalmente
as
coordenações
operando
como
dispositivo de articulação das diferentes coordenações da equipe nacional com as equipes estaduais. O que eu escutei sobre a criação das macros foi que veio da experiência do trabalho da educação popular, da necessidade de ter alguém que articulasse nos territórios, daí começou-se a pensar: quem é esse ator? O que ele vai fazer? Como se operacionaliza? No início era um mistério o que a macrorregional ia fazer, porque era uma figura que estava sendo construída, e em um primeiro momento tudo era as macros que iam fazer, me lembro que eu pensava: o que eu estou fazendo aqui? (Coordenação Macrorregional).
Por vezes, a função macrorregional também assumia um movimento mais pedagógico, em outras, atuava no apoio à organização acadêmica. Na avaliação das coordenações estaduais, a aposta na estratégia de uma interlocução no território foi assertiva, tendo sido destacada a sua importância na articulação das equipes locais com a equipe nacional por 88% dos coordenadores/as estaduais. Também foram destacados o papel das coordenações macrorregionais na articulação junto aos gestores estaduais e municipais bem como sua participação na seleção e formação de tutores e orientadores. Isto indica que esta estratégia pode ser potente em outras iniciativas de educação permanente e de ações em saúde. Sobre as macrorregionais: foi o coração do projeto, viabilizou a descentralização necessária ao projeto. (...) viabilizou o compartilhamento das experiências e a proximidade com a coordenação nacional (Coordenação Executiva).
Coordenação Pedagógica A equipe pedagógica era composta pela coordenação pedagógica, apoios
pedagógicos,
educadores,
orientadores
e
consultores.
Eram
responsáveis pela elaboração da proposta e materiais pedagógicos, pela seleção, formação e educação permanente de tutores e orientadores bem
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
como pelo monitoramento das questões pedagógicas do processo formativo nos territórios. Se a Coordenação de Infralogística sustentou a espinha dorsal, pode-se dizer que a equipe pedagógica guardou o âmago do projeto. Por isso, ressaltase que os resultados concernentes à Equipe Pedagógica identificados nas rodas de conversa e entrevistas realizadas transversalizam muitos lugares nesta avaliação, em especial nas dimensões Itinerários Formativos e Cenários do Cuidado. Esses resultados também encontram ressonância em dados dos relatórios estaduais, onde aparecem como potencialidades a qualidade do material pedagógico (93%), a metodologia do processo formativo (74%) e a constituição das equipes matriciais (44%). A equipe matricial foi um dispositivo adotado para aproximar o núcleo pedagógico
dos
territórios,
até
então
campo
presencial
do
núcleo
macrorregional, bem como para fortalecer as relações no trabalho em EAD. A tentativa era que uma equipe regionalizada composta por macrorregional, apoio pedagógico, educadores e técnicos do DEGES pudessem reestabelecer a proposta da Comunidade de Práticas, até então sub utilizada, e com isso se aproximar das realidades territoriais. Esta estratégia, como supracitado, mostrou-se relevante para a gestão pedagógica do projeto: Foram muitos momentos, no início todo mundo sentava junto para discutir o material, mas depois a equipe foi aumentando tanto, todo dia tinha alguém novo! Aí houve todo um afastamento, que é retomado com a criação da equipe matricial (Coordenação Macrorregional). Era doido o apoio [pedagógico] apoiar vários estados com várias macros. Tinha que ter uma equipe mais próxima (Apoio Pedagógico).
Equipe do Departamento de Gestão da Educação na Saúde, Ministério da Saúde (DEGES/MS) Compondo com os núcleos da coordenação nacional, contava-se com a colaboração dos técnicos do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (DEGES), do Ministério da Saúde. Estes estavam direcionados para
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estados de referência e apoiavam as coordenações macrorregionais em agendas territoriais e no acompanhamento das metas nos estados. Além das metas, tinha-se a expectativa de que esse acompanhamento transversalizasse o território, em situações onde a presença de articulação do Deges se fazia fundamental para possibilitar pactuações e ativar agendas junto às Escolas.
3. Núcleo Estadual: uma gestão territorial Os Núcleos Estaduais atuavam de forma integrada às ETSUS de cada estado e em conjunto com as Coordenações Macrorregionais e constituíam as coordenações estaduais do projeto. Tiveram, inicialmente, a responsabilidade de articular, organizar e dar resposta às demandas para a execução das formações no seu respectivo estado, bem como organizar a seleção de orientadores e tutores. No entanto, na medida em que o projeto foi sendo implementado, de acordo com a singularidade de cada território, estas instâncias estaduais passaram a contribuir também em outras ações, como a formação e educação permanente dos tutores e orientadores do projeto. No que diz respeito à composição das equipes de gestão dos núcleos, conforme informações disponíveis nos relatórios das coordenações estaduais, 67% contaram com um ou mais integrantes advindos das ETSUS, e 37% contaram com um ou mais integrantes indicados pelas mesmas. A possibilidade de indicação da coordenação estadual pela escola aparece como aspecto importante: A escola investiu no Caminhos quando a coordenação passou a ser alguém da escola; a indicação foi de definição da coordenação, depois se fez uma seleção para os candidatos para compor a equipe (Diretora de ETSUS).
Neste sentido, esta entrevistada destaca: “o coordenador estadual precisava ter esse perfil de estar dentro/fora para gerenciar, articular e fazer a coisa andar” (Diretora de ETSUS). Tal narrativa, nos remete a figura imagética da fita de moebius, que tanto nos auxiliou para pensarmos a indissociabilidade 52
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de lugares e funções normalmente dicotômicas. No Caminhos do Cuidado esta indissociabilidade salta na multiplicidade de fatores que precisavam ser levados em consideração em cada turma pactuada, exigindo constante maleabilidade procedimental. Deslocamentos constantes do olhar: ora com foco no projeto e suas metas, ora com foco no território, ora com foco nos tutores, ora com o foco na Escola, ou ainda a necessidade de se adequar o foco ao que nesse caminho surgisse. Além do coordenador estadual, ao núcleos contavam com equipes de apoio que diferiram em tamanho, sendo que 48% dos coordenadores referiram equipes de 3 a 6 componentes. Os arranjos de organização das equipes também diferiu, sendo que parte dos núcleos atuou de forma centralizada e parte de forma descentralizada. Os núcleos estaduais constituíram assim engrenagens que exigiam o domínio de diversas ferramentas, o que, segundo os entrevistados, poderia ter sido acompanhado de maiores investimentos em educação permanente para as equipes estaduais: Pouca formação para as questões de infra e logística. Poderia ser investido mais em capacitação, mais em educação permanente (Coordenação Executiva).
4. Espaços colegiados de gestão do projeto
Grupo Condutor Aqui destacamos o “grupo condutor” e os “colegiados gestores locais”, lugares estratégicos de discussão, tomadas de decisão, pactuações e também de disputas relacionadas à implementação do projeto. O Grupo Condutor, primeiro a ser constituído, foi responsável por macro-decisões técnicas e políticas em um espaço de diálogo entre o projeto e os direcionamentos das políticas e estratégias do Ministério da Saúde, atuando também no processo de monitoramento e avaliação das ações em curso.
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O grupo condutor cuidou de todos esses detalhes que davam sustentação para o projeto, a questão pedagógica, a questão estratégica, ali se discutia isso, se pensava as ações, se avaliava os resultados (Diretora de escola)
Do grupo condutor irradiavam as demandas da gestão federal. É onde efetivamente diferentes posições de gerência do projeto tomaram assento: “Das vezes que eu fui às reuniões do grupo condutor... Eram reuniões mais tensas no sentido de muitas disputas” (Coordenação Pedagógica). Este grupo se altera significativamente quando passa a contar com a participação de representantes regionais das ETSUS. Apesar de ter sido relatado na avaliação que esta representatividade era pouco efetiva, com a inclusão das ETSUS, o grupo condutor passa a acolher a voz dos principais executores nos territórios. O cuidado que se teve foi de não criar uma rede paralela, ter a rede do Caminhos e a rede das ETSUS, a ideia era fortalecer a rede existente e o projeto circular por ela, então foi um movimento nacional, no qual a inserção das escolas no grupo condutor fazia parte de uma ação de fortalecimento da RETSUS (Diretora de Escola). A ideia era que a representação [das escolas no grupo condutor] fizesse essa articulação na região, (...) porque seria mais um movimento, mais uma ação, em que as escolas precisariam estar conversando (Diretora de Escola).
Uma das diretoras, entretanto, aventa que essa aproximação não foi suficiente para a devida articulação das Escolas com os demais executores do Projeto: O que a gente sente, que começamos a participar do processo da metade para o fim, tu não recupera o tempo que não participou, ficava um pouco estranho, algumas coisas poderiam ter sido diferentes, alguns problemas resolvidos antes, se as escolas tivessem representatividade desde o início (Diretora de Escola).
Os tensionamentos para a inclusão das Escolas no processo decisório contextualizaram a criação do AvaliaCaminhos dentro dos moldes e pactuações propostos, como discutimos nas Sazonalidades Metodológicas. A avaliação surge na composição com todas as escolas e coordenações estaduais. Deste encontro nascem a matriz avaliativa, que orientou o olhar para os territórios, e o formato do processo avaliativo, com seus atores e pactuações, que aumentou o “sentar junto”.
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Colegiado gestor local Os colegiados gestores locais foram inventados no processo de implementação. Esta estratégia esteve longe de ser homogênea entre os territórios. Diferente do grupo condutor, os colegiados gestores locais aconteceram (ou desaconteceram) de formas muito diferenciadas em cada contexto. Além de ser uma estratégia de gestão para a implementação do projeto, o colegiado gestor foi uma tentativa de ampliar o diálogo da atenção básica com a saúde mental, potencializando ações conjuntas: O colegiado era um espaço que, por conta de um projeto, sentava junto às áreas técnicas da Atenção Básica e Saúde Mental (do estado) com a Escola para pensar ação integrada, porque o mais comum era a escola ter suas ações, e a área técnica as suas, de acompanhamento, tem sua rede própria. O colegiado, num primeiro momento, fortalece essa articulação, que também era uma demanda [da escola] (...) Era um espaço que potencializa essa articulação entre formação e área técnica, entre Escola e Coordenação de Atenção Básica e Saúde Mental (Diretora de Escola).
A periodicidade dos encontros dos Colegiados ficava a cargo das coordenações estaduais, que tinham a responsabilidade de ativar essa proposta junto à Escola. Cada colegiado contava com uma organização própria, mas a maioria tentava compor com a presença das coordenações de Saúde Mental e Atenção Básica, representantes do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems), ETSUS, representantes do Caminhos do Cuidado como Macrorregionais e técnicos do DEGES, entre outros. [O colegiado] também serviu para nos aproximar como direção das escolas com as representações dos gestores municipais, porque para o projeto acontecer era pela relação, pelo diálogo que se estabelecia com os gestores municipais. O Caminhos possibilitou esses canais, tu aproveita ou não, mas ele proporcionou essas ferramentas que produzia efeito, movimentos, no funcionamento da escola (Diretora de Escola).
Percebemos que a estratégia do Colegiado Gestor proporcionou encontros importantes entre as áreas técnicas de Saúde Mental, Atenção Básica e ETSUS, essa experiência representou uma oportunidade para que a prática de escuta e diálogo pudesse acontecer nos territórios
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* * *
Uma gestão moebiana: Ao olharmos para a dinâmica de funcionamento da dimensão
gerencial,
podemos
identificar
uma
lógica
sistêmica
de
funcionamento em rede, onde cada ator regula e retroalimenta o outro, produzindo adaptações contínuas, pautadas pela criatividade. Um sistema vivo, no qual podemos localizar diversos moebius: coordenação-coordenação, infralogístico-pedagógico, instituição-território, nacional-estadual, estadualmunicípios, entre outros. Na falta de material, o núcleo estadual ou os tutores tinham que criar soluções para não romper a fita; se algo dava errado no território a Infralogística precisava que reinventar procedimentos e flexibilizar fluxos; e assim por diante. Apesar dos tensionamentos, ou exatamente por conta dos tensionamentos, esses moebius se retroalimentavam, constituindo um processo onde todos sabiam que estavam do mesmo lado da fita e não queriam rompê-la.
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CAPÍTULO IV DIMENSÃO ITINERÁRIOS FORMATIVOS
Descritor: Remete aos conceitos e práticas de educação, aprendizagem e metodologias pedagógicas. Diz respeito também ao roteiro previsto e aos desvios ou invenções surgidos no itinerário do projeto Caminhos do Cuidado, apostando em elementos éticos, estéticos e políticos como a construção coletiva, a escuta do outro e a horizontalização do saber.
Começo a achar que é uma perda de tempo qualquer capacitação que não seja [com uma metodologia] assim (Educadora). “Como eu falei antes, a metodologia definiu todo o curso. Se fosse só repasse de informações, seria extremamente cansativo, mas sentia vontade de ir para o curso. Foi produtivo, interativo, apesar de curto (risos).” (Montes Claros - MG)
P
ara apresentarmos as colheitas e safras da dimensão Itinerários Formativos, nos remeteremos aos conceitos e práticas de educação, aprendizagem e metodologias pedagógicas que
constituíram este projeto. Analisaremos o roteiro previsto e os desvios ou invenções surgidos nestes itinerários, que apostaram na construção coletiva, na escuta do outro e na horizontalização do saber.
Da construção da proposta pedagógica Foi um desafio construir um processo de formação que partisse do cotidiano e das práticas vivenciadas pelos ACS e ATEnf nos territórios e que pudesse agenciar o protagonismo desses atores na busca de melhores alternativas de cuidado aos usuários da saúde mental, especialmente aqueles em situações de uso prejudicial de drogas. Para tanto, foi constituído um grupo
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multidisciplinar para a elaboração da proposta pedagógica e do material didático que pudesse contemplar as premissas do Caminhos do Cuidado. A proposta deveria estar pautada em uma metodologia pedagógica que ofertasse dispositivos para conectar o mundo do trabalho dos alunos à formação, contemplando os problemas e necessidades identificadas no processo de trabalho nos territórios, “no acolhimento aos usuários, na mobilização e articulação da rede de apoio social e comunitária”(Caderno do Tutor, 2013). Sendo assim, a matriz curricular da formação teve como base os princípios do SUS, a Política Nacional de Saúde Mental, Política de Atenção Básica e a Política de Atenção Integral aos usuários de álcool e outras drogas. Essa matriz curricular buscou contemplar: a) A apropriação do processo de reforma psiquiátrica, da política de saúde mental com ênfase na rede de atenção psicossocial, com vistas à produção do cuidado, a reintegração social e da cidadania das pessoas usuárias de álcool e outras drogas; b) A discussão e construção do papel do ACS e ATEnf para o cuidado em saúde
mental,
conforme
a
especificidade
de
cada
território,
qualificando o olhar e a escuta para dar visibilidade à questão das drogas; c) A ampliação da caixa de ferramentas do ACS e ATEnf para o cuidado em saúde mental, atuação na rede de atenção e na construção de territórios de paz.
É importante citarmos esta Matriz Curricular, pois avaliaremos como estes objetivos formativos reverberaram nos territórios, por meio das rodas de conversa, articulação e mobilização no território, via articuladores locais, resultados do questionário nacional principalmente na dimensão intitulada de Cenários do Cuidado. A proposta pedagógica do projeto ganhou existência
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em um modo peculiar de produção de movimentos de aprendizagem que envolveram, não apenas os alunos, mas também os tutores, orientadores, consultores, educadores e vários outros. Além disso, como veremos ao longo deste relatório, a formação dos ACS e ATENF reverberou também nas redes e equipes em que os egressos estão inseridos.
Dos arranjos, materiais e peripécias metodológicas Acho que dá pra emendar na questão que a gente sempre falava; de que como a parte pedagógica desse projeto foi boa. (...) Os agentes depois diziam assim: ‘a gente não vem aqui, não senta e a pessoa blá-blá-blá e a gente anota e sai daqui e nem entendeu muito bem para que tem que fazer isso’ - Não era esse o papel deles(dos alunos). Eles tinham que construir (Tutora).
A Metodologia ou o “jeito de ensinar” diferenciado do Caminhos do Cuidado ganhou destaque entre as memórias de quem foi escutado no processo avaliativo. Entre tantas narrativas e lembranças, a metodologia do projeto foi vista como um diferencial em relação a outras tantas capacitações que são ofertadas rotineiramente aos trabalhadores da saúde: “A própria proposta da capacitação já era diferente das outras capacitações que eles viveram (...) isso produziu necessidade real de mudança neles...” (Orientadora de Aprendizagem). A formação do Caminhos do Cuidado reiterou a necessidade de se repensar novas práticas educativas para os profissionais de saúde, uma vez que a educação tradicional já não corresponde mais às expectativas e necessidades de profissionais submetidos a processos formativos de qualquer natureza(SANTOS; FERLA, 2017).
A construção de conhecimentos fundamentada na prática dos ACS foi apontada como o grande diferencial do Caminhos do Cuidado, tendo em vista que a proposta pedagógica trazia para a cena suas experiências: “Uma coisa que me chamou a atenção foi a grande aceitação, por parte dos alunos,
da
metodologia,
que
proporcionava
que
eles
participassem”
(Coordenadora Pedagógica). Esta questão aparece também na fala dos tutores e alunos: 59
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O que fez a diferença também é que os Agentes Comunitários diziam como eles se sentiam compreendidos. (...) as pessoas falavam para eles nos cursos e não sabiam nem o que eles faziam, quais eram as suas práticas... Eu acho que isso faz diferença. Porque tu sabia qual era o caminho dele e a gente podia compor junto (Tutora). O que eu achei bom no curso foi a opinião de todos, todos foram escutados, cada um dava a sua opinião e juntava tudo e chegava num consenso e pronto, todos respeitaram as opiniões de todos (Macaíba-RN)
Alicerçado no protagonismo dos alunos, o processo formativo propôs-se a pensar outros jeitos de ensinar-aprender. A transversalidade das relações pedagógicas abriu a possibilidade de trocas e uma construção conjunta do saber: “Foi todo dinâmico, a gente instruía mais do que era instruído e isso direcionava o dia a dia do curso” (aluno de Campo Grande-MT). Para os tutores, a oportunidade de deslocar-se do lugar do suposto saber para construir junto com o aluno também aparece como um dos achados desse processo avaliativo: Eu esperava que o conteúdo fosse dado e que (fôssemos) linha por linha, o professor explica e deu... Daí quando eu entrei no caminhos que eu entendi que não era esse o processo, que ele ia ser construído junto, que ia ter muitas reflexões... então, eu acho que isso foi a diferença. Eu tenho lido Paulo Freire e vem bem ao encontro de tudo, a parte pedagógica, de que nada é imposto, mas é construído, refletido. Isso é importante (Tutora).
Um importante fato constatado foi a possibilidade da formação proporcionar espaços de aprendizagens com as experiências dos colegas; sendo que 57% dos respondentes do questionário, também, destacaram o incentivo a trazer experiências pessoais e do trabalho para os encontros. De todos os respondentes do questionário , apenas 3% refere que não gostou do formato das aulas. Foi de suma importância porque (...) teve o contato nosso. Porque apesar de nós trabalharmos juntos há tantos anos, a gente não se vê todos os dias, porque cada qual tá na sua área. Então esse curso proporcionou um contato junto nosso, um diálogo de situação diferente, porque nós trabalhamos no mesmo trabalho mas vivenciamos coisas diferentes (Toritama-PE). Eu acho que foi o único curso que a gente foi agraciado que a gente pode conviver mais com os ACS da região, e a troca de ideias, porque a gente tem a nossa realidade e a realidade delas é diferente. Então foi de muita valia também a troca de experiências com as outras colegas (Soledade-RS).
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Outro ponto salientado foi a delicadeza de se trabalhar com a saúde mental, álcool e outras drogas, tendo em vista que lidar com esses processos de adoecimento é de extrema complexidade, e gera desafios. Como “capacitar” as pessoas para se depararem com a realidade complexa que envolve estes temas? Isso permitiu também a gente entrar em contato com a complexidade de se produzir em ato (na) saúde. No campo da saúde mental especificamente (...) Como lidar com o processo de adoecimento das pessoas... é de uma complexidade! E aí tivemos vários desafios enquanto profissionais, trabalhadores de saúde, para ter contato com isso. (...)como capacitar as pessoas para se deparar com esta realidade complexa em todos os sentidos?(...) É com essas realidades que a gente se defronta (...) que desafio é esse? (Educador).
Nesse sentido, a leveza na mediação das ações pedagógicas foram ressaltadas como diferenciais pelo grupo de tutores, que apontaram que este “jeito de ensinar” tornava leve um tema bruto: Pra mim foi um divisor de águas...Toda a parte da pedagogia, que eu acho que foi impressionante... Como o conteúdo fica sem ser duro. E nas aulas a gente aprendia muito essa coisa da leveza, que é onde eu me encontrei mesmo... Então, hoje eu tento fazer isso, ser um pouco mais leve, mas com responsabilidade, com liberdade (Tutora).
Sendo assim, as formações propuseram a qualificação dos processos de trabalho repensando as ações de ensino apoiadas nas narrativas da vida real, trocadas e refletidas ao longo da formação. Estas narrativas de vida real, entretanto, foram pautadas na alteridade, na proposição de colocar-se na situação de complexidade que o tema abarca. Mesmo quando o assunto era Redução de Danos, quando falava em RD para eles [no início era]: tinha que parar de beber, ou tinha que parar de usar drogas... (...) aí a gente puxava os outros exemplos da clínica, do diabético que não pode comer açúcar (...) Então, a gente começou a fazer essas associações e aí eles perceberam o quanto que é difícil, a pessoa que tem ansiedade, que come com compulsão, como é difícil... É fácil tu dizer (..) não pode! E aí, quando eles começaram fazer essa inversão de papéis e se colocar no lugar de cada usuário, é que eles começaram a mudar esse olhar (Tutora).
A experiência de participar de um processo pedagógico desta natureza também é apontada por tutores, orientadores, educadores e alunos como uma aprendizagem que extravasou os limites do projeto. 61
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Para mim o maior impacto (é) o quanto essa metodologia cabe nas minhas aulas (...). Vem do Caminhos do Cuidado, algo que foi brutal, que continua reverberando em mim (Educador). As dinâmicas, eu até peguei essas dinâmicas, coloquei dentro da associação que organiza, botei lá na igreja (Lauro de Freitas - BA).
A proposta pedagógica dos encontros presenciais utilizava dinâmicas, dramatizações, rodas de conversa e filmes com a finalidade de maior interação entre os participantes e melhor abordagem do tema proposto. Sobre essas propostas de aprendizagem, 38% dos respondentes do questionário consideram como destaque a possibilidade de fazer uso da criatividade nos encontros utilizando música, teatro, cordéis, paródias, poesia, vídeos, etc. Alguns alunos nos contam como foi essa experiência: A gente voltava pra sala de aula e parecia aqueles meninos da alfabetização, doido pra contar o que fez. (risos) (Todas concordaram) (Cabedelo – PB). Um dos melhores dias foi aquele que a gente ficou no chão (Cabedelo – PB). Praticando a gente assimila mais. Teve a cartolina no chão, na construção do mapa...do território (Riachuelo-SE). Eu aprendi muito porque eu era muito tímido e aí eu perdi esse medo de falar em público, e hoje já falo até demais, (...) antes eu era muito nervoso, muito tímido mesmo e quando tinha aqueles trabalhos, aquelas apresentações, só faltava morrer... Mas daí foi perdendo o medo, através das tutoras, sempre orientavam, davam o apoio, então você ia perdendo o medo e as coisas começavam a acontecer (Plácido de Castro - AC).
Vale um destaque para os vídeos, que apareceram como mobilizadores de afetos que deslocaram os alunos do lugar de trabalhador de saúde para o lugar de quem vivenciou questões referentes à Saúde Mental. A partir desta mobilização, muitos alunos trouxeram situações de exemplos familiares que foram enriquecedores para o processo de aprendizagem do grupo. Alguns, inclusive, narraram experiências próprias com drogas. Segundo um Tutor, “foi interessante eles poderem falar e se colocar no lugar de uma pessoa (...) e que passou por, ou que ainda passa [por dificuldades], e aí se perceber o quão difícil é trabalhar com o outro com essa situação”. Trabalharemos na dimensão
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Cenários do Cuidado sobre o impacto no curso na vida pessoal das trabalhadoras e trabalhadores. Já no que diz respeito ao apoio que o material didático produziu para a execução da proposta metodológica, as falas apontam que, de forma geral, este atendeu às expectativas, adaptando-se às discussões propostas. Ele te dá a oportunidade de navegar para além dele. Ele é um apoiador da sala, mas ele proporciona ir além dele (Coordenação Estadual). Com o material a gente construía dia a dia (Campo Grande - MS).
Nos diferentes locais por onde a avaliação percorreu, parece-nos com vigorada frequência entre os alunos do Caminhos do Cuidado as falas que nos demonstram a satisfação com relação ao material didático proposto e o quanto o mesmo ainda está sendo utilizado em seus ambientes de trabalho, desde o fato de apresentar linguagem acessível até pelas discussões que ele ainda proporciona. Eu tenho minha apostilazinha e quando eu tenho um problema na minha área você vai lá(...). Você vai levar pro resto da vida. Ajuda demais. Guardo ela como um livro que você precisa pro dia-a-dia, pro resto de sua vida, porque lá tem tudo (Barbalha - CE). Até hoje eu guardo o meu [tirou o livro da bolsa e mostrou] qualquer dúvida eu venho aqui, qualquer trabalho que eu quero desenvolver na equipe lá na minha área eu venho aqui. Sabe, isso ajuda muito, com certeza (Macapá- AP). O meu material serviu para além do curso. Até lá me casa meus filhos fizeram leitura. Eu acabei trazendo para cá (Montes Claros - Minas Gerais).
No questionário on-line, a maioria dos respondentes (72%) consideraram que o material utilizado na formação ajudou a compreender o cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas, 46% consideraram a linguagem apropriada e 35% consideraram que o material estava adequado para a sua realidade local. Dos respondentes, apenas 2% consideraram que o material não colaborou para compreender o cuidado em saúde mental, crack, álcool e outras drogas.
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Selecionar para formar, formar para selecionar Mas o que temos aí foram duas mil e setecentos e sessenta e uma pessoas que passaram por formação de orientador e tutor (Coordenadora Pedagógica).
Uma das apostas do projeto foi de que o processo seletivo dos tutores e orientadores teria que ter uma dimensão formativa. Esta perspectiva ia ao encontro das diretrizes pedagógicas do projeto, que previa que os sujeitos estão sempre em construção e, portanto, o processo formativo deveria iniciar desde o movimento de seleção, acompanhando o desenvolvimento das atividades dos atores durante todo o projeto, por meio da estratégia de educação à distância. Além disso, esta opção potencialmente traria ao processo seletivo uma maior capacidade de identificação de atores com perfil adequado para as funções de orientação e tutoria, amenizando a limitação de um olhar definido por um processo de consulta à currículos; primeira instância da modalidade seletiva utilizada. No entanto, alguns problemas foram identificados no que diz respeito a esta estratégia, tendo em vista que inicialmente os editais não previram a desclassificação dos candidatos após o segundo momento do processo seletivo “algumas pessoas foram selecionadas, mas que não tinham condições, e que mesmo assim levavam o nome do Projeto(...). Deram trabalho(...)” (Tutor). Embora identifiquemos problemas em relação à capacidade de selecionar os candidatos com perfil ideal, o investimento nesse processo aparece na fala dos atores envolvidos na avaliação como de grande relevância para a potencialização de sua atuação como tutores/orientadores do projeto, especialmente no que diz respeito à aprendizagem de novas práticas pedagógicas, na medida em que deslocaram o “professor” do lugar do saber, incluindo a escuta como inerente à prática pedagógica, colocando a experiência como agenciadora do pensamento e o sujeito e seu cotidiano como centro do processo educativo.
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Acho que esta foi a grande questão (...) esta possibilidade do tutor poder vivenciar daquilo que se pretendia que ele desenvolvesse com o aluno, a centralidade do aluno, a oportunidade da palavra, a reflexão sobre seu próprio cotidiano, que as técnicas, de uma certa forma, oportunizava(...) (Tutor).
Esta oportunidade de vivenciar o lugar de aluno durante a formação, experimentando as propostas, atividades e dinâmicas que posteriormente utilizariam com suas turmas, é identificado como uma estratégia importante e de grande impacto na prática pedagógica dos tutores. Visualizar tudo o que eu vivenciei lá foi muito interessante, porque fazia volta com a prática. (...) Quando botamos o pé no chão ali, as coisas vieram surgindo, as oficinas lá facilitaram muito, as vivências que a gente teve lá, pra mim, facilitou a construção (Tutor).
Esta vivência também teve destaque para os Orientadores, que não estariam conduzindo o processo educativo presencial, mas teriam a atribuição de apoiar os tutores nesta tarefa: Foi muito importante para mim a capacitação inicial, viver a dinâmica (...) porque não é fácil, não foi fácil nem para mim viver uma capacitação que tenho que me expor (....) isso me fez sentir que isso também poderia ser dificuldade do outro (...) o que também me servia de subsídio para trabalhar essas questões com o tutor (...) (Orientadora).
Embora essas vantagens da experimentação de um processo seletivo formativo tenham sido expressivas nas falas, também foi possível perceber que em algumas situações esse provocou um certo desconforto entre os participantes: “Isso foi uma sensação geral das pessoas, de mostrar desempenho, daí se formou menos grupo por ter que mostrar desempenho” (Tutor).
Também
houveram
relatos
de
alguns
problemas
na
comunicação/compreensão do processo: Agora a gente está chamando de formação, mas na época a gente foi chamado para um processo seletivo... a gente ficou a semana inteira ali e ninguém tinha me dito: vocês vão trabalhar com a gente... Eu teria ficado bem mais tranquilo se alguém chegasse e dissesse: vocês estão em formação (Tutor).
Para formar mais de dois mil tutores, o que viabilizou a execução das turmas em todas as regiões do país, foi necessária a mobilização de diversos atores do projeto, que se ocuparam de formas mais ou menos intensas desta
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ação: “em relação a participação dos membros da equipe nacional, houve muitas diferenças nas participações, mesmo se referindo a um mesmo núcleo” (Coordenadora Pedagógica). Se ocuparam mais especificamente da organização pedagógica e da facilitação do processo de formação os Educadores, Apoiadores Pedagógicos e Consultores. Desta forma, com exceção das questões de infraestrutura, observa-se que ocorreu a centralização destas ações a partir da Coordenação Pedagógica do projeto. Outros parceiros importantes, como as Escolas Técnicas do SUS, coordenadores macrorregionais e equipes estaduais, acabaram ficando, inicialmente, em segundo plano. O que aconteceu então, nas primeiras formações é que nós tínhamos urgência de formar gente, as escolas ficaram mesmo muito mais na parte da estrutura, o que era absolutamente fundamental (...). Elas foram atores que começaram a entrar no projeto a partir, efetivamente, da segunda etapa (Coordenadora Pedagógica). Não tinha espaço para esses outros atores que não estavam prescritos. Era mais prescrito o pedagógico. Era papel “fantasma” da ETSUS (...) mais para o final das formações (elas) pleitearam espaço no processo formativo (Apoio Pedagógico).
Sendo assim, as impressões sobre as formações seletivas de Orientadores e tutores do projeto, recolhidas na avaliação, apontam para a potência deste tipo de investimento. Ao mesmo tempo, revela sua delicadeza, tanto no que diz respeito à forma de acolher os candidatos a serem selecionados quanto no que diz respeito à articulação necessária com os diferentes atores envolvidos no projeto para viabilizar uma construção mais coletiva e, com isso, potencializar esta estratégia.
Das complexidades de construir um processo de educação permanente à distância Realizado o processo formativo/seletivo, foi ofertada para os tutores do projeto uma estrutura de educação à distância (EAD). Esta previa que os
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tutores contariam com o apoio de Orientadores em uma comunidade de práticas, e os Orientadores com o apoio de Educadores em outra. No entanto, nenhum desses atores contava com experiência no ensino à distância e observou-se que o projeto também não investiu em um estratégia formativa mais intensa neste aspecto, sendo a formação de educadores, orientadores e tutores restrita à experimentação das ferramentas da plataforma virtual. Tendo em vista a complexidade de uma experiência educacional não presencial, onde a mobilização dos atores é uma dificuldade importante, a possibilidade de criação de atividades disparadoras de compartilhamento de experiências e aprendizagem colaborativa ficou comprometida. Parte dos atores que estavam neste lugar de facilitação do processo, embora experientes e conhecedores das áreas de saúde mental e atenção básica, encontraram dificuldades na formulação destas atividades Eu demorei para saber o que podia fazer na comunidade, (...) não tinha prática. Vários não tinham(...). O ambiente virtual por si já é difícil, pelo acesso e pela dificuldade de comunicação, até porque tinham hierarquias que se estabeleceram dentro do próprio pedagógico, quem se relaciona com quem virtualmente (Apoio Pedagógico).
Em parte como consequência dessas questões, há referência de que os movimentos na plataforma virtual não foram expressivos, com alguns atores se manifestando apenas para solucionar questões mais administrativas, ou apenas restringindo sua participação às postagens obrigatórias das atividades definidas como pré-requisitos para a certificação da formação em EAD. Como as atividades exigidas não foram previamente pactuadas com todos os participantes das comunidades - tendo em vista que foram elaboradas pela coordenação pedagógica do projeto após o início do processo de formação à distância - muitos atores em formação não as realizaram. Eu confesso que usei pouco essa plataforma. Até porque, no início surgiam dúvidas, mas com o passar do tempo as coisas iam se repetindo... e aí não estimulou muito não. Eu realmente confesso que não fiquei muito estimulada não, com essa ferramenta (Tutora).
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Também
expressa-se
no
relato
desses
atores
(participantes
da
comunidade de práticas) outra dificuldade apontada em relação à realização das atividades obrigatórias. Talvez porque foram propostas como pré-requisito para a certificação, não estando relacionadas com os movimentos singulares de cada comunidade e de seus participantes, estas atividades foram acolhidas por muitos de forma burocrática, comprometendo os movimentos de reflexão e problematização. Também houveram casos de comprometimento das possibilidades de atuação do facilitador que, a partir destas reflexões, poderia construir discussões para aprofundar o conteúdo dessas postagens: Teve tutor que só copiava e colava o relatório, eu perguntava: fulana não acontece nada diferente nunca nas suas turmas? Era sempre idêntico. Os relatórios na sua maioria eram muito burocráticos, padronizados (Orientadora).
Entre as fragilidades relacionadas à uma proposta pedagógica à distância, esta a pouca oferta e/ou a dificuldade no manejo de alguns facilitadores de aprendizagem, além da constituição de um espaço virtual mais informativo do que interativo e colaborativo: A minha educadora alimentava aquele espaço com artigos e textos atuais da política de redução de danos, por exemplo (...)Um espaço mais de colher informação que de trocas (...) eu não conseguia muito provocar uma discussão, eventualmente isso acontecia (Orientadora).
Outra questão que aparece nas falas dos entrevistados refere-se às dificuldades ocasionadas pelo acúmulo de atividades dos envolvidos nas Comunidades de Práticas: “De um lado o orientador que tinha que cobrar, motivar. Do outro o tutor que alegava falta de tempo para realizar as atividades…” (Orientadora). Esses elementos são apontados como dificuldades que impactaram de forma importante o processo de formação à distância dos tutores e orientadores, que é referido como uma das fragilidades do projeto. Sinais desta fragilidade apareceram significativamente nesta avaliação, sendo que foram pontuais as referências sobre as potencialidades da EAD no projeto. Desta
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forma, a estrutura de apoio e educação permanente pensada não é referida como significativa pela maioria dos atores entrevistados. As dificuldades vivenciadas nesse processo parecem demonstrar que esta modalidade educacional, especialmente em apostas baseadas no protagonismo do aluno e na problematização do cotidiano do trabalho como o fez o Caminhos do Cuidado - demanda um investimento na formulação de propostas pedagógicas consistentes para apoiar o trabalho do facilitador no ambiente virtual. Esta proposta pedagógica precisa contar com ofertas metodológicas e invenção de atividades que atuem como dispositivos de aprendizagem. Desta forma, o papel do facilitador neste tipo de proposta é estratégico, mas demanda um planejamento das ações a serem realizadas e um processo de formação e apoio intensivo. Tendo em vista que as experiências mais expressivas do ensino à distância ainda são recentes, e que a grande maioria dos investimentos nesta área trabalham em uma perspectiva vinculada a propostas pedagógicas autoinstrucionais, ou seja, em uma perspectiva educacional mais tradicional estas questões se tornam ainda mais relevantes. Sobre o itinerário formativo do Caminhos do Cuidado, a avaliação evidenciou o quão potente foi a aposta no encontro, o sentar em roda e colocar a palavra para circular e fazer do cotidiano aprendizado. É exatamente esse ato singelo, da palavra que circula, que o EAD não conseguiu atingir na execução do Caminhos do Cuidado. No entanto, para o AvaliaCaminhos, a virtualidade do EAD, tanto na especialização, como para manter a avaliação participativa e formativa com o grupo de Articuladoras/es, permitiu um trabalho vivo entre pensamentos separados por grandes distâncias geográficas e tempo limitado para ações presenciais.
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CAPÍTULO V DIMENSÃO CENÁRIOS DO CUIDADO
A
gora abrimos este baú chamado Cenários do Cuidado. Colocaremos os nossos pés diretamente no terreno onde correm as forças que o Caminhos do Cuidado pretendeu
transformar. Esta é uma dimensão construída pela experiência, em toda a densidade que esta palavra carrega. Cenários do Cuidado refere-se às práticas cotidianas de trabalho em saúde e suas implicações na vida de quem as habita. A Dimensão está dividida em: 1) Ressonâncias no Processo de Trabalho: jogos das redes; 2) Caminhos da Mudança de Si no Encontro com a Alteridade.
1. Ressonância no processo de trabalho: jogos nas redes
Agora a questão do acolhimento do posto, melhorou? Melhorou. Era para ter sido melhor? Era. Agora também pra que melhore mesmo, a gente precisa repensar a forma dos gestores, toda a gestão, nos apoiar nessa questão também. Porque só, você também não pode fazer nada (Toritama - PE).
Para falarmos sobre as ressonâncias no processo de trabalho e suas redes, retomamos o caderno do aluno do Caminhos do Cuidado: “o curso vem, justamente, oferecer dispositivos para ajudá-los a reconhecer as situações
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problemáticas presentes no dia a dia dos seus territórios e a facilitar o acolhimento necessário dos usuários, por meio da mobilização e articulação de uma rede de apoio social e comunitária” (Caderno do Aluno, p.11). O Projeto buscou responder a essa complexa demanda, apostando no trabalho realizado no território e no fortalecimento da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e seus processos de cuidado. Uma aposta na permeabilidade das relações, no compartilhamento, nas trocas, nas articulações que envolvem o cuidado, o que
implica
em
uma
clínica
que
se
forja
na
integralidade,
na
interprofissionalidade, entre trabalhadores de nível técnico e superior, entre áreas profissionais, entre Atenção Básica (AB) e Saúde Mental (SM), entre a rede do SUS e as redes da vida. Esta avaliação afirma que o Caminhos do Cuidado foi eficaz em produzir diálogos com os territórios e com as equipes, não se restringindo aos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e acessando as “redes informais”: as cooperativas de trabalho, associações de moradores, práticas esportivas, parques, igrejas, casas de umbanda, campos de futebol, cachoeiras, aquilo que dá forma aos encontros de cada um no passo da vida. Por vezes, entretanto, sabemos que as relações têm permeabilidade de uma rocha.
Impasses da Permeabilidade entre Atenção Básica e Saúde Mental
Outra coisa, o paciente do ACS tal. Não é. Nós somos uma equipe. Cada um tem uma contribuição. Trabalhar sempre juntos. Tem o NASF, CAPS, e nunca a gente trabalhar isolado, sempre buscar apoio nas Redes (Paraíso - Tocantins).
O Caminhos do Cuidado tinha como um contexto o grande desafio de ampliar a permeabilidade entre SM e AB, para além da formação, e que seguisse “fluindo” nos territórios. Um desafio que esbarra em “inúmeras dificuldades que dizem respeito à organização do processo de trabalho, à
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articulação de redes de cuidado e de responsabilização, entendida como o acompanhamento e referenciamento em qualquer ponto de rede da atenção psicossocial” (PAULON e NEVES, 2013, p. 47). Frente aos questionamentos da Matriz Avaliativa sobre a permeabilidade da equipe, o questionário interroga: “Você observou alguma dessas mudanças em sua Unidade de Saúde, após a formação do Caminhos do Cuidado?” Entre os 1.151 respondentes oriundos de todos os estados brasileiros, 35% das/dos respondentes referiram que a equipe passou a ter uma maior preocupação com os usuários de crack, álcool e outras drogas de sua área. No entanto, 22% disseram que não observaram nenhuma mudança. O caderno do aluno também fornece pistas sobre a importância da permeabilidade nos mais diversos cenários do cuidado para “descobrir novos caminhos e na criação de melhores alternativas para enfrentar os desafios que envolvem o tema da saúde mental”. Caminhos que “devem estar de acordo com as competências da atenção básica, com foco na promoção da saúde e prevenção das doenças, favorecendo assim a lógica da redução de danos e das ações não manicomiais” (Caderno do Aluno, p.11). A permeabilidade que o
Caminhos
do
Cuidado
enseja,
requer
uma
aproximação,
uma
corresponsabilização, sutil, e por isso, de força, de se perguntar sobre o “estar em rede”: Eu tinha muita preocupação, na minha área, porque eu tenho muitas pessoas com problemas de saúde mental. E o que eu via era que eles só tinham acompanhamento do CAPS, não que seja ruim, mas que eles só tratassem a doença da mente. As outras coisas era como se não existisse. Eu acredito que isso seja um problema geral. Então, depois do curso eu comecei a cobrar. Eu tenho paciente com problema mental que já faz a prevenção regular (Icó-CE). É uma coisa cultural mesmo. Porque antigamente as pessoas achavam que tinham que internar pra pessoa ficar boa. Tenho uma, é uma amiga e uma cliente da clínica, que ela teve vários problemas e ela foi internada várias vezes e não melhorava. Agora ela tá tendo tratamento em casa, não é que ela tenha melhorado 100%, ela não voltou a ser quem ela era, agora ela vai à rua, vai ao mercado, ela vem à clínica. Ela tá tendo uma vida, melhor do que ficar lá dentro. Eu acho que a gente tem que mostrar é isso pras pessoas, entendeu? Antigamente as coisas eram dessa maneira, mas viram que agora a pessoa está tendo um vínculo com a família. É importante ter esse vínculo com a família, ter
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esse contato com os familiares. Ela vai conseguir se estabilizar melhor do que ela ficar lá dentro com várias pessoas com o mesmo problema que ela (Rio de Janeiro - RJ).
Ao olharmos os cenários da Estratégia de Saúde da Família (ESF) (que pressupõe a integração entre AB e SM), encontramos falas durante a avaliação que expressam solidão, impotência e frustração. Outros autores vão no mesmo sentido, argumentando que ACS consideram “a assistência de demandas de saúde mental uma das que mais os angustiam, gerando uma sensação de impotência e vulnerabilidade pessoal” (PAULON e NEVES, 2013, p.12). A escrita-experiência da articuladora local do Espírito Santo identifica estas sensações e argumenta que as transformações na forma de cuidado de uma equipe, de uma rede, dependem da permeabilidade: Durante a realização das rodas também pude identificar certo sentimento de frustração quando percebiam que a transformação pessoal não tinha força para mudar uma dada forma de funcionar dos serviços/gestão. Para minha surpresa o fato de capacitar todos os ACS não foi suficiente para que os mesmos tivessem força para produzir mudanças mais consistentes. A lógica que se instala nos processos de trabalho são muito mais fortes do que o envolvimento/abertura/acolhimento disparados em cada profissional de saúde. (...) pude identificar que a mobilização provocada pelo curso, num primeiro momento, foi efetiva. Infelizmente, algum tempo depois, segundo eles, numa gestão extremamente autoritária, os ganhos se perderam e atualmente a articulação entre Atenção Básica e saúde mental está enfraquecida. (...) Citam alguns colegas que ainda insistem, apesar das dificuldades de articulação (Arti Elzimar Peixoto, Escrita-experiência/ES).
O Caminhos do Cuidado se insere no objetivo mais amplo de qualificação da SM na AB, o que excede as possibilidades de um curso de formação, e de apenas 60 horas. Mantenhamos este diapasão para afinar nossa escuta ao longo da análise. Várias e vários foram as/os informantes expressaram dificuldades na operacionalização do conteúdo do Caminhos do Cuidado, que foram atribuídas à lacunas do próprio processo de trabalho: “ausência
de
rede”;
“sobrecarga
de
trabalho”;
“rotatividade
dos
trabalhadores”, “insuficiência dos protocolos”. Jargões que podem soar de forma fatalista e determinista:
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Porque existem, como já falei, existem Redes, os protocolos, mas quando a gente vai procurar quando vem, cadê?! (Riachuelo-SE). O que a gente aprendeu no curso não foi passado adiante, não houve esse exercício. (...) A correria do dia-a-dia impede muito da gente transpassar esse conhecimento (São Paulo-SP).
Em outras falas, isso não impede o comprometimento (“fazemos nossa parte”, “os colegas que insistem”), mas ainda é reconhecido que um encontro precisa do movimento de cada uma/um: Na verdade, assim, houve muita transição, assim teve a questão política, a nossa equipe foi desmontada, já passou várias enfermeiras, vários técnicos, e assim, particularmente o projeto deu uma parada, nós como ACS estamos trabalhando o que nós absorvemos no curso, a gente tá fazendo nossa parte, mas assim, a equipe em si não tá por dentro do projeto, porque é equipe nova e não tem nenhum conhecimento do projeto (Senador Guiomard - AC).
Esta escrita-experiência sintetiza este movimento de análise: As falas em geral reconheciam a pertinência do tema e os conteúdos que foram apreendidos pelos alunos, mas versaram predominantemente sobre a dificuldade em colocar os conhecimentos partilhados em prática no cotidiano de suas vivências como ACS. Referiam que a realidade é outra coisa, parecia um conto de fadas, dando sinais de uma preocupante desmobilização e frustração com o trabalho coletivo. A Rede é quimera – podia-se ler nesses relatos – e, no entanto, a Rede somos nós, pensava eu; se existimos, se nos conectamos de alguma forma, a Rede existe (Arti Nathalia Borba, Escritaexperiência/ES).
Nos relatórios estaduais do projeto encontram-se recomendações de que a formação no que tange ao tema álcool e drogas e saúde mental fosse ampliada para toda a equipe da ESF. No AvaliaCaminhos não foi diferente, muitas falas apontaram como uma limitação o fato do curso ser restrito a ACS e ATENF. Identificam a barreira de alguns profissionais para trabalhar com a temática das drogas e saúde mental e reforçam o desejo de levar a formação para os profissionais de nível superior da ESF: Eu acho que todos os profissionais de nível superior precisam desse curso. Respeito muito o médico, mas para a estratégia e saúde da família precisa ter perfil, e tem muitos que não tem. Você está todo dia ali naquele plantão, tem a necessidade de você aprender a lidar com aquela família (Macaíba-RN). Eu coloco de novo que seria bom um curso assim pra toda a equipe, porque a gente precisa falar a mesma língua (Soledade - RS).
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Sabe, não, não estou desfazendo que eles fazem um trabalho maravilhoso. Mas eu acredito que esse Caminhos do Cuidado não é só pra nós técnicos, nem só pros agentes. Que os médicos deveriam fazer, os enfermeiros, NASF, CAPS, todos deveriam (ter)o conhecimento (Indaial/SC).
Ganhou força nas rodas de conversa a sensação de desvalorização dos saberes das/dos trabalhadoras/trabalhadores de nível técnico, frente aos de nível superior, causando, algumas vezes, sentimento de impotência, o que contrasta com apenas 1% marcarem que não se sentiam da equipe no questionário. E também, deu para saber, o que cabia a nós realmente, porque até então, a gente era muito discriminado com relação a equipe, “tu não pode fazer isso por que isso não é da tua ossada” tá entendendo, então tu tem que limitar o teu trabalho, já pensou limitar o trabalho da Atenção Básica que trabalha a prevenção a saúde... (Macapá - AP). Então, eu vi como nós somos inferiorizados dentro da Equipe de Saúde da Família. Eles dizem somos da equipe, mas eles dizem que nós não somos da equipe e falam mesmo, vocês não são da equipe. Tem uma enfermeira que falou pra mim, vocês não pertencem a Equipe de Saúde da Família e vocês podem sim ser desligado a qualquer hora, por qualquer motivo (Florianópolis SC).
Caminhos do Cuidado na equipe: Hierarquias e Permeabilidades das Rochas E tem essa questão da gente desconstruir e se reconstruir o tempo todo... Como a gente era e como a gente é. O mais importante é levar isso pra equipe. Pro colega que queria ouvir. E pra uma questão até de mudança cultural porque a gente fica muito tempo, começa a desenvolver alguns modos, alguns hábitos e que a gente muda isso e, fazer com que mude no outro, que trabalha com a gente, isso aí é muito significativo (Rancharia - SP).
Neste tópico abordaremos as questões que o Caminhos do Cuidado encontrou e suas ações em relação ao trabalho em equipe. Para tanto utilizamos o recurso de uma metáfora da geologia, no caso nos referindo aos diferentes graus de permeabilidade que as rochas carregam. Nas relações interpessoais, interprofissionais, interinstitucionais, a permeabilidade não é uma constante. Buscamos lançar o olhar sobre a permeabilidade da equipe aos temas do Caminhos do Cuidado, sendo um dos pontos elencados para compor a Matriz Avaliativa.
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A nuvem de palavras, construída com as transcrições das rodas de conversa com ACS/ATENF, agrupou contextos nos quais aparecem termos relacionados a “equipe”. Ela nos dá pistas sobre o universo semântico construído ao redor deste termo. A análise das rodas apontou que o “Curso” “Caminhos” do “Cuidado” teve uma força na equipe, e a nuvem nos ajuda a visualizar pelas palavras e a frequência com que aparecem termos como: “apoio”, “conversa”, “acolhimento”, “interação” etc. As/os ACS/ATENF trouxeram em suas falas cenários que compõem os territórios das ESF: “casa”, “rua”. Também nos chamou a atenção o quanto associado ao termo “equipe” apareceu a “rede”: “família”, “mãe”, “CAPS”, “NASF”. Em torno da “equipe”, podemos visualizar que, ao trabalhar a SM e o uso drogas, o Caminhos do Cuidado articulou os dispositivos que o território oferece, mostrando a complexidade da permeabilidade. A territorialização também pode provocar a desterritorialização, no encontro com o território “do outro”, e assim, reterritorializar-se nas “trocas de fluídos” com as rochas que cada um carrega, aumentando a permeabilidade. Das falas trazidas nas rodas de conversa, percebe-se que, tal como as rochas, as equipes de ESF também apresentam permeabilidade variada. E aí os aprendizados do Caminhos do Cuidado encontram sua acolhida singular: Para mim o que o curso deixou foi a ampliação de horizontes. (...) A equipe tem que saber, saber como agir como equipe. Hoje a gente conversa, a gente senta, trabalha como equipe, muito motivado pelo curso (Paraíso - Tocantins).
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E não tinha ninguém pra passar esse conhecimento [do Caminhos do Cuidado] para nós (...) [os demais profissionais da equipe] não sabiam fazer a abordagem, nós é que tivemos que passar pra eles esse conhecimento (Iranduba - AM). Até o próprio enfermeiro da equipe, que conhece o que é esquizofrenia, chama a gente para conversar e a gente para ir na casa. Chama a gente para trazer e ficar durante a consulta. (...) ele chama a gente porque eles dizem que a gente tem um jeito diferente de conversar (Araraquara/Motuca - SP).
O Caminhos do Cuidado pretendia ressonar no cotidiano da equipe da ESF, por meio do conteúdo e vivências repassado pelas/pelos ACS/ATENF, para saber como essa pretensão se materializou nas diversas equipes de ESF por onde o Curso passou, o questionário avaliativo carregava a seguinte pergunta: “Como foi a reação dos seus colegas, da Estratégia de Saúde da família, com a formação que você realizou?”. O gráfico abaixo traz elementos para pensarmos sobre a permeabilidade dos conteúdos aprendidos. Percebemos que, segundo os respondentes, há interesse dos membros da equipe em também realizar a formação (35,9%) e apenas 7,5% disseram que não costumam abordar sobre esses assuntos com a equipe.
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Gráfico 2 - Resultados sobre a reação da equipe de ESF em relação a formação.
Destacamos aqui que 32,08% das respostas consideraram as atividades de dispersão (atividade proposta na formação) como uma possibilidade de troca durante o percurso formativo. A análise das rodas qualifica esse dado, evidenciando que as atividades de dispersão refletiram a permeabilidade e hierarquias de cada equipe, encontrando ou não brechas para existir e movimentar as ações nas ESF: Mas teve uma atividade de dispersão que as meninas fizeram que foi no próprio território, né, e que eu fui participar desse que foi exatamente sobre redução de danos. E foi um trabalho maravilhoso que até hoje eles falam nisso, né?! (...) Aproximou o usuário muito mais da equipe, porque o usuário é próximo da ACS, mas ele não é próximo da equipe, porque ele não vai lá no PSF muitas vezes, entendeu? Então, esses que as meninas fizeram, foi fantástico e de lá abriu caminho pra que a gente continuasse fazendo outros. Dia do homem a gente fez lá também (Cabedelo – PB). Com a minha equipe foi muito boa, tudo que a gente dizia sobre o curso Caminhos do Cuidado, eles tinham maior atenção, a enfermeira, a gerente e nossos próprios colegas de trabalho. E a gente conseguiu até reativar um grupo que tava parado, hoje tá maravilhoso, e tudo que eles vão fazer no posto pedem nossa opinião, pois fizemos o curso Caminhos do Cuidado (Sobral - CE).
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A gente contribuiu como equipe, sentamos e debatemos o assunto e tema. Durante o curso criamos até algumas estratégias de chegar em duas áreas vulneráveis que temos em nossa territorialização da microárea que são difíceis de trabalhar (Macaíba-RN).
Antonio Lancetti (2013) nos chama atenção para a potência terapêutica dos ACS por serem “trabalhadores afetivos”, detentores do saber cultural e popular dos territórios. Sendo, a um só tempo, membros das comunidades e profissionais de saúde, essa integração de saberes é uma “arma fundamental para fazer funcionar esta máquina de produzir saúde e saúde mental”. Mas não sem tensionamentos - Renata Pekelman (2014) considera que, nesses processos, o conhecimento popular é desvalorizado e o elo dos serviços com a população, o ACS e sua equipe, ficam enfraquecidos. De fato, encontramos falas que expressam isolamento e desvalorização do ACS, o que limita sua autonomia e capacidade de atuar em equipe. Notamos que essas hierarquizações não comprometem apenas a permeabilidade com os saberes populares e a comunidade, mas a própria ecologia de saberes científicos das diferentes categorias profissionais de uma equipe, tais como aqueles oferecidos pelo curso: Aí a gente se aproxima do médico que não fez a formação e ele nos olha como que dizendo .´quem é tu´?´ (Passo Fundo - RS). Esse curso foi muito bom, mas, do tipo: é mais um. Que quando você tenta fazer o acolhimento, você tenta levar o caso que você conheceu e o teu conhecimento: a enfermeira sabe mais, o técnico sabe mais e você tem que ficar quieta porque você está levando mais um caso....aí, mais um! A gente esbarra muito nisso: eles não deixam você fazer a tua parte, você não tem liberdade e autonomia nenhuma pra isso, sabe? (Passo Fundo - RS).
Recordamos que um objetivo do Caminhos do Cuidado era potencializar o pertencimento de ACS e ATENF e torná-los multiplicadores dos conteúdos em suas equipes. O questionário avalia este objetivo: 53% dos ACS e ATEnf já se sentiam parte da equipe, 26% passaram a se sentir mais parte da equipe, ou seja, melhorou o pertencimento, 13% passaram a se sentir parte da equipe e, para 16%, o curso não mudou a relação com a equipe. Buscando qualificar
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estes números, as rodas de conversa nos informam que o Caminhos do Cuidado criou fissuras nestas rochas: Hoje, quando a gente fala: “tá acontecendo assim... assim....assim...” e aí a equipe escuta, e aí equipe nos respeita, assim como a população também nos respeita, e isso foi tudo depois do curso. Antes não existia a união de equipe e nós não éramos considerados como importantes (Praia Grande - SP). Mudou o argumento, a forma de conversar com o psicólogo, os usuários da unidade, o médico, enfim com todos (Praia Grande - SP).
Frases como estas foram bem frequentes e mostram que estas fissuras estão relacionadas a novas possibilidades de linguagem no cotidiano da equipe, que passa a atribuir sentido na “fala” e nos “argumentos”. Neste ponto, vemos os efeitos do instrumental conceitual aportado pelo curso, que aproximou
as
atribuições
da
equipe
através
de
novas
capacidades
comunicativas. Como visualizamos na nuvem de palavras do início deste tópico, quando se fala em trabalho de equipe está se falando de um solo de permeabilidade muito variada e irregular. Dito isto, o trabalho de análise nos autoriza a afirmar que esse instrumental fez ponte entre os saberes científicos e culturais dos territórios. Nos questionários 19% das/dos participantes disseram que após o curso a equipe ampliou suas ações junto à comunidade. As rodas expressam esta afirmação: No grupo que temos aqui no posto, antes era só idosos, com hipertensão e diabetes, mas aí começamos a aceitar essas mulheres com uso de psicotrópicos e hoje a maioria do grupo são essas mulheres que usam e já diminuíram. E elas se sentem importante, vêm duas vezes na semana, e tudo. E agora estamos dando poderes para elas, uma é responsável por uma reunião, outra pelo dinheiro, ou seja, estão ocupando a cabeça, se envolvendo mais com a área, estão sendo mais incluídas nas atividades (Panatis-RN). Depois do curso a gente começou realizar palestra pra eles e às vezes a gente vai até eles, lá tem o Saúde na Rua e a gente leva o pessoal, encaminha eles. Mas às vezes eles não vão com a gente para a unidade. Eles tem aquele preconceito das pessoas ficarem olhando pra eles, por que as vezes, eles estão sujos, às vezes eles estão mal trajado, aí eles não procuram a gente na unidade, a gente tem que ir até eles (Macapá - Amapá).
Estas falas nos ajudam a perceber que a ampliação de ações junto a comunidade se torna, não apenas um efeito do instrumental aportado pelo
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curso, mas retorna para a equipe, com o reconhecimento do trabalho do ACS que ganha relevância técnica. Um moebius equipe-comunidade, alimentado pela ecologia de saberes proposta pelo Caminhos do Cuidado que, como os líquens, penetram na difícil permeabilidade das rochas.
Uma clínica do morar: escutar, acolher, se vincular, cuidar A gente sabe que muitas vezes o ouvido trabalha mais que a boca, porque o paciente tem mais para falar do que para ouvir. Esse curso ensinou que a gente tem que ouvir (Natividade - TO). Ocupamos a palavra clínica, para pensar o trabalho do ACS, apresentando ações que já eram realizadas e que o Caminhos do Cuidado legitimou e qualificou; outras que os ACS passaram a realizar influenciados pela formação. Uma clínica forjada no território e em tudo que este carrega. Em um artigo chamado “desvendando os processos de trabalho do agente comunitário de saúde nos cenários revelados da Estratégia Saúde da Família em Vitória/ES”, os autores trazem que os ACS devem estar atentos para quatro verbos importantes na execução de seu trabalho: identificar, encaminhar, orientar e acompanhar (Lima et al., 2011). Nestes termos, no entanto, o Caminhos do Cuidado produz um desvio: escutar, acolher, produzir vínculo, cuidar. Frases como a citada acima, de Natividade no Tocantins, e as que apresentaremos logo abaixo se destacaram em diversas rodas de conversa, indicando que o curso valorizou os saberes e o trabalho do ACS. Os relatos revelam um rico arsenal de práticas que merece espaço, não apenas por prospectar práticas existentes... A gente já fazia algo, mas, na nossa visão, por ser tão pouco... nós achávamos que era tão pouco, que a gente achava que não fazia nada (Missão Velha - CE).
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Na verdade a gente acha que não tem coisa nova, porque já fazíamos coisas antes sem mesmo saber o que era ( São Paulo - SP).
...mas por terem sido amplificadas e/ou legitimadas pelo Caminhos do Cuidado: Esse curso abriu o meu horizonte. Até pra gente saber qual era realmente o trabalho do ACS (N. Sra. Livramento - MT).
O questionário dimensiona este argumento: 34% das/dos respondentes apontaram como interessante na formação: “descobrir que já fazia outras ações de cuidado”, a descoberta de uma clínica, até então soterrada pelo cientificismo. Como nos detivemos no tópico anterior, vimos o quanto o cotidiano de uma equipe de ESF é definido por hierarquias e permeabilidades que definem a clínica de cada uma/um, esse acirrado jogo de saberes que contornam a “clínica”, ou as tantas clínicas que compõem o cuidar. Nesse tensionamento, frequentemente, são as trabalhadoras e trabalhadores de nível técnico que têm o seu saber soterrado. Por isso trouxemos o termo “clínica” para pensar e reforçar o trabalho, o saber do ACS. Tanto a execução, como a avaliação do Caminhos do Cuidado, provocaram um gesto de interrupção para que as vivências laborais cotidianas pudessem ser expressadas como experiência, reconhecendo e valorizando estas práticas como ações de cuidado. Uma clínica forjada em ato, no território, invisibilizada nas hierarquias entre saberes. O verso de Manoel de Barros (2015, p15) nos abre para um conhecimento de outra ordem, que ressoa no trabalho de análise: Nosso conhecimento não era de estudar em livros. Era de pegar de apalpar de ouvir outros sentidos. Seria um saber primordial?.
Um saber primordial? Originário apenas no que diz respeito ao seu vínculo com o cotidiano, mas não inato, pois envolve vivências elaboradas em experiências bastante complexas e sofisticadas, articulando um grande número de variáveis tecnológicas, afetivas e comunicativas:
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Nós praticamente usamos todos os dias o que a gente aprendeu no curso, porque praticamente em todas as casas tem alguém que precisa de acolhimento, de escuta (Soledade - RS). O médico não chega tanto na intimidade como o agente chega, entendeu? (Vila Velha - ES).
Um saber primordial, no sentido de sua importância. Localizar o acesso à “intimidade” de alguém e a necessidade de “escuta” como demandas da saúde, como parte do cuidado, é algo que diversos campos das ciências vêm apontando como fundamental para a formação dos profissionais da saúde. Um ensinamento sofisticado, difícil de transmitir, mas que está presente na “Clínica do ACS”. O Caminhos do Cuidado foi capaz de trazer à cena essas experiências, convidando o olhar para os dispositivos que o território oferece, qualificando-os como ferramenta de trabalho: Mas com tudo isso, agregamos valores ao nosso atendimento, agregamos valores a nossa territorialização, da região onde estamos locados (Macaíba-RN). Nas busca ativas procuramos olhar com outros olhos e usamos o genograma, ecomapa e não fazemos o Projeto Singular Terapêutico no papel, mas a noção do cuidar. Procuramos a escola, a família, as pessoas mais próximas. Senão seria mais um papel! (Araraquara/Motuca - SP). A nossa música [de ACS] é aquela lá "como vai você, preciso tanto saber da sua vida", é nossa música, entendeu, porque a gente precisa, a gente pega, tem que ouvir mesmo, e eles falam, né? É assim, é ouvir, criar vínculo, criar amizade, acima de tudo, para poder ajudar eles na hora que eles estiverem necessitando (Praia Grande, SP).
Colheitado na avaliação, o questionário mostra que foi possível perceber a incorporação de novas práticas de saúde coletiva após o curso. Ao perguntar sobre a qualificação ou realização de ações: 53% passaram a orientar sobre formas de se cuidar, 51% a conversar com os usuários e familiares e 30% aproximam-se de parentes e amigos do usuário em sofrimento psíquico. Os relatos abaixo demonstram como esta clínica não encontra morada na exclusividade de nenhuma clínica, borrando os limites dos diferentes núcleos profissionais. Porque na realidade os Agentes de Saúde tem vários papéis. (...) Ah, eu me considero psicóloga, médico sou tudo ( Osasco-SP).
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É porque, na verdade, o agente de saúde, (...) nós somos psicólogos, nós somos professores, nós somos, muitas vezes, até médico, nós somos padre, nós temos várias funções. Nós somos até auxiliares de serviços gerais. Eu te digo isso porque, muitas vezes a gente chega numa casa e tem muitas pessoas que estão precisando muito mais serem ouvidas, até mesmo do que uma medicação. Eu escuto e depois faço a minha orientação. (...) Eu tenho orgulho de ser agente de saúde, porque é um trabalho que você trabalha em tudo na família. Você trabalha em tudo (Barbalha - CE).
A afirmação do papel do ACS como elemento fundamental na equipe para um olhar mais sensível foi frequente nas rodas. Foi relacionado à identificação das repercussões do uso abusivo e até na acessibilidade do usuário. A abordagem constitui parte importante do processo de trabalho do ACS, que cotidianamente entra na casa e no cotidiano das pessoas e, para isso, precisa não só de permissão, mas de convite. O vínculo, fundamental para o cuidado, depende da qualidade da abordagem. Os trechos a seguir, qualificam várias perguntas do questionário. Os alunos relatam maior facilidade na busca ativa e na abordagem de usuários e suas famílias, coletivizando a noção de saúde ao valorizar a comunidade e suas singularidades: A busca se tornou mais ativa. Vimos a importância de nosso papel. Na verdade sabíamos da importância, mas o curso ampliou essa noção (Montes Claros MG). Isso ajudou, principalmente a gente que trabalha na rua, a ter uma visão melhor da situação, das famílias. Antes, a gente não sabia como lidar. Hoje não. Hoje a gente tem um olhar mais crítico. Talvez no momento a gente não saiba como, mas a gente pega conversar, faz com que eles não desistam de ter uma melhora (Osasco- SP). Aí eu parei e pensei: eu não vou falar daqui de cima, com ar de superioridade. Aí eu me abaixei, cheguei perto dele, peguei no braço. (...) O fato de você chegar e falar com ele. Isso aí me ajudou muito. Chegar, abaixar, conversar, falar de igual para igual, sei lá... Eu acho que, não sei se contribuiu, eu acho que pra mim contribuiu assim. Chegar, conversar igualmente. Sem medo. Apesar do risco que a gente correu ali (Toritama- PE). Aprendi que o Caminhos do Cuidado preocupa-se com a saúde das pessoas que convivem na comunidade. E está mesma comunidade possui diferentes problemas de saúde, que requer do ACS um cuidado especial voltado para todos (Oeiras - PI).
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As atividades de cadastro, registro e arquivamento de informações, alimentando os sistemas de informação da AB, são mencionadas nas rodas de conversa. Indicam que qualidade de registro foi aprimorada após a formação: Acredito que sim [o Caminhos do Cuidado influenciou no preenchimento do ESUS]. Na medida que o curso veio pra gente, e a gente pôde chegar até as pessoas, (...), então facilitou muito e o número cresceu mais! (Murici - Alagoas). O grupo, motivado pelo medo de represália ou de exposição dos usuários, não registravam a condição de usuário de drogas. Hoje afirmam que o curso os ajudou a olhar de outra forma, passam a realizar o registro, mas continuam a preservar o sigilo da informação para qualquer outra pessoa que não profissional da equipe (Itapissuma - Pernambuco).
Isto significa que usuários de drogas e “loucos”, usualmente negados pelas instituições, passam a contar um pouco mais nos números e registros do SUS. Os usuários que eram invisibilizados, indignos de registro, terão mais chance de contar nas estatísticas, índices epidemiológicos, metas e mapas dos gestores, pois nessa fronteira entre a vida e o burocrático, determina-se quem existe e quem não existe.
Jogos nas redes: tecendo espaços de cuidado No curso a gente aprendeu sobre as redes (Paraiso - TO).
O Caminhos do Cuidado trabalhava com uma noção de rede, como a que se constrói em cada território, ao redor de cada usuário, de modo singular, são formais e informais, modelando-se em função das necessidades do cuidado. Portanto, não trabalhou-se com “a” rede, mas com “jogos nas redes”. No material pedagógico havia uma dinâmica que se chamava “Jogo da Rede”: no primeiro dia de aula, desenhava-se um território; apenas no penúltimo encontro surgia uma situação problema em que tinham a tarefa de pensar nas possibilidades de conexão com aquele território. Era um jogo:
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sentavam-se em roda e discutiam o caso fictício de Francisco, depois tinham que imaginar articulações: UBS, CAPS, igreja, campo de futebol, boca de fumo, hospital, presídio, CREAS, cooperativa de pesca, comunidade terapêutica, rua etc. Desenhava-se Francisco naquele mapa, e dele partiam linhas, e outras linhas. A gente mapeou a área, para apresentar no último dia, para representar no mapa o usuário de droga e determinar a vida dele, para onde ele ia, as redes que a gente poderia encaminhar (São José de Ribamar - MA). Nós mapeamos a área com os pontos de lazer, as igrejas e as bocas de fumo para desenvolver atividades (Paço do Lumiar - MA).
No AvaliaCaminhos partimos do “jogo da rede” e colheitamos “os jogos nas redes”. A Matriz nos guiou por estes fios interrogando como o Caminhos do Cuidado
reverberou
nas
redes:
encaminhamentos/matriciamentos,
agenciamentos com a rede informal (vida!) e criação de espaços de Educação Permanente. Colheitamos o gesto singelo, de parar, pensar e desenhar o território, reconhecendo serviços e cenários de cuidado até então invisíveis: [O curso] abriu uma visão para nós, né?! Que é a visão da rede. É a rede com o ACS, com o PSF, com o NASF, com o CRAS, com o CREAS, com a família (Toritama – PE). Muitos de nós, eu acho que na época sem esse curso, não sabíamos como encaminhar, então o que foi que aconteceu, eu conheci esse cidadão na minha área, levei minha enfermeira, levei minha técnica, na época, depois levei a doutora. Fizemos uma consulta com ele, chamamos o NASF, psicólogo e toda a equipe, aí encaminhamos diretamente pro CAPS. Fizeram vários encaminhamento dele, isso foi muito importante pra gente, porque muitos de nós só sabíamos encaminhar alcoólatra (Santana - Amapá).
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Jogo da Rede (Frederico Westphalen). Fonte Observatório do Cuidado.
Ao olhar com mais acuidade para o território, vemos que os pontos da rede, e as relações entre eles, passam a ser melhor identificados. Os serviços aprimoram suas articulações com a família e a comunidade e, através do trabalho dos ACS, ampliam o acesso às redes informais, pontos até então pouco visíveis para a saúde. O bar, o adolescente, o morador de rua, o futebol, o comércio local, novos atores e laços são iluminados na tessitura da rede em um jogo renovado de produção do cuidado: Já na minha área a atividade que fez foi diretamente em cima de alguns bares que vendem bebida, foi feito um estudo disso, os menores de idade, e fizemos a atividade em cima disso pra tentar assim conscientizar as pessoas que são proprietárias desse bares, a gente sabe que é uma forma que não é legal. É ilegal, né? Vender qualquer substância química a menores de idade. E já a área
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de lazer, a principal área de lazer era os torneios de futebol que tinham e até hoje tem (Senador Guiomard - AC). Cada ACS identificou os usuários de sua área e montamos uma equipe para fazer visita e fazermos os encaminhamentos. Por exemplo, tem um usuário que é morador de rua, fomos até onde ele fica e fizemos alguns encaminhamentos. O ACS levou ele até a unidade para fazer alguns exames, consulta, tudo isso a partir do curso, porque antes ele nunca tinha ido até a Unidade. Então foi muito bom (Sobral - CE). Aí você já começa a enxergar aquela mercearia que você nunca viu que tem um bêbado ali (Levy Gasparian - RJ).
Na questão 10 do questionário, as respostas indicam um aumento de 31% de encaminhamentos para o CAPS e de 11% para Igrejas, Comunidades Terapêuticas, Narcóticos e Alcoólicos Anônimos. Entretanto, nas rodas de conversa, algumas as falas apontam que, em diversos territórios, igrejas e comunidades terapêuticas são os dispositivos da rede mais acessados para atender pessoas em uso prejudicial de drogas, isto indica a importância de considerarmos estes atores como parte da rede de cuidado. Inclusive, articulações entre Igreja e serviços também foram relatadas. Quando nós fizemos o mapeamento vimos que o maior apoio era das igrejas, pois em vários pontos haviam igrejas (Paço do Lumiar - MA). Sim, eu sou de uma igreja evangélica, e uni o útil ao agradável. Como nós já fazíamos o social nas comunidades, capacitamos também a equipe de evangelismo da igreja e levamos a conscientização e colocamos duas vezes na rua o filme o BICHO DE 7 CABEÇAS e depois abrimos uma roda de conversa para abrir a realidade da droga quando entra dentro de casa. Como eu já tinha uma equipe, e recebi uma informação nova, repassei para eles. Nós multiplicamos, saímos da barreira de posto de saúde e entramos na igreja e, junto com essas informações, encaminhamos bastante gente para o CAPS. A gente abriu os esclarecimentos sobre o CAPS e ali foi quando começamos a conhecer pessoas que estavam no anonimato em questão de transtorno mentais, porque até então ele não ia nem na unidade buscar a receita azul, para não se expor. Nessa ida e nessas informações foi quando começamos a conhecer eles. E hoje, quando eles chegam lá, não procuram nem mais a enfermeira e os médicos, eles já vem na procura dos agentes de saúde na unidade e a técnica, e deixa a receita. Houve essa interação e houve a confiança deles, ou seja, quebramos as barreiras (Macaíba-RN).
A importância das igrejas pode estar relacionada à carência de espaços de lazer e cultura nas comunidades, o que limita as possibilidades de cuidado e, sobretudo, as formas de interação social e realização pessoal dos sujeitos: 89
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Dentro do material tinha um quesito que era pra nós desenharmos a nossa comunidade e traçarmos os pontos que causavam bem-estar à nossa comunidade. Foi isso que me frustrou porque a minha comunidade não tem quase nada que causa bem-estar! Onde é que as pessoas estão inseridas? Num lugar mais pobre eles não fazem nada, passam os dias sem novas experiências, sem novos conhecimentos (Arapiraca - AL).
O Caminhos do Cuidado ensinou que a rede se tece no encontro e pressupõe iniciativa e implicação dos/entre os atores. O curso também foi relacionado ao aprimoramento da identificação da rede assistencial e à articulação de novas redes. O grupo parece concordar que, mesmo sem o apoio da gestão e outros profissionais da equipe, pôde construir outras formas de cuidado. Isso é permitido pelo desenvolvimento do conceito de Rede que, segundo o grupo, foi construído durante o curso do Caminhos dos Cuidado (Luigi - Escrita-Experiência - PE). O Caminhos do Cuidado nos trouxe uma visão diferenciada do trabalho em rede, da importância que é, que o nosso trabalho tem que ser assim, porque, quando a gente se depara com uma situação, nós não vamos resolver sozinhos. Até porque nem podemos, porque ninguém pode fazer nada sozinho, e até porque também o nosso trabalho é uma parceria, é interligação – saúde da família com os demais profissionais (Missão Velha - CE).
Para fortalecer as redes de cuidado, o curso propunha a criação e o aprimoramento de espaços de EPS para o aumento da permeabilidade entre os membros da equipe. Nossa colheita identificou, sobre este quesito, a fragilidade dos momentos e espaços reservados para as trocas entre a equipe e entre equipes. Como já discutimos, a rotatividade dos trabalhadores também dificulta a transmissão de experiências profissionais. Dificuldades para garantir espaços de EPS mais consolidados, como reuniões de equipe, e a criação de novos, limita a multiplicação e efetivação dos conhecimentos e técnicas difundidos pelo curso. Na verdade, nós, a nossa equipe, a gente começou um projeto piloto na Unidade de Tocaia. Fizemos só lá porque não tivemos pernas mesmo pra fazer nas demais. Mas fizemos, lembra A.? (...) Aí teve um momento de reflexão com toda a equipe, com a médica, com dentista, enfermeiro, todo mundo... agentes, até o motorista participou. Então foi muito bacana, mas infelizmente a gente não conseguiu expandir. Vamos ver esse ano como vai ficar. Porque foi... eu acho que foi muito legal, né? Aproximou a equipe. Assim, saber que cada
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membro da equipe é importante pro bom funcionamento de toda a Unidade (Iconha-ES).
A EPS pressupõe que, para produzir mudanças no trabalho, é preciso construir oportunidades para os trabalhadores refletirem sobre os problemas do cotidiano. As trocas entre pares constituem um movimento insubstituível de aprendizagem sobre a produção do cuidado. As rodas trazem relatos sobre a criação de espaços de EPS após a formação e sobre sua importância para que a equipe compreenda o território e construa ações, mas também nos fazem ver que muitas são as dificuldades para a existência e manutenção destes espaços, tão cruciais para o aproveitamento e a multiplicação de processos formativos como o Caminhos do Cuidado.
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Veredas das ressonâncias no usuário:
Desde o início do processo avaliativo queríamos saber se era possível produzir evidências de que o Caminhos do Cuidado havia tocado diretamente as/os usuárias/usuários da AB. Entretanto, o AvaliaCaminhos teve que optar por acessar apenas os participantes e executores do curso. Apesar deste limite metodológico, utilizamos nossa colheita para analisar cenas em que a/o usuária/o aparece. Seguindo a Matriz, o melhor caminho foi a percepção sobre acesso e acolhimento, e sua ampliação após o Caminhos do Cuidado.
Gráfico 3 - Resultados sobre ressonâncias no acesso à ESF.
Como vemos no gráfico, 31% consideraram que, após a realização do caminhos do Cuidado, as/os usuárias/usuários de álcool e outras drogas estão vindo mais na unidade por vontade própria. Em contrapartida, 50% concorda que as/os usuárias/usuários estão buscando mais a Unidade de Saúde, mas só com a busca ativa da/do ACS, reforçando nossa análise sobre estes 92
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profissionais terem se tornado referência em suas equipes. Percepção que foi compartilhada nas rodas de conversa: Após o curso, constatou-se um aumento no número de usuários que buscaram pelos serviços de saúde (Montes Claros - Minas Gerais). A gente não conversava com eles, não interagia, não cumprimentava, e aí, a partir do momento que a gente fez o curso, a gente ampliou essa visão. A gente passou a interagir um pouco mais com eles, conversar... Às vezes a gente tá fazendo uma visita, parava conversava... E aí, com isso, eles mesmos começaram a procurar a gente, a equipe, pra pedir ajuda (Osasco-SP). Melhorou sim, facilitou a chegada deles, hoje eles conversarem melhor com a gente, devido a gente ter como explicar certas situações pra eles, ficou mais fácil a convivência entre o ACS e o usuário de drogas, até mesmo do álcool também (Santana - Amapá).
Gráfico 4 - Resultados sobre a percepção de quanto à mudanças observadas na equipe de ESF após a formação.
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Acerca da percepção da qualificação e/ou ampliação de ações após o Caminhos do Cuidado, o questionário indica que:
Gráfico 5 - Resultados referente a qualificação de ações após a formação.
Os resultados nos dizem que 43% das/dos participantes assinalaram que passaram a conversar com pessoas que faziam uso de crack, álcool e outras drogas; 33% que passou a vincular usuários na unidade de saúde. Outros 33% passaram a aproximar-se de parentes, amigas/amigos da/do usuária/usuário de crack, álcool e outras drogas. Esses dados nos falam sobre ações com o usuário, que passaram a “conversar com os ACS”, “serem vinculados na unidade de saúde” e assim por diante. Nas rodas de conversa, um relato frequente em foi: “Nesse curso eu aprendi a abordar” (Vila Velha - ES). Mesmo que alguns usuários não tenham acessado as unidades de saúde, o cuidado chegou até eles por meio da abordagem dos ACS:
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Eu conversei com um rapaz alcoólatra que diminuiu a bebida e começou a tomar medicação, ele viu que estava errado. Mas ele gostou, não foi atrás porque disse que iam prender ele, e eu disse: “Não, eles vão só te ensinar, pra ver o que podem fazer pra diminuir sua bebida, tem roda de conversa”. Ele disse: “Não, não vou, mas vou diminuir minha bebida”. Ele diminuiu assim, conversando com ele (Rio Preto-AM). Eu tive, semana passada, a primeira conversa cara a cara com um usuário. Ele falou pra mim: “eu sou usuário.” Nunca ninguém tinha falado isso pra mim. Então pra mim isso foi um passo muito grande na minha profissão (Espigão do Oeste RO).
O material do curso foi mencionado como uma ferramenta de trabalho que contribuiu de diversas formas na aproximação com a/o usuária/usuário, criando cenários que ampliam as possibilidades de cuidado, com um usuário lendo o Caderno do Aluno, ou um ACS palestrando, guiado pelos conteúdos do curso, em um bar. E eu andava muito com o livro do curso, parava lia, já dei para um usuário ler, ele ria, e foi a única pessoa que eu tive essa aproximação depois do curso. Com certeza se montasse algum grupo ele ia (Meruoca-CE). A nossa experiência foi de um impacto tão profundo que, ao invés da gente convidar eles, a gente foi até eles (...). No bar, pra fazer uma palestra lá com eles (Arapiraca - Al).
Analisamos dispositivos que expandem a ideia de cuidado e qualificam suas práticas. Tecnologias que exigem dos trabalhadores inteligência, sensibilidade, criatividade e versatilidade. Além disso, os cenários, atores e temas envolvidos nas práticas que analisamos crescem em um solo delicado, pois estamos tratando de uma aprendizagem que implica, para muitas pessoas, a capacidade de rever crenças e valores que demandam mudanças na intimidade criando dispositivos que moram em cada uma/um, para possibilitar alteridade no encontro com o outro.
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2. Caminhos da mudança de si no encontro com a alteridade
O curso fez um apanhado de tudo e falou, também, sobre nós (Passo Fundo - RS).
Um elemento bastante enfatizado nas rodas de conversa diz respeito aos efeitos que a formação produziu no cotidiano de trabalho para além dos conteúdos explícitos do itinerário formativo. O Caminhos do Cuidado que produziu reflexões sobre o encontro com o outro, interrogando os envolvidos quanto a suas percepções, crenças e valores mais arraigados, tanto acerca do uso de substâncias quanto a saúde mental em suas práticas profissionais e em suas vidas. O Caminhos da Mudança de Si no Encontro com a Alteridade apareceu durante o exercício de colheita de dados no território e não estava propriamente adiantado na Matriz Avaliativa. Enunciava-se no descritor, mas não no tecido das perguntas-guia. Ainda assim, insistiu. Impôs-se como um desvão. A discussão aqui apresenta o Caminhos do Cuidado enunciado como experiência e vivência de trabalhadores consigo mesmos e com os usuários, uma conversa sobre nossas paixões. Falar de paixão é falar de si, é falar do humano, é falar de experiência, pois “precisamos urgentemente de soluções que abram possibilidades de novas paixões e não que limitem ainda mais os recursos dos apaixonados” (Caderno do aluno, 2013, p.80-81). Este marcador pretende ser uma lupa para olhar alguns recursos dos apaixonados. O Caminhos do Cuidado alicerçou sua metodologia em um movimento que propunha o circular da palavra e aquilo que atestamos por experiência e vivência. Walter Benjamin diferencia estes dois termos para colocar em diálogo o que faz marca no sujeito humano. Esse deslocamento sustenta que, por experiência, reconhece-se uma possibilidade narrativa dos restos que permanecem em cada um após um feixe de múltiplas vivências. O filósofo alemão ilustra esse filigrama com a questão dos soldados que voltam da 96
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guerra das trincheiras com uma gama de vivências e uma impossibilidade narrativa de fazer decantar uma experiência. Voltavam emudecidos. E assim permaneciam. Coloca em problematização o risco de não conseguirmos mais contar nossas experiências pela brutal modificação do tecido social do pós guerra (referia-se no caso, à primeira e à segunda guerra mundial). Apostou-se que encontro formativo proposto pelo Projeto Caminhos do Cuidado pôde, em uma certa medida, alocar um deslocamento, dentro desta analogia benjaminiana, pela possibilidade de trazer à cena as vozes quase inaudíveis das pessoas que fazem uso de drogas em um terreno marcado por violências, por vezes análogas à um cenário de guerra, para um certo mergulho na alteridade da experiência. Uma experiência, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2002:24).
Podemos reconhecer pequenos “gestos de interrupção” nos itinerários do Caminhos do Cuidado? Travessias que suspendam juízos, automatismos? Como a formação ajudou a refletir, identificar e superar percepções e concepções moralizantes sobre drogas e SM? Como ajudou a problematizar preconceitos atravessados no trabalho nos territórios? Em que medida estes itinerários conduziram à elaboração de medos e de preconceitos? As falas nas rodas de conversa nos desafiam a pensar como o Caminhos do Cuidado, incluindo esta a avaliação, abriu possibilidades para a reflexividade dos participantes sobre suas próprias crenças sobre o outro e sobre si mesmas/mesmos, bem como para novas experiências para o encontro na alteridade. Organizamos esta discussão em quatro atos: o encontro com o medo; o encontro com os preconceitos; mudança de olhar e moebius aluna/ousuária/o.
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O encontro com o medo Sei lá, não sei explicar. Mas eu perdi o medo e me acheguei mais a eles (Barbalha - CE).
Nas rodas de conversa múltiplas vozes ressoam um elemento que atravessa a cada uma/um de nós, seres humanos, em nosso encontro com a experiência da vida: o medo. Para acolher e estabelecer vínculos com um usuário, faz-se importante que não nos sintamos ameaçados por essa pessoa, mas também que não a façamos se sentir ameaçada por nós. Em diversas rodas é relatado o medo de se aproximar de pessoas usuárias de drogas ou pacientes de SM. Medo em diversificadas facetas: medo de que o usuário fosse violento, medo de não saber como abordar a complexidade da situação, medo de tocar, medo de passar na frente da casa, medo de olhar, medo de falar com a equipe: Na minha área também foi essa questão de quebrar aquele medo que tinha de sentar, de entrar na casa daquelas pessoas, tá entendendo? De usuário de drogas, que a gente fazia a visita da porta. Não tinha coragem de entrar. Hoje eu já entro, sento, olho no olho. Quer dizer, aquilo que ele ficava por detrás da porta falando: ó, hoje eu não tô em casa não. Hoje eu não posso lhe receber, não. O medo que ele tinha da gente era o mesmo que a gente tinha dele. E hoje não tem mais isso, tá entendendo? Isso foi uma coisa muito boa (Toritama – PE). Uma vez quase levei um tiro, estava andando de jaqueta de couro preta, e quem mais usa essa jaqueta é policial, eu estava de costa, o cara atrás de você vai pensar que é polícia. Ele disse oh dona tô pensando que é policial. Eu disse moço sou eu meu uniforme tá aqui. Não faz mais isso dona. De tão louco que ele estava. Ele estava piradão, então tem que tomar muito cuidado. Fazer a abordagem pro usuário é complicado (Campo Grande - MT). Mas realmente, ainda temos medo, a gente vai e consegue falar com eles, mas tem certas áreas que a gente vê as coisas, assalto na nossa frente e a gente tem que fingir que não vê. Então, pra ir a certos locais, não se pode levar nem instrumentos de trabalho, nem relógio, nem celular. Então tem muita coisa que temos vontade de fazer, mas temos medo, não temos proteção (Sobral - CE). Tem casa que não entro, tenho medo. Outro dia fui fazer visita e pulei uma casa em que todos sabiam que era de usuário de drogas, enquanto eu conversava com morador da casa em que pulei, houve uma chacina de todos. Acho que se
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eu estivesse lá fazendo visita domiciliar, também tinha sido morta (Senador Canedo - GO).
Essas falas dialogam com Santos e Nunes (2014), que identificou relatos recorrentes sobre sentimentos de medo entre ACS ao se depararem com questões relacionadas à SM. O medo definia a maneira como as pessoas em sofrimento mental eram significadas e determinava a atitude do trabalhador na produção do cuidado. A causa do medo era apontada principalmente como não-saber e o saber era “assinalado como resolução desse sentimento” (p.119). Esse aprendizado: saber lidar com os próprios medos, significava para os ACS desta pesquisa, “amenizar seu próprio sofrimento durante o ato de cuidar” (p.119). Refletir sobre o medo e ressignificá-lo, aumenta o contato com o outro, ampliando as possibilidades de cuidado, ilustrando os processos que aqui nomeamos como mudança de si no encontro com a alteridade: Eu, depois desse curso, evolui como pessoa. Eu tinha até um certo medo de chegar naquela casa [residência de um usuário de drogas], de não saber como agir, porque é uma coisa complicada. Eu tenho vários casos lá e depois, antes até, eu chegava assim com jeitinho, mas depois dos Caminhos do Cuidado (Auscurra - SC).
É isso que vemos em Cabedelo/PB, quando uma ACS narra um trauma pessoal e a “mudança” que, quando elaborada, se expressa na simplicidade de um “Oi”: Eu tinha muito medo. Eu tô sendo bem sincera com vocês, porque há um tempo atrás uma pessoa com problema mental quase matou o meu pai. Ele entrou dentro da minha casa procurando a esposa dele, tava quebrando tudo dentro de casa e meu pai tava dormindo na hora. E ele só não matou meu pai por causa do meu irmão, ele deu uma facada no meu pai. Então assim, eu fiquei com muito medo. E eu confesso a vocês que eu tinha medo de abordar um doente mental. É tanto que hoje eu tenho uma paciente que ela passa mais tempo no IPP [Instituto de Psiquiatria da Paraíba], 4 ou 5 meses, e passa um mês em casa. E quebra tudo dentro de casa. Normalmente eu entro e já pergunto “Fulana tá aí? Tá.” E ela “Oi mulher (...)”, e eu digo “Oi” (...) (Cabedelo - PB).
Um “oi” como um sutil “gesto de interrupção” do medo sobre as densidades encontradas em padecimentos psíquicos severos. Este gesto nos ajuda a qualificar uma das perguntas do questionário: 39% destacaram como um dos pontos interessantes curso aprender sobre Reforma Psiquiátrica. Nas
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rodas de conversa identificamos perspectivas sobre a Reforma Psiquiátrica bastante afinadas com o curso: Tanto é que fala muito nesse Caminhos do Cuidado que a gente tem que desconstruir esses hospitais psiquiátricos, porque a pessoa entrava lá e acabava ficando pior do que estava (Ascurra - SC). O Caminhos do Cuidado é um curso muito bom também pra libertação, não só dos pacientes, mas de si próprio porque não tem como você testemunhar algo, ensinar algo que às vezes nem você mesmo pratica. Às vezes você mesmo tem que se libertar pra daí você tá ensinando, tá induzindo aquele paciente pra que ele seja liberto desse, digamos, ciclo vicioso (Senador Guiomard - AC).
Na citação acima, o discurso sobre SM relaciona a mudança de si ao conteúdo aprendido, para que este possa ser multiplicado. A necessidade desta implicação também pode identificada para superar a passividade e o medo que nos obriga a “agir com indiferença”: Na maioria das vezes a gente é... não era por querer... mas a gente se sentia assim... quase que obrigado a agir com indiferença com aquelas pessoas que a gente via em determinadas situações. Não só o uso do álcool, como o tabagismo (Icó-CE).
Frente aos automatismos do cotidiano, também encontramos a coragem, pois, para termos coragem é necessário o encontro com o medo. O louco e o usuário de drogas foram instituídos em nossa tradição como seres “perigosos” e as discussões do curso deixaram uma interrogação sobre a noção
de
periculosidade,
interferindo
em
superstições
construídas
e
reforçadas. Alguns trabalhadores relatam efeitos do Caminhos do Cuidado como gestos de coragem: O curso me deu habilidade de ter aquela coragem de chegar no usuário de drogas e fazer um convite, dizer: “aquilo ali tem jeito”. Me deu essa habilidade, e me deu mais coragem (Macaíba-RN). O curso me ajudou porque eu era medrosa com eles, e hoje tô mais fortalecida, me sento na praça que eles ficam e fico escrevendo e observando, numa boa, igual a eles. Sento lá pra preencher e fazer meus registros, mas às vezes só mesmo pra me familiarizar com eles, e isso tem facilitado meu contato com eles. Na Unidade a gente acolhe eles rápido, que é pra eles sentirem prazer de voltar de novo né? E eles são bem legais com a gente, já temos um acesso bom no espaço deles lá” (Sobral - CE) .
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A gente aprendeu que, mesmo aquelas pessoas que a gente tinha medo, que eles também tinham medo da gente.... foi impactante pra gente porque aí quando eles trouxeram a ideia eu pensei “meu deus do céu”, será que, falar aqui tá sendo fácil, e quando a gente praticar, né?” Porque pra mim foi um susto. Eu já fazia o que? Uns oito anos que eu tinha o paciente na minha área e eu não tinha coragem (Toritama - PE).
Notamos falas sobre o medo que dizem sobre estabelecer relações mais horizontais com os usuários, frequentando os mesmos locais, conversando e abordando no cotidiano do território. É interessante notar um sutil gesto de interrupção, “impossível nos tempos que correm” (Larrosa, 2002), quando uma participante diz: “sento lá pra preencher e fazer meus registros, mas às vezes só mesmo pra me familiarizar com eles”. Sentar junto, se demorar em uma praça, independente da tarefa prática de registrar, apenas para se “familiarizar”. O medo, que antes limitava o cuidado, dá lugar à relações de confiança, de criação de vínculos, produzindo uma interrupção no movimento do “medo, que gera medo, que gera medo...”, do círculo vicioso (ou ciclo vicioso, como citado) que atrofia o olhar e limita a experiência com o outro. Assim, novos arranjos de cuidado puderam ser engendrados: Eles viram que a gente não tá aqui para abusar. Tá aqui para ajudar. Eu tinha um traficante do Rio de Janeiro na minha área que ele não deixava eu escrever o nome dele. Ele não deixava eu colocar o nome dos filhos dele. Que ele não deixava eu chegar nem perto da casa dele. Hoje os filhos dele tem assistência no posto. Vacina, consulta. Ele se consulta, tá entendendo? Ele tinha um tiro de fuzil na perna e que só via de dentro de casa exatamente por causa desse tiro porque ele tinha medo. Hoje a medicação já vem. O material de curativo já vem numa caixinha com o nome dele. Quer dizer, hoje ele tem assistência que antes ele não tinha (Toritama – PE). Antes a gente sabia os pontos críticos de drogas e passava longe, com medo. Hoje eu já consigo aproximar, cumprimentar, estou tentando conquistar a confiança. Antes eu tentava isolar. Hoje já consigo entrar, enfrentar e tentar fazer um trabalho legal (Goiânia - GO). Aprendi a entender melhor a situação do usuários de drogas. Hoje já não tenho tanto medo, procuro conhecer suas histórias, angústias, procurando a melhor forma de poder ajudá-las (Piracuruca - PI).
A elaboração do medo foram relacionados a este encontro com a alteridade, destacando a formação de vínculos com os usuários, as relações de afeto e amizade:
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A gente tinha um certo medo de chegar até eles porque a gente sabia o grau de..., mas depois eles pegaram confiança com a gente e a amizade foi e a gente fazia o curativo.” (Auscurra - SC). As falas iniciais (das rodas de conversas) tiveram o tom da mudança da sensibilidade para o olhar em saúde mental que, em sua maioria, era de temor pelo contato com o portador de sofrimento psíquico transformando-se, após o curso, em acolhida, inclusão e amorosidade, além do encontro com os pares, as trocas e o prazer de aprender (Escrita-experiência/RS - Rejane).
A “humanização” do outro e a identificação do contexto ou “situação” de vida das pessoas ajudam a “entender que eles são gente, eles têm sentimentos que eles têm vontade” (Araraquara e Motuca/ SP), e enfrentar os medos: A visão que eu não tinha eu passei a ter. Poxa, ele é um bandido, ele é um usuário, mas ele é humano, quem sabe se eu procurar conversar com ele e oferecer ajuda, quem sabe ele não sente confiança em mim (Praia Grande- SP). O Caminhos do Cuidado mostrou que aquela pessoa é gente que nem nós, que precisa de um pouquinho mais de atenção, que muitas vezes tu não tá vendo aquilo ali por medo, por não saber como agir (Soledade - RS). Foi um susto lidar com o tema e a provocação de cuidar de pessoas excluídas. Chama atenção o lidar com o medo, talvez o medo do desconhecido e da violência relacionada às drogas. O curso parece ter ensinado a lidar com os usuários e familiares (Toritama - Pernambuco).
Assim, a força do encontro e o enfoque em relações horizontais explicita o contexto social dos usuários, que pode ser tomado como fonte e semente de aprendizagens, o que ajuda a superar o medo. Foi possível mapear alguns argumentos,
narrativas
e
situações
que
abordam
a
saúde
em
sua
complexidade biopsicossocial. Embora expressiva, esta constatação não é homogênea: De alguma forma ajudou muito, mas eu tenho uma família que eu não consigo chegar, eu tenho medo, pois é 8 horas da manhã quando eu vou visitar, a pessoa está bêbada, é só homens na casa, é, usam de violência, já tem histórico de violência sexual, já teve violência com outra criança, então ali não dá, eu sou muito covarde. Ali é que bate a consciência da gente, é ali que eu deveria estar, mas eu não consigo chegar, tudo quanto é enfermeira diz, olha ali eu não vou. Eu tenho medo pois eu passo todos os dias ali na frente, ali eu não consigo executar o que eu aprendi no curso, já em outras casas que são mais amenizadas, sim. Eu acho que eu precisava de 2 meses de curso para chegar lá (Jaguarão -RS).
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Para romper o “ciclo vicioso” do medo é preciso falar sobre ele, falar sobre saúde e sofrimento mental, compartilhar afetos e saberes, conhecer o contexto do outro. Essa foi uma das grandes forças do Caminhos do Cuidado: permitiu que ACS e ATENF percebessem seus medos e os ressignificassem; criou oportunidades para que vivências pudessem se decantar em experiência, transformando práticas de cuidado.
O encontro com os preconceitos Era o drogadinho da vila, então você tem um outro tipo de olhar, você já olha ele como um ser humano, que ele tem uma família, que é capaz (Rancharia, SP).
A recorrência dos relatos sobre os medos nos alerta sobre os conflitos e contradições sociais que marcam os territórios nos quais ocorrem as práticas de cuidado. Na análise dos medos identificamos muitos preconceitos que limitam as práticas de atenção, reforçando estereótipos sobre os comportamentos a serem cuidados a partir de argumentos moralizantes e individualizantes. Estes preconceitos demandam a “mudança de olhar” fomentada pelo Caminhos do Cuidado: Eu sempre tive muito medo de chegar. A gente não vê o ser humano, a gente vê o rótulo, “é um viciado”, então eu já ia com medo, às vezes eu ignorava, porque eu tinha receio, não sabia como ia reagir. Mas minha visão mudou totalmente (Rancharia - SP). Todo mundo taxava ela. Eu acho que taxaram ela até na hora da morte. E naquele curso, quando a gente chegou aqui, a gente se aproximou dela. Inclusive a própria facilitadora viu que ela não se aproximava de ninguém. Depois foi conversar com a gente e se tornou bem mais amiga de todos, sabe? Foi um momento maravilhoso. E eu acho... A gente viu que o curso tornou o ACS mais humano, porque pra trabalhar com a diferença até do próprio colega. Eu achei isso bem... [expressão de positividade] (Barbalha - CE). Entramos com um perfil, pensamento, posicionamento sobre o uso de álcool e drogas e saímos transformados, com o Caminhos do Cuidado já correndo pelas veias, passando por todos os órgãos e tocando principalmente o coração e a cabeça. Aquele pensamento "Fulano usa e abusa das drogas por que quer...
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Todos os usuários são malandros e não querem nada com a vida... São pessoas malvadas, preguiçosas..." foi dando lugar a "Eles precisam de ajuda... Precisamos acolher, ouvir e conversar com eles... podemos, queremos e vamos ajudar (Escrita-experiência/PI - Francisca Josélia Moreira Da Silva).
Na roda de Toritama/PE, do fragmento abaixo, uma das ACS presentes no encontro avaliativo evoca um momento do curso ilustra a metodologia do Caminhos do Cuidado e como ela pode impactar a dinâmica do preconceito: Para mim mesmo foi um impacto. Eu ainda lembro quando a tutora chegou para nós da primeira turma, e ela fez uma pergunta assim: “alguém aqui é usuário de droga?” E todo mundo ficou chocado, né? Aí ela fez assim... “Eu sou!” Aí eu mesma disse: “meu deus, ela tá gestante e é usuária de drogas?” Isso para mim foi bem chocante. Daí ela disse: “eu sou usuária de drogas porque eu sou viciada em café”. Aí eu disse: “então eu sou usuária de drogas, porque eu sou viciada em coca”. Ela quebrou um preconceito meu, e lá na frente eu pude quebrar o preconceito da minha equipe. Então foi algo novo, porque a gente não sabia o que era redução de danos, ou como abordar os usuários na rua... E através do curso se abriu um leque. Que leque foi esse? Um leque de informação, um leque de conhecimento (Toritama – PE).
Aqui podemos ver algumas estratégias que o curso dispôs para trabalhar preconceitos que impedem o acesso do usuário aos serviços de saúde. O choque narrado pela aluna pode ser lido como “qualquer um pode ser um usuário de drogas, inclusive pode estar sentado aqui fazendo este curso”. Essa é uma intervenção que contribui para quebrar estereótipos e para abrir-se ao encontro com a alteridade. Vemos também que o Caminhos do Cuidado não propunha uma abordagem meramente prescritiva contra o medo ou os preconceitos. Mas sim, proporcionou um espaço onde era possível dialogar sobre elementos sensíveis e considerando a realidade de cada um: O curso mostrou o preconceito “ela só sabe usar droga. Tem usuário que canta rap, faz música e a gente não vê isso, é mais fácil julgar: “usa porque quer”. Mas ela tem outros talentos, a gente não consegue ver isso. Ter esse acolhimento, que tem alguém que se preocupa com ela, trazer e mostrar que tem outras coisas que ela pode fazer entendeu. Eu acho que o curso ajudou bastante nisso entendeu (Embu das Artes-SP). A gente se emocionou com um paciente, o depoimento de um senhorzinho, exusuário de álcool. Foi forte porque ele estava passando a própria experiência pra gente. Passa a entender o que o usuário de álcool e drogas sente na pele. Eu acho que isso daí mexe com o interior da gente, pra gente ter mais
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humanidade com aquelas pessoas, porque nem sempre eles fazem aquilo porque querem (Barbalha - CE).
O curso do Caminhos do Cuidado situa intervenções muito sutis, por meio de contrapontos que tendiam a falar dos usuários de drogas e das pessoas com problemas de saúde mental enquanto humanos, pessoas dignas de acolhimento e capazes de criar vínculos. Este foi um jeito eficaz para problematizar e politizar os preconceitos: colocar os sujeitos no encontro com a alteridade. A loucura e as drogas são temas que tocam em crenças religiosas e valores familiares muito arraigados. Desconstruir estes preconceitos demandam um exercício reflexivo profundo e transformador. Frente à certeza das crenças e valores, fez-se uma interrogação desestabilizadora, um gesto de interrupção, que provoque a possibilidade de uma experiência: “O Caminhos do cuidado nos deixou com um ponto de interrogação (...) fez o pensamento flutuar” (São Paulo – SP). A nuvem de palavras nos oferece uma imagem dos termos mais frequentemente relacionados
aos
preconceitos,
uma
síntese
visual
das
citações que discutimos neste
tópico.
quantidade sobre
de
A relatos
“medos”
e
“preconceitos” nas rodas de conversa é bastante significativa e sintonizam com o questionário, pois 47%
dos
respondentes
destacaram
como
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interessante
na
formação
do
Caminhos
do
Cuidado
“refletir
sobre
preconceitos”. O cotidiano de trabalho nos territórios está atravessado por diversas formas de hierarquização e preconceito social, e a avaliação revela como estes estão relacionados entre si, apontando a carência de investimentos em capacitações ou processos de educação permanente que alcancem temas sensíveis no cotidiano de trabalho. Um dos nítidos efeitos do Caminhos do Cuidado é abrir espaço para a elaboração de aspectos determinantes para as relações laborais, sociais, comunitárias, e que tendem a ser silenciados e naturalizados, como os medos e preconceitos.
Mudança de Olhar Deslocamentos em nossas miopias cotidianas. A experiência formativa do Caminhos do Cuidado parece acenar que a transmutação das dinâmicas de exclusão e silenciamento daquilo que se constituía como assustador, por serem muito diferente das vivências cotidianas, ou por desafiarem os valores morais de cada uma, e de cada um, produz um efeito palpável de mudança de olhar. As falas analisadas nos levam a afirmar que essa “mudança de olhar” relaciona-se consistentemente com mudanças de postura sociais, políticoinstitucionais, profissionais, pessoais e, até mesmo, existenciais. Para Soares, Bill e Athayde (2005), o preconceito, o medo e a indiferença causam invisibilidades, quase como uma forma de autoproteção para aquele que, olhando, não vê. Os autores afirmam que: “Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece” (p.175).
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Nas rodas, destaca-se o número de vezes que os alunos do curso falam de uma “mudança de olhar”; e, ainda, como eles relacionam isso com suas práticas de cuidado. A “mudança de olhar” em um sentido de ver o que estava sempre ali, porém, invisibilizado. Desembaçar o olhar para aquilo que sempre esteve diante. Não fechar os olhos para quem é usuário de crack, drogas, essas pessoas... a olhar com outros olhos (Vila Velha - ES).
Há também diversos relatos que evidenciam a mudança de olhar denotada como um aprendizado no curso como um ato terapêutico. Uma mudança de olhar para a abordagem e uma mudança de olhar na abordagem. Antes a gente via um alcoólatra e nem fazia nada, e esse curso ajudou a gente, enriqueceu a gente com palavras e argumentos para lidar com esse público. Hoje a gente tem um olhar diferenciado, porque sabemos que eles se tornaram viciados não porque quiseram, pode ter sido alguma consequência da própria vida, e a gente hoje trata eles de outra forma, como abordar quando estão sóbrios ou alcoolizados. Mas ainda não conseguimos o suficiente, sabe? Tive algumas pessoas que deixaram de fumar, mas foi mulheres, e conseguiram. Mas os homens, como deixar o álcool, ainda não (Meruoca-CE).
Ao provocar reflexões e questionar posturas endurecidas, o Caminhos do Cuidado possibilitou que se despertasse novos olhares dos alunos formados. E a cada vez que nasce um novo olhar, nascem também novos sujeitos, desfaz-se, pelo menos em parte, o manto de invisibilidade que os cobria várias. Mas de que olhares estamos falando? Quais são essas novas possibilidades de vida que abrem suas ventanas? Aqui apresentamos uma coleção de olhares que o Caminhos do Cuidado permitiu existir.
Olhar o humano: E depois desse curso, nossa visão melhorou muito, foi muito ampliada. Porque hoje, nós sabemos que eles são usuários, que eles são pessoas. Pois quando chega uma pessoa dessas, nós temos que escutar, acolher e encaminhar esses usuários (Panatis-RN).
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O olhar que desneutraliza: Nós, profissionais, depois do curso, a gente teve outro olhar pra eles. Porque antes eles eram isolados, ficavam mais neutros, mais no canto deles. E depois do curso não, depois do curso, passa, conversa, dá bom dia. Eles protegem a gente quando a gente vai nessa rua que geralmente acontece os assaltos, eles ficam olhando a gente até a gente chegar na unidade. Então a visão da gente pra eles foi o que mudou 90% depois do curso. “Cadê minha doutora do curso...” (Cabedelo – PB).
O olhar da integralidade: Na verdade a gente não passa a olhar só aquele paciente que você atende. Você começa a olhar ele de uma forma como um todo. Família, ambiente, tudo isso tá ali. Assim, até que ponto tudo aconteceu pra que ele chegasse naquela situação. Então eu acho que a gente começa, assim, eu tô falando por mim, né? Eu comecei a olhar mais isso, entendeu? Já comecei a ter o olhar um pouco pra isso aí também (Iconha-ES).
Um olhar novo para cada pessoa, a singularidade: Foi muito bom o curso. Eu acho que assim a gente passou a ter um novo olhar pra cada pessoa, né? Existe uma maneira de olhar pra cada grupo, um olhar pra cada pessoa (Goianésia-PA).
Um olhar que duvida: Mas mudou meu olhar para a questão da dependência. Não é só álcool e droga. Tem outras coisas também... Tem a internet, gente que fica dependente da internet. O curso mostrou porque muita gente é levado a fazer aquilo, mas hoje entendo. O olhar é muito importante. Será que só ele é dependente? E os outros? não são dependentes? (Embu das Artes - SP).
O olhar que se senta para conversar: Então... a forma como eu passei a tratar e a ver um olhar diferente sobre aquela situação da área que eu dou assistência foi a conversa. Sentar olho no olho, conversar com aquela pessoa, entendeu? (Toritama – PE).
O olhar e o amor: Depois do Caminhos do Cuidado, a gente aprendeu a ver com mais amor e todos nós temos vícios e às vezes a gente costuma sim olhar para um viciado em álcool ou droga como se ele não fosse uma pessoa, como se fosse um coitado (Osasco- SP).
O olhar que deseja: Sim, não só o olhar, mas também o ouvir, até mesmo nossos próprios colegas. Porque às vezes eles querem julgar. Então, não é assim... A gente tem que ouvir o que eles querem nos dizer e, assim, a gente aprende ser mais humanizado e olhar mais, não com um olhar de cobrança, mas com um olhar para querer ajudar (Santana - AP).
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Olhar-memória: Aprendi a ter um olhar diferente sobre essas pessoas que eram até então esquecidas (Oeiras - PI).
A escama de peixe no olho: Não é só a droga, tem o álcool e quem tá dentro não acha que está doente ou se você está passando com um problema desses e você acha que a solução é internar para ficar livre do negócio. A partir dos Caminhos do Cuidado abriu realmente os olhos, foi tirar uma, uma escama de peixe do olho da gente pra gente ver e tentar resolver todos esses problemas (Osasco - SP).
O olhar que se demora: A gente tem que prestar atenção assim, no que eles falam, a gente começa a ver quais são as fraquezas deles, a gente começa a ver aquele pontinho que você mexe, aquele que para eles dói, a gente começa a perceber... isso não é rápido, viu? Não é rápido. É demorado.(…) E a gente começa a usar aquilo em favor dele, você entendeu? E da gente também. Para eles poderem começar a ter a qualidade de vida melhor (Praia Grande- SP).
O olhar que acolhe e transforma: Os ACS, realmente, eles são o primeiro contato, mas, pelos menos na minha Unidade, a gente tem muita área descoberta, então tem muito paciente que não é identificado por não ter o ACS. Então a porta de entrada é a Unidade pra muitos. Se ele já chega numa recepção que vai, desde a portaria, o porteiro, a recepcionista que vai fazer o primeiro atendimento, já discriminar... porque o curso foi, pra mim, quebrar um pouco essa discriminação de dizer: “ah, é por falta de vontade”, e entender que a dependência química é uma doença. Então eu acho que nem todo mundo percebe isso e aí chega e fala “pô, lá vem aquele bêbado de novo”. Às vezes, ele não ouviu você falar, mas ele viu o seu olhar. O seu olhar transforma totalmente a visão dele dentro da Unidade (Vila Velha - ES).
Com esse novo olhar, o então drogado, viciado, crackudo, vagabundo, deixam de ser rótulos e se tornam sujeitos com nome, história, desejos, dificuldades e forças. “Ver é relacionar-se” (SOARES, BILL, ATHAYDE, 2005, p. 173). Portanto, vendo, com o olhar mais sensível e atento, abrem-se novas possibilidades para o cuidado, que se efetivam no contato entre sujeitos. Isso nos remonta a quando Stefanie Kulpa, da equipe AvaliaCaminhos, durante uma discussão do grupo, respondeu sobre como fala-se em “conteúdo” em educação e, sentada em uma roda, nos fez pensar na “mudança de si”
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apontando para cada participante que ali estava dizendo “o conteúdo da EP é você. E você. E você...”
Moebius aluno/a-usuária/o | Moebius trabalhador/a-usuária/o Hoje tenho uma abordagem diferenciada com os usuários. Eu consigo atuar melhor depois que comecei a praticar na minha casa (São Paulo-SP).
Durante a formação do Caminhos do Cuidado não foram raras as vezes em que surgiram questões que colocaram as alunas/alunos a perceberem-se enquanto usuárias e usuários, borrando a fronteira que determina onde e quando se é trabalhador e onde e quando se é um usuário do SUS. Borramento constituinte do papel do ACS, cuja proximidade da Unidade de Saúde faz-se uma premissa inicial de suas ações no território. Para falarmos dessa situação, lançamos a referência à “fita de moebius”, ou moebius, uma palavra-imagem dá nome a este tópico, e se entrelaçou nos caminhos deste relatório, por entre as dimensões da Matriz Avaliativa. A Fita de Moebius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta em uma delas. É possível percorrer toda a extremidade da fita onde se supõe ter dois lados, mas faz-se de somente um, que se dobra em si mesmo. Propõe um jogo de pertença | não pertença; dentro | fora; de modo que não há como dizer em qual lado o objeto está, como na imagem abaixo:
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Essa dobra onde o fora é o dentro, o dentro é o fora, a aluna/o é usuária/o, o usuário/a é o trabalhador/a, constituiu-se como um precioso desvão do percurso de colheita, ao interrogar sobre os possíveis efeitos nas/os usuárias/os do SUS, relacionados à uma formação como a do Caminhos do Cuidado. Essa construção moebiana começou a se gestar durante o Painel de Especialistas (discutido no Capítulo I), quando se questionou: ´e como chegamos no usuário que chega à unidade? Ou aquele que não chega à unidade de saúde?´ Naquele tempo de sementes, a pergunta teve uma parcial resposta: ´será que não se faria pelo aluno, que também é usuário?´. Decantando o tempo dos ciclos de colheita, esse moebius trabalhadorausuária, trabalhador-usuário, aluna-usuária, aluno-usuário, apresentou-se nas falas das/dos ACS/ATENF oriundas das rodas de conversa. Um efeito de alteridade, e de apostar em caminhos não tão binários de pensar a vida e o cuidado em si. Este
moebius
trabalhadora-usuária/trabalhador-usuário
nos
deixa
entrever as ressonâncias do Caminhos do Cuidado em seus destinatários finais, usuárias e usuários do SUS, que não puderam ser escutados nesta avaliação, devido ao recorte cronológico disponível. Aqui, pequenos pontos desse encontro moebiano: O meu pai é alcoólatra e a gente não via como uma doença. Nós mesmos em casa, minha mãe falava, dizia que ia expulsá-lo, xingava ele. Aprendi que tem que encarar como uma doença (Natividade - TO). Meu esposo bebia muito, então até a convivência mudou. A gente passou a trabalhar de outra maneira, sem atacá-lo. Ele começou a se tratar, aceitou tratamento, já deu até palestras (Natividade - TO). Eu já ia falar o que ela falou. Mas foi um curso que revolucionou, não a área, mas, eu vou falar de mim, a minha vida pessoal. Porque, em primeiro lugar, fui eu que ganhei com o curso, porque os conflitos de fora eu tava, eu tinha dentro da minha casa, com álcool... e eu comecei a ver tudo diferente mesmo. A família mesmo em casa, meus irmãos que eram alcoólatras, perdi irmãos por causa do álcool. Eu passei muito sufoco com isso. Só que, depois do curso, eu continuei olhando pra eles, mas também olhei pra mim. Eu não podia mudar a vida deles, podia assim, estender a mão, podia abraçar, podia acolher, fazer aquilo que
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tava no meu alcance e não tomar conta da vida deles e esquecer a minha, né?! E, assim, teve momentos, assim, antes do curso que eu me sentia dentro de um caldeirão com água fervendo e eu não sabia nem... e isso foi acalmando, entendeu? E eu lembrando do curso, daquele filme “O bicho de sete cabeças”. Eu nunca esqueci aquele filme, porque ali você tira o julgamento, préjulgamento, você deixa de ver, né, o drogado como drogado, como safado, como bandido, como marginal. Assim, houve uma mudança mesmo na minha vida, na minha vida, né?! Houve assim, na área eu posso dizer a você que eu nem tô tão presente em corpo assim, mas tem coisas que eu tento resolver que, assim, acho que em 17 anos de agente de saúde, tem coisas que eu faço num minuto, é de parar pra uma pessoa e dar um abraço, e isso foi depois do curso! A gente passa a ver as pessoas diferente, que a gente não passa a ver a pessoa, passa a ver o problema, a raiz do problema. Se na minha família também tem, porque que a família do vizinho vai ser diferente, né?! Aí assim, a questão, esse curso foi uma coisa que mudou mesmo, mudou mesmo. Você parar e dizer: “não é assim, não!” Caminhos do cuidado é por aqui... (Cabedelo – PB). Eu também tive uma experiência muito boa, que mudou totalmente a minha visão através do curso. Eu tinha um cunhado que era dependente, e meu sogro sempre falava dele. A mesma coisa que ela falou: “Ah tem de tudo, tem pai, tem mãe, tem tudo de bom e do melhor e pra que ficar usando isso, porque seguir esse caminho...”. Eu tinha muito preconceito com ele, eu não queria que ele frequentasse a minha casa, ele não tinha contato com as minhas filhas e era sangue, era tio, tinha que ter né? Esse contato de crescer, de brincar, mas eu não permitia isso. E depois através do curso, eu mudei totalmente a minha visão. Eu fui passando pro meu esposo e de certa forma ele foi passando pra família dele também. Que a gente tem que enxergar como pessoa, como ser humano. Mesmo que você veja a pessoa suja, rasgada, que ela tem valor, que ela tem algo lá no fundo da alma, do coração dela, que precisa ser resgatado. Eu aprendi lidar com essa situação. Eu não conversava com ele e voltei a conversar. E todo mundo tava estranhando meu comportamento. “Nossa você está diferente”. E foi tudo através do curso. Aí eu consegui trazer ele pro convívio da minha casa novamente. Voltou a frequentar a minha casa, ia lá ver as minhas filhas e isso foi muito bom. Foi muito bom pra nós. Foi muito bom pra ele (Rancharia - SP). A gente trabalhou com palestra, mostrando ao pessoal. E assim eu trabalhei com um alcoólatra. É assim. É da família. Meu irmão. É assim. Ele bebia demais. Demais mesmo. E ele bebia e ele não comia nada. E assim, foi uma luta. Mas hoje ele bebe. Bebe menos, mas também só bebe se tiver comida. Ele bebe aí quando se diz assim: tá saindo. Ele bebe e ele bebe menos. Fica bêbado, né? Porque hoje em dia, devido a ele ter bebido tanto, que se ele pedir uma latinha, ele já....já tá bêbado. Mas assim, ele não aceitava porque ele era alcoólatra, tá entendendo? E depois desse curso, ele caiu na real e bebe e come muito. Porque ele não fazia isso. Assim...ajudou bastante (Toritama – PE). Meu sogro, né? Então, ele se via como um viciado mesmo, bem para baixo por que gerou um contratempo na família, um mal estar geral e ocasionou a separação deles, né? E o desconforto foi muito chato porque ele mesmo se reconhecia como que de uma hora para outra eu virei esse viciado, esse monstro? Então foi que eu conversei, tive essa liberdade como nunca tivemos e deixar um pouco de lado esse negócio de nora e sogro e conversar como
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pessoas e até...ele...você como da saúde...não eu não quero que o senhor me trate como alguém da saúde, uma pessoa que esta aqui para ajudar e que tem um pouquinho do conhecimento que eu acabei de receber. Então foi tudo muito impactante, porque estava tudo muito fresco, eu estava verdinha, amadurecida, então eu estava com aquelas informações todas novas, empolgada...então para ele foi bom! Não foi uma vez, nem foi duas, foi umas cinco vezes que a gente conversou bastante e a gente pegou uma lista de locais onde ele gostaria de ser atendido. Ele já tinha ido para Goiânia, tinha sido levado por engano, eu não digo por engano, mas tapearam ele em 2011 para levar ele para um tratamento, mas ele não gostou. Ele nunca falou para ninguém, mas foi assim uma época que eu me senti mais infeliz, me sentia assim inferior, por ali eu estava sóbrio eu não tinha domínio por mim, tomaram a atitude por mim. Eu podia estar bêbado, trolado, mas não podiam ter feito isso, simplesmente me pegaram, me tapearam, me colocaram dentro do carro, quando chegaram lá, ó pai esse é o tratamento...ele ficou três dias lá, ele se sentiu acuado em casa e claro que gerou uma revolta. Então naquela conversa no caminhos do cuidado, mostrando toda a atenção, mostrando que aquilo não é um um vício, é uma doença, e como aquela doença pode gerar um transtorno psicológico. Que é um círculo, que ele não está sozinho, que a família também, já que estava todo mundo desnorteado, que ele tinha amparo e que eu naquele momento também estava sendo amparada por ele, porque eu estava conhecendo ele melhor ainda, não como meu sogro, mas como uma pessoa amiga, ele podia ter essa resposta de mim, então foi mais isso.(Distrito Federal - DF). Eu tô pondo em prática junto com meus amigos esse negocio de beber. Tomar água. A gente não bebia água. Beber...só beber. Tomar água bebendo. E faz bem pro organismo, tomar água. Sempre passando isso (Toritama – PE).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PALAVRA QUE CIRCULA
O
caminhos do cuidado foi uma engrenagem complexa, a
construção dos papéis foi em ato. No início não tinha claro esse
organograma,
era
muita
gente.
Os
custos
se
apresentaram mais elevados do que o que havia sido planejado. Somente 3 a 4 meses depois da primeira turma fomos ter o sistema pronto. Para a realização de uma turma, por vezes, o tutor usava no percurso todos os tipos de transporte, aéreo, terrestre e fluvial. Começava aula sem material, aí se improvisava. Os tutores foram criando estratégias. O caminhos do cuidado permitiu uma interrupção para olhar e fazer da experiência aprendizado. Mudou o argumento, a forma de conversar. Hoje, quando a gente fala a equipe escuta, e aí a equipe nos respeita, assim como a população também nos respeita, e isso foi tudo depois do curso. Muda até no nosso modo de ver o outro! Eles tem aquele preconceito das pessoas ficarem olhando pra eles, por que as vezes, eles estão sujos. Começamos a aceitar essas mulheres com uso de psicotrópicos.
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A gente sabe que muitas vezes o ouvido trabalha mais que a boca, porque o paciente tem mais para falar do que para ouvir. Fazer aquela conversa mais ao pé do ouvido: a primeira abordagem, o ouvir. Pensar em como relatar uma experiência que aconteceu em todo o canto de mim e do território nacional, em cada equipe que se criou e se estabeleceu, necessita inicialmente nos encontrarmos com o silêncio, que possibilitará trazer de dentro de nós tanta experiência vivida, pulsante. O Caminhos do Cuidado proporcionou visibilidade para a ETSUS. Eu acho que o Caminhos foi muito lindo, com os problemas que a gente teve, com o tempo que a gente teve, a gente minimamente botou essa discussão, lá com o ACS. Foi tirar uma escama de peixe do olho, esse curso ensinou que a gente tem que ouvir, que a gente tem que sentir. Ao desenhar o mapa do meu território, descobri pessoas e lugares que estavam invisíveis, o olho desembaçou. O projeto era muito complexo, no papel inicial era bem simples: para representar no mapa o usuário de droga e determinar a vida dele, para onde ele ia. Quebrou um preconceito meu, e lá na frente eu pude quebrar o preconceito da minha equipe. Você parar e dizer: “não é assim, não!” Caminhos do cuidado é por aqui...Deu uma visão mais ampla pra gente, procurar ouvir mais, isso aí abriu a mente da gente, e muitas vezes fica o preconceito da bebida, isso ajudou muito. A gente viu que o curso tornou o ACS/ATENF mais humano, porque pra trabalhar com a diferença até do próprio colega. Foi como ver que essa gente é gente. Foi forte porque ele estava passando a própria experiência pra gente. O mais importante é levar isso pra equipe, como eu trabalho no assentamento e a equipe eram dois cavalos, eu e minha colega: colocar em prática o que aprendi no curso é complicado. As famílias dos usuários geralmente não tem confiança no que os ACS dizem, 116
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além disso a enfermeira da equipe não leva a sério o que falamos sobre esses casos na área. O que o curso deixou foi a ampliação de horizontes. Parar pra uma pessoa e dar um abraço, isso foi depois do curso! Descobri que também sou usuária de drogas, porque sou viciada em café. Me ajudou a aceitar o meu pai que é alcoólatra. Até rimos juntos. Pessoas diferentes, diferentes pensamentos e experiências, olhares com outras visões e interpretações, às vezes até antagônicas. Mas as interrogações continuavam, pois essa sou eu, como ser diferente?! Foi um curso da melhor qualidade que despertou nos atores a percepção do outro. Durante o curso criamos até algumas estratégias de chegar em duas áreas vulneráveis. antes eu não ia naquela casa, agora eu vou, faço questão de ir. Às vezes se observa também, que infelizmente as pessoas constroem pré-julgamentos e opiniões discriminatórias em relação às outras sem conhecer o contexto e a realidade vivida. Depois do curso, quando eu fui falar com ele, me abaixei para falar da mesma altura. Sentar, olho no olho, conversar com aquela pessoa, entendeu? Eu não vou falar daqui de cima, com ar de superioridade. Aí eu me abaixei, cheguei perto dele, peguei no braço. Eu acho que o curso em si, ele, um dos principais objetivos era buscar a humanização, dos trabalhadores e da saúde. Principalmente na redução de danos, se você além de articular rede, também conhecer o porquê que está acontecendo isso, então a gente vai reduzir os danos daquela família. O cuidar, o acolhimento, a atenção que a pessoa precisa. Com o Caminhos do Cuidado consegui sentir na pele o que é integralidade. Foi um susto lidar com o tema e a provocação de cuidar de pessoas excluídas. Enquanto eu conversava com morador da casa em que pulei, houve uma chacina de todos. Acho que se eu estivesse lá fazendo visita domiciliar, também tinha 117
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sido morta. Chama atenção o lidar com o medo, talvez o medo do desconhecido e da violência relacionada as drogas. Uma vez quase levei um tiro. Hoje já não tenho tanto medo, procuro conhecer suas histórias, angústias. Hoje eu já entro, sento, olho no olho. Eles não procuram a gente na unidade, a gente tem que ir até eles. A correria do dia-a-dia impede muito da gente transpassar esse conhecimento. Falta de apoio de gestão porque a gente fez a nossa parte mas quando chegava lá… aquela parede. Mas ainda não conseguimos o suficiente, sabe? Eu acho que eu precisava de 2 meses de curso para chegar lá. Saímos transformados, com o Caminhos do Cuidado já correndo pelas veias, passando por todos os órgãos e tocando principalmente o coração e a cabeça. Eu acho que todos os profissionais de nível superior precisam desse curso. Respeito muito o médico, mas para a estratégia e saúde da família precisa ter perfil. A enfermeira sabe mais, o técnico sabe mais e você tem que ficar quieta porque você está levando mais um caso. Eu tenho orgulho de ser agente de saúde. Eles dizem somos da equipe, mas eles dizem que nós não somos da equipe e falam mesmo, vocês não são da equipe. Com a minha equipe foi muito boa, tudo que a gente dizia sobre o curso Caminhos do Cuidado, eles tinham maior atenção. Minha comunidade não tem quase nada que causa bem-estar! A gente conseguiu até reativar um grupo que tava parado, hoje tá maravilhoso, e tudo que eles vão fazer no posto pedem nossa opinião, pois fizemos o curso Caminhos do Cuidado. Capacitamos também a equipe de evangelismo da igreja. Nós multiplicamos, saímos da barreira de posto de saúde. Num lugar mais pobre eles não fazem nada, passam os dias sem novas experiências, sem novos conhecimentos. Me sento na praça e fico escrevendo e observando, numa
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boa, igual a eles. Sento lá pra preencher e fazer meus registros, mas às vezes só mesmo pra me familiarizar com eles. A nossa música [de ACS] é aquela lá "como vai você, preciso tanto saber da sua vida". Nós somos psicólogos, nós somos professores, nós somos, muitas vezes, até médico, nós somos padre, nós temos várias funções. Aprendemos a valorizar que já fazíamos. O curso fez com que a gente tivesse uma visão maior, a realizar o registro, mas continuar a preservar o sigilo da informação. O curso fez um apanhado de tudo e falou, também, sobre nós. O curso tinha que vir para todos, não só para os agentes de saúde. Pra mim assim, no meu ponto de vista e até no meu trabalho, acho que [a mudança] foi o jeito de estarmos abordando, conversando. E quem sofre é a família inteira! Não é só o usuário, nem o doente mental, é a família inteira. Ele abriu uma visão para nós. Que é a visão da rede. O material foi riquíssimo. Eu sempre carrego ele. Riquíssimo, porque ele tem perguntas que a gente se depara com elas todos os dias. Mais importante também do curso foi quando falou da redução de danos. Você não pode dar uma casa, mas pode dar um cobertor.
O curso fez nosso pensamento flutuar, deixando a surpresa boa de um ponto de interrogação.
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APENDICE – AVALIACAMINHOS: QUESTIONÁRIO NACIONAL AVALIATIVO 1-Qual é a sua idade hoje? 21 a 30 anos de idade 31 a 40 anos de idade 41 a 55 anos de idade 56 ou mais a 76 anos de idade Total 2-Há quantos anos você trabalha ou trabalhava na atividade acima? Até 1 ano 2 a 4 anos 5 a 10 anos 10 anos ou mais Total
3-Em que ano você realizou a formação no Caminhos do Cuidado sobre crack, álcool e outras drogas? 2013 2014 2015 Não lembro Total de respostas Não responderam
4-Você qualificou ou passou a realizar alguma(s) dessa(s) ação/ações após a formação? Orientar sobre formas de se cuidar Conversar com usuários e familiares Conversar com sua equipe sobre saúde mental Vincular os usuários na unidade de saúde Aproximar-se de parentes e amigos do usuário em sofrimento psíquico Oferecer grupos, alternativas de lazer na comunidade ou outras atividades coletivas Total
Qtd% 14,9% 46,2% 35,5% 3,4% 100,0% Qtd%
1,3% 13,6% 33,7% 51,5% 100%
6-Em relação aos usuários EM SOFRIMENTO PSÍQUICO: Você qualificou ou passou a realizar alguma(s) dessa(s) ação/ações após a formação do Caminhos do Cuidado? Orientar sobre formas de se cuidar
Qtd %
52,99%
Conversar com os usuários e familiares
51,28%
Vincular usuários na unidade de saúde
36,47%
Oferecer grupos, alternativas de lazer na comunidade ou outras atividades coletivas Aproximar-se de parentes e amigos do usuário em sofrimento psíquico Conversar com sua equipe de saúde sobre saúde mental
18,61%
Total respondido
91,13%
Não responderam
8,87%
7-Você acha que a sua formação no Caminhos do Cuidado modificou o acesso dos usuários na sua unidade de saúde da família? Sim, os usuários de álcool e outras drogas estão vindo mais na unidade por vontade própria Sim, mas só com a busca do Agente Comunitário de Saúde
Qtd %
30,20%
47,48%
Qdt% 11% 38,06% 28,10% 22,84% 92,44% 7,56%
Qdt% 22% 22% 20% 15% 13% 8% 100%
30,93%
50,00%
Não, mesmo com a tentativa de busca
10,37%
Não notei diferença no acesso após o Caminhos do Cuidado
14,30%
Total respondido
92,46%
Não responderam
7,54%
8- Você observou alguma dessas mudanças em sua Unidade de Saúde, após a formação do Caminhos do Cuidado?
Qtd %
Aumento do acolhimento aos usuários de crack, álcool e outras drogas Aumento do acolhimento aos usuários em sofrimento psíquico
28,52% 28,52%
Maior preocupação com os usuários de crack, álcool e outras drogas de sua área Aumento de atendimento a usuários de crack, álcool e outras drogas Criação de ações de cuidado ou educativas aos usuários de crack, álcool e outras drogas Aumento de encaminhamentos de usuários para CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) Aumento de encaminhamentos de usuários para Comunidades Terapêuticas, Igrejas, Narcóticos Anônimos, Alcoólicos Anônimos etc. Aumento de encaminhamentos para internação em Hospital devido a sofrimento psíquico e/ou uso de crack, álcool ou outras drogas Não observei nenhuma mudança
34,86%
6,95%
Total respondido
92,75%
Total respondido
92,56%
Não responderam
7,25%
Não responderam
7,44%
5-Em relação aos usuários que FAZEM USO DE CRACK, ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: Você qualificou ou passou a realizar alguma(s) dessa(s) ação/ações após a formação do Caminhos do Cuidado? Orientar sobre Redução de Danos
Qtd %
54,81%
Conversar com os usuários
42,48%
Vincular usuários na unidade de saúde
33,24%
Oferecer grupos, alternativas de lazer na comunidade ou outras atividades coletivas Aproximar-se de parentes e amigos do usuário de crack, álcool e outras drogas Conversar com sua equipe de saúde sobre crack, álcool e outras drogas Outras
16,71% 33,24%
46,31%
120
12,67%
12,95% 30,75% 10,72%
6,71%
21,71%
“no meio da pedra, havia um Caminhos”
9-Como foi a reação dos seus colegas, da Estratégia de Saúde da família, com a formação que você realizou? Pediram o material da formação
Qtd % 13-Quanto ao fornecimento de alimentação durante a formação:
Qtd %
8,63%
Participaram de atividade(s) proposta(s) na formação
32,08%
Ficaram interessados em fazer a formação também
35,93%
Pediram que eu falasse sobre a formação na reunião de equipe
26,36%
Conversei apenas com alguns colegas
20,08%
Foi determinante para a minha entrada na formação, se eu precisasse pagar não teria condições financeiras de participar
24,44%
Foi fundamental para a minha permanência na formação
32,68% 16,76%
Conversei sobre a formação, mas não houve interesse
7,79%
Não fez diferença para a minha entrada ou permanência na formação Frequentaria a formação mesmo sem alimentação
Não compartilhei nada com meus colegas
0,47%
Total respondido
92,27%
7,50% 92,08% 7,92%
Não responderam
7,73%
14-Em relação ao jeito de ensinar da Formação do Caminhos do Cuidado (metodologia), quais opções abaixo você destacaria?
Qtd %
A equipe não costuma abordar este assunto Total respondido Não responderam 10-Em relação ao trabalho de equipe, após a Formação do Caminhos do Cuidado, você: Passei a me sentir parte da equipe
Qtd %
40,82%
Sempre me senti integrado à equipe
53,28%
O incentivo a trazer experiências pessoais e do trabalho para os encontros Aprender com as experiências dos colegas
Passei a sentir-me mais parte da equipe
26,36%
A possibilidade de realizar atividades no território
36,29%
A possibilidade de fazer uso da criatividade nos encontros (música, teatro, cordéis, paródias, poesia, vídeos, etc.)
38,08%
Não me sinto parte da equipe
13,04%
0,47%
Não mudou a minha relação com à equipe
16,42%
Total respondido
92,27%
57,49%
3,02%
Total respondido
91,60%
Não responderam
8,40% Qtd %
13,94%
15-Quais opções abaixo você destaca como interessante na Formação do Caminhos do Cuidado: O jeito de ensinar
42,79%
27,13%
O incentivo a trazer experiências do trabalho para os encontros
56,84%
Aprender com as experiências dos colegas
54,98%
Aprender sobre Redução de Danos
60,09%
Não responderam
7,73%
11- Após a formação no Caminhos do Cuidado você teve outra(s) oportunidade(s) de trocar experiência(s) e/ou ampliar conhecimentos sobre saúde mental, crack, álcool e outras drogas? Sim, fiz outros cursos sobre esse assunto
Qtd %
Sim, segui buscando diferentes informações relacionados ao assunto Sim, passei a conversar mais sobre o assunto
Não gostei do formato das aulas
56,83%
48,92%
Não, não converso sobre o assunto
0,65%
Não tenho liberdade de falar sobre o assunto no meu ambiente de trabalho Não me interessei em fazer outros cursos sobre o assunto
0,56%
1,50%
Não tive oportunidade para fazer outros cursos sobre o assunto
35,55%
Total respondido
92,46%
Não responderam
7,54%
12-Em relação ao material da formação do Caminhos do Cuidado, você considera que: A linguagem estava apropriada
Qtd %
Aprender sobre Reforma Psiquiátrica
38,98%
Aprender sobre Redes de Cuidado
52,47%
Descobrir que já fazia outras ações de cuidado
34,23%
Reconhecer a escuta como estratégia de cuidado
44,56%
Reconhecer o acolhimento como estratégia de cuidado
46,05%
Maior segurança para trabalhar com usuários de crack, álcool e outras drogas Reconhecer a potência das mobilizações coletivas
46,70%
46,12%
Refletir sobre preconceito(s)
46,88%
Estava adequado a sua realidade local
34,89%
Não achei nada de interessante
Ajudou a compreender sobre o cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas Não ajudou na compreensão sobre o cuidado em saúde mental, crack, álcool e outras drogas Total respondido
72,03%
Total respondido
93,03%
1,50%
Não responderam
6,97%
Não responderam
92,46% 7,54%
121
31,91%
0,82%
“no meio da pedra, havia um Caminhos”
GLOSSÁRIO AVALIACAMINHOS - Termos-Chave e Guia Conceitual -
ARTICULADORAS/ES LOCAIS: As/os articuladoras/os locais são atores indicados pelas Escolas Técnicas do SUS (conforme o Edital Simplificado de Abertura – nº 03/2016), responsáveis por articular e mobilizar a avaliação nos seus estados de residência. Cabe a eles a busca e produção de informações para a avaliação do Caminhos do Cuidado nos territórios, bem como a interlocução do processo avaliativo com a Escola Técnica. Ou seja, o processo avaliativo conta com a parceria estruturante da Rede de Escolas Técnicas do SUS, composta por 40 Escolas Técnicas do SUS (ETSUS). Também é sua atribuição participar regularmente da especialização em Acompanhamento, Monitoramento e Avaliação em Educação na Saúde Coletiva. O articulador local tem seu trabalho acompanhado e apoiado pela Equipe Nacional de Avaliação. Sua carga horária compreende 20 horas mensais para dedicação às atividades do processo avaliativo, mas a participação no curso de especialização. COLHEITA DE DADOS: Refere-se ao processo de colheitar os dados necessários para a realização da avaliação, entendendo colheita como o ato ou efeito de colher produtos, safra, apanha. A colheita de dados é um termo alternativo à “coleta” de dados, que tradicionalmente carrega uma marca que busca a distância do pesquisador e de seu objeto e de seu campo de pesquisa. O AvaliaCaminhos, ao utilizar-se da colheita, traz contido no termo, tudo que antecede este ato, todas as particularidades de cada solo, as intempéries que colocam a safra em risco, os materiais utilizado para o cultivo, técnicas acumuladas que marcam a experiência de cada uma/um. EQUIPE AVALIACAMINHOS: Grupo formado por consultores da FIOCRUZ que, em sua maioria, participaram da execução do projeto Caminhos do Cuidado nas funções de coordenação macrorregional e consultoria. Responsáveis pela articulação, planejamento, acompanhamento e monitoramento desta avaliação em território nacional, coordenando as ações das/os articuladoras/es locais. Por vezes encontra-se no texto como ‘equipe nacional de avaliação’, uma nomenclatura utilizada no projeto Caminhos do Cuidado. EXPERIÊNCIA: Matéria-prima da Avaliação do Caminhos do Cuidado, está baseada em reconhecer as afetações que nos passam e que permanecem em cada um/a, reconhecendo as experiências vividas ao longo do percurso do Projeto. Jorge Larrosa pedagogo e filósofo espanhol, inspirou esse percurso avaliativo e inspirou a pensar a experiência como sendo o que nos passa, o que nos acontece ou o que nos toca. . Diz-nos Larrosa que a experiência requer ´parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender o automatismo da ação´, e aponta que se faz singular para cada pessoa. Tanto o Caminhos do Cuidado, como o AvaliaCaminhos, proporcionaram esse tempo, de parar, e olhar para as vivências e com elas aprender, fazê-las experiência. Também, inspirando esse pensamento está Walter Benjamin que observa a pobreza de experiências que têm caracterizado o mundo atual, refletindo que muitas coisas se passam, porém a experiência
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
está cada dia mais rara. VIVÊNCIA: aquilo que acontece com as pessoas, mas não galga grau de virar uma narrativa. MOEBIUS: Fita de Moebius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta em uma delas. É possível percorrer toda a extremidade da fita que aparenta ter dois lados, mas só tem um. Inspiradas/inspirados na obra da artista Lygia Clark, a imagem traz a não separação entre sujeito-objeto, um corpo, uma fusão, se desdobra em entrelaçamentos, em caminhos e caminhos. Nascendo do moebius trabalhadora-usuária, trabalhador-usuário, que se apresentou para nós ao nos encontrarmos com as falas das/dos ACS/ATENF oriundas das rodas de conversa, tornou-se nome de um submarcador da dimensão Cenários do Cuidado. Desde então, o termo nos serviu para dar linguagem às articulações entre agentes e processos, para problematizar demarcações dicotômicas. PERMEABILIDADE: Termo que ajudou a olhar para as relações estabelecidas nas articulações nas equipes, entre equipes, nas redes e no encontro com a usuária e usuário do SUS. Considera os múltiplos fatores, tais como hierarquias, linguagens, valores e crenças, que determinam as trocas, as agências e seus fluxos, entre as/os atores que se relacionam. Nos inspiramos na geologia, mais especificamente, na permeabilidade das rochas, pelo simbolismo que esta imagem nos empresta para falarmos da rigidez nas relações instituídas no trabalho. Permeabilidade seria a capacidade de um material (tipicamente uma rocha) para transmitir (e receber) fluidos. A permeabilidade também nos ajudou a olhar para as hierarquias que se constituem nos processos de trabalhos e perceber fissuras nestas rochas que nos constituem como sujeitos. VAGA-LUMES: são pequenos insetos que chamam a atenção por sua emissão luminosa, sua luz varia do verde-amarelado ao vermelho (poucas espécies); aqui utilizado para destacar falas, histórias, casos, que se iluminaram como vaga-lumes durante o processo de avaliação. Assim como os vaga-lumes, cada fala tem sua intensidade, brilho, cor, raridade. E tal qual os vagalumes, exigem certas condições para que sua visibilidade seja possível.
GLOSSÁRIO CAMINHOS DO CUIDADO: APOIO PEDAGÓGICO: grupo de profissionais responsáveis pela formação presencial de tutores e orientadores, além do apoio virtual as demandas de tutores, orientadores e educadores. CONSULTORAS E CONSULTORES: profissionais designados pelo Ministério da Saúde para fazer o apoio/acompanhamento do processo pedagógico nacional. COORDENAÇÃO ESTADUAL: equipe responsável pela articulação das turmas de ACS e ATENF, em seus respectivos estados. Composta pela coordenação e apoios estaduais. COORDENAÇÃO MACRORREGIONAL: Durante o projeto Caminhos do Cuidado tinham como sua responsabilidade o planejamento, articulação, coordenação e monitoramento da execução da formação dos alunos na macrorregião do país sob sua responsabilidade.
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“no meio da pedra, havia um Caminhos”
Acompanhando e avaliando os cronogramas de formação, além de promover a divulgação, a negociação e as pactuações necessárias com os atores nos territórios, para a realização das turmas. Essas articulações - em cada unidade federativa - tiveram a participação dos coordenadores estaduais e seus apoios. Parte da coordenação macrorregional compôs a equipe nacional do AvaliaCaminhos. COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA: responsável pela coordenação pedagógica nacional do projeto Caminhos do Cuidado. EDUCADORES: Tinham como responsabilidade realizar a formação e acompanhar as atividades dos orientadores de aprendizagem e tutores, apontando estratégias complementares e orientando para a potencialização da formação. Durante o AvaliaCaminhos também tiver um papel fundamental para construção dos PIS junto às ETSUS. ORIENTADORAS E ORIENTADORES DE APRENDIZAGEM: Conjunto de profissionais com a responsabilidade de acompanhamento aos tutores. O acompanhamento ocorria por meio do ambiente virtual da Comunidade de Práticas. TUTORAS E TUTORES: Eram responsáveis pela formação presencial dos ACS e ATENF. Eram profissionais selecionados pelo projeto, com experiência em Saúde Mental, Atenção Básica ou docência na temática da Saúde Mental e/ou Atenção Básica. Não confundir com as tutoras e tutores que fazem a mediação EAD no curso de especialização que compõe o AvaliaCaminhos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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