A aparição da sumaca Escrito por Evaldo Cabral Dom, 01 de Julho de 2001 00:01 Apartir da ocupação holandesa, cai um silêncio definitivo sobre os caravelões da costa. Nas fontes lusobrasileiras, só aqui e ali aparece algum retardatário. O caravelão desaparecera do Nordeste. Os anos de guerra naval haviam-lhe sido nocivos. Mais exposta e vulnerável do que a navegação oceânica, a cabotagem terá sido decimada pelos cruzeiros neerlandeses. Ademais, nas condições da guerra, a própria caravela atendia melhor à dispersão geográfica dos pequenos portos onde, perdido o Recife, os luso-brasileiros procuravam, a duras penas, manter suas comunicações com o Reino, permitindo integrar os percursos costeiro e oceânico, dispensando as operações de baldeação da carga, sempre arriscadas face à vigilância dos iates e chalupas inimigas. Quando a navegação de cabotagem renascer no governo nassoviano, o caravelão terá sido abandonado em favor de uma embarcação de origem neerlandesa, a smak, que frei Calado ainda designará por “barcos rasteiros”, mas que foi logo aportuguesada em ‘esmaca’ e, depois, em ‘sumaca’. Aporte da civilização material dos conquistadores do Nordeste, onde ela se instalará comodamente ao longo de duzentos anos, a sumaca predominará no tráfego costeiro da região, para daí ganhar todo o litoral brasileiro, do Ceará ao São Francisco. Datam da restauração de Pernambuco as primeiras referências a este tipo de embarcação. A relação de Francisco de Brito Freyre alude ao papel desempenhado no bloqueio do Recife por cinco delas, “vindas dos Portos de Pernambuco”, isto é, dos portos do sul da capitania sob o controle do exército restaurador. A narrativa também refere, entre os barcos inimigos, patachos e sumacas encontrados em Itamaracá e na Paraíba. Outra relação registra duas sumacas apresadas pela armada de Pedro Jaques de Magalhães. Terceira fonte consigna a captura de uma sumaca de mantimentos pertencentes aos holandeses. Salta à vista a circunstância de já então se haver aportuguesado, na ortografia definitiva, o vocábulo neerlandês ‘smak’, o que pressupõe o transcurso de certo tempo desde a sua transplantação para o Nordeste. Brito Freyre também registra que as primeiras haviam sido trazidas no bojo das naus neerlandesas, sendo montadas aqui. De Pernambuco, a sumaca ganhou a costa leste-oeste no trajeto entre o Ceará e o Maranhão; e os percursos da Bahia às capitanias de baixo. Em finais de seiscentos, ela assegurava as comunicações marítimas entre o Recife e a Bahia ou entre a Bahia e Sergipe, viagem em que gastavam menos de três dias, ou ainda entre a Bahia e Penedo. Um documento setecentista do arquivo da casa de Cadaval afirma que o tráfego marítimo entre o Rio e Santos era feito “em sumacas e outras embarcações semelhantes, incapazes para navegação de tanta importância”, donde a freqüência dos naufrágios, arribadas e apresamentos por corsários, frente aos quais eram especialmente indefesas. A linha RioSantos seria, aliás, bem lucrativa, transportando anualmente cerca de 10.000 pessoas e recebendo 40 contos de frete. Do Recife e da Bahia, graças ao tráfico negreiro, a sumaca alcançou a costa ocidental da África, se é que os holandeses já não a haviam levado originalmente para lá. Em meados do século 18, uma investigação oficial transmitida pelo governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, com data de 12.11.1758, constava as condições penosas a que eram submetidos os escravos transportados nessas embarcações. Os regulamentos eram sistematicamente desrespeitados, a ponto de uma sumaca que deveria conduzir 237 indivíduos transportar 368. Os africanos acomodavam-se pela tolda, castelo e convés, ademais do porão onde se armava um bailéu, “em que vêm os escravos, sem mais ar que o das escotilhas.” Ao cabo de dois séculos nas nossas águas, perdera-se a memória da sua origem holandesa. O almirante francês, barão de Roussin, que realizou sua expedição hidrográfica ao Brasil de 1819 a 1820, quando se valeu do conhecimento e da experiência dos pilotos e práticos brasileiros, mencionou-a, sem aludir à procedência, pela expressão inglesa smack, a despeito de a língua francesa já conhecer a voz sémaque. Segundo Roussin, tratava-se de embarcação muito encontradiça no litoral brasileiro, assemelhando-se, na mastreação e velame, aos brigues-escunas do seu país. Seu compatriota, Boileau, cônsul no Recife, ao escrever a palavra exótica em ofício ao Quai d’Orsay, explicava tratar-se de embarcação local, um bâtiment du pays. Outro francês, certo Dupré Ebrard, que um século antes redigira uma Instruction hydrographique de la côrte du Brasil (1711), anotou haver topado, na altura dos Abrolhos, uma soúmaq, “um navio português de fabricação brasileira”. Restrita aos percursos da cabotagem do mar do Norte à costa da França, a sumaca não foi utilizada em Portugal, tanto assim que, em trânsito pelo Recife, Sá de Bandeira deu-se ao trabalho de descrevê-la no seu diário, comparando-a ao iate, que era então a principal embarcação utilizada entre Lisboa e o Porto. Anos antes, Henry Koster contentara-se com mencioná-la, sem entrar em detalhes, dispensáveis para o leitor inglês, familiarizado com aquele gênero