Cadernos do
Centro de Estudos e Ação Social
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Julho/Setembro 2007
Rio são francisco transposição degradação ambiental alternativas
• Cadernos do CEAS é uma revista trimestral do Centro de Estudos e Ação Social que apresenta, analisa e comenta a realidade brasileira, denunciando formas de opressão e desigualdades sociais e apontando a iniciativa das classes populares como caminho para a superação da miséria e da exploração, na direção de uma sociedade mais justa e humana, de real participação democrática. • O CEAS é uma entidade constituída por um grupo de jesuítas e por outras pessoas de diferentes pontos de vista, comprometidas com os objetivos acima. • As matérias não assinadas são de responsabilidade conjunta do CEAS. • Os Cadernos circulam trimestralmente; as assinaturas são feitas para os quatro números do ano.
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cadernos do ceas. m.1 —. (1969 — ) . Salvador Centro de Estudos e Ação Social. 2003. Trimestral issn 0102-9711 1. Análise conjuntural — Brasil. 2. Política agrícola. 3. Política econômica. 4. Política social. I Centro de Estudos e Ação Social. cdu 338.91 (081) 338.984 338.98 338.28: 304
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APRESENTAÇÃO
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Rio São Francisco: tragédia à vista?
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Andrea Zellhuber E Ruben Siqueira Rio São Francisco em descaminho: degradação e revitalização
Castro Alves 33 O São Francisco João Suassuna 35 As águas do Nordeste e o Projeto de Transposição do rio São Francisco DOCUMENTO
Dom Luiz Flávio Cappio 49 Cartas e documentos do jejum Barra (BA) e Cabrobó (PE), 26 de setembro a 10 de novembro de 2005 José Comblin 59 Greve de fome como pressão popular Carlos Drummond de Andrade 65 Águas e mágoas do rio São Francisco Ruben Siqueira e Henrique Cortez 69 Audiência de Dom Luiz Cappio com o presidente Lula (notas provisórias) DOCUMENTO
77 Cronologia e documentos do acampamento em Cabrobó (PE) Cabrobó, 26 de junho a 4 de julho de 2007 Luciana Khoury 85 Aspectos jurídicos do Projeto de Transposição do rio São Francisco e a atuação do Ministério Público brasileiro Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Roberto Malvezzi 93 Rio das Rimas Altair Sales Barbosa 95 Elementos para entender a transposição do rio São Francisco João Abner Guimarães Jr 107 Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à transposição do rio São Francisco Nancy 119 Evangelho do Velho Chico Ricardo Feijó e Sergio Torggler 125 Alternativas mais eficientes para a transposição do São Francisco
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Rio São Francisco: Tragédia à vista?
Esta edição especial dos Cadernos do CEAS está sendo finalizada num momento crítico. Deixemos que o frei Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra (BA), o diga em suas próprias palavras, em carta do dia 27 de novembro: “No dia 6 de outubro de 2005, em Cabrobó (PE), assumimos juntos [o frei e o presidente Lula] um compromisso: o de suspender o processo de Transposição de Águas do Rio São Francisco e iniciar um amplo diálogo, governo e sociedade civil brasileira, na busca de alternativas para o desenvolvimento sustentável para todo o Semi-Árido. Diante disso, suspendi o jejum e acreditei no pacto e no entendimento. Dois anos se passaram, o diálogo foi apenas iniciado e logo interrompido”. Agora, “não existe outra alternativa”, pois a resposta do presidente foi “o início das obras de Transposição pelo exército brasileiro”. “Portanto, retomo o meu jejum e oração. E só será suspenso com a retirada do exército das obras do Eixo Norte e do Eixo Leste e o arquivamento definitivo do Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco”. Diferentemente do primeiro período de jejum e oração feito pelo frei em 2005, ambas as partes assumem que não há diálogo possível; apenas a suspensão do Projeto de Transposição do Rio ou a morte do frei parecem ser as alternativas para o fim do impasse. O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, declara publicamente que não aceita chantagens; o presidente também diz que prefere estar com os 12 milhões supostamente beneficiados pela Transposição que com o frei. Isto é tão-somente o reflexo da postura que o governo federal tem adotado na questão, pois, até o momento, sua argumentação técnica em favor da Transposição é baseada num só argumento subjacente: “quem é contra a Transposição desconhece o projeto ou está de má fé”. O que se revela com Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Apresentação
isso é a simples desqualificação política dos adversários; há uma torrente de argumentos técnicos contra a Transposição, muito bem fundamentados, vários deles apontando alternativas mais simples e baratas para resolver o problema do abastecimento de água no Nordeste. Açudagem, redes de barragens, captação de águas pluviais e mandalas, que são sistemas de irrigação circular no qual um tanque de 30 mil litros é alimentado por uma cisterna ou açude e em torno do qual são cultivados alimentos básicos como feijão, arroz, mandioca, batata, hortaliças ou frutas. Todas estas soluções práticas para o abastecimento de água no Nordeste são consideradas pelo governo federal como ações a serem realizadas em paralelo à Transposição e não como alternativas concretas a ela. Nesta conjuntura, o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), através desta edição especial dos Cadernos do CEAS, apresentam textos que sejam capazes de romper as comportas que vedam o fluxo de informações sobre a Transposição. Trazemos aqui reflexões que analisam tal problemática em seus aspectos social, jurídico, ecológico e histórico, bem como algumas alternativas ao Projeto. Esperamos que esta edição especial tenha a maior difusão possível e que os artigos que a compõem sejam úteis para a luta contra a Transposição. Cadernos do CEAS
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Rio São Francisco em descaminho: degradação e revitalização
Andrea Zellhuber* Ruben Siqueira**
“Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água quebra-se em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de pólo, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez” João Cabral de Melo Neto, Trecho do poema “Rios sem discurso” 1. Introdução
Fala-se muito, hoje, da necessidade de revitalizar, preservar e conservar Bacias hidrográficas. Revitalização de Bacias hidrográficas passou a ser assunto recorrente na mídia, sobretudo desde que essa se interpôs no caminho Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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da transposição de águas do Rio São Francisco para o chamado Nordeste Setentrional. Como a expressão é citada por leigos, especialistas e aficionados, acaba por não ter um conceito bem definido. Cada um usa esta palavra-chave de acordo com seus interesses. Por certo, a palavra “revitalizar” não poderá significar a acepção literal “devolver a vida perdida”, já que isso é impossível. Mas deverá estabelecer como meta recuperar a vitalidade e revigorar, dentro do possível, usando de todos os instrumentos disponíveis. Porém, a disponibilidade de dados sobre a condição do Rio São Francisco, por exemplo, em relação a um monitoramento contínuo da qualidade de água ou um levantamento da fauna aquática, é ainda muito precária. Todavia, os indícios da degradação já são tão alarmantes que, mesmo sem levantamentos consistentes, o estado deplorável da Bacia fica óbvio. Neste artigo, discutimos a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, verdadeira apenas se enfrentar os seus principais problemas, que são causas e resultados de um processo relativamente acelerado de degradação por usos sobrepostos, cumulativos e indisciplinados. Os principais usos econômicos do São Francisco — produção de energia e agricultura irrigada —, bem como os outros usos de seus recursos naturais, tais como mineração, carvoarias e siderurgia, remetem à permanência de um modelo de exploração econômica que, se não for substancialmente modificado, de nada adiantarão os esforços de revitalização. Infelizmente, é esse o caso atual. O programa de revitalização do governo federal é tímido, não vai às raízes dos problemas, funcionando mais como ”moeda de troca” da transposição, oferecida aos críticos dessa e ao povo da Bacia que resiste a aceitá-la. As bases e razões do artigo provêm, além de pesquisa em dados secundários, da experiência dos autores junto a grupos e comunidades populares de vários segmentos da população, no Projeto Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco, desenvolvido há três anos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) em toda a Bacia. A idéia-proposta mobilizadora “São Francisco Vivo: Terra e Água, Rio e Povo” sintetiza a integridade ecológicopolítica do que entendemos por revitalização. 2. Indícios e causas da degradação
Para poder propor ações revitalizadoras consistentes, eficazes e eficientes, por primeiro é preciso analisar porque o Rio São Francisco precisa de revitalização e quais as principais causas da degradação e da perda da vitalidade, que seriam, forçosamente, as frentes principais da revitalização (fosse ela para valer…).
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Rio São Francisco em descaminho: degradação e revitalização
Dos indícios de degradação salta aos olhos o assoreamento. Calcula-se 18 milhões de toneladas de arraste sólido carreados anualmente para a calha do rio até o reservatório de Sobradinho. A erosão, fruto do desmatamento e do conseqüente desbarrancamento, além de alargar a calha do rio, gera uma carga elevada de sedimentos, constituindo bancos de areia e “ilhas” (as chamadas “coroas” ou “croas”, no linguajar ribeirinho), constantemente se movendo e mudando de lugar. O Rio São Francisco, pode-se dizer, é um milagre da natureza, pois faz o capricho de correr ao contrário e se estende do Sul, mais baixo, para o Norte, mais alto, devido à falha geológica denominada “depressão sanfranciscana”. Isto o torna muito vulnerável, pois a pequena declividade (em média 7,4 cm por km) na maior parte de sua extensão, justamente a que recebe poucos afluentes, favorece o desbarrancamento e o assoreamento. O assoreamento provoca anualmente uma perda de 1% da capacidade dos reservatórios (Coelho, 2005: 138-139). Um indicador deste processo acelerado de assoreamento é a condição precária atual de navegabilidade do Rio São Francisco. Até pouco tempo o Rio era navegado sem maiores restrições entre Pirapora e Petrolina/ Juazeiro (1.312 km), no médio curso, e entre Piranhas e a foz (208 km), no baixo curso. Hoje, só apresenta navegação comercial no trecho compreendido entre os portos de Muquém do São Francisco (Ibotirama), na Bahia, e Petrolina/Juazeiro, na divisa entre Bahia e Pernambuco. Mesmo neste trecho, a navegação vem sofrendo revezes por deficiência de calado, sobretudo na entrada do lago de Sobradinho, onde um intenso assoreamento multiplica os bancos de areia (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b : 32). Outro sinal alarmante da situação deplorável do Rio é a diminuição da sua vazão. Em 2001, o reservatório de Sobradinho chegou a 5% de sua capacidade (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 20-21); em outubro de 2007, atingiu um pouco mais de 20%1. Em combinação com a elevada carga de poluição doméstica e industrial que cai no Rio, o ecossistema aquática nos períodos mais secos regularmente chega ao colapso. O resultado é a mortandade de peixes. Em outubro de 2007 aconteceu em proporções inéditas um desastre ecológico decorrente desta poluição e da diminuição da vazão: uma contaminação com algas azuis (cianobactérias) que se proliferaram no Rio das Velhas e no Médio 1. Cf. video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM749552-7823-IVEL+DE+AGUA+BAIX O+EM+SOBRADINHO,00.html
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São Francisco, levando a uma enorme mortandade de peixes e à inadequação da água para consumo humano e animal, enquanto não aumentasse o volume com a chegada das chuvas nas cabeceiras. A infestação é efeito de uma alta concentração de emissões de esgotos domésticos e industriais, de agroquímicos e fertilizantes usados nas lavouras, resultando numa eutrofização dos cursos d’água2. O mais problemático é o Rio das Velhas, que coleta a maior parte do esgoto da Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG), sendo, por isso, um dos rios mais poluídos da Bacia do São Francisco. Esta contaminação com cianobactérias mostra que em épocas de poucas chuvas o Rio não consegue mais diluir os poluentes. Mesmo com algumas melhorias dos sistemas de saneamento nos córregos Arrudas e Onça, em Belo Horizonte, o Rio não suporta mais carga de poluição, não tem mais capacidade de diluição das emissões. Isso pode ser causado por um aumento de poluição mas, com certeza, é um indicador da diminuição da vazão. Além disso, este desastre leva à tona o fato de que a eutrofização pela agricultura intensiva não é resolvida com melhorias no saneamento ambiental das cidades. Outro indicador bastante claro mas pouco considerado pelas autoridades é a diminuição constante do pescado no Rio São Francisco. Para entender as causas dos sinais de degradação do ecossistema de um Rio é preciso olhar além da calha do Rio e observar toda a sua Bacia hidrográfica. O programa oficial de revitalização acintosa e sintomaticamente se nega a esse olhar ou não tira dele todas as conseqüências de decisão política. 2.1. Avanço descontrolado da agricultura intensiva de irrigação Como uma das principais causas de degradação do Rio São Francisco, o modelo de produção agro-industrial vigente na Bacia vem causando uma cadeia de problemas ambientais. Desde os anos 70 a Bacia do Rio São Francisco vive uma acelerada e desenfreada expansão da agricultura intensiva. Uma região em especial na qual a expansão de grandes monoculturas agrícolas de exportação se deu rapidamente e com impactos fatais é o Oeste da Bahia, 2. Chama-se eutrofização ao fenômeno causado pelo excesso de nutrientes (compostos químicos ricos em fósforo ou nitrogênio, normalmente causado pela descarga de efluentes agrícolas, urbanos ou industriais) num corpo de água mais ou menos fechado, o que leva à proliferação excessiva de algas, que, ao entrarem em decomposição, levam ao aumento do número de microorganismos e à conseqüente deterioração da qualidade do corpo de água (rios, lagos, baías, estuários etc.).
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no Médio São Francisco. Nela, desde o fim dos anos 70 vem se expandindo a produção de grãos, como soja e milho, mas também algodão e pecuária. Deu-se um desmatamento muito rápido de grande parte da vegetação natural do Cerrado. Este avanço fica evidente na constatação de que, na Bahia, a área de produção de soja triplicou de 282.600 ha em 1990/1991 para 872.600 ha em 2005/2006, sendo que o principal pólo deste cultivo fica no Oeste do Estado, o epicentro do boom do cultivo da soja no Nordeste (Schlessinger e Noronha, 2006: 28). Uma região onde há 25 anos atrás predominava a produção de gado extensivo, hoje existe 1,5 milhão ha de agricultura intensiva de produção de grãos (Brannstrom e Filippi, 2006: 277). Este avanço do agro-negócio em grande parte da Bacia do Rio São Francisco tem efeitos catastróficos, como veremos a seguir. 2.1.1. Desmatamento do Cerrado O Cerrado é fundamental como manancial das águas que formam a Bacia do Rio São Francisco: ele é “é a caixa d’água do São Francisco”, como, de resto, das principais Bacias nacionais (vide, na página seguinte, os Biomas da Bacia do Rio São Francisco, no Quadro I). Os afluentes mais importantes nascem e crescem ali: os Rios Paracatu, das Velhas, Grande e Urucuia (ANA/OEA/ GEF/PNUMA et al, 2004b: 21). O Cerrado é conhecido como a “floresta invertida” por ter mais matéria orgânica vegetal no subsolo do que na parte superior do solo. O extenso sistema radicular das árvores capta água armazenada no fundo no subsolo nos períodos secos e é capaz de reter no mínimo 70% das águas das chuvas. Estas águas alimentam os lençóis subterrâneos que, por sua vez, alimentam as nascentes, as veredas, as lagoas, os córregos, os riachos e os rios3. Depois do desmatamento, todo o ciclo hidrológico é alterado. No Oeste da Bahia, com apenas 25 anos de exploração agrícola, registra-se o desaparecimento de inúmeros mananciais importantes4. As vazões dos afluentes do Rio São Francisco estão diminuindo devido aos mais de 600 pivôs centrais operando na região; em 1989, eram apenas 35 (Brannstrom e Filippi, 2006: 282). Muitos afluentes do Rio São Francisco anteriormente perenes viraram 3. Cf. “Revitalização tem R$ 270 mi anuais. Movimentos criticam ações”. Carta Maior, São Paulo, 13 de março de 2007. 4. Conferir, nesta edição, o texto de Altair Sales Barbosa, “Elementos para entender a Transposição do Rio São Francisco”, p. 95-105.
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rios intermitentes devido ao excessivo e incontrolado uso das águas para irrigação. Em geral, dos 36 afluentes do Rio São Francisco, 16 rios até então perenes viraram intermitentes, entre eles os Rios Verde Grande e Salitre (Coelho, 2005: 133). O desmatamento do Cerrado é alarmante, chegando a 1,5%, ou três milhões de ha/ano. Isso equivale a 2,6 campos de futebol por minuto, uma velocidade duas a três vezes maior do que na Amazônia. Mantendo-se este quadro o bioma corre o risco de desaparecer até 2030. Dos 204 milhões de hectares originais do Cerrado, 57% já foram completamente destruídos pelo processo de expansão da agricultura moderna e a metade das áreas remanescentes está bastante alterada e fragmentada (Klink e Machado, 2005; Machado et al, 2004). Além da perda de biodiversidade e do efeito dramático de extinção de mananciais, o avanço dos grandes monocultivos na região do Cerrado causa fortes processos de erosão. Até as dolinas (grandes depressões provocadas pela dissolução de solos calcários, resultantes da supressão vegetal e do rebaixamento do aqüífero), verificadas apenas nos Cerrados mineiros, já são observadas também nos baianos. Os solos desta região são muito suscetíveis a processos erosivos devido ao pouco teor de argila (cf. Brannstrom e Filippi, 2006: 282). O cultivo convencional de produção de soja pode levar a uma perda de solo de 25 ton/ha/ano. Este solo, QUADRO I
CARTOGRAMA DOS BIOMAS DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO
Fonte: Elaborado pelos autores.
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levado pelos afluentes do Rio São Francisco, contribui em grande parte para o assoreamento acima referido. 2.1.2. Supressão da mata ciliar Ainda mais drástica é a situação das matas ciliares do Rio São Francisco, elemento fundamental para o controle da erosão nas margens e para minimizar os efeitos das enchentes. Essas “matas de galeria” são essenciais para o equilíbrio ambiental, além de manter a quantidade e a qualidade das águas, na medida em que funcionam como filtro natural dos possíveis resíduos de produtos químicos como agrotóxicos e fertilizantes, além de representar habitat muito importante para a fauna. No caso do Rio São Francisco, estima-se que 96% das matas ciliares das suas margens já foram destruídos. QUADRO II
MAPA DAS ÁREAS IRRIGADAS NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO
Fonte: ANA/OEA/GEF/PNUMA et al (2004a). Os pontinhos representam áreas de irrigação.
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2.1.3. Superexploração dos mananciais pela agricultura irrigada De toda a vazão retirada do Rio São Francisco, 68% da água são usados para irrigação (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 26). A partir de meados da década de 1970 observa-se um crescimento quase exponencial da demanda de água devido à implementação de grandes projetos de irrigação (idem: 25). Em muitos dos 342.712 ha de agricultura irrigada na Bacia do Rio São Francisco o uso de água se dá sem planejamento técnico nem drenagem. Equipamentos de baixa eficiência, como pivôs centrais, causam grande desperdício (cf. CREA, 2007). A maior demanda de água na Bacia é da irrigação que se concentra no Médio e Sub-Médio São Francisco (cf. Quadro II, na página anterior). Implementados pela Companhia de Desenvolvimento do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), são 26 perímetros irrigados no Vale do São Francisco, abrangendo 105 mil ha (quase 30% da área irrigada total)5. Das áreas irrigadas dentro da Bacia, 13% ficam no Alto São Francisco, 50% no Médio, 27% no Sub-Médio e 10% no Baixo. As áreas de maior prática da irrigação são o Norte de Minas (os perímetros Gorutuba, Pirapora, Jaíba e Janaúba), a região de Belo Horizonte e o Distrito Federal; no Médio São Francisco, as regiões de Formoso/Correntina, Barreiras, Guanambi e Irecê, na Bahia; no Baixo São Francisco, o Platô de Neópolis, em Sergipe. Especial destaque merece a região de Juazeiro (BA)/ Petrolina (PE) (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 30). QUADRO III
DISTRIBUIÇÃO DA DEMANDA DE ÁGUA POR REGIÃO E POR USO
Fonte: Instituto Manuel Novaes.
5. Cf. www.codevasf.gov.br/empresa/formas-de-atuacao, acessado em 31 de outubro de 2007.
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Os grandes perímetros de irrigação foram concebidos e financiados como projetos públicos, contemplando também pequenos e médios produtores (colonos). Porém, ao longo dos anos, houve um forte processo de concentração das terras irrigadas na mão de empresas privadas, hoje voltadas para a produção de frutas para exportação, basicamente uva e manga, que dão um significativo retorno econômico. A implantação de um perímetro de irrigação público começa pela desapropriação dos antigos ocupantes (em teoria, teriam prioridade para adquirir os lotes irrigados). A seleção de empresas se dá por meio de concorrência pública. A empresa vencedora se torna proprietária de uma área dentro dos perímetros “públicos”. Quanto aos colonos selecionados, estes só recebem o título de propriedade após um prazo de dois anos, após comprovar que são bons produtores e pagadores. Caso contrário, o lote é colocado à venda, num processo chamado “seleção natural”. Desta forma, grande parte das terras irrigadas muito valorizadas vem parar na mão de empresas (Bloch, 1996: 32). Em algumas regiões a superexploração dos recursos hídricos da Bacia do Rio São Francisco já resulta em sérios conflitos de uso entre agricultura irrigada, geração de energia e abastecimento humano, como nas sub-Bacias dos rios Paraopeba, das Velhas, Alto Preto, Alto Grande, Verde Grande, Salitre e Baixo São Francisco (cf. Quadro III, acima). Destacam-se as sub-Bacias do Verde Grande e do Grande, onde há forte expansão da irrigação, sem planejamento e ordenamento do uso do solo e da água. A área instalada com infra-estrutura de irrigação é maior do que as Bacias podem suportar (ANA/OEA/GEF/ PNUMA et al, 2004b: 35). Além disso, os projetos de irrigação contribuem para a contaminação do rio, de seus afluentes e dos corpos subterrâneos. Os grandes perímetros irrigados e monocultivos demandam uma quantidade enorme de agrotóxicos e adubos químicos. O excesso de água aplicada retorna para o rio, afluentes e depósitos subterrâneos, arrastando consigo sais solúveis, fertilizantes, resíduos de agrotóxicos e outros tóxicos. Porém, a contaminação e confirmação da presença de agrotóxicos na água é de difícil verificação. Considerando-se a extensão da atividade agrícola na Bacia, recomenda-se um levantamento detalhado do uso de agrotóxicos e épocas de aplicação, para que seus impactos possam ser devidamente avaliados, o que não ocorre na freqüência e regularidade necessárias (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 23). A atual política de desenvolvimento agrário na Bacia do Rio São Francisco estimula um modelo baseado na irrigação. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê para o Nordeste um forte investimento público em infra-estrutura Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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para “Desenvolvimento Hidro-Agrícola” (cf. MI, 2007). Somente para a Bacia do Rio São Francisco são previstos nove grandes financiamentos para projetos de irrigação (vide Tabela I). Em total estão previstos 143.500 ha de novos perímetros irrigados na Bacia, o que equivale a 42% a mais da área irrigada hoje existente. Somente os projetos Baixio do Irecê e Salitre, na Bahia, representam 60% das novas áreas planejadas. TABELA I
INVESTIMENTO NO DESENVOLVIMENTO HIDRO-AGRÍCOLA NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO NO PAC (2007-2010) Projetos de Irrigação (PI) e de Infra-Estrutura (PIE) PI Pontal
Área (em ha) 7.700
Investimentos previstos (em milhões de R$) 92,7
Estado PE
PI Baixio de Irecê
54.000
241,0
BA
PI Salitre
32.000
251,5
BA
4.800
16,8
AL
PI Marituba
5.000
50,0
BA
PIE de Uso Múltiplo Canal do Xingó
PI Estreito IV
10.000
10,0
SE
PI Jaíba III e IV
30.000
50,0
MG
PIE de Uso Múltiplo Jequitaí
10,0
MG
PIE de Infra-Estrutura de Uso Múltiplo — Barragens Diversas
18,0
MG
Total
143.500
740,0
Fonte: MI (2007).
Esta política obsessiva de priorização da agricultura irrigada numa região semiárida ignora os limites objetivos impostos à irrigação nesta região, pois apenas 5% dos solos do Semi-Árido são irrigáveis e há água apenas para irrigar 2% dos solos, segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (Malvezzi, 2007: 86-87). Um estudo do Banco Mundial (2004) revela que muitos dos grandes projetos de irrigação no Semi-Árido, além dos graves impactos sociais e ambientais, nem economicamente sustentáveis são. Segundo este relatório, apenas 4 dos 11 perímetros irrigados estudados apresentam retorno positivo. É de se perguntar se, diante de tantas obras inacabadas, mal aproveitadas ou mesmo fracassadas, não seria conveniente ao erário público investigar melhor em que condições realmente a agricultura irrigada pode se tornar viável (idem: 90). Com este quadro de persistência do paradigma da agricultura irrigada nas políticas públicas para o Nordeste, é fácil deduzir que os problemas ambientais do
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Rio São Francisco acima descritos vão se agravar muito. Com isso, as políticas públicas ignoram que a prevenção de uma contínua diminuição da vazão do Rio está estreitamente ligada às questões de políticas de desenvolvimento para as áreas de Caatinga e Cerrado dentro da Bacia do Rio São Francisco. É preciso um aprofundamento da discussão sobre os modelos de desenvolvimento sustentável destes biomas. Pelas avaliações até agora conhecidas, modelos unicamente baseados na expansão do agro-negócio, especificamente na agricultura de irrigação, não podem ser considerados sustentáveis. Com o forte incentivo do governo à expansão das áreas irrigadas na Bacia do Rio São Francisco, fica ainda mais clara a inversão perversa das prioridades em relação ao uso da água nesta Bacia. Tendo em vista o último Censo nacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de meio milhão de ribeirinhos que vivem em povoados perto da calha do Rio São Francisco sofrem com a inexistência ou precariedade do abastecimento de água (cf. Coelho, 2005: 130). 2.2. Produção de carvão vegetal Além do avanço da agricultura intensiva, uma das maiores causas do desmatamento na Bacia do Rio São Francisco é a carvoaria. O Brasil é o maior produtor de carvão vegetal do mundo: em 2004 foram produzidos 7 milhões de toneladas, dos quais cerca de 60% provieram de florestas plantadas e o restante de vegetação nativa da Caatinga e do Cerrado. O grande impulsionador desta produção é a indústria siderúrgica de Minas Gerais, que consome 95% da produção de carvão vegetal. Pelo fato de ser um insumo para um setor industrial de grande importância econômica, essa questão tornou-se um dos problemas ambientais muito complexos (Coelho, 2005: 134). A fiscalização da produção ilegal de carvão vegetal de matas nativas é muito complicada, sobretudo numa região onde esta é uma das raras fontes de renda para muita gente que não encontra outra forma de sobrevivência. E as alternativas são também muito problemáticas. Plantações de eucalipto para carvão vegetal levam à degradação dos solos e a um desequilíbrio hídrico. O elevado consumo de água na plantação de eucalipto pode contribuir para a diminuição das nascentes e da vazão dos corpos d’água (Coelho, 2005: 136). Contudo, o Complexo Mínero-Siderúrgico-Madeireiro de Minas Gerais — os três setores da mineração, siderurgia e monocultivo de eucalipto interligados — traz impactos negativos diretos e indiretos em grande parte da região do Alto e Médio São Francisco: rebaixamento de lençóis freáticos, desmatamento Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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da vegetação natural, contaminação das águas, do solo e do ar e desequilíbrio hídrico nas áreas plantadas com eucalipto. 2.3. Concentração de terra Outro fator essencial comumente ignorado nas análises das causas de degradação é o problema fundiário da Bacia do Rio São Francisco, a grande e irrestrita concentração que possibilita o uso abusivo das terras e dos recursos naturais, ao tempo em que leva a uma superexploração das áreas dos pequenos agricultores, sem alternativas além do desmatamento total das suas propriedades minúsculas. No Oeste da Bahia a concentração é extrema: dois terços das propriedades rurais têm mais de 500 ha e correspondem a menos de 5% do total de propriedades rurais (Brannstrom e Filippi, 2006: 277). A falta de dados fundiários específicos da Bacia é sintomática. Uma verdadeira revitalização deveria partir do seu mapeamento fundiário, a par da iniciativa de um Zoneamento Econômico Ecológico (ZEE). Na falta de indicadores específicos, usamos como referência dados do Semi-Árido, região de elevada concentração fundiária: 90% das propriedades têm área inferior a 100 ha e detêm apenas 27% da área total dos estabelecimentos agrícolas. Boa parte destas áreas é constituída de terras públicas. Dos quase 23 milhões de hectares de terras estimadas como devolutas na Bahia, cerca de 60% estão na Bacia do São Francisco, segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira (cf. GeografAR, 2006). 2.4. Barragens e hidrelétricas Uma das alterações mais visíveis e abruptas no ecossistema do São Francisco diz respeito às hidrelétricas, primeiro grande e exclusivista uso moderno das águas do Rio. São sete hidroelétricas que modificaram profundamente e para sempre a vida de dezenas de milhares de famílias atingidas e o ecossistema do Rio. Apenas com a construção da barragem de Sobradinho, que por muito tempo foi o maior lago artificial do mundo em espelho d’água (414 mil km2), ocorreu uma remoção forçada de 72 mil pessoas, há 30 anos atrás (cf. Siqueira, 1994). Mais da metade destas pessoas era constituída de camponeses pobres, que dependiam do Rio para viver. Calcula-se em 160 mil pessoas os atingidos por todas essas barragens. Além do imenso impacto social, as barragens tiveram sérios efeitos ambientais negativos, alterando os ciclos de cheia e vazante do Rio e comprometendo a reprodução das espécies ligada a esses ciclos.
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Porque o fluxo das águas passou a ser determinado pelas usinas hidrelétricas, as represas trouxeram uma diminuição drástica na agricultura de vazante, causando uma notável redução das áreas que todos os anos eram fertilizadas pelas enchentes na estação chuvosa. Estas terras eram usadas para lavouras de ciclo curto (como milho, mandioca e feijão), produtos que abasteciam os centros urbanos do Médio São Francisco. Tal modificação do fluxo do Rio foi um golpe arrasador na chamada agricultura de vazante. Como a agricultura tradicional foi inviabilizada, sobretudo no Sub-Médio e Baixo São Francisco, e com a falta de atividades econômicas alternativas, houve impactos sociais muito graves (Coelho, 2005: 124-125). QUADRO IV
CASCATA DAS BARRAGENS NO RIO SÃO FRANCISCO
Fonte: CHESF.
Atualmente, o Rio São Francisco possui apenas dois trechos de águas correntes: 1.100 km entre as barragens de Três Marias e Sobradinho, com tributários de grande porte e lagoas marginais; e 280 km da barragem de Sobradinho até a entrada do reservatório de Itaparica. Daí para baixo transforma-se em uma cascata de reservatórios da Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco (CHESF), como se constata no Quadro IV, acima. Um grave impacto sócio-ambiental das represas se deu por impedir a inundação das lagoas marginais, berçários Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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maiores da vida aquática do Rio. Além disso, as barragens interromperam o ciclo migratório de várias espécies de peixes, entre elas o piau, a matrinchã, o curimatá, o pacu e o pirá (Coelho, 2005: 126). Hoje, a pesca artesanal, sobretudo no Baixo São Francisco, sofre grandes problemas de sobrevivência. Um indicador do tamanho do impacto é a quase extinção nesta região da espécie pirá, peixe exclusivo do Rio São Francisco e que, por isso, o simbolizava. 2.5. Mineração e siderurgia A Bacia do Rio São Francisco detém cerca de 20% do universo da atividade mineral oficial do país. De um total de 11.600 títulos minerários ativos, 2.320 estão inseridos na Bacia e 1.600 são de projetos que efetivamente exploram bens minerais e utilizam água nas suas operações. Isto embasa a constatação de que o setor mineral é um dos grandes usuários de água na Bacia do São Francisco. Por esta representatividade, faz-se necessário um maior controle de seu consumo de água por meio do aumento das fiscalizações nas mineradoras. O tamanho deste desafio fica evidente quando se constata que, segundo estimativas, cerca de 40% da atividade mineral funcionam de forma clandestina. Além do alto gasto de água, a mineração tem fortes impactos, como o rebaixamento de lençóis freáticos, assoreamento e contaminação das águas, solo e ar. Emblemático foi o caso do rompimento ocorrido na barragem de contenção dos rejeitos de uma mina de ferro, em meados de 2001, localizada na subBacia do Córrego dos Macacos, na região das cabeceiras do Rio das Velhas, causando uma poluição desastrosa. E os quarenta anos de contaminação por metais pesados provocada pela industrialização de zinco à beira do São Francisco pela Votorantim Metais, em Três Marias (MG), responsável pela mortandade de dezenas de toneladas de peixes, em especial surubins grandes. Como muitas minas ou garimpos estão localizados em regiões de difícil acesso e os controles e fiscalizações são negligentes ou ineficientes, ocorrências similares devem ser muito mais freqüentes do que chegam ao conhecimento da opinião pública. A destruição da paisagem é outro impacto da mineração pouco conhecido e menos ainda disciplinado e combatido. Do Pico do Itabirito (MG), com 1.586 m de altitude, historicamente muito utilizado como ponto de orientação, sobra apenas a ponta, o resto tendo sido levado pela extração da hematita. A Serra do Curral, em Belo Horizonte, cujo perfil deu origem ao nome da capital mineira, hoje está reduzida a uma casca, escondendo todo o vazio deixado pela mineração.
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2.6. Falta de saneamento básico na Bacia A avaliação da condição atual dos corpos d’água na Bacia do Rio São Francisco mostrou que as principais fontes de poluição são os esgotos domésticos, as atividades agropecuárias e a mineração. Os indicadores de saneamento revelam um quadro preocupante na Bacia, com 49,90% de rede de esgoto e apenas 3,20% de esgotos tratados. Observa-se o lançamento de efluentes industriais e domésticos e a disposição inadequada de resíduos sólidos, comprometendo a qualidade de Rios como Paraopeba, das Velhas, Pará, Verde Grande, Paracatu, Jequitaí e Urucuia. A situação mais crítica é a da Bacia do Rio das Velhas que, além da grande contaminação das águas pelo lançamento de esgotos domésticos da Região Metropolitana de Belo Horizonte, apresenta elevada carga inorgânica poluidora proveniente da extração e beneficiamento de minérios. Somente 33 municípios (7% do total) da Bacia tratam seus esgotos. Igualmente precária é a disposição final de resíduos sólidos realizada de forma inadequada por 93% dos municípios da Bacia (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 2329). Na região do Alto São Francisco, nas sub-Bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba, os problemas identificados têm origem na mineração e na alta concentração populacional. Cerca de 30% da população da Bacia do Rio São Francisco vive na Região Metropolitana de Belo Horizonte exercendo forte pressão sobre os recursos hídricos. 2.7. Desigualdade social e pobreza: injustiça ambiental Esta somatória de degradações acaba, em última instância, impactando mais a parte mais fraca, qual seja, a população pobre da Bacia. Configura-se, assim, uma situação de extrema injustiça ambiental, entendida como a condição de existência coletiva própria a sociedades desiguais onde operam mecanismos sócio-políticos que destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, população de baixa renda, segmentos discriminados pelo racismo ambiental, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis de cidadãos6 Os dados sócio-econômicos mostram que a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco possui acentuados contrastes, abrangendo áreas de acentuada ri6. Cf. www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1593, acessado em 31 de outubro de 2007.
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queza e alta densidade demográfica e áreas de pobreza crítica (ANA/OEA/GEF/ PNUMA et al, 2004b: 16). Ela é caracterizada por densidades demográficas altas em contraste com vazios demográficos, algumas áreas altamente industrializadas e outras de predominância de agricultura de subsistência (ANA/OEA/ GEF/PNUMA et al, 2004a: 42). Os indicadores comumente mais usados são a taxa de mortalidade infantil, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Produto Interno Bruto (PIB). Aplicados à Bacia do Rio São Francisco, temos, pela primeira, que há variações entre 25,66 (MG) e 64,38 (AL) entre 1.000 nascidos vivos; em sua maior parte, a Bacia apresenta valores superiores à média nacional, que é de 33,55, conforme o Censo do IBGE de 2000. O IDH varia entre 0,633 (AL) e 0,844 (DF). Existem municípios com IDH 0,343 (a média brasileira é de 0,769). Por fim, o PIB per capita contempla variações entre R$ 2.275 e R$ 5.239, enquanto a média nacional é R$ 5.740. Sobretudo no Médio, Sub-Médio e Baixo São Francisco, IDHs de menos de 0,5 são comuns. Nestas regiões há poucas “ilhas de prosperidade”, com um IDH acima de 0,62, como os municípios de Petrolina, Juazeiro e Barreiras, onde o agro-negócio suscitou grande crescimento das economias locais. Porém, o grande aumento do PIB destes municípios não produziu efeitos de desenvolvimento social, como mostra o exemplo ilustrativo do Oeste da Bahia, onde se situa o município de Barreiras. Nesta região, reconhecida pelas safras recordes, a riqueza (PIB) aumentou em 245,6% de 1991 a 2000, enquanto no mesmo período a miséria se agravou, a ponto de 71,78% dos 800.000 habitantes da região serem classificados como indigentes (isto é, com renda inferior a meio salário mínimo)7. Na Bahia, estes são 55,30%; no Brasil, 32,34%. Os dados sugerem uma distorcida impressão de “Eldorado”: de fato, a nova riqueza está ainda mais concentrada nas mãos de poucos. A situação de concentração de renda na Bacia é sintomática para o Nordeste, onde o Índice de Gini se elevou, passando de 0,596 para 0,61 entre 1970 e 2000. Uma comparação entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres no Semi-Árido brasileiro revela com maior nitidez a persistência das desigualdades sociais: em 2000, o percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos chegava a 43,7%, enquanto a renda dos 40% mais pobres era de apenas 7,7%. Com isso, fica óbvio que há alguma coisa errada com este modelo econômico. A julgar pelos resultados sociais dos projetos de irrigação, eixo continuado do 7. Dados da Pesquisa UNEB/Barreiras. Cf. “Estudo revela um falso Eldorado”, A Tarde, Salvador, 29 de julho de 2004.
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modelo agrícola e de desenvolvimento, a despeito das iniciativas de revitalização, esse quadro não deve melhorar. Tais projetos não melhoram a vida dos ribeirinhos. A remuneração continua baixa e cresce a prática do trabalho degradante (em 1998, as pessoas diretamente empregadas no perímetro de irrigação tinham um salário médio equivalente a dois salários mínimos). Também não se pergunta pela qualidade dos empregos gerados pela irrigação. Nos perímetros de Juazeiro e Petrolina formaram-se bairros inteiros miseráveis e insalubres, onde as populações empregadas na irrigação aglomeram-se para sobreviver. Tornaram-se mão-de-obra sazonal e barata na irrigação, ora morando nos bairros periféricos, ora morando do lado de fora das cercas e muros que rodeiam os perímetros irrigados, como estranhos, alguns em terras que já foram suas. São aí altíssimos os índices de criminalidade, prostituição e violência. 3. O Programa de Revitalização do Governo Federal
Apesar das denúncias reiterativas sobre o agravamento dos problemas do Rio São Francisco e dos insistentes apelos por medidas de salvação feitos por entidades dentro e fora da Bacia, foi mesmo como manobra pró-transposição o programa oficial de revitalização apresentado pelo governo federal. Ao que consta, foi num seminário promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Regional Nordeste 3 (Bahia/Sergipe), em Salvador, em 1999, que, pela primeira vez, se levantou a bandeira “Transposição, Não; Revitalização, Sim!”. Aos protestos e cobranças, o governo federal reagiu, a partir de 2003, com um programa de revitalização que ganhou visibilidade política desde o avanço do projeto de transposição e da reação popular contrária. 3.1. Concepção e estrutura do programa de revitalização do governo Conforme publicações do programa, as ações de revitalização consistem em obras de saneamento básico e ambiental, como as de coleta e tratamento de esgoto sanitário, de macrodrenagem, de tratamento de resíduos sólidos, de contenção de desmoronamento de barrancas e de controle de processos erosivos, além daquelas destinadas à melhoria da navegabilidade e da recuperação de matas ciliares 8 8. Cf. www.integracao.gov.br/saofrancisco/revitalizacao/index.asp, acessado em 31 de outubro de 2007.
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Já nesta listagem de diversas ações percebe-se a falta de precisão conceitual para elaborar um programa consistente e abrangente. O conceito técnicocientífico de “revitalização” implica na melhoria dos principais aspectos de um ecossistema, recuperando processos e elementos-chave para cessar e reverter o estado degradado do mesmo. O objetivo de medidas de revitalização não é remediar os sintomas de um sistema degradado, mas o combate das causas desta degradação (Woolsey et al, 2005: 21-22). Como todo planejamento, um programa de revitalização deveria partir de um diagnóstico aprofundado. A análise das causas de degradação, abordadas acima de forma muito resumida, ainda é muito incipiente dentro do programa governamental de revitalização. O ZEE da Bacia do São Francisco está sendo elaborado desde 2005 e o Consórcio ZEE Brasil, que congrega, sob a coordenação do Ministério do Meio-Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (MMA), técnicos e especialistas de dezesseis instituições e empresas públicas, ainda está “consolidando a base de informações”, essencial para identificar os diferentes graus de vulnerabilidade ambiental e social na Bacia9. Ele deveria ser um pré-requisito sine qua non para orientar o planejamento do programa de revitalização. O ZEE traz informações sobre as potencialidades, vocações, fragilidades, suscetibilidades e conflitos de um território. Ele deve definir as atividades a serem desenvolvidas em cada compartimento e, assim, orientar a forma de uso, eliminando os conflitos entre tipos incompatíveis de atividades. Sua visão sistêmica propicia a análise de causa e efeito entre os subsistemas físico, biótico, social e econômico (Santos, 2004: 133-137). Como, depois de dois anos de trabalho, ainda não existe nenhuma publicação deste ZEE, sustenta-se a interpretação de que um diagnóstico sólido e suficiente da Bacia não está sendo tratado com a devida prioridade pelos órgãos responsáveis. Outro forte indício dessa avaliação são os recursos. De 2004 a 2006 foram investidos em ações de revitalização do São Francisco R$ 242,5 milhões. Desde 2007 o programa é atrelado ao PAC, que prevê para ações de revitalização no Rio São Francisco um orçamento de 147,7 milhões para 2007, num total de 1,27 bilhões até 2010, verba esta administrada pelo MMA e pelo Ministério da Integração Nacional (MI) (cf. MI, 2007). As principais ações em 2006 foram a construção de Centros de Referência, a instalação de viveiros para cultivo de mudas de plantas nativas, obras de engenharia de contenção das erosões 9. Cf. www.mma.gov.br/ascom/ultimas/index.cfm?id=3703, acessado em 31 de outubro de 2007.
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nas margens e controle de processos erosivos, de desassoreamento e limpeza de rios, de macrodrenagem urbana, obras de esgotamento sanitário em vários municípios e tratamento de esgotos sanitários em alguns outros, construção de galpões de recolhimento de embalagens de agrotóxicos e ações de reflorestamento e cercamento de nascentes, margens e áreas degradadas10. Dos investimentos do MI, em 2005, mais da metade destinou-se a obras de saneamento ambiental. Em 2007 esta porcentagem tende a aumentar. Sem dúvida, as obras de saneamento são de grande importância para a melhoria da qualidade da água do Rio São Francisco. Porém, pode-se questionar a forte priorização das mesmas, tendo em vista as outras causas de degradação igualmente importantes. Com esta concepção e distribuição de investimento, o programa fica refém de uma visão sanitarista de revitalização11. O enfoque centrado em saneamento desconsidera as outras causas de degradação acima referidas. Além disso, perde efetividade em relação à carga total de poluição, uma vez que ela é, em grande parte, oriunda também de resíduos das atividades agrícolas, como agrotóxicos, e da mineração, como metais pesados. Muitas das obras executadas relacionadas ao saneamento ambiental se restringem ao esgotamento sanitário urbano, que garante a coleta mas não o tratamento dos esgotos. Em relação às obras de desassoreamento e contenção de erosão das margens, fica evidente que se trata de ações curativas, que não atingem as causas da erosão relacionadas ao desmatamento descontrolado. Também as atividades de reprodução de mudas e de reflorestamento não são nada mais do que um pingo d’água diante das fortes pressões sobre as matas nativas na Bacia. Dentro do princípio da precaução, o primeiro passo deveria ser a garantia de um ordenamento e controle do uso de solo. Reflorestamento sempre se restringe a uma ação corretiva da depredação das florestas nativas. Especialmente no que diz respeito ao reflorestamento de mata ciliar, cabe ressaltar que a vegetação ao longo da calha do rio por si só não é capaz de conter os processos de erosão em grande escala que se dão nas regiões das cabeceiras, nas áreas de recarga, mais ou menos distantes da calha dos rios da bacia. Um programa 10. Cf. www.integracao.gov.br/saofrancisco/revitalizacao/microbacias.asp REVITALIZACAO_ graficos_no_final.pdf, acessado em 31 de outubro de 2007. 11. O paradigma hidráulico-sanitário representa um paradigma ambiental antropocêntrico quando aborda a água como um recurso natural somente para prestar serviços ao homem, em contraponto ao paradigma ambiental ecológico, que toma a água como fonte da vida, seja ela humana ou outros seres dos ecossistemas.
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de revitalização não pode ser reduzido e simplificado como reflorestamento de mata ciliar, o que parece se tornar símbolo e panacéia da recuperação hidro-ambiental de rios. Numa visão mais abrangente, o programa de revitalização deveria também considerar medidas para garantir um consumo racional da água, evitando a superexploração da vazão do Rio e seus afluentes, sobretudo pela irrigação e mineração. Dentro do programa foram promovidos muitos eventos e reuniões, mas as medidas realizadas são pontuais. A estrutura do programa dá a impressão de uma “colcha de retalhos”, juntando vários projetos requentados, elaborados anos atrás, sob um programa “guarda-chuva” mas sem visão estratégica e sistêmica. Devido à aplicação de parcos recursos em projetos fragmentados, desarticulados e sem continuidade, não existe um programa nem um processo que pense a Bacia no seu conjunto. Em vez de uma pulverização de ações isoladas, é necessário estabelecer um consistente Programa de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido e do Cerrado e da Bacia Hidrográfica do São Francisco, com início, meio e fim, metas plurianuais e indicadores mensuráveis, no contexto do qual seja possível estabelecer uma ação integrada do governo, agentes econômicos e sociedade civil visando o enfrentamento definitivo da falta de água, assim como os conflitos de uso dos recursos naturais e a recuperação hidro-ambiental do Rio e seus afluentes (Coelho, 2005: 223-224). Como explicado acima, as principais causas de degradação do Rio São Francisco estão estreitamente ligadas a problemas estruturais do uso do solo, das águas e dos demais recursos naturais da Bacia. No entanto, o programa do governo calculadamente se desvia destas causas ligadas à produção agrícola de exportação e à mineração. As ações desenvolvidas não alteram ou não influenciam no modelo de uso da terra e na situação fundiária, a principal causa da degradação do Rio, e sequer partem de análises das causas e efeitos do modelo de produção. 3.2. Gestão do programa e falsa participação: Revitalização como barganha da transposição Segundo informações do governo, o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica foi concebido de “forma coletiva e vem sendo aprimorado de modo participativo”12. De fato, foi criado um sistema complexo de instâncias 12. Cf. www.mma.gov.br/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=34, acessado em 31 de outubro de 2007.
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colegiadas formais, em nível federal, estadual e municipal, com o envolvimento da sociedade civil organizada. São eles o Comitê Gestor do Programa de Revitalização, o Grupo de Trabalho da Revitalização, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), os Núcleos de Articulação do Programa (NAPs) e as Comissões Locais de Meio Ambiente e Ação SócioAmbiental (Colméias) (cf. Aroucha, 2007: 1). Contudo, a experiência dos últimos anos mostrou que estas instâncias sempre foram dominadas pelos interesses do governo, que tentou se esconder atrás de organogramas ramificados mas deixou transparecer suas intenções de cooptação. A maioria das Colméias nunca funcionou de fato ou já nem existe mais. Na percepção dos movimentos sociais e entidades de base, os espaços de “participação” foram meramente estratégias de barganha e apaziguamento para viabilizar a conflituosa obra da transposição. O fracasso da estratégia das Colméias fica evidente na agenda do programa de revitalização publicada no site do MMA, que tem uma única reunião de uma Colméia em Minas Gerais agendada. O governo federal responde à cobrança social de revitalização da Bacia do São Francisco e aos protestos contra a transposição com um Programa de Revitalização de “faz-de-conta”, atrelado ao prioritário projeto de transposição. Está clara a estratégia política de instrumentalizar a proposta de revitalização para viabilizar política e socialmente a polêmica transposição. A priorização da obra da transposição e a estratégia de maquiar para manter o modelo vigente de produção responsável pela degradação evidencia-se na análise dos orçamentos (cf. item 3.3., abaixo). A subordinação do programa de revitalização como viabilização social e política da obra da transposição já se mostra no fato de que o programa ser coordenado pelo MMA e pelo MI mas a grande maioria dos recursos (83,1% do orçamento para 2007) ser gerenciada pelo MI, o promotor da Transposição13. Desta forma, fica patente que a finalidade última do programa não é a recuperação ambiental da Bacia do Rio São Francisco mas uma moeda de troca para garantir a aceitação social e política do projeto da Transposição do Rio São Francisco pelos políticos e a população local, na medida em que a gestão dos recursos está submetida a um esquema que favorece o jogo de interesses entre promotores da transposição e lideranças políticas locais da própria Bacia. 13. Apresentação de Maurício Laxe, do MMA, na reunião do Núcleo de Articulação do Programa (NAP-BA), realizada em 24 de maio de 2007.
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Chegou-se mesmo a condicionar os dois programas de governo um ao outro e a dizer que sem transposição não haveria revitalização14. A própria nomenclatura dos programas foi mudando de acordo com essa estratégia e a “Transposição” passou a ser propagandeada como “Integração de Bacias”. Ademais, a maioria das ações de revitalização está sendo executada por meio da Codevasf, a mesma que, ao longo das últimas décadas, cumprindo o papel do Estado indutor do desenvolvimentismo economicista, se destacou como a principal promotora de um modelo de produção degradante da Bacia. Hoje, sob a égide do Estado mínimo, as tomadas de decisões sobre as ações de revitalização são muito mais de cunho político do que técnico e as políticas se tornam ocasiões para “balcão de negócios”. Os projetos financiados pelo programa de revitalização resultam de demandas induzidas e demandas espontâneas, ambas se prestando a injunções de políticos locais ou nacionais sem nenhuma visão estratégica do conjunto de ações. Neste sentido, o programa de revitalização foi criticado por um estudo do Banco Mundial (2005: 67) sobre o projeto da transposição: O conceito de revitalização da Bacia do Rio São Francisco precisa ser discutido e claramente definido para que se possa identificar as ações a serem realizadas, baseando-se em informações técnicas e não apenas em demandas dos Estados [ou municípios] 3.3. Orçamento do programa do governo Analisando os investimentos do programa de revitalização em relação ao projeto da transposição do Rio São Francisco, o Quadro V, a seguir, demonstra claramente as reais prioridades do governo federal em relação ao Rio São Francisco. O orçamento de 1,27 bilhão destinado à ações de revitalização significa uma parcela pequena, se comparado aos 6,6 bilhões previstos no PAC para a obra da transposição. E, não só isso, até para projetos de irrigação o PAC garante mais investimento do que para o programa de revitalização. Para 2007, o PAC já tem garantidos R$ 493,6 milhões para a obra da transposição e R$ 248,6 milhões para a revitalização. Porém, não se tem clareza sobre quantos dos projetos previstos dentro do programa de revitalização 14. Por exemplo, o então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, declarou no Debate sobre a Transposição do Rio São Francisco, ocorrido no dia 24 de maio de 2006, na Universidade Federal Fluminense (UFF), que “se não houver transposição não haverá revitalização”.
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QUADRO V
INVESTIMENTOS PREVISTOS NO PAC
Fonte: Gráfico elaborado a partir de MI (2007).
realmente estão sendo executados15. O que faz pensar sobre os problemas administrativos é o fato de que, anualmente, municípios da Bacia atingidos por barragens de hidrelétricas recebem milhões em royalties16 da CHESF pelo uso da água do Rio para geração de energia. Todavia, pouco se sabe para onde vai este dinheiro, que também poderia ser atrelado a ações de revitalização do Rio em vez de sumir no ralo das contas públicas municipais. É razoável temer que os recursos do programa de revitalização sumirão da mesma forma se não houver mecanismos efetivos de controle social. Caso contrário, podese estabelecer uma “indústria da revitalização” nos moldes da “indústria da seca”, que concentra verbas destinadas a programas de emergência na mão de poucas pessoas, as quais instrumentalizam a implementação das obras de acordo com seus próprios interesses. 15. Mais um indício da falta de transparência do programa: no site do MMA, dentro do Programa de Revitalização, o link “atividades” encontra-se permanentemente “em construção”. Cf. www.mma.gov.br/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=34&idMenu=4429 , acessado em 31 de outubro de 2007. 16. Os maiores beneficiados na Bahia são Remanso (R$ 4.026.040,73), Santo Sé (R$ 7.828.810,54), Sobradinho (R$ 258.403,19), Casa Nova (R$ 5.897.749,79) e Paulo Alfonso (R$ 19.946.160,51) (cf. Agência Nacional de Energia Elétrica/Aneel, www.aneel.gov.br).
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4. Conclusão
O Rio São Francisco precisa de um programa abrangente de revitalização que parta de uma visão ecossistêmica dos problemas da Bacia e ataque de forma igualmente sistemática as principais causas de degradação do Rio. As ações pontuais e paliativas promovidas até agora não bastam para atingir as raízes dos problemas. Além das ações de saneamento básico propostas pelo programa do governo, um projeto de revitalização deve ir além de encarar a poluição direta por emissões urbanas e industriais. Um aspecto essencial é a conservação de lençóis freáticos, nascentes e áreas de recarga para garantia de armazenamento e fornecimento de água na Bacia em volumes suficientes à reprodução do conjunto da vida, diminuição de enxurradas e maiores vazões de estiagem. O problema da recuperação hidro-ambiental do São Francisco somente em parte é um problema de engenharia, ele é também, em muitos aspectos, um problema agrícola e social. Todo esforço de recuperação da Bacia será em vão se o modelo de produção agrícola não for modificado, incorporando práticas de conservação de solo e água. E se o fantasma da transposição não se dissipar no horizonte da Bacia. Neste sentido, soa mais que plausível e necessária,a proposta dos movimentos sociais de “Moratória para o Cerrado”: Não construir, na área da Bacia, nenhuma novo grande projeto, seja de barragem, irrigação, monocultivos, pastagens ou transposição de águas, que implique em desmatamento, erosão de solos e poluição ou perda de águas Desde o seu início, em 1999, o Fórum Permanente em Defesa do Rio São Francisco/Bahia (FPDSF/BA) defende que este seja o primeiro passo para revitalizar o Rio. Devem ser incluídos aí também os projetos industriais que tendem a aumentar na Bacia, sejam mínero-siderúrgicos, sejam agro-industriais. O sucesso do programa de revitalização do Rio São Francisco está igualmente na dependência de uma reformulação nas instituições governamentais que interferem na política do Rio, visto que, segundo Coelho (2005: 142), nesta atuação reina uma “caótica barafunda” e um impasse quase total, o que determina não só a paralisação das atividades como a adoção de medidas que se anulam. No momento, o principal desafio é a interferência abusiva e prejudicial do MI em funções que dizem respeito ao MMA. À guisa de resumo conclusivo-propositivo, diríamos que revitalizar o Rio São Francisco implica em planejar as ações com base no conhecimento da ecologia e hidrologia do Cerrado e do Semi-Árido. A revitalização depende
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Rio São Francisco em descaminho: degradação e revitalização
de fatores ecológicos extremamente complexos e interdependentes. A Bacia do Rio São Francisco é um sistema já bastante fragilizado. Diversos fatores que levam à sua degradação ainda têm que ser estudados antes de se interferir ainda mais, sobretudo diante das ameaças e incertezas do aquecimento global. Um programa de revitalização precisa considerar esta complexidade e aprofundar o enfrentamento das causas de degradação. Por fim, os principais atores sociais a serem envolvidos na elaboração de um programa de revitalização deveriam ser as comunidades tradicionais de pescadores, quilombolas, índios, fundos de pasto e os ribeirinhos em geral, pois são eles que ainda preservem um modo de vida de pouco impacto ao ambiente natural da Bacia e é com eles que se pode aprender muito acerca da preservação do Rio. No entanto, os estudos oficiais da Agência Nacional de Águas (ANA) (cf. ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004a) sequer mencionam tais comunidades. As populações urbanas, crescentemente maioria da Bacia, também precisam de programas específicos, com destaque para a educação ambiental, a fim de envolvê-los efetivamente na redução da degradação e na promoção da revitalização, com mecanismos eficientes de controle social. A revitalização da Bacia do Rio São Francisco somente será verdadeira se o povo ribeirinho, especialmente a população pobre, vítima da injustiça ambiental resultante do processo cumulativo de degradação e que se organiza e se mobiliza para enfrentá-la e combatê-la, for sua efetiva protagonista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANA/OEA/GEF/PNUMA et al. Projeto de gerenciamento integrado das atividades desenvolvidas em terra na Bacia do Rio São Francisco. Programa de ações estratégicas para o gerenciamento integrado da Bacia do Rio São Francisco e da sua Zona Costeira (PAE). GEF São Francisco. Relatório final. Brasília, TDA Desenho & Arte Ltda, 2004a. _____. Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (PBHSF), 2004-2013. Brasília, 2004b. Aroucha, Edvalda P. Colméia pra que te quero? ou Colméia pra que te queremos? Paulo Afonso, Agendha, 2007. (mimeo) Banco Mundial. Impactos e externalidades sociais da irrigação no Semi-Árido Brasileiro. Brasília, 2004. _____. Transferência de água entre Bacias Hidrográficas. Brasília, 2005. Bloch, Didier: As frutas amargas do Velho Chico: irrigação e desenvolvimento no Vale do São Francisco. São Paulo, Livro da Terra; Oxfam, 1996. Brannstrom, Christian e Filippi, Anthony M. “Environemental policies for modern agriculture”. In Hill, Jennifer; Terry, Alan e Woodland, Wendy. Sustainable development: nacional aspirations, local implementation. Londres, Ashgate, 2006, p. 271-291. Coelho, Marco Antônio. Os descaminhos do São Francisco. São Paulo, Paz e Terra, 2005.
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Andrea Zellhuber e Ruben Siqueira
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* Andrea Zellhuber é doutora em Ecologia e assessora do Projeto da Comissão Pastoral da Terra (CPT)/Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco. [andrea.zellhuber@horizont3000.org] ** Ruben Siqueira é mestre em Ciências Sociais (UFBA) e articulador geral do Projeto da CPT/CPP Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco. Do mesmo Autor, ver “O que as águas não cobriram: tempo, espaço e memória” (Cadernos do CEAS, 151: 42-58. Salvador, Centro de Estudos e Ação Social, mai.-jun., 1994). [rubensiq@ibest.com.br]
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O São Francisco
Longe, bem longe, dos cantões bravios, Abrindo em alas os barrancos fundos; Dourando o colo aos perenais estios, Que o sol atira nos modernos mundos; Por entre a grita dos ferais gentios, Que acampam sob os palmeirais profundos; Do São Francisco a soberana vaga Léguas e léguas triunfante alaga! Antemanhã, sob o sendal da bruma, Ele vagia na vertente ainda, Linfa amorosa — co’a nitente espuma Orlava o seio da Mineira linda; Ao meio-dia, quando o solo fuma Ao bafo morto de u’a calma infinda, Viram-no aos beijos, delamber demente As rijas formas da cabocla ardente. Insano amante! Não lhe mata o fogo O deleite da indígena lasciva… Vem — à busca talvez de desafogo Bater à porta da Baiana altiva. Nas verdes canas o gemente rogo Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva… E talvez por magia… à luz da lua Mole a criança na caudal flutua. Rio soberbo! Tuas águas turvas Por isso descem lentas, peregrinas… Adormeces ao pé das palmas curvas Ao músico chorar das casuarinas! Os soltos — retesando as curvas —, Ao galope agitando as longas crinas, Rasgam alegres — relinchando aos ventos — De tua vaga os turbilhões barrentos. E tu desces, ó Nilo brasileiro, As largas ipueiras alagando, E das aves o coro alvissareiro Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Vai nas balsas teu hino modilhando! Como pontes aéreas — do coqueiro Os cipós escarlates se atirando, De grinalda em flor tecendo a arcada São arcos triunfais de tua estrada!… Castro Alves
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João Suassuna*
1. Uma sucessão de projetos fracassados
Já é sabido pelo povo brasileiro que o Brasil é um país pródigo na realização de algumas de suas obras públicas. Os “elefantes brancos”, assim chamados devido à falta de planejamento, vêm se acumulando em todo território nacional, clamando por iniciativas de conclusão por representarem, além de enormes prejuízos ao erário público, desrespeito ao cidadão brasileiro, especialmente o nordestino, que necessita de obras estruturadoras na região para promoção do seu desenvolvimento. Alguns desses exemplos podem ser atestados pela matéria do Diário de Pernambuco de 26 de novembro de 2004, intitulada “Interesse Político no Combate à Seca”, e em notícias veiculadas na internet sobre o abastecimento de Fortaleza (CE) através do Canal do Trabalhador. A notícia do Diário demonstra a importância de se fazer bom uso das águas existentes na Paraíba, aduzindo-as da represa de Coremas para a irrigação do município de Souza, através do projeto denominado Várzea de Souza, e revela, ao mesmo tempo, 1. Exposição realizada no Seminário de Tropicologia da Fundação Gilberto Freyre, realizado em Recife (PE), em 9 de novembro de 2005.
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o descaso havido nesse mesmo projeto com o uso do dinheiro público, numa obra marcada por disputas pelo poder político local, decorrentes da rivalidade existente entre o ex-governador da Paraíba, José Maranhão, e o senador Ronaldo Cunha Lima, pai do atual governador. A iniciativa da realização desse projeto partiu do ex-governador José Maranhão, que o considerava a menina dos olhos do seu governo, por entender a importância de serem utilizadas prioritariamente as fontes hídricas já disponíveis no Estado através de uma política coerente de uso de suas águas interiores. Maranhão investiu cerca de R$ 105 milhões no projeto Várzea de Souza, metade dos quais na construção de 37 quilômetros do Canal da Redenção, objetivando a adução de parte das águas daquela represa até Souza, para a irrigação de cerca de 5 mil hectares. Além do mais, com vistas a auxiliar na infra-estrutura do projeto, foram investidos mais R$ 55 milhões na construção de barragens auxiliares e na aquisição de bombas e tubos. Com tais ações, o governo de José Maranhão deixou pronta a irrigação de 1.320 hectares em uma primeira fase, faltando apenas a continuidade dos investimentos e a necessária vontade política por parte do seu sucessor no governo para a conclusão das obras. Lamentavelmente, passados cerca de dois anos, o atual governador da Paraíba não deu a menor prioridade às ações do referido projeto, o que resultou na não realização da licitação dos lotes a serem irrigados, em avarias no canal construído e em vandalismos na rede de alta tensão. Por enquanto, a água que é conduzida no canal serve apenas para abastecer o pequeno povoado de Aparecida e para algumas poucas captações, a maioria irregular. Em suma, hoje o projeto encontra-se entregue à dura sorte. Outro caso é o Canal do Trabalhador, obra construída às pressas pelo então governador do Ceará, Ciro Gomes, no início da década de 1990, para a solução dos graves problemas de abastecimento da população metropolitana de Fortaleza. Com 110 km de extensão e capacidade para transportar 5 m³/s de água aduzidos do rio Jaguaribe, equivalentes a 70% do consumo da população da capital cearense, o canal encontra-se praticamente inoperante e sem cumprir os objetivos para os quais foi construído: irrigar 40 mil ha em suas margens e auxiliar no abastecimento da Grande Fortaleza. Segundo informações disponíveis, o projeto teve vida curta pois só operou durante sete meses, evitando o colapso no abastecimento daquela capital nordestina. Com as fortes chuvas ocorridas em 2004, os açudes cearenses voltaram a encher e o canal passou a não ter mais a importância demonstrada na época de sua construção. Atualmente, a manutenção do canal se restringe
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à água bombeada do açude de Pacajús, despejada por um tubo plástico no seu leito, para uso na irrigação de uma fazenda particular, e a uma área da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), evitando-se assim que venha a secar e sofrer danos estruturais com as altas temperaturas existentes no local. Essa subutilização do canal decorreu dos bons resultados alcançados pelo programa de interligação de bacias existente no Ceará, que solucionou possíveis desabastecimentos através do seu pronto suprimento com águas oriundas de outras bacias da região em condições de fornecimento, o que, de resto, deveria ser seguido pelos demais Estados da região semi-árida. A situação dos projetos acima referidos é a cara do nosso país. Diante das constatações de falta de planejamento e da existência de “pendengas políticas”, preocupa-nos o fato de não terem prosperado projetos que objetivavam o uso coerente das águas existentes em Estados considerados receptores das águas do Projeto de Transposição do rio São Francisco. A ausência de uma política adequada de gerenciamento hídrico, aliada à falta de vontade política, certamente prejudicou o andamento das ações desses projetos nas referidas regiões. Essas questões nos fazem refletir sobre a possibilidade desses problemas voltarem a ocorrer com o uso das águas do Velho Chico. Quem irá garantir que um canal que leve água do rio São Francisco para o Semi-Árido nordestino não irá ter a mesma sorte (ou azar) dos canais da Paraíba e do Ceará? Os embates políticos e a carência de um adequado planejamento e gerenciamento das águas existentes na região são componentes de uma receita que tem prejudicado o desenvolvimento do Nordeste. A persistir essa falta de respeito para com a coisa pública, o meio-ambiente e a vida do cidadão nordestino, a milionária obra da Transposição em nada irá contribuir para a solução dos problemas hídricos do Nordeste, representando um benefício apenas para os autores do projeto e para as empreiteiras encarregadas de sua construção. 2. Alguns detalhes da transposição
É interessante detalhar algo do projeto a fim de erigirmos uma crítica consistente. Um dos principais objetivos da Transposição do rio São Francisco é possibilitar a segurança hídrica da região Nordeste, o que está sendo chamado de sinergia dos seus principais reservatórios. A idéia das autoridades consiste em abastecer esses reservatórios com as águas do Velho Chico e dar-lhes possibilidade de manter os volumes necessários ao pronto atendimento das demandas hídricas da região. Entendemos que esse processo é desnecessário, ambientalmente danoso e demasiadamente caro diante das possibilidades Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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existentes de acesso ao precioso líquido em cada um dos Estados nordestinos. Além do mais, qual seria a solução mais viável para o problema de abastecimento de água no Nordeste em termos técnicos e econômicos? Utilizar as águas já existentes na região, através de uma política adequada de gerenciamento desses recursos, ou retirá-las das margens do rio São Francisco, a 500 km de distância, para o abastecimento de boa parte de sua população? Na nossa ótica, a primeira alternativa é a mais sensata. De acordo com a Embrapa, do total de precipitação pluviométrica anual no Nordeste, estimado em cerca de 700 bilhões de m³, 642 bilhões são consumidos pelo fenômeno da evapotranspiração e outros 36 bilhões são despejados no mar, em virtude do intenso escoamento superficial existente. O que resta desses quantitativos volumétricos é algo em torno de 22 bilhões de m³, os quais efetivamente são manejados pelos que habitam a região. A esse respeito, o geólogo nordestino Aldo Rebouças afirma em seus trabalhos que bastaria o aproveitamento de 1/3 dos volumes escoados e manejados para o efetivo abastecimento de toda população nordestina (hoje estimada em 47 milhões de pessoas), com uma taxa de 200 litros por pessoa/dia e para a irrigação de cerca de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³ por hectare/ano. Na lógica de Rebouças, a água no Nordeste existe, faltando apenas seu indispensável gerenciamento para o atendimento das necessidades do povo. A existência desses volumes é confirmada através do potencial acumulado nos açudes nordestinos. Estima-se em cerca de 70 mil o número de açudes no Nordeste, os quais acumulam um potencial de cerca de 37 bilhões de m³, considerado o maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo. O doutor em recursos hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), João Abner Guimarães Júnior, avaliando as disponibilidades hídricas dos Estados que receberiam as águas do rio São Francisco (Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte), chegou à conclusão de que no Ceará, por exemplo, existe uma oferta hídrica potencial de 215 m³/s em suas bacias hidrográficas e uma demanda atual de 54 m³/s. No Rio Grande do Norte existe uma oferta potencial de 70 m³/s e uma demanda de 33 m³/s e, por sua vez, a Paraíba, um dos Estados mais problemáticos da região em termos de garantias hídricas, apresenta uma oferta potencial de 32 m³/s e uma demanda atual de 21 m³/s. Essas informações confirmam que não há escassez hídrica nos Estados receptores, não se justificando, portanto, o ingresso das águas do rio São Francisco para fins de abastecimento2. 2. Ver, nesta edição, o artigo do professor João Abner Guimarães Jr., “Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à Transposição do rio São Francisco”, p. 107-117.
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No tocante ao uso das águas das principais represas nordestinas, o Ceará tem-se destacado na região como um dos Estados mais ricos em termos de reservas acumuladas em superfície, sendo pioneiro na interligação de suas bacias hidrográficas, trabalho esse que reputamos da maior importância e que deveria ser seguido pelos demais Estados do Nordeste. Detentor de cerca da metade dos volumes acumulados nas represas nordestinas, com cerca de 18 bilhões de m³ espalhados em 8 mil açudes, o Ceará vem manejando suas águas de forma coerente e abastecendo as populações de acordo com suas necessidades. Aí localizada, a maior represa do Nordeste, o Castanhão, com cerca de 6,7 bilhões de m³, resolveria sozinha todos os problemas de abastecimento da Grande Fortaleza e do Baixo Jaguaribe pelo período de gerações. Já o Rio Grande do Norte possui a segunda maior represa do Nordeste (Armando Ribeiro Gonçalves), com cerca de 2,4 bilhões de m³, capaz de abastecer toda a população potiguar nos próximos vinte anos. Por seu turno, a Paraíba possui as represas Coremas e Mãe-d’água, que, juntas, acumulam um volume estimado em cerca de 1,3 bilhão de m³, resolvendo os problemas de abastecimento das populações de todo o sertão paraibano por um bom período de tempo. De acordo com José Patrocínio, consultor e professor aposentado da Universidade Federal de Campina Grande, a Paraíba possui o reservatório de Boqueirão, com capacidade máxima de acumulação de cerca de 438 milhões de m³, que abastece a cidade de Campina Grande e outras oito pequenas cidades vizinhas. A Região Metropolitana de Campina Grande passou por sérios problemas de abastecimento após o período de seca havido entre 1997 e 1999, agravados, ainda, pela falta de gestão do reservatório e da bacia do Alto Paraíba, com a implantação de sistemas de irrigação mal conduzidos (consumiam 1.000 l/s, no mínimo), além de uma descarga de fundo descontrolada de cerca de 200 l/s. Tais problemas justificaram, na época, o Projeto de Transposição das Águas do rio São Francisco para o interior do reservatório do Boqueirão, através do Eixo Leste do projeto, proporcionando-lhe a sinergia hídrica necessária à garantia da água para o abastecimento da região. Resolvidos os gastos de água desnecessários, através de um gerenciamento coerente em toda a bacia, a represa se encontra, atualmente, com mais de 80% de seu volume preenchido e uma capacidade de regularização, com 100% de garantia, de 1.781 l/s. A população atual atendida pelo reservatório é de 470.000 habitantes, aproximadamente, dos quais 367.874 só em Campina Grande. Segundo a Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), concessionária do serviço de abastecimento e esgotamento sanitário da Paraíba, a vazão bruta retirada do reservatório para Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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abastecimento humano, à taxa de 200 litros por habitante por dia, oscila, hoje, em torno de 1.000 l/s. A projeção da demanda para 2023 (com uma população total de cerca de 530.000 habitantes) atingiria 1.512 l/s. Portanto, Campina Grande e os demais municípios vizinhos atendidos pela represa de Boqueirão têm água suficiente para beber pelo menos nos próximos dezesseis anos, não se justificando, portanto, a realização da Transposição do rio São Francisco para aquela região. Finalmente, circulou na internet a informação de que as autoridades estão pretendendo estender as transferências das águas do São Francisco até o Estado do Piauí. Fala-se em resolver os problemas de abastecimento da região de São Raimundo Nonato e beneficiar onze municípios vizinhos. Essa informação é absurda, se levarmos em consideração a grande riqueza hídrica existente naquele Estado. O Piauí tem o Parnaíba, o segundo maior rio em importância no Nordeste (o primeiro é o Velho Chico), mais 2 bilhões de metros cúbicos de água acumulada em represas que não estão tendo a mínima utilidade e a maior reserva de água de subsolo da região (estimada em cerca de 70% de toda a água existente no sedimentário nordestino), sem falar que, no município de Cristino Castro, no vale do rio Gurguéia, existe uma infinidade de poços jorrantes, não se sabendo ao certo o destino que é dado a essa água. Somadas, essas fontes dão ao Piauí o privilégio de ser o Estado hidrologicamente mais rico do Nordeste. 3. Ingerências políticas regionais
É evidente, após esse pequeno relato, que o Nordeste tem muita água, faltando apenas o indispensável gerenciamento para que se possa ter acesso a ela. Diante dessa constatação, parece-nos existir, na região, a contraditória impressão de se estar morrendo de sede no deserto com água no joelho. A má gestão é evidenciada também quando vemos mais atentamente alguns aspectos financeiros relativos aos planos de Transposição. Por exemplo, foi editada no Diário de Pernambuco de 12 de maio de 2005, um dia após a publicação no Diário Oficial da União da licitação dos lotes previstos no projeto, uma matéria intitulada “Transposição pode ficar 15% mais cara”, na qual o Secretário de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco, Cláudio Marinho, reivindicava maiores volumes do rio São Francisco em benefício do seu Estado. Segundo a reportagem, a idéia era dobrar a vazão original de 10 m³/s aduzida do Eixo Norte do projeto para o açude Entremontes, o que permitiria, naquela represa, uma tomada d’água em volumes suficientes para o abastecimento da região de Ouricurí, alterando o traçado original do Canal
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do Sertão, que previa o transporte de água da barragem de Sobradinho até aquela localidade sertaneja. Já no Eixo Leste, cujo traçado original prevê uma tomada de 8 m³/s, beneficiando a bacia do rio Ipojuca na altura de Arcoverde, o governo pretende a extensão do Ramal do Agreste até Gravatá, onerando em cerca de 15% o custo total do empreendimento. Diante desses novos fatos — não bastasse o encarecimento da obra —, dois pontos precisam ser esclarecidos pelas autoridades pernambucanas, para uma melhor compreensão da população acerca da participação de Pernambuco no projeto. O primeiro diz respeito aos novos volumes que seriam aduzidos do Eixo Norte para o abastecimento da região de Ouricurí, os quais iriam superpor-se ao abastecimento que já vem sendo realizado pela Adutora do Oeste naquela região, cujas águas são bombeadas do Velho Chico na altura de Orocó. Aliás, essas novas ações pretendidas pelo Estado vêm confirmar as críticas feitas por técnicos ambientalistas (aí nos incluímos), segundo os quais a maior parte dos volumes retirados pela Transposição seria utilizada no agronegócio, principalmente na irrigação de frutas, e não no abastecimento das populações necessitadas, conforme apregoado pelas autoridades governamentais. O segundo ponto se refere à qualidade das águas do Eixo Leste que iriam chegar até Gravatá, município pertencente à bacia do rio Ipojuca, cujo caudal encontra-se atualmente em situação deplorável de abandono, com suas águas extremamente poluídas pelo lançamento de esgoto in natura (doméstico e industrial) advindo das cidades ribeirinhas, dentre elas Caruaru, a segunda maior cidade pernambucana, com cerca de 400 mil habitantes. Sem haver, primeiramente, a revitalização da bacia do Ipojuca, o ato de transpor as águas do São Francisco para o seu leito significará, na nossa ótica, desperdício de tempo e dinheiro público, pois o que se irá conseguir com isso é apenas a diluição da água contaminada pelos dejetos humanos que atualmente correm a céu aberto em toda a bacia hidrográfica daquele rio. Essa atitude do governo pernambucano de certa forma não nos surpreendeu. Muito pelo contrário. Cremos que acertamos mais uma vez nas nossas previsões, pois, ao longo de uma década de trabalho, em sua grande parte no tratamento das questões sanfranciscanas, temo-nos deparado com fatos no mínimo curiosos. Os Estados exportadores das águas do rio São Francisco localizados abaixo de Pernambuco (Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais) sempre se manifestaram contrários ao Projeto de Transposição pelo fato de não terem nenhuma participação efetiva no mesmo, sendo apenas meros exportadores de suas águas. Já aqueles localizados acima de Pernambuco (Paraíba, Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Rio Grande do Norte e Ceará) sempre se manifestaram favoráveis, por serem receptores e, portanto, os reais beneficiários de suas águas. Por incrível que isso possa parecer, Pernambuco, ao mesmo tempo exportador e receptor das águas do rio e possuidor dos dois pontos de captação das águas do projeto, sempre se mostrou passivo ao processo transpositório, somente agora, com a oficialização do Projeto, pretendendo entrar no processo reivindicatório para ter acesso ao seu quinhão. Na nossa visão, a edição da matéria do Diário oficializou a participação de Pernambuco, que agora se mostra favorável às ações do Projeto e quer nele tomar partido. Isso é obvio. Apenas gostaríamos de lembrar que o volume atual alocável do rio São Francisco (de 25 m³/s) não é suficiente para a satisfação das demandas exigidas pelo Projeto (uma demandar média de 65 m³/s). Além do mais, a transposição irá operar em sua plenitude em apenas 40% dos anos e, por conseguinte, estará sempre à mercê das águas da represa de Sobradinho, quando esta estiver com 94% de sua capacidade preenchida, o que, segundo a opinião de hidrólogos filiados à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), é um fato de difícil ocorrência. Portanto, não seria possível o fornecimento dos volumes excedentes reivindicados por Pernambuco sem pôr em risco todos os investimentos já realizados ao longo da bacia hidrográfica do rio. Para ter idéia dessa problemática, só no setor elétrico foram aplicados na região cerca de US$ 13 bilhões e o pólo de irrigação, com cerca de 340 mil ha irrigados, vem crescendo a uma taxa de 4% ao ano, exigindo volumes hídricos proporcionais à sua ampliação. Essas características têm resultado em situações conflituosas em ambos os setores (elétrico e irrigacionista), cujo principal agente causador é o uso das águas de um rio que já vem dando sinais de exaustão, tendo como prova principal o racionamento de energia ocorrido em 2001. O que na realidade faltou ao governo de Pernambuco foi o indispensável aprofundamento das discussões técnicas. Estados doadores e receptores firmaram posição desde o início da divulgação das ações do Projeto pelo governo federal e continuam debatendo essas questões interna e externamente, enquanto Pernambuco ficou numa posição de passividade, apenas aguardando as notícias sobre o andamento do Projeto para se posicionar e nada mais. Na nossa ótica, a atitude tomada um dia após a oficialização das licitações dos lotes deixou o Estado em situação desconfortável perante a sociedade científica nordestina. Esse novo momento nos fez relembrar uma nota que editamos na página da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em abril de 2000, intitulada
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As águas do Nordeste e o Projeto de Transposição do Rio São Francisco
Transposição: a gerência da torneira, na qual apontávamos as ingerências políticas como principais responsáveis, numa situação de seca no Nordeste, pela ineficiência no abastecimento das populações, cujos resultados seriam traduzidos em enérgicas ações reivindicatórias, comparadas a verdadeiras reações em cadeia de uma explosão atômica, na busca da água para o atendimento das suas necessidades. 4. Divergências e desavenças
De há muito se sabe das limitações volumétricas do rio São Francisco. O Plano Decenal elaborado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica restringiu o uso para o abastecimento humano e dessedentação animal, em caso de escassez comprovada. Entretanto, as deliberações do Comitê vieram de encontro às expectativas do governo federal, que vem trabalhando no sentido de usar as águas do São Francisco para o agronegócio, num claro desrespeito às possibilidades técnicas e às restrições do Comitê na execução da obra. Tais questões ficaram muito claras nos debates para aprovação do mencionado Plano. As autoridades governamentais não reconheceram o mérito do conteúdo existente no documento elaborado pelo Comitê, principalmente quanto ao uso das águas fora dos limites da bacia do rio, levando a discussão para a esfera do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (instância superior à do Comitê da Bacia) para análise e aprovação, com a inclusão do uso mais abrangente da água (inclusive para o agronegócio). Isso foi conseguido com muita facilidade, dada a ampla maioria de votos do governo federal no âmbito do Conselho. Esse desgaste inicial entre o Comitê e o governo federal não veio em boa hora. Realmente, o Projeto vai ser executado num rio comprovadamente limitado em termos volumétricos, tendo como principal prova disso a crise energética de 2001, ocasião na qual a represa de Sobradinho (que regulariza a vazão do São Francisco) chegou a acumular apenas 5% do seu volume útil. Nesse sentido, é bom lembrar que o rio São Francisco é responsável por mais de 95% da energia gerada no Nordeste. Essas questões foram ratificadas posteriormente num encontro promovido pela SBPC em Recife, em agosto de 2004, por nada menos que quarenta dos principais expoentes da hidrologia nacional, reunidos para discutir a transferência de águas entre grandes bacias hidrográficas, com enfoque especial no Projeto de Transposição do rio São Francisco. Na reunião de Recife, os volumes do rio foram exaustivamente analisados, tendo os técnicos chegado à conclusão que o rio tem um volume alocável de Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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apenas 360 m³/s, dos quais 335 m³/s já foram outorgados, isto é, estão com o direito de uso assegurado. O que resta nesse balanço volumétrico é apenas 25 m³/s para serem utilizados num projeto cuja demanda média será de 65 m³/s, podendo a vazão máxima atingir cerca de 127 m³/s, de forma que o rio já não dispõe, hoje, dos volumes necessários ao atendimento das demandas do projeto. O diferencial volumétrico para satisfazer tais demandas somente será obtido na represa de Sobradinho quando esta estiver com 94% de sua capacidade preenchida, ou seja, quando estiver praticamente cheia. De acordo com os hidrólogos da SBPC, essa aproximação volumétrica só será possível em 40% dos anos, pois a tendência da represa de Sobradinho, desde a época de sua construção, é de encher 4 vezes a cada 10 anos. Portanto, na nossa ótica, o Projeto tem um orçamento demasiadamente elevado para ser utilizado em atividades cujo funcionamento pleno só será possível em apenas 40% dos anos. Para ter uma idéia dessa problemática, a represa de Sobradinho verteu em 1997 e voltou a verter em 2004. Nesses sete anos, a bacia do rio passou por secas sucessivas, culminando, em 2001, com a mais séria crise energética da nossa história. Essas questões têm preocupado as populações ribeirinhas, principalmente as comunidades indígenas que habitam áreas próximas às tomadas das águas do Projeto, receosas que o rio chegue à exaustão e prejudique a agricultura ali praticada. De fato, em função dos volumes retirados e de sua aplicação, podese ter, no rio São Francisco, os problemas já existentes nos rios Colorado, nos Estados Unidos, e Amarelo, na China, cujos caudais já não chegam mais à foz, por conta do uso indiscriminado das águas ao longo de suas bacias. O rio Colorado, por exemplo, recuou 100 km de sua foz, dando lugar à formação de um deserto pelo processo de salinização a que a área de sua primitiva embocadura foi submetida. No caso do São Francisco, isso irá depender da forma segundo a qual serão empreendidas as retiradas dos volumes, principalmente em épocas de estiagens. Quem irá coordenar e de que maneira será feita a abertura e o fechamento das torneiras? As comunidades ribeirinhas têm toda razão de ficarem preocupadas com as incertezas nos gerenciamentos volumétricos das águas e certamente ninguém quer para o Velho Chico a mesma sorte (ou azar) dos rios Colorado e Amarelo. Também é preocupante a inquietação que o Projeto está causando ao povo nordestino. Como já dissemos, as desavenças existentes entre os Estados exportadores e receptores das águas do São Francisco são enormes. Para pôr mais lenha nessa fogueira, o posicionamento oficial do governo de Minas Gerais, contrário ao Projeto de Transposição, certamente irá abalar as determinações
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do atual governo em realizar a obra conforme vinha pretendendo, exigindo novas rodadas de negociações por parte dos nossos dirigentes, sob pena do governo sair arranhado em suas pretensões de criar uma obra grandiosa até o fim de seu mandato. 5. Questões técnicas preocupantes
Algumas questões técnicas relativas ao Projeto devem ser trazidas a público. A construção dos 700 quilômetros de canais a serem abertos em plena caatinga nordestina, localizados em geologia cristalina, os piores solos da região, nos convence do total desconhecimento técnico da região e das implicações desastrosas sobre o ecossistema, as fontes de água e o erário público. Nesse tipo de geologia, os solos são rasos e pedregosos e a rocha que os originam está praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns pontos. Isso significa que a construção de canais (previstos para ter 25 m de largura, 5 m de profundidade e 700 km de extensão) em tal situação volta e meia encontrará rochas em seu traçado, o que demandará, em muitos casos, o uso de explosivos para a desobstrução de seu caminho, dificultando e atrasando o cronograma de execução da obra. Partindo-se da premissa de que, nessas condições, é possível a execução de 100 metros de canal por dia — difícil de ser alcançado devido às dificuldades já relatadas —, seriam necessários cerca de 7 mil dias (ou mais de 17 anos) para a conclusão das obras. Outro aspecto diz respeito ao número de pessoas atendidas pelo Projeto. Segundo as autoridades, serão abastecidas 12 milhões de pessoas no SemiÁrido nordestino. Ora, os Estados receptores das águas do rio São Francisco (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba) possuem uma população de 13,5 milhões de habitantes. Excluídos desse total o contingente populacional já atendido pelo abastecimento de água nas grandes capitais e nos principais centros urbanos, o número de pessoas cai para 9,5 milhões. A pergunta que não quer calar é a seguinte: onde estão esses 12 milhões de habitantes que serão atendidos pelo Projeto? Preocupa-nos, ademais, a informação de que o governo federal pretende desapropriar 2,5 km de terras em ambos os lados dos canais, ao longo de seus 700 km, beneficiando uma área de 350 mil ha de terras para o desenvolvimento da agricultura familiar regional. Sem tirar o mérito e a importância de apoiar a agricultura nordestina, cabe um alerta: com a inexistência de estudos de aptidão de solos nesses locais, fica difícil a obtenção de êxito no empreendimento, já que estas terras, de péssima qualidade (por conta de Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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sua geologia cristalina), não se prestam ao uso em atividades irrigacionistas. Pretender dar apoio à agricultura familiar nessas condições edáficas, com o uso irrestrito das águas do Velho Chico, irá resultar em riscos previsíveis, com conseqüências incalculáveis. Outro assunto que merece ser citado diz respeito ao exagerado índice evaporimétrico existente na região por onde irão passar os canais (estima-se na região semi-árida um potencial evaporimétrico da ordem de 2.000 mm ao ano), o que resultará numa evaporação exacerbada das águas transpostas. As dimensões dos canais já citadas anteriormente e a constante movimentação da água no seu interior irão facilitar sobremaneira as perdas por evaporação. Além do mais, existem as perdas ditas casuais, motivadas pelo desvio da água. Isso será uma realidade, principalmente em comunidades próximas aos canais, as quais, em anos secos, buscarão o abastecimento de qualquer forma, facilitadas que serão pela ausência ou incapacidade da ação de órgãos fiscalizadores na região. Certamente, os volumes de água calculados para o abastecimento dos Estados receptores do Projeto terão que ser revistos, diante das perdas imprevisíveis e inevitáveis num Projeto dessa magnitude. Mais um ponto importante concerne ao custo da água do rio São Francisco para os Estados receptores do Projeto. Segundo informações existentes no Estudo de Impactos Ambientais/Relatório de Impactos Ambientais (EIA-RIMA), o metro cúbico de água custará cerca de R$ 0,11. Esse valor é proibitivo para uso no agronegócio, principalmente em atividades irrigacionistas, se considerarmos o custo cobrado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) aos seus colonos, de R$ 0,023 por metro cúbico. Tudo leva a crer que, para tornar viável o Projeto, as autoridades vão valer-se dos subsídios cruzados, ou seja, as tarifas de águas dos grandes centros urbanos que não receberão as águas do rio São Francisco deverão ser aumentadas para viabilizar o agronegócio. Nesse sentido, já foi divulgada na imprensa de Pernambuco a possibilidade de um aumento na tarifa da água da cidade do Recife de cerca de 30% para a viabilização do Projeto. Finalmente, é oportuno comentar mais uma vez a participação de Pernambuco no Projeto de Transposição quando, em maio de 2005, o governo do Estado sugeriu ao Ministério da Integração que o Eixo Norte fosse substituído pelo Canal do Sertão, alternativa que beneficiaria os melhores solos pernambucanos (cerca de 150 mil ha) e o Eixo Leste fosse acrescido de um Ramal (do Agreste) na altura do município de Arcoverde para possibilitar a chegada da água ao município de Gravatá, na bacia do rio Ipojuca. Naquela ocasião, a
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resposta do Ministério não foi muito animadora, tendo em vista o encarecimento em até 15% (R$ 675 milhões) do custo total da obra (orçada, então, em R$ 4,5 bilhões). Posteriormente, porém, o referido Ministério enviou carta ao governo de Pernambuco confirmando que Pernambuco terá um terceiro eixo (o Eixo Oeste, antigo Canal do Sertão) e que as águas no Eixo Leste, no chamado Ramal do Agreste, chegarão até o município de Pesqueira, encarecendo o projeto dessa feita em cerca de R$ 1 bilhão. Esses assuntos foram tratados na edição do Diário de Pernambuco de 30 de julho de 2005. Não há dúvida que, ao fazê-lo, o governo federal está tentando capitalizar o apoio político do governador Jarbas Vasconcelos com um Projeto fadado ao fracasso. Considerávamos, antes, que o principal empecilho era o custo, pois a substituição do Eixo Norte pelo Canal do Sertão e a extensão do Ramal do Agreste até Gravatá, como proposto inicialmente, iria onerar a obra em torno de 15%. Agora, falam num custo de cerca de R$ 1 bilhão. O governo federal não tem dinheiro para isso. Para piorar o quadro, lembramos que a obra teve embargadas suas atividades pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a partir de liminar concedida pela Justiça Federal da Bahia, a qual proibiu o início das obras por causa de pendências ambientais. O Tribunal de Contas da União (TCU) também detectou possíveis irregularidades na licitação em curso. Para complicar ainda mais a situação, o Nordeste brasileiro começará a enfrentar o risco da falta de energia elétrica já a partir de 2009. Essa assertiva foi prognosticada pela Operadora Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que, em 9% dos 2.000 cenários utilizados em simulações, apontou para um déficit de 1% da carga local, o que significa dizer que, naquele ano, a demanda de energia elétrica estará 87 MW médios acima da oferta da região. Vale esclarecer que o nível considerado seguro pela ONS é de um percentual abaixo de 5% nas simulações realizadas. Portanto, com a participação de Pernambuco e a nova estrutura físico-financeira imposta ao projeto, é possível prognosticar o agravamento da situação hidrológica do rio, inclusive com possibilidade de colapso nos fornecimentos volumétricos futuros. No cenário acima descrito, a inclusão da proposta pernambucana, usando as águas de um rio que já não dispõe dos volumes mínimos necessários para o atendimento das demandas previstas no projeto original, somada à ameaça real de falta de energia em 2009, é, no mínimo, um ato inconseqüente. Caso o governo federal venha a implementá-la da forma pretendida, causará o caos, pois estará deflagrando a espoleta do desmantelo, com enormes possibilidades Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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do Nordeste voltar a conviver com o fantasma dos feriadões, dos racionamentos e dos apagões. É viver para crer.
* João Suassuna é engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), de Recife (PE). Do mesmo Autor, ver “Potencialidades hídricas do Nordeste brasileiro” (Cadernos do CEAS, 217: 61-81. Salvador, Centro de Estudos e Ação Social, mai.-jun., 2005). [josu@fundaj.gov.br]
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Cartas e Documentos do Jejum
Dom Luiz Flávio Cappio*
Dom Luiz Flávio Cappio, bispo diocesano de Barra (BA), iniciou no dia 26 de setembro de 2005 um período de jejum e oração pela vida do rio São Francisco que durou onze dias, chamando a atenção de todo o país para a transposição do rio e teve repercussão internacional. As cartas e documentos abaixo fazem a crônica deste período. O primeiro documento é a declaração “Uma Vida pela Vida”, que torna público o jejum do bispo. Na carta “Ao presidente Lula”, o bispo anuncia ao presidente sua intenção de jejuar até a abertura de diálogo entre o governo federal e a sociedade civil sobre a transposição. A carta “Ao Povo Nordestino” explica com mais detalhes as razões de seu jejum. A declaração “Que Todos Tenham Vida” marca o encerramento do período de jejum, após a promessa de abertura de diálogo por parte do governo federal, representado pelo então ministro Jaques Wagner, atual governador da Bahia. Na última carta, escrita após o fim do jejum e dirigida ao então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje aposentado, Sepúlveda Pertence, o bispo resume os principais fatos do período. (Equipe de Redação)
I. Declaração uma vida pela vida
Barra, Bahia, Domingo de Páscoa de 2005. Em nome de Jesus Ressuscitado que vence a morte pela vida plena, faço saber a todos: Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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1. De livre e espontânea vontade assumo o propósito de entregar minha vida pela vida do rio São Francisco e de seu Povo contra o Projeto de Transposição, a favor do Projeto de Revitalização. 2. Permanecerei em “greve de fome”, até a morte, caso não haja uma reversão da decisão do Projeto de Transposição. 3. A “greve de fome” só será suspensa mediante documento assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República revogando e arquivando o Projeto de Transposição. 4. Caso o documento de revogação, devidamente assinado pelo Exmo. Sr. Presidente, chegue quando já não for senhor dos meus atos e decisões, peço, por caridade, que me prestem socorro, pois não desejo morrer. 5. Caso venha a falecer, gostaria que meus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, meu eterno irmão e amigo, a quem, com muito amor, doei toda minha vida, em Barra, minha querida diocese. 6. Peço, encarecidamente, que haja um profundo respeito por essa decisão e que ela seja observada até o fim. “Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”. II. Carta ao Presidente Lula
Barra, Bahia, 26 de setembro de 2005. Senhor Presidente Paz e Bem! Quem lhe escreve é Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM, bispo diocesano de Barra, na Bahia. Tive a oportunidade de conhecê-lo por ocasião da passagem do senhor por Bom Jesus da Lapa (BA), na Caravana da Cidadania pelo São Francisco, em 1994. Isto aconteceu pouco tempo depois que fizemos uma Peregrinação pelo rio São Francisco, da nascente à foz, com objetivo de conscientizar o povo ribeirinho sobre a importância do rio para a vida de todos e a necessidade de preservá-lo. Fui-lhe apresentado por meu professor de teologia, Frei Leonardo Boff. Sempre fui seu admirador. Participei ativamente em todas as campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores (PT), alimentando o sonho de ver o povo no poder.
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Cartas e Documentos do Jejum
Desde que o governo Fernando Henrique Cardoso apresentou a proposta de Transposição do rio São Francisco, fomos críticos acirrados deste projeto. Desde então acentuamos a necessidade urgente de revitalização do rio e de ações que garantam o verdadeiro desenvolvimento para as populações pobres do Nordeste: uma política de convivência com o Semi-Árido, para todos, próximos e distantes do rio. Esperávamos do senhor um apoio maior em favor da vida do rio e do seu povo. Esperávamos que, diante de tantos e consistentes questionamentos de ordem política, ambiental, econômica e jurídica, o governo revisse sua disposição de levar a cabo este projeto que carece de verdade e de transparência. Quando cessa o entendimento e a razão, a loucura fala mais alto. Em meu gesto não existe nenhuma atitude anti-Lula neste momento delicado da vida nacional. Pelo contrário. Quem sabe seja uma maneira extrema de ajudá-lo a entender pelo coração aquilo que a razão não alcança. Tenha certeza, é um profundo testemunho de amor à vida. Minha vida está em suas mãos. Receba minha saudação fraterna e amiga, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM III. Carta ao povo nordestino
Cabrobó, Pernambuco, 30 de setembro de 2005. Queridos irmãos e irmãs nordestinos, do Ceará, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Pernambuco, Estou desde o dia 26 de setembro de 2005, dia do aniversário de São Francisco, em jejum e oração permanente. Estou em Cabrobó, Pernambuco, às margens do rio São Francisco, numa capela dedicada a São Sebastião. Minha disposição, amadurecida e lúcida, é de dar a minha vida pela vida do rio São Francisco e de seu Povo, contra o Projeto de Transposição e em favor de soluções verdadeiras e sustentáveis para a região semi-árida. Há mais de trinta anos, buscando ser fiel a Jesus Cristo e a meu pai São Francisco, identifiquei minha vida sacerdotal com o rio São Francisco e seu Povo. Neste momento, apenas procuro manter-me coerente com esta opção. Não quero morrer, mas quero a vida verdadeira para o rio São Francisco e para o todo o Povo Sanfranciscano e do Nordeste! Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Meu gesto é o último recurso que me resta para fazer o governo federal desistir desta obra insana e mentirosa que é a transposição. Minha luta é também pelo sagrado direito de vocês a ter água boa e vida digna. Não é de maneira nenhuma um gesto contra vocês. Há muito tempo os poderosos querem fazer vocês acreditarem que só a água do rio São Francisco pode resolver os problemas que vos afligem todos os anos no período da seca. Não é verdade. Estes mesmos problemas são vividos a pouca distância do rio São Francisco. Ter água passando próxima não é a solução se não houver a justa distribuição da água disponível. E temos, perto e longe do rio, muitas fontes de água: da chuva, dos rios e riachos temporários, do solo e do subsolo. O que está faltando é o aproveitamento e a administração competente e democrática dessas águas, de modo a torná-las acessíveis a todos, com prioridade para os pobres. Não lhes contam toda a verdade sobre este Projeto de Transposição. Ele não vai levar água a quem mais precisa, pois ela vai em direção aos açudes e barragens existentes e a maior parte, mais de 70%, é para irrigação, produção de camarão e indústria. Isso consta no projeto escrito. Além disso, vai encarecer o custo da água disponível e estabelecer a cobrança pela água além do que já pagam. Vocês não são os reais beneficiários deste projeto. Pior, vocês vão pagar pelo seu alto custo e pelo benefício dos privilegiados de sempre. Não estivesse o rio São Francisco à beira da morte e suas águas fossem a melhor solução para a sede de vocês, eu não me oporia e lutaria com vocês por isso. Tenho certeza que o generoso povo do São Francisco faria o mesmo. Peço-lhes encarecidamente que me compreendam, busquem mais informações corretas de pessoas honestas, se organizam e lutem pela convivência com o Semi-Árido, que é a única e verdadeira saída para todos nós do Nordeste. Senhor, Deus da Vida, ajude-nos! “Louvado sejas, pela Irmã Água, preciosa e casta, humilde e boa!”. Recebam meu abraço e minha benção, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM Bispo Diocesano da Barra (BA)
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Cartas e Documentos do Jejum
IV. Carta do Ministro Jaques Wagner
Brasília, 5 de outubro de 2005. A Sua Excelência Reverendíssima Dom Luiz Flávio Cappio, OFM Bispo de Barra (BA) Prezado Dom Luiz Flávio, Reiterando proposta de diálogo apresentada anteriormente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governo federal assegura que será prolongado o debate em torno do processo de transposição das águas do rio São Francisco, ainda na fase anterior ao início de obras, para o esclarecimento amplo de questões que ainda suscitem dúvidas e divergências. Além disso, o governo federal dará continuidade e intensificará as obras relativas à revitalização do rio São Francisco. Faremos o máximo empenho para que seja aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda Constitucional, já aprovado no Senado, que assegura um investimento anual de R$ 300 milhões, por vinte anos, para os trabalhos de revitalização do rio. Por fim, o presidente Lula lhe transmite convite para ser recebido por ele no Palácio do Planalto tão logo o senhor estiver restabelecido, com o objetivo de dialogar sobre o mesmo tema. Jaques Wagner Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Relações Institucionais (Palavras manuscritas acrescentadas à carta, pelo ministro, e transmitidas por ele oralmente à CNBB): “Com a autorização do Sr. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, celebro o entendimento com a comunidade, na pessoa de Dom Luiz Flávio Cappio, nos termos em que se somam as duas correspondências” (esta carta, e a declaração com a carta do Bispo ao presidente). V. Declaração que todos tenham vida
Cabrobó, Pernambuco, 6 de outubro de 2005. Em nome de Jesus Ressuscitado que vence a morte pela vida plena, faço saber a todos: Considerando um gesto de grandeza do senhor presidente ao dar continuidade ao diálogo na fase anterior ao início da possível execução das obras de transposição das águas do rio São Francisco. Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Considerando o empenho do governo federal no projeto de revitalização. Considerando que o tempo para o diálogo deva ser suficiente para permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável baseado na convivência em todo o Semi-Árido, para o bem de sua população, priorizando a mais pobre. Declaro: fica suspenso meu jejum em favor da vida. Agradeço, de coração, a todos e a todas que, das mais variadas formas, manifestaram sua solidariedade. Que São Francisco, padroeiro do rio de seu nome, abençoe a todos nós, especialmente o povo do seu rio. Frei Luiz Flávio Cappio, OFM
VI. Carta ao Ministro Sepúlveda Pertence
Barra, Bahia, 10 de novembro de 2005. Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence MD. Ministro do Supremo Tribunal Federal Caro Senhor Ministro, Em primeiro lugar, meus votos de estima e saudação de Paz e Bem, bem como meu sincero agradecimento pela acolhida em seu gabinete. Envio aqui um pequeno “dossiê”, que eu espero possa auxiliá-lo a melhor compreender meu gesto e os termos nos quais foi feito o meu acordo com o governo federal. Também com este objetivo, envio em anexo o texto “Vida para Todos: por isso fiz a greve de fome”. Na Páscoa da Ressurreição, depois de longo discernimento, escrevi a declaração “Uma Vida pela Vida”. Naquele momento, ficou claro para mim que os argumentos de razão estavam sendo todos atropelados pela vontade do governo de fazer a qualquer custo esta obra que carece de verdade e de transparência. Ficou claro que era necessário um gesto que pudesse gritar aquilo que estava sendo desprezado e silenciado. Um gesto que tivesse a força de mostrar a verdade. A partir de então me preparei e preparei minha diocese. Esperei então que o Espírito apontasse a hora certa de iniciar o jejum. A caminho de Cabrobó, enviei uma carta ao presidente Lula.
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Permaneci os 11 dias de meu jejum em uma pequena Capela dedicada ao mártir São Sebastião, na roça de Seu Lídio e dona Isaura, índios do Povo Truká. Na ocasião da visita de solidariedade de agentes de pastoral de todos os Estados nordestinos, escrevi a “Carta ao Povo do Nordeste”, em anexo. Escrevi movido pela necessidade de esclarecer que meu gesto foi também — e essencialmente — em solidariedade ao povo pobre do Nordeste Setentrional, sem dúvida alguma os mais ludibriados pelo marketing do Projeto de Transposição. Descrevo a seguir como se deram as negociações com o governo federal e transcrevo os documentos que as expressaram: 1. No dia 1o de outubro recebi a visita do Senhor Selvino Heck, portando uma carta do presidente da República. Li esta carta junto com o emissário do presidente e pessoas de minha confiança. Depois de ouvir a opinião de cada um, respondi ao presidente nos seguintes termos: Cabrobó, 1o de outubro de 2005. Senhor Presidente, Paz e Bem! Agradeço a visita do amigo Selvino Heck, emissário do senhor e a carta a mim enviada. Reforço o desejo do senhor de levar adiante o Projeto de Revitalização. Confirmo minha decisão de permanecer em jejum e oração enquanto não chegar em minhas mãos o documento assinado pelo senhor revogando e arquivando o atual Projeto de Transposição. Depois de não termos mais, sobre nossas cabeças, o fantasma do Projeto de Transposição, estamos inteiramente abertos para um amplo diálogo e debate nacional, verdadeiro e transparente, discutindo alternativas de convivência com o Semi-Árido e a oportunidade ou não de realizar a transposição. Receba minha saudação fraterna e amiga, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM 2. No dia 6 de outubro, quando entrava no décimo primeiro dia de meu jejum, recebi a visita do ministro Jaques Wagner, emissário do presidente. O ministro trouxe uma carta, por ele mesmo assinada, assegurando “que será prolongado o debate em torno do processo de transposição de águas do rio São Francisco, ainda na fase anterior ao início de obras, para esclarecimento amplo de Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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questões que ainda suscitem dúvidas e divergências”. Novamente lemos a carta junto com pessoas de minha confiança e, após ouvir a opinião de cada um, escrevi de próprio punho uma resposta ao presidente, nos seguintes termos: Sr. Presidente, Paz e Bem! Agradeço pela mensagem do Sr. Ministro Jaques Wagner. Considero um gesto de grandeza do Sr. Presidente a abertura do diálogo e o adiamento do início das obras de transposição de águas do rio São Francisco. Reconheço o empenho do governo federal no Projeto de Revitalização. No entanto, manterei meu jejum e orações até que cheguemos ao seguinte entendimento: O tempo para o diálogo dever ser o suficiente para permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente, até que se construa um Plano de Desenvolvimento Sustentável, baseado na convivência com todo o Semi-Árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres. Desejamos que, através desse amplo debate, cheguemos a soluções que promovam a união e a concórdia para o povo brasileiro, especialmente para os irmãos e irmãs do Semi-Árido. Que o Espírito Santo o ilumine! Aguardo resposta oficial. Com respeito e estima, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM 3. Ao receber esta carta, expressando minha disposição de continuar meu jejum, o ministro Jaques Wagner se dispôs imediatamente a fazer, em nome do presidente da República, os necessários entendimentos. Ficamos os dois durante várias horas na capela. Cada termo do acordo foi pensado, negociado, para que não deixasse nenhuma dúvida. Por várias vezes o ministro consultou seus assessores em Brasília e o próprio presidente Lula. Havia, de ambas as partes, o desejo de resolver o problema. Após este extenuante diálogo, já no início da noite, chegamos aos termos de acordo expressos em minha declaração final “Que Todos Tenham Vida”. Neste acordo celebrado com o ministro Jaques Wagner, com a chancela do presidente Lula, o governo federal se comprometeu a:
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Dar continuidade e intensificar as obras relativas à revitalização do rio São Francisco; Dar continuidade ao diálogo na fase anterior ao início da possível execução das obras de transposição de águas do rio São Francisco; Garantir que o tempo para o diálogo deve ser suficiente para permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável baseado na convivência com todo o Semi-Árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres; Garantir que este amplo debate tenha por objetivo buscar soluções que promovam a união e a concórdia para o povo brasileiro, especialmente os irmãos do Semi-Árido. Ao final, anunciamos o acordo ao povo presente e à imprensa, com a leitura das duas correspondências: a carta trazida pelo ministro e a declaração que detalhadamente discutimos e que escrevi de próprio punho. O ministro Jaques Wagner assim escreveu de próprio punho, acrescentando à carta primeira que havia trazido: “Com autorização do Sr. Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, celebro o entendimento com a comunidade, na pessoa de Frei Luiz, nos termos em que se somam as duas correspondências”. Senhor Ministro, estas informações, que expressam a verdade dos fatos, querem subsidiar sua melhor compreensão do ocorrido. Esperamos que ajudem em seu posicionamento perante delicada questão, que envolve diretamente milhões de cidadãos brasileiros, na Bacia do São Francisco e no Semi-Árido Brasileiro, e o próprio Rio da Integração Nacional. Atenciosamente, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM Bispo Diocesano de Barra
* Luiz Flávio Cappio, OFM, é frei franciscano e bispo diocesano de Barra (BA).
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Greve de fome como pressão popular1
José Comblin*
O que há no Evangelho que pode nos iluminar a propósito dessa atitude? Jesus disse: “Quem quiser salvar sua vida perdê-la-á; mas quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho salva-la-á” (Mc 8,35)2. E mais: “Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncia a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mc 8, 34). O que é a cruz? A cruz é a morte. Com a sua cruz, Jesus vai para a morte. Seguir Jesus é caminhar atrás dele no mesmo caminho: “Se alguém vier a mim sem me preferir ao seu pai, à sua mãe, à sua mulher, aos seus filhos, aos seus irmãos, às suas irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 26)3. 1. Originalmente publicado no dia 17 de outubro de 2005 em vários sítios da Internet como resposta à Carta dirigida pelo cardeal italiano Giovanni Battista Re, prefeito da Congregação para os Bispos e presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, ao bispo Luiz Cappio (Vaticano, 4 de outubro de 2005), bem como à Nota do Núncio Apostólico no Brasil, Dom Lorenzo Baldisseri (Brasília, 7 de outubro de 2005), ambas divulgadas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na sua página eletrônica (www.cnbb.org.br). 2. Tradução da Bíblia Ecumênica. A tradução da Bíblia de Jerusalém é a seguinte: “Aquele que quiser salvar a sua vida, irá perdê-la; mas, o que perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, irá salvá-la”. A tradução de Alonso Schökel, na Bíblia do Peregrino, diz: “Quem se empenha em salvar a vida a perderá; quem perder a vida por mim e pela boa notícia a salvará”. 3. Tradução da Bíblia Ecumênica. Já a Bíblia do Peregrino traduz: “Se alguém vem a mim e não põe em segundo lugar seu pai, sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmão e irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo”.
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Estas palavras dizem que há valores mais importantes do que a vida e que a vida não pode salvar-se a qualquer preço, como se fosse o valor absoluto. O próprio Jesus mostrou isso na sua vida. Na véspera da sua paixão, ele podia muito bem ter fugido, seguindo os conselhos dos seus discípulos. Bastavam alguns poucos dias de marcha e ele estava fora do alcance daqueles que o queriam matar. Ele teve que escolher: fugir ou morrer. Os próprios Evangelhos dizem que a tentação foi forte e a luta foi dura, mas ele resolveu ir ao encontro da morte. Sabia que iam matá-lo, e assim mesmo foi ao encontro da morte. Dom Oscar Romero sabia, tinha a certeza de que iam matá-lo. No entanto, era fácil evitar a morte. Bastava tomar o avião e afastar-se do país. Assim o suplicavam os padres, os agentes de pastoral e até as autoridades eclesiásticas. Era muito fácil. Morreu porque quis. Ficou em San Salvador, sem se esconder. Ele se ofereceu à bala do atirador. Por quê? Por causa do Evangelho. E quantos outros na história? Claro que, na mesma situação, a grande maioria faz a outra opção e foge. Já foi assim nos primeiro séculos. A grande maioria fugiu, se escondeu e escapou. Outros quiseram ficar e oferecer-se à cruz. Claro está que a opção de Jesus é livre. A opção de seguir Jesus também. Cada pessoa pode e deve escolher. Como é que se apresenta a necessidade de fazer uma opção? Não há regras. Não existe um código do martírio. Tudo é pessoal e as circunstâncias históricas variam. Onde e quando se pode dizer que a causa do Evangelho está comprometida? Dom Oscar Romero achou que na matança e na opressão do seu povo o Evangelho estava comprometido e que a fidelidade a Jesus exigia dele que tomasse a sua cruz. Ele a tomou. Não ia ao encontro de um risco de morte. Era uma certeza. Assim como os primeiros cristãos que se negavam a oferecer incenso à imagem do imperador sabiam que isso era a morte. As circunstâncias mudam. Hoje em dia, em lugar nenhum se pede incenso para o presidente da república. No entanto, o grande ídolo atual é o dinheiro. Baixar a cabeça diante dos grandes bancos mundiais é idolatria. Com certeza vão aparecer mártires da luta contra o deus dinheiro. De qualquer maneira, não podemos colocar a vida como valor supremo e tudo subordinar à necessidade de salvá-la. Podemos muito bem descobrir que em casos determinados a defesa dos direitos dos pobres justifica o sacrifício da vida. Quantos morreram porque desafiaram a polícia, os capangas do fazendeiro ou os pistoleiros contratados pelos poderosos?
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O que pode nos estranhar é a modalidade. Fazer greve de fome é diferente de colocar-se na frente do atirador para levar um tiro. A forma exterior é diferente, mas isso não muda a natureza moral do ato. A greve de fome é um meio de ação social relativamente novo mas destinado a um grande futuro na sociedade urbana de comunicação4. Os dominadores dizem que a decisão tomada por um Congresso representa as opções da maioria da população porque os deputados são os representantes da nação. Porém, a experiência mostra que isso é pura ilusão. Os deputados não representam o povo mas certas categorias de interesses. O que aconteceu na Europa mostrou muito bem a ilusão do sistema chamado de representatividade, como se as eleições fossem realmente um sistema democrático. A experiência demonstra que os pobres não têm representação e que os eleitos não levam em consideração as expectativas dos eleitores. Quem ganha as eleições é quem tem dinheiro, salvo poucas exceções. Então, os pobres não têm voz. Dizem que os conflitos devem resolver-se pelo diálogo e pelo debate. Ora, quem está presente nos debates? Intelectuais e representantes das classes dominantes. O povo está ausente de todos os diálogos e de todos os debates. Somente pode haver diálogo entre grupos de força igual. Ora, os pobres não têm força nenhuma e os ricos têm todas as forças. Como pode haver um diálogo? Só haverá diálogo quando os pobres tiverem uma força social suficiente e equivalente à força dos bancos, das multinacionais, das grandes empresas. Até lá o diálogo é engano. Acontece que a greve de fome é um gesto destinado a despertar o povo. É quase a única maneira que um povo tem de mostrar sua presença e pressionar os poderosos. Todos os canais institucionais estão fechados. Para lembrar a 4. Sobre a história da greve de fome, cf. Sharp (1973), que cita os exemplos de Danielo Dolci na Sicília depois da 2a Guerra Mundial e dos nacionalistas irlandeses no tempo das lutas pela emancipação da Irlanda depois da 1a Guerra Mundial, às vezes com o apoio do episcopado irlandês. Também há o exemplo de Gandhi. Sobre o método da greve de fome como método não-violento, ver as apreciações do especialista da não-violência, Muller (1972: 154-159). Por fim, sobre o ponto de vista da moral católica, ver Azpitarte, Elizarri e Rincón (1984, Tomo II: 98), que afirma: “não se considera que a greve de fome seja condenável de modo absoluto, ou seja, em qualquer condição e sob qualquer condição e sob qualquer premissa”. No próprio hiper-ortodoxo Dictionnaire de Théologie Catholique, A. Michel escreve, no Tomo XIV, col. 2748: “O caso da ‘greve de fome’ é particularmente interessante. Fazer greve de fome para conseguir a cessação do cativeiro pode ser lícito se a esperança de libertação tem fundamento e se esta libertação é útil para o bem público”. Cf. Ami du clergé, 1920, p. 399-400; 529-531, a propósito do caso do prefeito de Cork.
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sua existência aos poderosos, os pobres precisam de sinais fortes. Sem esses sinais o medo é sempre mais forte. Neste caso atual, o governo conseguiu que o bispo desistisse da greve, pelo menos de modo provisório. Não creio que o bispo tenha muitas ilusões, mas ele fez um gesto de humildade, procurando acreditar no governo. Mostrou, assim, que era uma pessoa profundamente pacífica. Mas ele é também uma pessoa comprometida. A greve de fome é o último recurso quando não há mais recursos. A outra via é a violência, como na Palestina e no Iraque. O bispo provou que tinha escolhido o caminho pacífico, o que merece admiração e gratidão. Haveria outro recurso? O Congresso? Os partidos? Os tribunais? Todas estas instituições escutam os clamores do povo? Para o povo somente existem caminhos fora das instituições e fora das leis. As leis não foram feitas para lhes facilitar a expressão. A Nunciatura Apostólica em Brasília publicou uma nota divulgada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na qual afirma: “Durante a homilia, o Núncio Apostólico destacou que a vida é um dom de Deus, da qual não somos donos, mas sim administradores: ‘Só Deus é o dono da vida e não podemos tirá-la. Segundo a moral católica, o fim não justifica os meios, mesmo que seja uma nobre causa’”. Ora, a fidelidade ao Evangelho vale mais do que a vida e Deus quer essa fidelidade mais do que a vida. Assim o mostraram os mártires que provocaram sua morte porque rejeitaram os gestos que podiam salvar-lhes a vida. Puderam escolher e escolheram a morte porque havia um valor superior que era a fidelidade ao Evangelho. Quem faz a greve de fome não tira a sua vida, mas pressiona os poderes; cria um risco, mas esse risco existe em outras situações humanas. O padre Damião de Veuster decidiu permanecer entre os leprosos sabendo que ia morrer. Para ele, a caridade valia mais do que a vida e podemos pensar que Deus pensa a mesma coisa. A caridade vale mais do que a vida. Ademais, não se aplica o princípio de que o fim não justifica os meios. O meio não é a morte, como se a morte fosse o meio de conquistar o fim. O meio é a pressão moral que exerce aquele que faz a greve de fome. Essa pressão moral é um risco. No entanto, há na vida muitas situações de risco. A experiência indica que, em sociedades semi-abertas como o Brasil, os poderosos acabam cedendo porque a pressão popular é muito forte. A mesma CNBB comunicou uma carta dirigida pelo cardeal italiano Giovanni Battista Re, atual prefeito da Congregação para os Bispos e presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, ao bispo Luiz Cappio:
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Greve de fome como pressão popular
Os princípios da moral cristã não permitem que leve adiante a sua decisão. É necessário conservar a vida, dom de Deus, e a integridade da saúde Seja-me permitido também expressar um certo desconcerto. Sua Eminência invoca os princípios da moral cristã. Não dá nenhuma referência. Se consultamos os livros de moral católica não encontramos essa condenação. E o senhor Cardeal não invoca nenhum texto do magistério. Ou ele se refere de novo ao princípio do senhor Núncio de que a vida é o bem supremo? A mesma dúvida aplica-se aqui. Como conciliar essas posições com os textos evangélicos e com o próprio comportamento de Jesus, que não fez da vida o bem supremo mas sacrificou a vida por uma causa superior? REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS Azpitarte, E. López; Elizarri, F. J. e Rincón, R. Práxis cristã. São Paulo, Paulinas, 1984. Muller, Jean Maria. Stratégie de l’action non-violente. Paris, Fayard, 1972. Sharp, Gene. “The politics of nonviolent action”. In The methods of nonviolent action. Boston, 1973, p. 363-368.
* José Comblin é teólogo e um dos principais expoentes da Teologia da Libertação.
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Águas e Mágoas do Rio São Francisco
Está secando o velho Chico. Está mirrando, está morrendo. Já não quer saber de lanchas-ônibus nem de chatas e seus empurradores. Cansou-se de gaiolas e literatura encomiástica e mostra o leito pobre, as pedras, as areias desoladas onde nenhum minhocão ou cachorrinha-d’água, cativados a nacos de fumo forte, restam para semente de contos fabulosos e assustados. Ei, velho Chico, deixas teus barqueiros e barranqueiros na pior? Recusas frete em Pirapora e ir levando pro Norte as alegrias? Negas teus surubins, teus mitos e dourados, teus postais alucinantes de crepúsculo à gula dos turistas? Ou é apenas seca de junho-julho para descanso e volta mais barrenta na explosão da chuva gorda? Já te estranham, meu Chico. Desta vez, encolheste demais. O cemitério de barcos encalhados se desdobra na lama que deixaste. O fio d’água (ou lágrimas?) escorre entre carcaças novas: é brinquedo de curumins, os únicos navios que aceitas transportar com desenfado. Mulheres quebram pedra no pátio ressequido que foi teu leito e esboça teu fantasma. Não escutas, ó Chico, as rezas músicas dos fiéis que em procissão Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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imploram chuva? São amigos que te querem, companheiros que carecem de teu deslizar sem pressa (tão suave que corrias, embora tão artioso que muitas vezes tiravas a terra de um lado e a punhas mais adiante, de moleque). É gente que vai murchando em frente à lavoura morta e ao esqueleto do gado, por entre portos de lenha e comercinhos decrépitos; a dura gente sofrida que carregas (carregavas) no teu lombo de água turva mas afinal água santa, meu rio, amigo roteiro de Pirapora a Juazeiro. Responde, Chico, responde! Não vem resposta de Chico, e vai sumindo seu rastro como rastro da viola se esgarça no vão do vento. E na secura da terra e no barro que ele deixa onde Martius viu seu reino, na carranca dos remeiros (memória de outras carrancas, há muito peças de living), nas tortas margens que o homem não soube retificar (não soube ou não quis? paciência), de pontes sobre o vazio, na negra ausência de verde, no sacrifício das árvores cortadas, carbonizadas, no azul, que virou fumaça, nas araras capturadas que não mandam mais seus guinchos
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à paisagem de seca (onde o tapete de finas gramíneas, dos viajantes antigos?), no chão deserto, na fome dos subnutridos nus, não colho qualquer resposta, nada fala, nada conta das tristuras e renúncias, dos desencantos, dos males, das ofensas, das rapinas que no giro de três séculos fazem secar e morrer a flor de água de um rio. Carlos Drummond de Andrade
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Assinatura anual: R$ 40,00 Números avulsos ou atrasados: R$ 12,00 Subscrição de apoio: R$ 60,00 Exterior: para o norte geopolítico: US$ 60,00 para os demais países: US$ 40,00 CENTRO de estudos e ação social — CEAS
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Audiência de Dom Luiz Cappio com o Presidente Lula (notas provisórias)1
Ruben Siqueira* Henrique Cortez**
1. A audiência
1.1. De início, Dom Luiz Flávio Cappio, referindo-se ao curto diálogo que tivera a sós com o presidente, minutos antes, disse que, como combinado, então falara o coração e que agora falaria a razão… Agradeceu o “gesto de grandeza” do presidente em ter suspendido as obras da Transposição na negociação que pôs fim à greve de fome, o que incluía esta audiência, e ter aberto o diálogo que inexistia. Referiu-se ao apoio surpreendente e extraordinário que teve o seu gesto (“milhões de adesões pela Internet”) e entregou ao presidente um calhamaço com milhares delas. Passou, então, a apresentar os documentos resultantes do Seminário Que todos tenham vida, acontecido em 14 e 15 de dezembro de 2005, em Brasília (DF), com a participação de respeitados representantes da sociedade organizada e da academia, lendo a 1. Estavam presentes na audiência, realizada em Brasília (DF), no dia 15 de dezembro de 2005, além do presidente, os ministros Jaques Wagner e Ciro Gomes, e o porta-voz André Singer. Com Dom Luiz Cappio estavam Dom Tomás Balduíno (presidente da Comissão Pastoral da Terra/CPT), Dom Mário Savieri (bispo de Propriá, SE), Dra. Luciana Khoury (Ministério Público da Bahia), Henrique Cortez (ambientalista), Adriano Martins (sociólogo), Leninha (Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas/CAA e Articulação no Semi-Árido Brasileiro/ASA) e Ruben Siqueira (Comissão Pastoral da Terra/CPT-BA). As observações em colchetes são de Henrique Cortez.
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Ruben Siqueira e Henrique Cortez
“capa” e o “índice” (a síntese e os títulos) dos três documentos, comentandoos brevemente e passando-os às mãos do presidente2. 1.2. O ministro Jaques Wagner tomou a palavra dizendo ser necessário reafirmar os termos de Cabrobó (PE): não era iniciar, mas dar continuidade ao diálogo, pois o governo não aceita que não tivesse havido diálogo antes. 1.3. O ministro Ciro Gomes pede a palavra para contestar os termos da apresentação de Dom Luiz Cappio. Começa rechaçando que a revitalização seja uma “farsa”, pois este governo investiu mais que qualquer outro na revitalização e cita números do que está sendo feito em saneamento e recomposição da mata ciliar (mudas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST). Não aceita que não falte água no Nordeste e, ironizando “um professor do Rio Grande do Norte”, tenta contrapor-se aos cálculos do professor João Abner, que confundiria a capacidade dos reservatórios com a água efetivamente disponível… Deu o exemplo de Campina Grande (PB), que sofre uma escassez crônica que a impede de crescer. Disse que a percepção empírica é diferente de quem está lá e de quem vê de fora. Discorre sobre sua experiência como governador do Ceará, quando entrou em colapso o abastecimento de Fortaleza (CE) e ele teve que fazer em tempo recorde o Canal do Trabalhador… Discorda igualmente que o rio São Francisco não agüenta a Transposição. Aqui também haveria uma percepção diferente entre a população do São Francisco e a do Nordeste. Serão apenas 1,4% dos 2.800 m3/s que Sobradinho verte, como neste ano e no ano que vem também. A decisão do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) teria sido egoísta ao definir apenas por 26 m3/s possíveis de serem transpostos se não houver usos para eles na própria bacia. Reafirma que houve ampla consulta à sociedade sobre o Projeto, mas as audiências foram boicotadas, com liminares judiciais e até a mão armada, como em Aracaju (SE), insinuando estar por trás o governador João Alves. Acusa de termos propositalmente (“uma chicana”) deixado para a última hora o pedido de liminar contra a sessão plenária do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) que ia deliberar a favor do Projeto. Insinua que somos bem intencionados mas estamos fazendo o jogo do Partido da Frente Liberal (PFL, 2. Os três documentos são: Por que somos contrários ao Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco para o Nordeste Setentrional, Pauta de Discussão sobre a Bacia Hidrográfica do São Francisco e Pauta de Discussão sobre o Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido Brasileiro.
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Audiência de Dom Luiz Cappio com o Presidente Lula (notas provisórias)
atual Democratas, DEM) da Bahia e de Sergipe. Disse que o governo federal convocou um seminário (o de 9 de dezembro) e enviou 1.500 convites, mas não veio ninguém, sinal de que nós não queremos de fato dialogar… [Ruben contestou dizendo que foi de última hora e a menos de uma semana do Seminário que Dom Luiz Cappio havia convocado, com o intuito de esvaziá-lo…]. 1.4. Dra. Luciana pede a palavra e faz a defesa do Ministério Público e da sociedade quanto às ações impetradas na Justiça, legítimas e estritamente dentro da legalidade, diferentemente do governo, que já iniciou as obras com o Exército, em desrespeito à determinação do Tribunal Regional Federal (TRF) da Bahia. Ao que o ministro Ciro Gomes retrucou dizendo que o Exército está em Cabrobó (PE) a serviço dos Truká… [“Esqueceu-se” que em IcóMandantes, Petrolândia (PE), local de tomada do Eixo Leste da Transposição, não existem Trukás e o Exército está operando.]. 1.5. O presidente Lula toma a palavra e faz uma retomada histórica de sua posição frente ao Projeto de Transposição, desde a proposta do ministro Fernando Bezerra (governo Fernando Henrique Cardoso) que ele encontrou até a entrega ao ministro Ciro Gomes, passando pelo trabalho de consulta solicitado por ele ao vice-presidente José Alencar e pela campanha eleitoral, quando ele, ao contrário de outros, teria tido um mesmo discurso sobre o Projeto, tanto na região doadora quanto na receptora, afirmando que estudaria exaustivamente o assunto e só o faria se fosse viável sob todos os aspectos. E que se ele tomou a decisão de fazê-lo é porque esta viabilidade teria sido comprovada, porque ele não seria irresponsável de fazer isso sem essa comprovação. Todos os cuidados teriam sido tomados. E que o Projeto é ainda mais amplo: prevê a transposição de águas do Tocantins para o São Francisco e para o Parnaíba… Por isso, ele não estaria entendendo a atitude de Dom Luiz Cappio e a nossa. [Daqui para frente, seu tom de voz era quase sempre agressivo.] Sobretudo, o “gesto desagradável” pelo qual “registrou em cartório sua vida em minha responsabilidade”, o que teria sido, para ele, “muito constrangedor”. “Dom Luiz Cappio podia ter conversado comigo antes”, disse. [Interessante é que este foi o mesmo argumento de Frei Betto contra o jejum de Dom Luiz Cappio…]. Discordou veemente da expressão “socialmente injusta” e “insignificante” [não reproduziu o “espacialmente”] referentes à Transposição, no texto lido por Dom Luiz Cappio. Disse que, se discordamos e nos mobilizamos contra o Projeto, outros tantos o fariam a favor, que ele poderia levantar “milhões de assinaturas” defendendo, ter “greves de fome a favor”, que há bispos no Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Nordeste que concordam. Inquiriu mais de uma vez: “Qual o fórum que disso isso?”; “Onde, quando e com quem vamos debater” e “Não aceitam a Transposição mas não querem discutir?”. Afirmou não querer ser “o pai do Projeto”, mas que é possível e ele quer “fazer alguma coisa para minimizar a sede no Nordeste”. Afirmou estar disposto a fazer todos os debates que acharmos necessários (com técnicos, bispos, sindicalistas etc.), além dos muitos já feitos (na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB, na Central Única dos Trabalhadores/CUT etc.), desde que acatemos a decisão que resultar deste processo, que não dá para ficar protelando… Que “o jurídico é bom porque chega uma hora e decide” [Do que se infere estar apenas esperando a decisão favorável do Supremo Tribunal Federal/STF para começar as obras]. Aceita o debate técnico mas não a luta política; que, se é para fazer movimento, luta política, ele também sabe e vai fazer, vai mobilizar quem apóia o Projeto… Fez um desabafo: tem consciência de que está fazendo o certo, “o que é possível dentro da realidade política”, com consciência de que não é o ideal. Disse preservar seu maior patrimônio que é a “cabeça erguida”, com a qual entrou e vai sair da presidência, “voltar para São Bernardo”, para seu mesmo apartamento. Lá não teria “problema de água”… Ele quer fazer algo para resolver a seca no Nordeste, porque ele seria fruto dela (a migração de Pernambuco para São Paulo) e em Santos (SP) trabalhou no porto puxando pesados baldes de água e sabe da dificuldade. “Eu sei o que é falta d’água”, disse. Continuou afirmando que, se somos contra o Projeto de Transposição, é nosso direito ser, mas que temos o dever de mostrar alternativas, que ele está aberto a ser convencido do contrário, mas não sendo vai fazer a Transposição, não pode deixar de fazê-la… 1.6. Dom Luiz Cappio interrompeu para lembrar que inúmeras vezes havia procurado o governo sobre a Transposição, através da assinatura em inúmeros abaixo-assinados ao Planalto, o que de nada adiantou, que, então, não pode ser acusado de não ter procurado antes o governo. Se há real vontade de fazer algo contra a escassez de água no Nordeste, o governo deveria empregar a verba da Transposição em várias pequenas obras que comprovadamente dão mais resultado. Deu o exemplo: os 4,5 bilhões de reais [valor do orçamento da Obra àquela época…] dariam para construir três milhões de cisternas, o que daria duas para cada família do Semi-Árido… 1.7. O ministro Ciro Gomes questionou, ponderando que este dinheiro não existe e que o governo tem que administrar uma grande quantidade de demandas
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legítimas, e que isso é governar, na realidade, não no sonho da oposição. Afirmou que cisternas só não resolvem e o governo as está fazendo, no ritmo da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA), que é lento, o que é bom, pois não teria tanto dinheiro para mais e mais rapidamente. Complementou que aceita as críticas bem intencionadas, mesmo que equivocadas, mas não aceita falas como as de Dom Tomás Balduíno, que acusou a obra de eleitoreira e para “fazer caixa 2” para a campanha eleitoral… Disse que isso não admitia, que era briguento mas jamais desonesto… 1.8. O presidente Lula retomou a palavra para dizer que a Transposição e as cisternas não são incompatíveis, mas complementares, uma atende à população difusa e a outra à população concentrada nos centros urbanos [a mesma posição de Ciro Gomes]. Que administra o dinheiro possível, com excesso de demandas, que a situação dele é “como a de um pai que nega o dinheiro pedido pelo filho porque não tem para lhe dar, mas o filho vai para a rua dizer que o pai é ruim porque não lhe deu dinheiro”… Por fim, afirmou que quer o diálogo, que digamos onde, quando e com quem: “Aproveitem que será a última chance para discutir”. Insinuou que outro governo não vai ser complacente e aberto como ele tem sido com os movimentos sociais. Exigiu que o debate não seja ad aeternum, que precisa chegar a um termo, o qual deve ser acatado por todos. Disse que não podemos impor que seja discutida apenas a nossa proposta, sem querer debater a do governo. Propôs que façamos um calendário de debates, com quem acharmos que deve participar, os setores e as pessoas, mas que isso tenha uma data para acabar. E desafiou: “se é possível resolver a água do Semi-Árido de outro jeito, provem”. Sugeriu que víssemos os resultados da última Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) [que comprovou que caiu a renda dos mais ricos e subiu a dos mais pobres]. Concluindo, declarando que “é por isso que acho que valeu a pena” [passar o que está passando na presidência]. 2. Avaliações críticas
2.1. Confirmou-se plenamente o quanto a greve de fome atrapalhou os planos do governo. Provavelmente não fosse ela e a reação popular que desencadeou a obra da Transposição já teria começado. Isto aponta a retomada da mobilização popular como o que ainda pode fazer a diferença, já que, superada a greve, o governo voltou ao comando das ações e busca remover todos os obstáculos para concretizar a obra. Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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2.2. Ficou claro que a Transposição é uma decisão do governo, com o presidente Lula pessoalmente comprometido com a obra, o que se soma ao empenho (e interesse particular) do ministro Ciro Gomes. Não é este o único grande interessado e promotor da obra, como alguns vinham pensando, imaginando que ele teria se imposto ao governo e este teria cedido. 2.3. Outro aspecto quanto a isto é que o governo não aceita discutir a oportunidade ou necessidade do Projeto de Transposição, isto está fora de cogitação. Aceita, quando muito, agregar algum aperfeiçoamento por ventura trazido pelas críticas. 2.4. Neste sentido, ficou patente a compreensão, por parte do governo, de que nossas propostas são complementares à Transposição, jamais opostas a ela. Na estratégia de cooptação e legitimação, isto é fundamental para eles. Como não cair nessa? [Achamos que nosso pior momento na audiência foi o cálculo de Dom Luiz Cappio das três milhões de cisternas, duas para cada família do Semi-Árido, incluindo água para a produção. Isso deu chance para a complementaridade que eles pretendem impingir. Por outro lado, o aspecto positivo foi a revelação de que o governo não dispõe dos recursos, quer dizer, vai começar uma mega-obra sem dinheiro, confirmando que querem mesmo apenas começar e ficar com os louros (e lucros) disto…] 2.5. O governo prossegue com a estratégia de cooptação, ao propor tantos debates quanto quisermos. É por onde tenta vencer-nos, dar satisfação à sociedade, legitimar a obra. Fica o desafio: como realizar os debates sem produzir este efeito pró-governo? 2.6. Ficou mais do que patente que, afora o aspecto eleitoral, o objetivo do projeto é levar água para uso econômico (principalmente o pólo industrial, tendo a siderurgia como eixo, do Porto do Pecém, na Grande Fortaleza, um dos portos brasileiros mais próximos do Hemisfério Norte…). A segurança hídrica alegada é para o agro e hidronegócio, não o abastecimento humano rural e urbano (para o qual eles sabem, mas não admitem, há água mais que suficiente). 2.7. Com a declaração de Lula de que são três transposições (as outras duas são do Tocantins para o São Francisco e para o Parnaíba), ficou evidente, se ainda não estivesse, que a Transposição do São Francisco é parte de uma infra-estrutura muito maior para o capital globalizado no Nordeste. O desenvolvimento do Nordeste, está decretado, irá por aí, não há alternativa, não se admite a possibilidade de um desenvolvimento com outra e verdadeira sustentabilidade…
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Audiência de Dom Luiz Cappio com o Presidente Lula (notas provisórias)
2.8. Não estamos tendo suficiente e ágil organicidade para responder às demandas urgentes que foram estabelecidas, como a divulgação rápida de uma versão bastante melhorada dos textos produzidos, a preparação dos debates que o governo propõe etc.
* Ruben Siqueira é sociólogo, mestre em Ciências Sociais (UFBA), agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) — Bahia e articulador geral do Projeto Articulação Popular pela Revitalização do Rio São Francisco. [rubensiq@ibest.com.br] ** José Henrique Cortez é ambientalista, com especialização em gerenciamento de riscos (Estados Unidos), vice-presidente e coordenador de Projetos Socioambientais da Câmara de Cultura (Rio de Janeiro) e coordenador do Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br). [henrique@ camaradecultura.org; henriquecortez@ecodebate.com.br]
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Cronologia e documentos do acampamento em Cabrobó (PE)
Entre os dias 26 de junho e 4 de julho de 2007, cerca de 2.000 pessoas ligadas a quase trinta entidades, organizações, movimentos sociais, comunidades e povos tradicionais estiveram na área onde seriam iniciadas as obras do Eixo Norte da Transposição do Rio São Francisco, em Pernambuco. O acampamento reacendeu a discussão pública sobre a Transposição e resultou ainda na mobilização vitoriosa dos índios Truká, que historicamente reivindicam a região como Território Indígena. Abaixo segue uma cronologia do acampamento e os documentos lançados pelos manifestantes. 1. Cronologia
26 de junho O 2 Batalhão de Construção e Engenharia do Exército dá início às obras do Eixo Norte da Transposição do Rio São Francisco. A área de início das obras, localizada no km 29 da BR-428, entre os municípios de Cabrobó (PE) e Orocó (PE) e circundada pelas fazendas Trucutu, Toco Preto e Mãe Rosa, é ocupada por cerca de 2.000 pessoas ligadas a quase trinta movimentos sociais, entidades, organizações, comunidades e povos tradicionais de Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Bahia e Ceará. o
27 de junho Os bispos de Barra (BA), Dom Luiz Flávio Cappio, e de Juazeiro (BA), Dom José Geraldo da Cruz, visitam o acampamento. São organizadas no acampamento as equipes de trabalho e o processo de formação política. O Ministério da Integração divulga falsa informação sobre ter ajuizado ação de Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Documento
reintegração de posse contra o acampamento. Rômulo Macedo, do Ministério da Integração, tenta visitar a área, mas não é recebido. O prefeito de Cabrobó instiga a população a reagir contra os acampados. 28 de junho A Advocacia-Geral da União ajuíza ação de reintegração de posse contra os acampados, que fica a cargo do juiz da 20a Vara Federal de Salgueiro (PE), Georgius Luís Argentini Príncipe Credidio. Os acampados passaram o dia tapando o “buraco do Geddel”, escavado às pressas pelo Exército para a inauguração oficial das obras do Eixo Norte. Além disso, aram a terra, plantam mudas de plantas típicas da mata ciliar e alimentos como feijão, milho, abóbora e melancia. 29 de junho Os acampados celebram o dia de São Pedro enquanto a área é sobrevoada por um helicóptero, e aumenta a movimentação de policiais e soldados. O juiz Credidio concede ainda pela manhã liminar de reintegração de posse contra o acampamento; os manifestantes, reunidos em assembléia à noite, decidem permanecer no local, mesmo após a expedição da liminar, até que sejam oficialmente notificados, quando avaliariam a situação para decidir o que fazer. Os Truká retomam as fazendas Toco Preto e Mãe Rosa, que deveriam ter sido anexadas a seu território há mais de dez anos, quando teve início a demarcação da área. Um trator arou uma área da fazenda e os Truká iniciaram a construção da primeira casa de barro na área. 30 de junho Manifestação em Cabrobó protesta contra a Transposição do São Francisco e relembra o assassinato de dois índios por policiais em 2005, até hoje sem esclarecimento. A ocupação é mantida por cerca de 800 pessoas, que se dedicam ao mutirão para a construção de casas e preparação da terra para a agricultura. Policiais à paisana fotografam e abordam manifestantes durante o ato em Cabrobó. Aumenta o apoio ao acampamento, seja na forma de novas caravanas que chegavam para revezar-se com os acampados, seja na forma de manifestos de solidariedade ou auxílio para a infra-estrutura. O bispo de Floresta (PE), Dom Adriano Ciocca Vasino visita o acampamento.
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Cronologia e documentos do acampamento em Cabrobó (PE)
1o de julho Cresce o número de Trukás no acampamento, que fazem um toré para relembrar o assassinato de dois índios e celebrar a retomada das terras. Policiais à paisana tentam se infiltrar no acampamento. Aumenta o revezamento de grupos no acampamento, enquanto novos documentos de apoio começam a circular. 2 de julho Os governadores de Pernambuco, Eduardo Campos, Rio Grande do Norte, Wilma Faria (ambos do Partido Socialista Brasileiro/PSB), e Paraíba, Cássio Cunha Lima, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), se reúnem em caráter de emergência em Recife (PE) para tratar das manifestações contra a Transposição e decidem intensificar a campanha em favor da mesma. É inaugurada a praça central do acampamento com música, poesia e um jantar coletivo. 3 de julho Novas caravanas chegam de Pernambuco e do Ceará, mas, no fim do dia, a Polícia Militar impede a entrada e saída de pessoas do acampamento, alegando agir sob ordens do comando policial do município. Questionados pela ação e por não haverem apresentado documento algum que justificasse sua ação, um dos policiais afirmou: “o documento somos nós”. 4 de julho Um oficial de justiça, incumbido de notificar os acampados do mandado de reintegração de posse, chegou ao acampamento acompanhado por um representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) e escoltado por agentes da Polícia Federal e policiais militares (fortemente armados e apoiados por helicóptero, ambulância e viaturas). Os acampados, que haviam deliberado manter a ocupação até a chegada da notificação oficial, decidiram sair do acampamento, mas não aceitaram nenhuma ajuda da Polícia Militar para retirar suas coisas do local. Os Truká reocuparam a área dias depois. Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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2. Documentos
2.1. Manifesto do acampamento dos movimentos sociais em Cabrobó O Nordeste é Viável sem Transposição e com Ética na Política De São João a São Pedro, o Nordeste todo se une em sua maior festa. Coincidente com as colheitas no Sertão é a festa da fartura, da solidariedade e da alegria. Do Nordeste viável, auto-sustentável e soberano. Nós, os movimentos populares e entidades civis da Bacia do Rio São Francisco e de todo o Nordeste, viemos festejar em Cabrobó (PE) para mostrar que o Nordeste não precisa deste projeto traiçoeiro chamado “integração de bacias”, a mesma antiga Transposição. Acampados em cerca de 2.000 pessoas junto ao canteiro de obras, no km 29 da BR-428, viemos exigir a imediata suspensão das ações que dão início às obras da Transposição. Em sinal de outro desenvolvimento, voltado para a população e não para o capital, nos irmanamos ao Povo Truká e aos indígenas de todo o Nordeste na retomada desta terra, da Fazenda Mãe Rosa, desapropriada para a Transposição, território Truká desde tempos imemoriais. Água nos açudes e cisternas, caatinga verdejante, comidas de milho, requeijão e paçoca, licores e muito forró ao redor da fogueira… Sinais do Nordeste bonito e viável, evidências do que pode o período chuvoso do Semi-Árido, se para ele deslocarmos o foco, concentrarmos os esforços, investirmos. Ao optar por obra contra a seca e não a favor do Semi-Árido e sua dinâmica sócioambiental, o governo erra mais uma vez, como tem acontecido historicamente. A proposta de conviver com o Semi-Árido — esperava-se desse governo — sepultaria a política e a indústria do combate à seca e consolidaria a política do aproveitamento do chuvoso, pois é neste e não na seca que se decide a vida do sertão e do sertanejo. A Transposição, barganhada em nome de uma falsa revitalização das bacias do Nordeste, significa uma “travessia para o passado”. A questão não é doar água ou não, mas qual desenvolvimento, a que preço e para quem. E como enfrentar os limites impostos pelas mudanças climáticas globais, que tendem a diminuir os mananciais do rio São Francisco e desertificar o Semi-Árido. Este é o terceiro acampamento que fazemos, o último tendo ocorrido em Brasília (DF) por uma semana no mês de março, com 740 pessoas. Já se somam quase uma centena de manifestações públicas. Sequer fomos recebidos, muito menos ouvidos ou considerados. Será por que significamos a incômoda
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verdade sobre esse projeto e o que ele vai trazer de falso desenvolvimento para o Nordeste? Ou é porque vivemos num blefe de democracia? Ditadura de novo, com desenvolvimentismo e até ação do Exército? O processo transcorrido até aqui não foi democrático nem republicano e desabona o projeto, seus promotores e lobistas: estudos de impacto ambiental formais e incompletos; críticas fundamentadas dos principais especialistas; desrespeito às decisões do Comitê de Bacia; descumprimento do acordo feito com Dom Luiz Cappio, ao encerrar a greve de fome, em outubro de 2005, para que houvesse um amplo e sério debate nacional sobre o assunto; incertezas e inverdades quanto às reais motivações do projeto, quanto a seus custos e a quem vai pagar a conta; propaganda enganosa sobre seu alcance, ao manipular a opinião pública e inventar um público beneficiário de 12 milhões de sedentos, na verdade, os que vão pagar a conta dos grandes usos econômicos intensivos em água; irregularidades flagrantes detectadas pelo Tribunal de Contas da União; indícios de corrupção (caso da Gautama, empreiteira candidata ao segundo trecho mais caro da obra); ocultação ao debate público dos Projetos de Transposição do rio Tocantins para os rios São Francisco e Parnaíba; compra descarada de apoio dos políticos do São Francisco, com verbas da revitalização; chantagens de um pseudodesenvolvimento transmutado em crescimento econômico a qualquer custo e sem futuro… São motivos mais que suficientes para que esse projeto seja arquivado. E que a sociedade cobre essa única atitude digna de um Estado de Direito democrático e republicano. Transposição não é solução — esta a verdade que não quer calar! Queremos um programa verdadeiro de convivência com o Semi-Árido! Queremos um projeto de desenvolvimento regional que atenda às reais necessidades da população do Semi-Árido e do São Francisco e não de uma minoria de empresários nacionais e estrangeiros! Queremos a democratização do acesso à água, com acesso livre da população aos açudes e às adutoras! Queremos controle social sobre os usos das águas dos açudes e reservatórios geridos com competência! Queremos destinação prioritária das águas para a agricultura familiar e camponesa! Queremos a implementação imediata das 530 obras do Atlas Nordeste da Agência Nacional de Águas (ANA) para levar água a 34 milhões de habitantes do Polígono da Seca! Queremos programas que ampliem, divulguem e implantem as mais de 140 tecnologias hídricas, agrícolas e ambientais de convivência com o bioma Caatinga e o clima semi-árido! Queremos reforma agrária ampla e efetiva e regularização dos territórios tradicionais, a começar pelas áreas dos Povos Truká, Tumbalalá, Pipipã e Cambiwá, atingidos pela Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Transposição! Queremos a suspensão das barragens de Pedra Branca, Riacho Seco e Pão de Açúcar e de Centrais Nucleares na região! Queremos uma revitalização do rio São Francisco que seja para valer! Queremos que o Supremo Tribunal Federal tome finalmente a decisão e que essa seja contrária ao projeto! Queremos o arquivamento definitivo do Projeto de Transposição! Conviver com o semi-árido é a solução! São Francisco vivo! Terra e água, rio e povo! Cabrobó (PE), 26 de junho de 2007. Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) — Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) — Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MMC) — Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) — Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) — Movimento Nacional dos Pescadores (Monape) — Movimento dos Trabalhadores Acampados e Assentados da Bahia (Ceta) — Sindicato dos Trabalhadores em Água e Esgoto (Sindae) — Cáritas — Conselho Indigenista Missionário (Cimi) — Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) — Comissão Pastoral da Terra (CPT) — Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) — Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) — Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) — Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CREA/BA) — Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro/ AL/SE) — Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) — Federação Sindical e Democrática dos Metalúrgicos de Minais Gerais (FSDM/MG) — Terra de Direitos — Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA) — Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) — Fórum Permanente em Defesa do Rio São Francisco (FPDSF/BA) — Fórum Regional de Desenvolvimento Sustentável do Norte de Minas (FDSNM) — Fóruns de Organizações Populares do Alto, Médio, Sub-Médio e Baixo São Francisco — Frente Cearense Por uma Nova Cultura da Água Contra a Transposição — Projeto Manuelzão/MG — Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) — Colônias de Pescadores — Comunidades Ribeirinhas — Indígenas — Quilombolas —Vazanteiras, Brejeiras, Catingueiras e Geraiseiras da Bacia do Rio São Francisco 2.2. Nota pública de encerramento do acampamento Índios retomam terras e caravanas reforçam atividades contra a Transposição Hoje, dia 5 de julho, por volta das quatro horas da manhã, um grupo de aproximadamente 300 índios ocupou uma fazenda, em Cabrobó (PE). A atividade
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acontece após despejo dos manifestantes que ocupavam desde segunda-feira passada a área onde o Exército deu início às obras do Eixo Norte do Projeto de Transposição do governo federal. Mesmo com o despejo sofrido ontem, a ação não tem prazo para terminar e é reforçada pela legítima reivindicação dos Povos Indígenas. A fazenda ocupada nessa madrugada está a cerca de oito quilômetros do centro da cidade e seu proprietário é conhecido como Tonho da Lalinha. Pela manhã os índios iniciaram a montagem da infra-estrutura para permanecer no local. O objetivo da ocupação é continuar com a retomada de terras do povo Truká e impedir o andamento das obras do Projeto de Transposição do rio São Francisco. Ontem, o Cimi entregou ao Ministério Público Federal (MPF), no município de Serra Talhada (PE), uma representação contra o Ministério da Integração Nacional, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Funai. O documento pede a abertura de um Inquérito Civil Público no sentido de responsabilizar sobre possíveis danos ao meio ambiente e aos direitos dos indígenas. Tecnologias de Convivência com Semi-Árido Os manifestantes despejados ontem permanecem até a tarde no assentamento Jibóia, de trabalhadores ligados ao MST. Pela manhã, mais uma caravana chegou ao local vinda do Ceará. Na programação do dia estão atividades de sensibilização das famílias que vivem no assentamento e nas imediações, assim como nas escolas públicas. O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) faz uma formação sobre alternativas de Convivência com o Semi-Árido. Por fim, os trabalhadores deverão construir uma cisterna de tela e cimento para captação de água da chuva que atenderá ao centro comunitário. O assentamento é formado por cinqüenta famílias que estão no local há dez anos, seis deles como assentadas. No local não há água encanada e os moradores sofrem graves problemas de abastecimento, principalmente para consumo humano. Cabrobó (PE), 5 de julho de 2007. MST — MPA — MMC — MAB — Apoinme — Monape — Ceta — Sindae — Cáritas — Cimi — CPP — CPT — ASA — AATR — PJMP — CREA/BA — Sindipetro (AL/SE) — Conlutas — FSDM/MG — Terra de Direitos — FNRA — RBJA — FPDSF/BA — FDSNM — Fóruns de Organizações Populares do Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Alto, Médio, Sub-Médio e Baixo São Francisco — Frente Cearense Por uma Nova Cultura da Água Contra a Transposição — Projeto Manuelzão/MG — STRs — Colônias de Pescadores — Comunidades Ribeirinhas — Indígenas — Quilombolas —Vazanteiras, Brejeiras, Catingueiras e Geraiseiras da Bacia do Rio São Francisco
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Aspectos jurídicos do Projeto de Transposição do Rio São Francisco e a atuação do Ministério Público brasileiro
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khoury*
1. A defesa do meio ambiente como princípio constitucional
O meio ambiente, conforme pode ser compreendido pela interpretação da Constituição Federal de 1988, reflete a interação entre o meio natural, artificial e cultural, que propicia o desenvolvimento equilibrado de todas as formas de vida. Inclui, portanto, além dos bens naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. Para sua proteção, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. No contexto constitucional, a defesa do meio ambiente é, ainda, um dos princípios da ordem econômica brasileira. Através do artigo 170 da Carta Magna, fica consagrada a adoção, pelo sistema normativo do Brasil, do desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento econômico, portanto, deve estar sempre atrelado à proteção do meio ambiente. Compreendendo que a proteção ambiental pressupõe ainda a qualidade de vida das populações, temos que o conceito de desenvolvimento sustentável deverá incorporar, antes mesmo da dimensão econômica, a dimensão social e ambiental para a sua concretização. Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Dentre os atores que atuam na proteção do ambiente, a Constituição Federal de 1988 delegou também ao Ministério Público essa missão, que passou a desempenhar novo papel na sociedade, sendo sua função zelar pela garantia dos direitos sociais, coletivos e difusos. A nova tarefa institucional trazida requereu dos Ministérios Públicos uma atuação voltada para a proteção dos direitos meta-individuais, ou seja, aqueles que extrapolam o direito individual, podendo tutelar o direito de uma coletividade de indivíduos, a exemplo do direito à saúde, ou mesmo devendo buscar a garantia dos direitos de todos indistintamente, a exemplo do direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e da proteção ao patrimônio público, os quais são chamados de difusos por pertencem a todos indistintamente. Para cumprir com eficiência a missão constitucional, o Ministério Público precisou adotar novas diretrizes, eleger prioridades, modificar a antiga postura dos Promotores de Justiça que apenas atuavam em seus gabinetes. Para defender os direitos da sociedade, os Promotores de Justiça precisam conhecer a realidade, atuar em parceria com os movimentos sociais na busca de uma transformação efetiva da realidade, onde os direitos não sejam mera formalidade, mas criem vida. Os Ministérios Públicos com atuação na Bacia do São Francisco vêm atuando conjuntamente desde 2001 através da Coordenadoria Interestadual das Promotorias de Justiça do São Francisco (CIP), compreendendo que o meio ambiente não conhece fronteiras e que precisa haver uma atuação articulada para uma tutela efetiva da Bacia Hidrográfica, surgindo, assim, uma nova forma de atuação por bacias ou por biomas, sendo esta opção já adotada por Ministérios Públicos de diversos Estados. Como toda a atividade potencialmente poluidora deve ser objeto de apreciação pelo Ministério Público, atuando com vistas a implementar o Princípio da Precaução, não poderia deixar de buscar conhecer e avaliar o Projeto de Transposição. Por essa razão, o Projeto de Transposição não poderia passar sem apreciação dos Ministérios Públicos. Cumpre destacar que a atuação na defesa da Bacia do São Francisco tem sido uma prioridade institucional nos Ministérios Públicos, com projetos destinados à melhoria das condições do ecossistema desta bacia, responsabilizando os agentes causadores de danos ambientais e prevenindo a ocorrência de novos danos, com vistas a promover uma efetiva revitalização do São Francisco. Vale citar como exemplo a atuação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, que tem cinco Promotores de Justiça atuando de modo exclusivo para a defesa do Velho Chico, seja nas atividades de mineração,
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agrotóxico, desmatamentos ou resíduos sólidos, dentre outros danos ambientais detectados, sendo significativo o resultado desta prioridade. Nos Tribunais do Brasil muito se tem discutido sobre a possibilidade de judicialização das questões afetas às políticas públicas. Alguns juristas entendem que não cabe ao Poder Judiciário discutir atos da Administração Pública quando digam respeito às políticas públicas. Entretanto, cada vez ficam mais reduzidos os adeptos dessa teoria. Certo é que deve o Administrador Público promover as ações necessárias a concretização da efetividade dos direitos seja na esfera municipal, estadual ou federal. Para tanto, deverá valer-se como norteadores das suas escolhas os princípios da eficiência, da legalidade, da moralidade, dentre outros e quando não o faz, deve o Ministério Público atuar seja junto ao Poder Judiciário ou extrajudicialmente. Reforça esse entendimento a idéia da discricionariedade limitada do Poder Público trazida por Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo a qual é papel do Ministério Público a discussão das Políticas Públicas adotadas pelos governos. Os conceitos de conveniência e oportunidade, consagrados no âmbito do Direito Administrativo, não deixam de existir, mas devem ser limitados pela própria análise das alternativas postas à disposição do administrador público, de modo que se evite a arbitrariedade de suas decisões e violação aos princípios acima mencionados. Essas noções têm relevância para a discussão do Projeto de Transposição. Nesse sentido, as 14 ações judiciais propostas pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministérios Públicos Estaduais (MPEs), entidades ambientalistas e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dentre outros, que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF), apontam prioritariamente as diversas ilegalidades do Projeto e suas violações à Constituição Federal, às normas de recursos hídricos e as ambientais. Todavia, algumas delas trazem também em seu conteúdo o questionamento à opção desta ação governamental em implementar tal Projeto, uma mega-obra do governo federal que visa “levar água à população difusa do Nordeste Setentrional”. Entretanto, o que se percebe é que, além da obra se destinar a outros usos que não o de matar a sede do povo e dos animais, conforme se demonstrará em seguida, há inúmeras alternativas a este Projeto, pequenas soluções que têm custos reduzidos e envolvem os diversos atores locais da bacia, portanto, com possibilidades muito maiores de realmente resolverem o problema da água no Nordeste. A solução para garantir o acesso à água às populações urbanas dos nove Estados do Nordeste foi apresentada pela Agência Nacional de Águas (ANA) Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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através do Atlas do Nordeste de Abastecimento Urbano de Águas, que traça um diagnóstico preciso da real situação hídrica do Nordeste, apontando soluções mais baratas que a Transposição e com alcance muito maior do que este Projeto escolhido pelo governo. Para a área rural também é possível encontrar alternativas ao Projeto de Transposição, tendo sido elencadas pelos mais diversos sócio-ambientalistas atuantes um total que passa de 140 tecnologias de convivência com o Semi-Árido. Dentre elas, podemos aqui citar a Mandala, a Bomba Popular, a construção de Barragens Subterrâneas e o Projeto 1 Terra e 2 Águas (P1+2), alternativas idealizadas pela população que vive no Cerrado e no Semi-Árido, logo, os maiores entendedores do problema e mais capacitados para apontar soluções para os mesmos, respeitando a biodiversidade local e possibilitando o efetivo acesso à água. Isso porque o Projeto de Transposição jamais alcançará essas famílias que se encontram difusas no Nordeste. Assim, o MPF e os MPEs dos Estados que integram a bacia realizaram diversas Audiências conjuntas com o Ministério da Integração, com a finalidade de melhor conhecer o empreendimento. E, como o conhecimento da matéria ambiental é essencialmente interdisciplinar, foram buscadas as Universidades, bem como a análise técnica da 4ª e 6ª Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF, para a formação de opinião sobre o tema. Após cuidadosa avaliação dos Estudos apresentados, os referidos Ministérios Públicos constataram que o Projeto viola a Constituição Federal, as normas de recursos hídricos e as ambientais. 2. As violações do projeto de transposição
A Constituição Federal foi violada porque o ponto de captação do Eixo Norte localiza-se em Terra Indígena Truká já demarcada, bem como trechos dos canais situam-se em território Truká ainda em processo de demarcação pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Conforme previsto no artigo 49, inciso XVI, é competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar a utilização de recursos naturais em Terra Indígena. Já o seu artigo 231 determina a obrigatoriedade da ouvida das comunidades afetadas com o aproveitamento de recursos hídricos em seu território, o que não ocorreu. As normas de recursos hídricos estão sendo frontalmente desrespeitadas, uma vez que o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), cumprindo com sua obrigação legal e num verdadeiro exercício de democracia e responsabilidade com a sua missão, aprovou o Plano de Bacia, que prevê a possibilidade de alocação externa de água apenas para consumo humano
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e animal, em casos de comprovada escassez. Ocorre que a Transposição se destina à irrigação, à carcinicultura e a usos industriais, já outorgados pela ANA, em flagrante afronta ao CBHSF. Vale ressaltar que os representantes do governo federal no Comitê buscaram descaracterizar as competências do mesmo, o que não foi aceito pelos demais membros que o integram e exercem a cidadania no curso do seu mandato. De igual modo, viola a Lei de Recursos Hídricos e todo o Sistema posto o fato de estar em tramitação o conflito no uso das águas no Comitê de Bacia, suscitado pelas entidades da sociedade civil integrantes do Fórum Permanente de Defesa do São Francisco e posteriormente pelos pescadores do Sub-Médio e do Baixo São Francisco que cobram do Comitê que as águas da Transposição sejam destinadas a usos internos à Bacia. Cumpre dizer que o Comitê tem nesses casos o papel de árbitro dos conflitos de uso e ainda não se posicionou. As normas ambientais foram também violadas pois os Estudos de Impacto Ambiental e os Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) desconsideram os reais impactos negativos na Bacia, apenas observando as áreas dos canais, sendo omissos quanto aos reais impactos no meio físico, biótico e sócio-econômico na Bacia do São Francisco e nas bacias receptoras. Postergaram-se os estudos que deveriam ter sido realizados antes da emissão da primeira licença, que é a Licença Prévia, para a fase posterior, que é a concessão da Licença de Instalação. Vale ressaltar ainda que esses estudos continuaram incompletos, o que foi confirmado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no seu parecer anterior à concessão da Licença de Instalação. Quanto a esse aspecto, o Tribunal de Contas da União (TCU), em Acórdão recente, ao apreciar tais questões, determinou ao Ibama que não mais proceda dessa maneira, pois deverão ser exigidos do empreendedor todos os estudos de impactos possíveis antes de decidir emitir a Licença Prévia, pois é esta quem atesta se o empreendimento é ou não viável ambientalmente. No caso do EIA/RIMA da Transposição, tamanho é o desrespeito às Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que nem antes da Licença Prévia ou da Licença de Instalação foram realizados a contento tais estudos, deixando toda a população brasileira sem qualquer certeza sobre os prováveis impactos do projeto. Cumpre dizer que, pelo Princípio da Precaução, mundialmente aceito, não mais se admitem omissões dessa natureza. Mais recentemente, a 4a Câmara da Procuradoria da República emitiu mais uma importante Nota Técnica que trata das diversas alterações sofridas pelo Projeto, sem que tenham sequer sido objeto de qualquer estudo. Novos traçados dependeriam Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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de novos estudos, já que o Projeto foi sendo modificado na medida em que os Estados receptores reivindicavam novas áreas a serem atendidas, sem que houvesse qualquer estudo. Bem assim, não houve estudo de alternativas ao Projeto de Transposição da forma exigida na Resolução Conama 01/86, pois apenas é comparada a execução do Projeto com as cisternas, ou mesmo com a não realização da obra. Ocorre que a análise deveria ter sido feita comparativamente à execução do Projeto com o conjunto de alternativas de tecnologias sociais para a população difusa, mais a implementação das proposições do Atlas do Nordeste para o meio urbano. 3. A atuação do Ministério Público e demais entidades
Diante de tamanha afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, os Ministérios Públicos expediram Recomendações ao IBAMA, à ANA e ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), buscando o respeito às decisões do Comitê, a complementação dos estudos e o respeito ao direito dos Povos Indígenas, mas não houve qualquer êxito nessa busca extrajudicial de solução. Assim, foram ajuizadas Ações Civis Públicas, sendo o MP da Bahia autor de duas das ações em andamento, em conjunto com o MPF e o Fórum Permanente de Defesa do São Francisco, obtendo duas liminares que suspenderam o Projeto por dois anos. Os MPEs de Minas Gerais e Sergipe também ajuizaram Ações Civis Públicas questionando vícios do projeto. Todas essas ações questionavam as lacunas e omissões nos estudos e, ainda, a inviabilidade na realização de Audiências Públicas sem a complementação dos estudos e sem possibilitar condições materiais de participação para a população, convocadas para locais distantes da Bacia. Apenas como exemplo, na Bahia uma Audiência foi convocada para se realizar à noite, num Hotel 5 Estrelas da capital, distante mais de 500 Km da Bacia. Conforme mencionado acima, são 14 ações judiciais que tramitam, todas no STF, sob a relatoria do ministro Carlos Alberto Direito, que assumiu recentemente a vaga do ministro Sepúlveda Pertence, aposentado em agosto de 2007. Em 18 de dezembro de 2006, o ministro Pertence, ainda em exercício, decidiu permitir a continuidade do licenciamento ambiental, entendendo que não havia dano naquela fase do licenciamento, pois ainda não havia possibilidade de obra, uma vez que não tinha sido concedida a Licença de Instalação. O Procurador Geral da República recorreu dessa decisão, do mesmo modo que as Organizações Não-Governamentais (ONGs), pois o Ministro Relator
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excluiu todas as entidades da sociedade civil, sob o fundamento de que, por se tratar de um conflito federativo, somente os Estados ou o Ministério Público, através do Procurador Geral da República, poderiam agora ser partes. Há que ressaltar que não é esse o nosso entendimento, tendo, sim, todas as entidades autoras das ações legitimidade para propor as ações em defesa do Velho Chico em qualquer instância. Com o curso do licenciamento autorizado, em 27 de março de 2007 foi concedida a Licença de Instalação que autoriza a obra e, em 5 de julho, o Procurador Geral da República levou ao conhecimento do Ministro Relator essa nova etapa do licenciamento ambiental, argumentando em sua petição que não havia sido cumprida a decisão do ilustre Relator, que determinava a realização de Audiências Públicas antes da Licença de Instalação, bem como o estudo de todas as condicionantes previstas na Licença Prévia, o que não ocorrera. O próprio Ibama, em seu parecer anterior à expedição da Licença de Instalação, demonstrou que não houve atendimento total às condicionantes da Licença Prévia, mas, mesmo assim, expediu a Licença de Instalação. Em síntese, encontra-se agora para apreciação do Ministro Relator, agora Carlos Alberto Direito, a petição do Procurador Geral da República, pleiteando ao STF que suspenda as obras de Transposição até que se decida o mérito das ações. Outras medidas foram adotadas pelo Ministério Público, a exemplo do ajuizamento de uma Ação de Improbidade Administrativa movida contra o Procurador da República Dr. Francisco Guilherme contra o presidente do Ibama e o diretor do Licenciamento Ambiental do Ibama da época, que assinou a Licença Prévia em desacordo com a lei. Bem assim, foi provocado o MPF pelos Promotores de Justiça que integram a CIP São Francisco para que se apure o crime de ter sido concedida a licença em desacordo com as normas ambientais, conforme previsto no artigo 67 da Lei 9605/98, ainda em tramitação perante o MPF do Distrito Federal. Durante esses anos, a atuação do Ministério Público na apreciação do Projeto de Transposição possibilitou constatar que o problema do Nordeste não é a falta de água, mas sim a sua democratização. Aliás, como tudo nesse país! Percebe-se claramente que as águas do Projeto não se destinam à população difusa do Nordeste que passa sede, mas sim ao Porto Industrial de Pecém, no Ceará, aos criadores de Camarão do Rio Grande do Norte e aos grandes irrigantes dos Estados. Uma outra conclusão que chegamos é a de que a Administração Pública não observou nem pretende perceber que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, pois tanto no aspecto da democracia quanto Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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na submissão do governo às normas que regem o país está longe de exercer essa condição. Os espaços de democracia relacionados ao Projeto foram todos desrespeitados pelo governo federal, desde às Conferências de Meio Ambiente de 2003 e 2005, que deliberaram contrariamente ao Projeto, até a violação da decisão do CBHSF, passando pelas Audiências Públicas do licenciamento ambiental, muitas das quais sequer ocorreram. De igual modo absurda é a quebra do Pacto de Diálogo firmado, em outubro de 2005, pelo presidente da República com o povo brasileiro, por intermédio de Dom Luiz Flávio Cappio, após a greve de fome do religioso. Ainda no mês de dezembro daquele ano, o Ministério Público esteve presente em audiência com o presidente da República, quando este garantiu a realização do diálogo sobre os temas da Transposição, desenvolvimento sustentável do Semi-Árido e revitalização do São Francisco. O debate ocorreria sem qualquer início de obras. Após debates técnicos em Brasília, seriam as discussões descentralizadas para a Bacia do São Francisco e para o Semi-Árido. A abertura do Diálogo ocorreu precisamente em 6 e 7 de julho de 2006. O combinado era que, após as eleições, retomaríamos as discussões. Passou o período eleitoral, o Natal, o Carnaval, a posse dos ministros e, após muitas cobranças de Dom Luiz Cappio, do Ministério Público e dos diversos segmentos da sociedade, veio a resposta: o Exército em campo. Não é possível acreditar que estamos numa democracia. A Revitalização do São Francisco é a recuperação da Bacia com a conseqüente melhoria dos seus recursos ambientais e da qualidade de vida do seu povo. Medida indispensável que envolve governo federal, governos estaduais, municipais, Ministérios Públicos e toda a coletividade, com mudanças de práticas e de cultura e com investimentos de recursos. Não se pode admitir a proposta da Revitalização como uma moeda de troca da Transposição. Da Revitalização verdadeira o Ministério Público é parceiro e já atua para que seja uma realidade concreta. Quanto à Transposição, não podemos admitir que tamanhas violações ao Estado Democrático de Direito ocorram e, por essa razão, utilizaremos os instrumentos postos em nossa legislação para a Defesa do Velho Chico, esperando que exista Justiça em nosso país!
* Luciana Espinheira da Costa Khoury é promotora e coordena o Projeto de Defesa da Bacia do Rio São Francisco do Ministério Público. [lucianakhoury@mp.ba.gov.br]
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Rio das Rimas (lembrando Guilherme de Almeida no dia de São Francisco)
E ele que nasce pequenino, Franzino, feito um menino Como que juntando gota a gota Depois cresce, aparece E de um fio de pavio Se torna um rio. Vai descendo esguio Feito uma serpentina Que dobra na esquina E cintila na luz matutina. Vai deslizando na terra, Contornando as serras, Como que contornando As curvas dos corpos das meninas. E ele que deveria descer para o sul Decidiu subir para o norte Por sorte mergulha no coração De quem vive no sertão. E desce lento, devagar Como um bicho preguiça Porque não precisa pressa Dessa que o atormenta Pelas mãos sangrentas De seus inimigos. Pois ele já sabe Que basta caminhar Pois o destino de um rio Como já dizia mestre Paulo Freire É um dia tornar-se mar. E onde passa só deixa vida. E deixa nomes: João, José, Maria,
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Toinha, Aninha, Mariquinha Bidó, Trajano, Herculano Numa lista infinda De gente sofrida e bonita De gente permanente e errante Que rima com Bom Jesus da Lapa, Bom Jesus dos Navegantes Ou com nomes do coração Como Senhora da Soledade E Maria da Conceição. E desce machucado, violado, desmatado, Estuprado Carrega nas veias venenos, esgotos, Agrotóxicos, E tem seu corpo cortado por barragens. Parece que morre, mas não morre Permanece com vida, E as aves, os peixes, Os bichos e as árvores Ainda têm lugar para viver ao seu lado. Por isso é um Velho Chico Sempre velho e sempre novo Que quase morto Vive no coração do Povo E que agora pede socorro. Um rio que tem nome de santo Que canto, me encanto, Não canso de falar. Um rio bonito, bendito, Que parece infinito Cujo nome sempre relembro E sempre repito: Rio São Francisco. Roberto Malvezzi (Gogó)
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Elementos para entender a transposição do Rio São Francisco
Altair Sales Barbosa*
1. Os afluentes do São Francisco
Os afluentes da margem esquerda são os principais responsáveis pela perenização do rio São Francisco, pela sua oxigenação e, em última instância, pelo seu nascedouro e existência. A água armazenada neste grande espaço geográfico abrange da Serra da Canastra, ao sul, até a Chapada das Mangubeiras, ao norte, e se limita a oeste pelo Espigão Mestre, que separa Goiás e Tocantins de Minas Gerais e Bahia. Nos Chapadões formados a leste do Espigão Mestre existem grandes depósitos de arenito que constituem a formação geológica denominada Urucuia, de idade cretácea, formada entre 140 e 65 milhões de anos. A formação Urucuia repousa sobre a Formação Bambuí, calcário de idade pré-cambriana e paleozóica inicial, com idade média de 1 bilhão de anos. Essas duas formações geológicas armazenam a água que forma dois grandes aqüíferos, respectivamente denominados Bambuí e Urucuia, responsáveis pelas águas que fazem jorrar a nascente do São Francisco e de todos os seus afluentes da margem esquerda, agrupados em dois grandes conjuntos em função de secções geomorfológicas. O primeiro se situa da Serra da Canastra (MG) à Serra da Capivara, na fronteira entre Minas Gerais e Bahia; o segundo, desta Serra até os contrafortes da Chapada das Mangabeiras, na fronteira entre Bahia, Tocantins, Piauí e Maranhão. Entre os rios do primeiro conjunto se destacam o Abaeté, o Paracatu, Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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o Urucuia, e o Pardo. A partir da Serra da Capivara, um aglomerado de capilares aquosos forma importantes rios como o Carianha, que deságua diretamente no São Francisco, além de uma série de outros importantes cursos d’água, como os rios Pratudão, Pratudinho, Arrojado, Correntina, do Meio, Guará etc., os quais se juntam nas proximidades de Santa Maria da Vitória (BA), dando origem ao rio Corrente, que, por sua vez, deságua no São Francisco, na altura de Bom Jesus da Lapa (BA). Mais ao norte, outro grande conjunto de inúmeros capilares aquosos vêm desde o Jalapão (TO) e se juntam num imenso volume de águas, dando origem ao rio Grande, que deságua no São Francisco na cidade de Barreiras (BA). Todos esses rios são perenes durante o ano inteiro mas, até cerca de trinta anos atrás, seu volume era no mínimo cinco vezes maior que o atual. A partir da década de 1970, as áreas dos chapadões onde se situam as nascentes e os cursos médios desses rios vêm sofrendo uma grande transformação, com a retirada da cobertura vegetal natural para a plantação de grãos e outras plantas exóticas. Este fato tem impedido a realimentação normal dos aqüíferos, contribuindo para o desaparecimento de inúmeros afluentes menores e a diminuição drástica do volume dos cursos maiores. Em outras palavras, o sistema de capilaridade aquosa está sendo drasticamente afetado. Já a maior parte dos afluentes da margem direita do rio São Francisco é formada por rios temporários ou sazonários, que costumam desaparecer na estação seca. Este fenômeno é mais freqüente no norte de Minas Gerais e na Bahia. Contudo, o rio mais importante pela sua margem esquerda não é temporário e se localiza próximo a sua nascente. Trata-se do rio das Velhas, que carrega para o São Francisco todo o esgoto de Belo Horizonte (MG). Por isso é que afirmamos que os afluentes da margem esquerda são responsáveis não só pela perenização do São Francisco como também pela sua oxigenação. Para entender o que poderá acontecer ao São Francisco com a Transposição, que de certo modo altera seu frágil estado de equilíbrio, e de seus afluentes, é importante entender a importância do Cerrado para a manutenção deste equilíbrio, bem como seus principais processos ocupacionais1.
1. Para uma visão mais abrangente do Cerrado, ver a edição especial dos Cadernos do CEAS (no 222, abril/junho de 2006), elaborada conjuntamente pelo Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA) e Rede Cerrado. (Nota da Redação)
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2. O CERRADO E OS PROCESSOS DE OCUPAÇÃO HUMANA
O Brasil possui sete grandes domínios morfoclimáticos e fitogeográticos, sendo que a maior parte, em função de sua história evolutiva, mantém, de certa forma, uma interdependência ecológica, com variados fatores exercendo funções de amenizar, difundir, complementar e, às vezes, suprir o todo. Vejamos tais domínios: 1. Domínio Equatorial Amazônico, situado no Norte e Noroeste do país, abrangendo os baixos platôs tabuliformes, as grandes planícies, subsetores momelonizados florestados e montanhas florestadas das encostas orientais andinas, até 600 metros de altitude. Constitui o grande Domínio do Trópico Úmido, coberto pela floresta úmida amazônica. 2. Domínio Roraima-Guianense, num enclave dentro do Domínio Equatorial Amazônico, na fronteira entre Roraima, Venezuela e Guianas. Constitui o domínio úmido tropical da Gran Sabana, coberto por vegetação campestre denominada de campos do Rio Branco e Tumucumaque. 3. Domínio das Caatingas, localizado em áreas de depressões interplanálticas do Nordeste brasileiro, com clima de caráter semi-árido, drenagens intermitentes e sazonarias. Constitui o Domínio do Trópico Semi-Árido, coberto pela vegetação da Caatinga, conhecido, regionalmente, por Sertões secos. 4. Domínio Tropical Atlântico, na fachada atlântica tropical do Brasil, desde as costas do Rio Grande do Norte até o limite do Trópico de Capricórnio. No seu limite sul, prolonga-se pelo interior, em áreas do oeste paulista e norte do Paraná. Constitui o Domínio Tropical da Mata Atlântica, de caráter úmido e superúmido. 5. Domínio dos Planaltos Sul-Brasileiros (com araucária), situado em áreas planálticas subtropicais atlânticas, cobertas por um velho núcleo de araucárias. 6. Domínio das Pradarias Mistas Subtropicais, localizado na metade sul do Rio Grande do Sul e grande parte do Uruguai. Constitui o Domínio das Coxilhas, com campos e florestas galerias subtropicais. 7. Domínio do Cerrado, típico dos planaltos centrais do Brasil, onde imperam climas tropicais de caráter subúmido com duas estações, uma seca, outra chuvosa. Constitui o grande Domínio do Trópico Subúmido, coberto por uma paisagem que constitui um mosaico de tipos fisionômicos, de campos a áreas florestadas. Esses sete domínios formam, na maior parte dos casos intrincados, sistemas ecológicos independentes. O Domínio do Cerrado dos chapadões centrais do Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Brasil, pela posição geográfica, pelo caráter florístico, faunístico e geomorfológico, constitui o ponto de equilíbrio desses variados domínios, uma vez que se conecta, através de corredores hidrográficos, com esses biomas e com outros continentais. Os chapadões centrais do Brasil, cobertos pelo Domínio do Cerrado, constituem a cumeeira do Brasil e também da América do Sul, pois distribuem significativa quantidade de água que alimenta as principais bacias hidrográficas do Continente. O Domínio do Cerrado abrange os Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal, a parte sul de Mato Grosso, o oeste da Bahia, o oeste e o centro de Minas Gerais, o sul do Maranhão, grande parte do Piauí, prolonga-se na forma de corredor até Rondônia e, de forma disjunta, aparece em certas áreas do Nordeste brasileiro e parte de São Paulo. Ecologicamente, se relaciona às Savanas, e há quem afirme que o Cerrado é configuração regionalizada desta. No Brasil, este tipo de paisagem recebe denominações diferentes de acordo com a região: Gerais, em Minas Gerais e Bahia; Tabuleiro, na Bahia e outras áreas do Nordeste, além de Campina, Costaneira e Carrasco, dependendo da região. Nenhuma dessas designações populares reflete sua totalidade ecológica, referindo-se apenas a uma modalidade fisionômica, às vezes associada a uma ou outra configuração geomorfológica. No mesmo sentido, o paradigma puramente botânico não tem sido suficiente para demonstrar a totalidade e a importância ecológica do Cerrado, uma vez que apenas destaca ou enfatiza parcelas fragmentadas de sua composição. Quando isto acontece, o caráter da biodiversidade, elemento marcante da ecologia do Cerrado, não recebe a importância merecida, nem sequer pode ser compreendida nos seus aspectos fundamentais. Modernamente, a utilização do paradigma biogeográfico tem se demonstrado um referencial de fundamental importância para se entender o Domínio do Cerrado em sua globalidade, definindo os diversos matizes, tanto abertos e umbrófilos, como subsistemas interatuantes e integrantes decisivos de um sistema maior. O conceito biogeográfico tem ressaltado a importância que o Cerrado exerce para o equilíbrio dos demais biomas do continente, além de demonstrar que a principal característica da sua biocenose é a interdependência dos componentes aos diversos ecossistemas. O Cerrado exerceu papel fundamental na vida das populações pré-históricas que iniciaram o povoamento das áreas interioranas do continente sul-americano, as quais desenvolveram importantes processos culturais, moldando estilos de sociedades bem definidos, em que a economia de caça e coleta imprime modelos de organização espacial e social com características peculiares. Os
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processos culturais indígenas que se seguiram a estes modelos trouxeram pouca modificação e, embora ocorresse o advento da agricultura incipiente, exercida nas manchas de solo de boa fertilidade natural existentes no Domínio do Cerrado, a caça e a coleta, principalmente a vegetal, ainda eram fatores decisivos na economia dessas sociedades. A partir do século XVIII, o panorama regional começou a sofrer sensíveis modificações em virtude do incremento da colonização que se embrenhava pelo interior do país em busca de ouro, pedras preciosas e índios escravos. Nesse contexto, e a partir dessa data, surgiram os primeiros aglomerados urbanos e a exploração mais intensa dos recursos minerais que começava a se incrementar, provocando os primeiros sinais de degradação. Findo o ciclo da mineração, a região do Cerrado permaneceu economicamente dedicada à criação extensiva de gado e à agricultura de subsistência. Alguns desses modelos econômicos chamados de agricultura familiar ainda existem em espaços localizados até os dias atuais, e outros modelos, ainda mais simples, baseados no extrativismo, são também adotados por populações caboclas, habitantes atuais de espaços definidos. O isolamento que a região manteve em relação às áreas mais populosas e economicamente dinâmicas do Brasil até meados da década de 1950 fez com que este quadro permanecesse basicamente inalterado, fato que a implantação de Brasília (DF) alterou consideravelmente, desestruturando os sistemas sociais implantados e causando entropias2 de ordem biológica. O potencial do Cerrado, estimado em 65% de sua área (cerca de 130 milhões de ha), associado ao fato de ser uma das últimas reservas da terra capaz de suportar, de modo imediato, a produção de grãos, cereais e a atividade pecuária, tem atraído recentemente grandes investimentos e criado modificações significativas do ponto de vista da infra-estrutura de suporte, como represas, estradas e indústrias, provocando o aumento dos aglomerados urbanos, o inchaço de algumas cidades e uma série de situações ecologicamente nocivas, com perspectivas deveras preocupantes. A causa fundamental desta situação pode ser creditada ao modelo econômico instalado, voltado para o lucro imediato, sem nenhuma preocupação com as questões globais do meio ambiente e da ecologia do Cerrado. Também pode-se 2. A entropia é uma grandeza termodinâmica geralmente associada ao grau de desordem A quantidade de desordem de um sistema é representada pela sua entropia, de modo que quanto mais organizado o sistema menor é a sua entropia.
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associar a isso a falta de ações integradas de pesquisa técnico-científica para o conhecimento holístico das interações ambientais existentes e a ausência de propostas concretas de zoneamento ecológico, com ênfase sócio-econômica, e de planejamento global do uso dos recursos naturais da terra. Se os fatos continuarem no ritmo e na orientação atuais, em breve situações irreversíveis vão acontecer em diversos pontos, contribuindo para a erosão do potencial humano, criando situações subumanas e extinguindo um patrimônio genético vegetal e animal de fundamental importância, inclusive, para a autocompreensão da humanidade. A pior conseqüência, porém, é a diminuição dos aqüíferos. 3. CONSEQÜÊNCIAS DO SISTEMA DE OCUPAÇÃO ATUAL
Vários estudos destacam outras conseqüências deste sistema de ocupação desordenada que, inevitavelmente, afetam o rio São Francisco na sua plenitude, diminuindo e contaminando a água e acabando paulatinamente com a fauna aquática. 3.1. Empobrecimento genético Os efeitos mais importantes acontecem quando se instalam grandes extensões de pastagens cultivadas mono-específicas e culturais únicas, grandes consumidoras de insumos, como fertilizantes, herbicidas e pesticidas com intensa utilização de máquina pesada. Como conseqüência, empobrece a diversidade da fauna e da flora, fazendo com que se percam espécies ímpares. O efeito imediato é o empobrecimento dos ecossistemas em espécies nativas e a possibilidade de aparecimento de pragas devastadoras, além da propagação de ervas daninhas. A destruição da vegetação natural em áreas de alto endenismo pode causar danos irreparáveis que impossibilitariam a procura de novos materiais no reservatório genético típico desses ecossistemas. Por outro lado, já se constataram casos de propagação de ervas daninhas exóticas, provenientes de sementes das culturas, que encontram, no novo ambiente artificial de cultura, todas as condições de fácil propagação. 3.2. Erosão dos solos A degradação dos recursos naturais é visível no reconhecimento de seus efeitos, como a erosão hídrica e eólica, a incidência de enchentes e secas, a poluição dos mananciais hídricos, o assoreamento de rios e represas etc. No Cerrado isto adquire importância se considerarmos as singularidades do clima, vegetação e solos.
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O clima da região, de caráter subúmido, caracteriza-se pela incidência de uma estação seca de até 180 dias no período de inverno e uma interrupção de chuvas no período de verão (veranico). A vegetação apresenta uma diversidade bastante grande, podendo-se encontrar florestas, cerrados, campos, veredas etc. Os solos apresentam uma heterogeneidade bastante grande, fruto de interações com a vegetação, o clima e a geomorfologia locais. Em sua maioria são constituídos de latossolos, que são solos profundos, de textura média a muito argilosa. Apesar de sua textura, apresentam um comportamento físicohídrico similar com solos arenosos, com alta capacidade de infiltração, alta porosidade, baixa capacidade de retenção de água e de troca de cátions, média susceptibilidade à compactação e relativamente baixa susceptibilidade à erosão. Este comportamento é reflexo de uma estrutura formada por microagregados altamente estáveis que se comportam como areia, influenciando, assim, suas propriedades físicas, químicas e ecológicas. A responsável por esta estrutura singular é a capacidade cimentante dos óxidos de Ferro e Alumínio e da Matéria Orgânica. O uso indiscriminado destes solos, as elevadas doses de corretivos e fertilizantes químicos e o uso de sistemas não racionais de preparo, inclusive com a pulverização exagerada, podem gerar situações bastante nocivas para o meio ambiente físico e para as populações humanas. Outros solos que predominam na região são as Areias Quartzosas, como a maior parte da margem esquerda do São Francisco, e os Podzólicos. Os primeiros são solos extremamente frágeis, os quais devem ser considerados áreas de preservação permanente, especialmente quando extremamente arenosos (menos de 5% de teor de argila). Os Podzólicos são solos de alta susceptibilidade à erosão, geralmente em relevo ondulado ou forte ondulado, que devem ser ocupados com atividades de pecuária ou reflorestamento, especialmente com espécies nativas. O estudo, validação e difusão de sistemas adequados de manejo dos solos e da água para os solos dos Cerrados são necessários, reservando sua exploração às áreas já ocupadas ou que possuam um planejamento para uso global. 3.3. Contaminação química das águas e da biota3 O uso indiscriminado de agrotóxicos já foi bastante denunciado em outras regiões do país e alguns Estados, como o Rio Grande do Sul, contam com uma legislação específica para seu controle. No Cerrado, não se conhecem bem os 3. Biota é o conjunto de seres vivos, flora e fauna que habitam ou habitavam um determinado ambiente geológico.
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efeitos e os controles são bastante precários. Como o ambiente do Cerrado está sendo violentamente alterado, podem proliferar doenças antes desconhecidas, devido à perda dos controles biológicos de certos insetos e doenças. Frente a estas perspectivas, muitos produtores exageram na aplicação de agrotóxicos, provocando danos ainda maiores pela geração de variedades resistentes e o aniquilamento conjunto de pragas e seus controladores. Outro fator pouco conhecido se deve ao uso de altas concentrações de calcário e fertilizantes para corrigir as deficiências químicas da maioria dos solos do Cerrado. Provavelmente, as condições químicas dos solos melhoram com o tempo, mas, em longo prazo, serão afetados os lençóis freáticos e, conseqüentemente, as águas superficiais. Haverá eutrofização hídrica. Estas, por enquanto, são perguntas sem resposta. A importância deste fator é relevante se levarmos em conta que serão criados vários reservatórios na região para geração de energia elétrica. Algumas paisagens serão mais afetadas e outras não. Este é um assunto a ser estudado seriamente antes do fechamento dos reservatórios dentro das pesquisas necessárias à determinação da viabilidade dos projetos. 3.4. A irrigação A irrigação no Cerrado é um fenômeno cada vez mais intenso devido às características favoráveis da região, a exemplo da insolação alta na época seca, do acesso facilitado à eletricidade nas regiões de ocupação mais antiga, dos programas de incentivo e da garantia, por parte do produtor, de colheita certa e farta. Deve-se distinguir dois tipos de irrigação: o das terras altas e o das várzeas. O primeiro é realizado através de alta tecnologia em termos de equipamentos, ainda que o manejo da água e do solo ocorra sem o mínimo critério técnico, sendo que os gerentes destas áreas desconhecem conceitos simples como lâmina de água, turno de irrigação etc. O manejo do solo, por sua vez, é executado com técnicas recomendadas para terras não irrigadas (sequeiro), ignorando as interações ambientais criadas pela irrigação no período de inverno seco. Nas várzeas, o efeito maior é o da destruição dos ecossistemas ribeirinhos e dos vales utilizados, como as veredas e as planícies aluviais. Em regiões como o oeste da Bahia, esse tipo de irrigação pode provocar danos às próprias terras altas, favorecendo a erosão, já que as veredas protegem os solos arenosos da região. Uma descida do nível de base com drenagem pode provocar danos imprevisíveis. O papel protetor dos buritizais e das florestas de galena é significante. Ao ser eliminado, provoca a desintegração da própria várzea.
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3.5. Exploração mineral Outra atividade causadora de sérios efeitos, com alterações nas paisagens, é a exploração mineral. As cicatrizes e a degradação provocadas pelas minas a céu aberto exigem um projeto imediato de recuperação da paisagem, utilizando para tal de espécies vegetais nativas. Da mesma forma, a degradação ocasionada pela retirada de areia e cascalho para o preenchimento de galerias em minas subterrâneas exige as mesmas providências. A garimpagem de ouro. na qual se utiliza, sem controle, grande quantidade de mercúrio, tem gerado sérias contaminações ao ambiente como um todo. Nos grandes projetos de mineração, a técnica de purificação com cianeto necessita de cuidados e estudos especiais para não pôr em risco grandes espaços geográficos. 3.6. Formação de reservatórios A formação de reservatórios tem sido outro elemento deturpador do meio ambiente, afetando este de diversas maneiras, seja por a) modificar o ambiente lótico (de água corrente), que passa a ser bêntico (similar ao do fundo dos mares ou lagos), com mudanças drásticas da fauna aquática; b) inundar extensas áreas, destruindo ambientes e terras, às vezes de alto valor agrícola e ecológico; c) servir de barreira ecológica para a migração da fauna; d) provocar uma ocupação descontrolada na sua bacia, favorecendo a erosão dos solos e afetando o próprio reservatório; e) obrigar a população moradora da área inundada a se deslocar e f) favorecer a proliferação de doenças transmitidas por vetores aquáticos. 3.7. Retirada da cobertura vegetal natural e os aqüíferos O Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo, pois que 2/3 das suas plantas se encontram sob o solo. Elas constituem um complexo sistema radicular que retêm mais de 70% das águas das chuvas, que alimentam o lençol freático e, em seguida, os aqüíferos, dando origem às nascentes dos córregos, os quais, por sua vez, formam e alimentam os rios. A retirada da cobertura vegetal natural, na realidade, é o princípio do fim. 4. UMA BOMBA AMBIENTAL À VISTA
Como conseqüência da criação dos elementos de infra-estrutura e ocupação desordenada, várias aglomerações foram se solidificando ao redor de postos de gasolina e serviços surgidos ao longo das rodovias. Com o passar do tempo, Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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tais aglomerações foram se transformando em vilas e povoados e começaram a reivindicar sua emancipação política. O caso recente mais conhecido do Vale do São Francisco é o antigo Posto Mimoso, que se transformou no dinâmico município de Luiz Eduardo Magalhães (BA). A emancipação do povoado de Jaborandi, no município baiano de Correntina, trouxe conseqüências nefastas, pois o prefeito do novo município, no afã de transformar a região, incentivou a implantação de numerosas carvoarias, que acabaram com o Cerrado e influenciaram drasticamente a diminuição, quando não o desaparecimento mesmo, dos cursos d’água. Atualmente, o movimento para a emancipação dos Postos do Rosário e Nova Itália, ambos em Correntina, pode ser a chama que faltava para acender o pavio de uma bomba com teor explosivo incalculável. Isto porque ambos os postos (povoados) se situam respectivamente nas cabeceiras e cursos médios dos rios Correntina, Arrojado e Pratudão. Assim, como tanto o povoado físico quanto as pessoas que o recheiam são produtos de um sistema de ocupação predatória, jamais vão valorizar e entender a preciosidade do nativo. Sem dúvida, os rios são fundamentais para as populações tradicionais que fundaram as antigas cidades de Barreiras, Correntina, Carinhanha, Santa Maria da Vitória etc. Fazem parte da sua vida, do seu cotidiano prático como do imaginário dessa gente. Portanto, a emancipação desses postos de gasolina, hoje vilas e povoados, situados nas cabeceiras e cursos médios dos rios, deve ser muito bem pensada, na medida em que podem significar a trombose de veias importantes do São Francisco, além de embriões de problemas sociais de grande magnitude. 5. PERSPECTIVAS: QUAIS OS DANOS?
É possível realizar a Transposição do São Francisco sem acelerar a morte do rio? A idéia de aproveitamento das águas do São Francisco para projetos de irrigação de grande envergadura não é ruim, mas, no estado de fragilidade e degradação em que se encontram seus alimentadores, executá-lo é acelerar a morte do rio. A bacia tem que ser vista de maneira global. Como sabemos, o rio São Francisco integra um sistema composto por elementos intimamente interligados, qualquer alteração trazendo impactos ao sistema como um todo. As águas da bacia do São Francisco dependem basicamente dos aqüíferos Urucuia e Bambuí, cuja recarga está sujeito às águas das chuvas, absorvidas pelo complexo sistema radicular das plantas do Cerrado. O Cerrado é uma
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formação complexa que depende de inúmeros fatores para a sua existência, incluindo alguns mamíferos capazes de quebrar, no mecanismo do seu intestino, a dormência das sementes de algumas plantas e se tornam disseminadores dessas plantas, cujas tecnologias ainda não foram desenvolvidas para a produção em viveiros. Outro fator importante é a polinização por vespas e abelhas indígenas endêmicas do Cerrado. Não é necessário falar que a fauna do Cerrado se encontra em processo acelerado de extinção, afetando, com isso, o processo natural de disseminação vegetal. Enquanto ambiente e formação vegetacional, o Cerrado já atingiu seu apogeu evolutivo. Isto significa que, uma vez degradado, não se recupera jamais na plenitude de sua biodiversidade. Algumas de suas plantas demandam séculos para atingir a maioridade. Se considerarmos o Cerrado com um todo, incluindo todos os seus subsistemas, menos de 5% de sua área original está preservada. Nos chapadões onde ocorre a recarga dos aqüíferos, tal índice ainda é menor. Não temos conhecimento se um projeto de reflorestamento ou revegetação com espécies exóticas daria certo nos diversos ambientes do Cerrado e exerceria pelo menos algumas de suas funções ecológicas. Portanto, o melhor caminho é a prudência e a coragem. É necessário assumir a bandeira da Moratória Ambiental, pelo menos para o Cerrado. Assim, o rio São Francisco, que já está doente, poderia ter tempo para se recuperar, na esperança que a ciência aponte alguma solução.
* Altair Sales Barbosa é professor titular do Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás (UCG). [altair@ucg.br]
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1. INTRODUÇÃO
O Projeto de Integração do rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF) é a nova denominação da velha Transposição de Águas do Rio São Francisco. Porém, na essência o Projeto não mudou, mantendo a mesma infra-estrutura e orçamento do governo passado. Essa contradição tem norteado a estratégia que o governo atual vem adotando no enfrentamento das críticas que questionam a real necessidade e a viabilidade econômica e ambiental do Projeto. As mudanças, quando ocorrem, são apenas na retórica de defesa do mesmo. Ultimamente, ele tem sido apresentado como uma espécie de seguro que os Estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte irão contratar para eliminar o risco de faltar água para o abastecimento na região, no caso de ocorrência de seca prolongada. Para a opinião pública é alardeada a idéia, de indiscutível apelo social e humanitário, de levar água para 12 milhões de sedentos.
1. Uma versão reduzida desse texto foi elaborada como “Nota Técnica” para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
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Entretanto, dados oficiais dos próprios Planos de Recursos Hídricos dos Estados beneficiados revelam um quadro atual bastante favorável em termos de disponibilidade. O Ceará tem potencial para atender com segurança até quatro vezes as demandas atuais por água para todos os usos; o Rio Grande do Norte mais de duas vezes e a Paraíba uma vez e meia. Portanto, pode-se afirmar com segurança que, ao contrário do discurso oficial, não existe déficit hídrico nos Estados beneficiados que justifique um projeto da magnitude do que está sendo proposto para Transposição de Águas do Rio São Francisco. O alto custo de R$ 6,56 bilhões apenas nos primeiros anos já mostra, por si só, a importância da obra. Entretanto, a análise dos estudos que subsidiaram a aprovação do Projeto mostra incongruências de diversas naturezas e montas que deveriam ter impedido a aprovação da obra pelas diversas instâncias deliberativas, decidida em dissonância com princípios consagrados na Constituição Brasileira, tais como os da Isonomia, Legalidade, Razoabilidade, Proporcionalidade, Probidade Administrativa Ambiental e do Desenvolvimento Sustentável. O que o Nordeste precisa não é de importação de água, mas de uma reforma hídrica eficiente, acompanhada de uma gestão mais democrática e competente da água disponível. É o que estamos propondo como alternativa à inviável e desnecessária obra de Transposição de Águas do Rio São Francisco. 2. IMPACTOS DO PROJETO
A argumentação técnica em defesa do Projeto é falha, demonstrando falta de isenção e precaução, além de certo desconhecimento da dimensão e da importância de questões ambientais do rio São Francisco, assim como de aspectos sócio-econômicos do Semi-Árido brasileiro. Pelo menos dois aspectos merecem destaque. 2.1. Impactos ambientais e sócio-econômicos Os impactos ambientais e sócio-econômicos da captação de água no rio São Francisco, na própria bacia, estão sendo minorados, sem a devida precaução, como se verá a seguir: a) A vazão mínima do Projeto, de 26,4 m³/s, cujo valor é metade da vazão média e 1/5 da vazão máxima de bombeamento do sistema, foi adotada como um indicador dos impactos da captação d’água no rio São Francisco.
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Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à transposição do Rio São Francisco
b) A vazão na foz, reconstituída a partir de uma série histórica hipotética que retrata uma condição irreal de uma bacia virgem, foi adotada como referência para a avaliação dos impactos ambientais. Isto é, não se levou em consideração os diversos usos consuntivos (humano, animal, industrial e irrigação) existentes e planejados a médio e longo prazo em toda a bacia do rio São Francisco, incluindo-se aí a utilização de águas subterrâneas e a captação nas calhas dos afluentes do rio. c) A captação d’água do Projeto é à montante do Complexo Hidrelétrico de Itaparica, Paulo Afonso e Xingó. E, dessa forma, deverá restringir e concorrer com todos os usos de água na bacia do rio São Francisco, ao contrário do que deixa transparecer o governo quando se refere às condições da foz do rio. d) O Projeto deverá agravar os conflitos pelo uso da vazão na bacia do rio São Francisco, tendo em vista que, na época de aprovação do Projeto, praticamente toda a água da bacia já se encontrava comprometida. Da vazão disponível, 80% encontrava-se reservada à produção de energia para o Nordeste e, dos 360 m³/s alocáveis para outros usos, 335 m³/s encontravam-se comprometidos. Dessa forma, ao contrário do que alega o governo, a outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) de 26,4 m³/s para a transposição compromete mais de 100% da vazão disponível do rio São Francisco. Além do que paira a questão da inviabilidade das vazões maiores a serem retiradas para o Projeto completo (até 127 m³/s, 65 m³/s em média) a depender da disponibilidade sobrante do Reservatório do Sobradinho, o que tem acontecido raramente, entre sete e dez anos… 2.2. Disponibilidade hídrica social O governo subestima as potencialidades dos Estados receptores para justificar a Transposição de Águas do Rio São Francisco: a) O governo adota o índice de 1.000 m³/hab/ano de disponibilidade hídrica social da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como indicador de escassez hídrica dos Estados do Nordeste Setentrional, valor esse inadequado para a realidade desta região. b) O conceito de disponibilidade hídrica social foi desenvolvido num ambiente histórico anterior à globalização da economia mundial. Aplica-se a uma economia fechada nos moldes da economia planificada de países socialistas. Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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c) O índice retrata principalmente as demandas de água para a produção industrial e agrícola, tendo em vista que o consumo humano é bastante inferior, da ordem de 100 m³/hab/dia nas grandes cidades. d) No caso dos Estados nordestinos, deve-se levar em consideração que os mesmos integram o território do Brasil, um grande país com uma das maiores disponibilidades hídricas do mundo. Esse extraordinário potencial natural beneficia indiretamente toda a Nação. e) Neste sentido, os Estados do Nordeste Setentrional recebem água via produtos de todo o país, principalmente de atividades econômicas que são grandes consumidoras de água. Arroz e trigo, por exemplo, vêm da Região Sul e carne e soja da Região Centro-Oeste. f) Cerca de 750 m³/hab/ano de água do rio São Francisco chegam à Região Nordeste via energia elétrica. Nada menos que 98% da energia consumida no Nordeste vêm de lá. g) A Tabela 1, abaixo, mostra a disponibilidade hídrica social de algumas regiões do Brasil, com destaque para as Regiões Metropolitanas, onde se localizam as economias mais dinâmicas, apesar de apresentarem uma disponibilidade hídrica social bastante inferior ao valor de 1.000 m³/hab/ ano adotado pelo governo como referencial para justificar a Transposição de Águas do Rio São Francisco para a Região Nordeste Setentrional. TABELA 1
DISPONIBILIDADE HÍDRICA SOCIAL DE ALGUMAS REGIÕES DO BRASIL População (em milhões de habitantes)a
m³/s
(m³/hab/ano)
171,3
168.790
31.074
Estado de São Paulo
38,5
3.035
2.486
Região Metropolitana de São Paulo
18,5
118
201
7,4
215
916
Regiões Brasil
Estado do Ceará
Disponibilidade Hídrica
Região Metropolitana de Fortaleza
3,0
23
242
Estado do Rio Grande do Norte
2,7
70
818
Litoral Leste do Rio Grande do Norte
1,2
15
394
a
Dados de 2000.
O Nordeste possui água suficiente para atender plenamente e com segurança as demandas urbanas e agrícolas atuais. O atendimento das demandas futuras
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Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à transposição do Rio São Francisco
decorrentes de usos econômicos (projetos de irrigação, industriais, de carcinicultura etc.) deve, evidentemente, ser considerado no contexto do desenvolvimento sustentável. De todo modo, como afirmamos antes, o discurso oficial de déficit hídrico nos Estados contemplados pelo Projeto é falacioso, como bem o demonstram, a seguir, as Tabelas 2, 3 e 4, que trazem o balanço hídrico cearense, potiguar e paraibano, respectivamente. TABELA 2
BALANÇO HÍDRICO DO ESTADO DO CEARÁ Região Hidrográfica
Vazões em m³/s 1998 Oferta
Planejada
Demanda
Oferta
Total
Demanda
Oferta
Demanda
Acaraú
13,57
3,12
11,5
9,2
25,07
12,32
Curú
9,18
6,15
1,7
1,19
10,88
7,34
Coreaú
1,91
1,26
11,27
7,1
13,18
8,36
Litoral
1,63
1,19
5,58
0,56
7,21
1,75
Metropolitana
7,87
14,01
15,49
9,76
23,36
23,77
Médio/Baixo Jaguaribe
53,96
26,98
52,63
17,37
106,59
44,35
Parnaíba
5,46
0,05
23,6
24,78
29,06
24,83
Estado
93,59
52,77
121,76
69,95
215,35
122,72
Fonte: Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH). Dados de 1998.
TABELA 3
BALANÇO HÍDRICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
Disponibilidade
m³/s
%
Rios perenes (litoral)
24,9
35,8
Águas subterrâneas (litoral/interior)
11,8
17,0
Vazão regularizada de açudes (95% de garantia)
32,9
47,3
Total
69,6
Abastecimento humano (2.700.000 habitantes) Irrigação (20.000 ha) Demanda
Indústria
5,3
16,0
14,5
43,7
1,5
4,5
Agricultura/pecuária/aquacultura
11,9
35,8
Total
33,2
Fonte: Plano Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte (1998).
Como explicar a grande divergência entre os números de oferta hídrica das bacias receptoras apresentados pelos governos e pelos críticos ao Projeto? Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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João Abner Guimarães Jr
Arrolaremos aqui alguns indícios de manipulação e omissão de dados oficiais dos próprios planos de recursos hídricos dos Estados envolvidos com o intuito de gerar déficit hídrico nas bacias receptoras, com a finalidade precípua de justificaria a necessidade da obra. Em primeiro lugar, os estudos desprezaram as águas subterrâneas no balanço hídrico das bacias receptoras, cujas reservas renováveis foram avaliadas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) em 17,3 m³/s, apesar do seu uso generalizado na Região. De uma maneira geral, no EIA foram consideradas vazões disponíveis nos açudes com garantia de 99%, valor bastante rigoroso para um Projeto, como o PISF, de uso múltiplo das águas2. Além disso, na avaliação da disponibilidade hídrica das bacias receptoras foram consideradas apenas as vazões regularizadas nos maiores açudes da região, tendo sido descontadas perdas da ordem de 15% das vazões regularizadas devido à gestão nos açudes e a condução da água nos canais naturais. No EIA, o déficit hídrico global das bacias receptoras foi avaliado pela soma dos déficits dos municípios em condições desfavoráveis, isto é, não foi considerada a possibilidade de transposições internas nas bacias receptoras de regiões com superávit para outras com déficit hídrico. Em suma, o governo federal adota critérios diferenciados para o cálculo das ofertas de água na bacia do rio São Francisco e nas bacias receptoras. Para as bacias receptoras, a ANA recomendou uma garantia irreal de 100% na avaliação de suas ofertas hídricas, contra 95% na bacia doadora, o mesmo parâmetro adotado pelos estudos elaborados pela própria ANA para subsidiar o Plano Decenal da Bacia do São Francisco. Entretanto, se existe bastante água, como, então, explicar os efeitos das secas na população da região? Ora, a problemática das secas no Nordeste Setentrional é a mesma do Semi-Árido brasileiro como um todo. Reflete a falta de uma política adequada e efetiva de adaptação do homem e sua economia ao meio ambiente do Semi-Árido, dentro de um contexto de desenvolvimento sustentado. Se, por um lado, o Semi-Árido brasileiro é um dos mais chuvosos, com precipitação média de 700 mm, por outro, é um dos mais povoados do mundo, com cerca de 20 milhões de habitantes, mais de 40% da população nordestina sobrevivendo num ambiente de estagnação econômica e em patamar muito baixo. 2. Garantia é a probabilidade de tempo com atendimento pleno das demandas captadas de uma fonte hídrica. As garantias variam de acordo com o tipo de uso. Comumente adotam-se garantias de 90% para atividades de irrigação não permanentes e 99% para o atendimento das demandas de abastecimento humano nas cidades.
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Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à transposição do Rio São Francisco
TABELA 4
BALANÇO HÍDRICO DO ESTADO DA PARAÍBA
Disponibilidade
Demanda
m³/s
%
Rios perenes (litoral)
3,4
10,6
Águas subterrâneas (litoral/interior)
4,9
15,3
Vazão regularizada de açudes (95% de garantia)
23,7
74,1
Total
32,0
Abastecimento humano (2.700.000 habitantes)
8,0
38,1
Irrigação (20.000 ha)
8,0
38,1
Indústria
2,0
9,5
Agricultura/pecuária/aquacultura
3,0
14,3
Total
21,0
Fonte: Plano Estadual de Recursos Hídricos (em elaboração).
O quadro mais grave se dá no meio rural, onde 25% da população convive com déficit hídrico crônico, decorrente da associação de vários fatores críticos que interagem principalmente em nível local, tais como um regime pluviométrico concentrado (poucos dias de chuvas efetivas distribuídos em três meses), um solo com baixa capacidade de armazenamento (condições pedológicas e geológicas limitam a ocorrência de aqüíferos em apenas 40% do seu território) e um potencial de evaporação bastante elevado, superior a 2000 mm/ano. 3. O LOBBY DA TRANSPOSIÇÃO
A experiência recente no acompanhamento da condução, por parte do governo federal, do Projeto de Transposição, com a recorrência do tema com força crescente, mesmo num ambiente de avanços democráticos, mostra a fragilidade do Estado Brasileiro e de suas instituições frente aos interesses coorporativos dos lobbies do poder econômico infiltrados no meio político e incrustados na infra-estrutura do Estado. A defesa do Projeto é capitaneada por uma forte articulação político-empresarial, envolvendo os governos e as bancadas dos Estados do Nordeste Setentrional (CE, PB, PE e RN), uma espécie de vírus cuja cepa mais recente contaminou o Estado no governo Itamar Franco, replicou cada vez mais forte no governo Fernando Henrique Cardoso e, por último, no governo Lula, envolvendo, agora, diretamente o próprio presidente na promoção enfática do Projeto. Desde o primeiro momento percebeu-se uma firme decisão política do governo atual em relação à execução ao Projeto. O governo desestimulou o debate Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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João Abner Guimarães Jr
técnico, promovendo uma consulta política aos Estados da região sob a coordenação do próprio vice-presidente da República, José Alencar, e envolveu toda a sua estrutura pela concretização da obra. Num segundo momento, a condução do Projeto ficou a cargo do ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, político do Ceará, à frente de evidentes interesses políticos e econômicos na obra. Em julho deste ano, discursando em Natal (RN) por ocasião do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o presidente, desviando mais uma vez o foco das discussões, acusou os críticos da transposição do rio São Francisco de egoísmo e insensibilidade com a problemática das secas na Região Nordeste. Segundo Lula, “só pode ser contra quem tem água Perrier [água mineral francesa cara] na sua geladeira, só pode ser contra quem nunca carregou uma lata de água de vinte litros na cabeça por seis ou oito léguas”. Ao associar a Transposição com o homem do campo do Sertão nordestino, suscetível a secas periódicas, o presidente demonstra um grande desconhecimento do Projeto, tendo em vista que a rota da água passará distante dezenas, até mesmo centenas de quilômetros, das regiões mais necessitadas. Na prática, o Projeto deverá “chover no molhado”, transferindo águas do Rio São Francisco para os leitos, a maior parte já perenizados, dos maiores rios do Nordeste Setentrional, ampliando os estoques de água dos maiores reservatórios da região, como é o caso do Castanhão, no Ceará, (6,7 bilhões de m³), e do Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte (2,4 bilhões de m³). Para os críticos, o Projeto de R$ 6,56 bilhões, que deverá comprometer grande parte dos recursos públicos em muitos anos no Nordeste, no mínimo não deve ser considerado prioritário porque vai manter o quadro da seca inalterado. As águas desviadas vão passar bastante longe da grande maioria da população rural do Sertão atingida pela seca e, em contrapartida, vão irrigar, em condições economicamente desfavoráveis, regiões já servidas pelos maiores reservatórios. Hoje, no Nordeste, não se cobra pela água bruta. A realidade atual é que os custos da água para uso agrícola dizem respeito apenas ao bombeamento da fonte de suprimento até a área agrícola. Com a transposição, ao contrário, vai se pagar muito caro pelo uso da água transposta. O custo será, no mínimo, cinco vezes maior do que os valores atualmente praticados na região. Esse fato deverá restringir bastante a inserção dos produtos hidro-agrícolas das bacias receptoras no mercado globalizado, atual e futuro, extremamente competitivo.
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Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à transposição do Rio São Francisco
Nesse sentido, é um projeto economicamente inviável, um verdadeiro “presente de grego” para a população dos Estados receptores. Para viabilizá-lo, os estudos econômicos contratados pelo governo sugerem a prática, politicamente insustentável, do “subsídio cruzado”, sistema que o Banco Mundial defende em várias partes do mundo, inclusive na paupérrima África. Está previsto que 85% da receita do Projeto deverão ser gerados pelos consumidores de água situados no meio urbano das grandes cidades da Região Nordeste Setentrional, que na atualidade não precisam desta água e já subsidiam o abastecimento hídrico humano do interior dos municípios. O modelo de gestão do sistema proposto prevê que a operação seja executada por uma concessionária que entregará água para os Estados, a Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco (CHESF)/Águas. Por seu turno, os governos pagarão por essa água no mínimo R$ 100 milhões, mesmo que não seja necessário aumentar a oferta local desse insumo com vistas a atender prováveis necessidades. A transposição é uma obra muito atrasada e até reacionária, pois vai na contramão das políticas públicas desenvolvidas na região nos últimos anos. Estimuladas por organismos internacionais, tais políticas têm como alvo o desenvolvimento sustentável a partir da democratização do acesso à água e da gestão participativa dos recursos hídricos. Ao contrário, com o Projeto cria-se uma dependência da região em relação à água do rio São Francisco, um recurso natural escasso, caro e conflitivo. 4. REFORMA HÍDRICA DO NORDESTE
O Semi-Árido brasileiro é uma grande região com diversidade de configurações ambientais e possibilidades econômicas. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), são 20 unidades de paisagem e 110 unidades geo-ambientais em nosso Semi-Árido, os quais diferenciam bastante as soluções para a problemática das secas. Uma política pública regional na área de recursos hídricos deve promover o desenvolvimento auto-sustentável, induzir a gestão efetiva e participativa dos recursos hídricos e democratizar o acesso à água para toda a população. A questão do abastecimento humano, bastante precário na região nos períodos secos, em que grande parte da população é atendida por carros-pipa, constitui-se na principal prioridade de investimentos públicos, tendo como base a redução do risco de falha ou insuficiência do sistema de abastecimento. A construção de adutoras, a partir das grandes barragens da região, tem se mostrado como a solução mais viável para o abastecimento das cidades e Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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João Abner Guimarães Jr
comunidades rurais nos períodos secos. O abastecimento rural nos anos de chuvas normais deve, preferencialmente, sustentar-se nas soluções locais de baixo custo, como açudes, poços e cisternas. Daí a necessidade de soluções regionais integradas de abastecimento rural e urbano, tal como foi o caso da experiência da irrigação pública. O custo de distribuição da água e as questões de mercado fizeram com que muitas experiências não tivessem sucesso. Com efeito, em praticamente todos os Estados da região existem projetos públicos de irrigação inviabilizados. Podemos destacar alguns aspectos que pouco diferem na realidade regional: (a) práticas rudimentares de irrigação; (b) operação ineficiente dos reservatórios; (c) grande desperdício d’água no abastecimento urbano; (d) estudos descolados da realidade regional; (e) falta de continuidade das políticas públicas e (f) infra-estrutura de irrigação ociosa Os avanços tecnológicos na área de recursos hídricos no Semi-Árido brasileiro devem propiciar o desenvolvimento sustentado da região, diminuindo a dependência de recursos externos e os impactos sócio-econômicos negativos das secas. Dessa forma, as políticas públicas na área de recursos hídricos no Nordeste Semi-Árido deveriam se basear nos seguintes princípios e prioridades: Princípios 1. Convivência com o Semi-Árido; 2. Democratização do acesso à água no Semi-Árido; 3. Planejamento integrado e dinâmico dos recursos hídricos no SemiÁrido; 4. Valorização da infra-estrutura hídrica existente; 5. Controle social dos projetos públicos na área de recursos hídricos. Prioridades 1. Combate à “indústria das secas”; 2. Segurança hídrica para o abastecimento humano no campo e nas cidades; 3. Gestão participativa dos recursos hídricos; 4. Erradicação do carro-pipa; 5. Priorização do uso racional dos recursos hídricos da região, visando principalmente a melhoria dos indicadores de saúde pública e o desenvolvimento sócio-econômico. Em consonância com tal diagnóstico, princípios e prioridades e levando em conta as experiências testadas e bem sucedidas na região, qualquer programa
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Reforma hídrica do Nordeste como alternativa à transposição do Rio São Francisco
deve considerar, na área de abastecimento humano, (1) a integração dos sistemas adutores com a infra-estrutura local, visando a produção de água potável (5% do consumo de uma família), a equalização das águas de abastecimento urbano por mistura e a garantia do abastecimento nos períodos de secas extremas, bem como (2) o aproveitamento integral da água local no abastecimento difuso, a partir do desenvolvimento de unidades compactas de tratamento de água, instalação de poços tubulares, hierarquização das fontes de suprimento, aproveitamento das águas de chuva em cisternas familiares e dessalinização de águas salobras (com redução dos custos dos salinizadores). Por sua vez, na área da irrigação, as atividades devem ser inseridas no quadro de desenvolvimento sustentado, de maneira a desenvolver (1) a pequena irrigação, mediante o uso intensivo dos pequenos açudes, a potencialização da irrigação a partir de açudes médios, a construção de barragens subterrâneas para culturas de vazantes, a modernização das tecnologias de irrigação, a horticultura irrigada e a produção de ração animal e (2) o mercado interno de produtos da irrigação, pela diversificação do mesmo, o incentivo à instalação de agroindústrias na região e a criação de uma política de segurança alimentar, a partir da formação de estoques reguladores com prioridade para produtos da agricultura familiar e camponesa. Um programa que exemplifica estas propostas, também porque implica em acesso à terra (problema quase sempre maior que o do acesso à água) e mobilização das pequenas comunidades agrícolas do Semi-Árido, é o “P1+2 — Uma terra e duas águas”, proposto pela Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA), rede que congrega mais de 700 entidades da sociedade civil. O programa, inspirado numa experiência exitosa da China, pretende dotar cada família rural do Semi-Árido de terra suficiente e duas formas de água — uma para consumo humano e outra para produção agropecuária.
* João Abner Guimarães Jr é hidrólogo, doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). [abner@ct.ufrn.br]
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Evangelho do Velho Chico
Primeiro Testamento No princípio era o Rio e o Rio vinha de Deus e sem ele nada vivia. Quando o Rio descobriu seu curso desenhou suas curvas e saliências assim… séculos de aprendizagem e constância de águas pela fenda íntima da Canastra Opará. O Rio nasce mineiro antes das Minas e avança margeando suas próprias margens inventando sua geografia recebendo interferências de pedras, cerros e serras e outros rios mais antigos que ele: Paraopeba, Abaeté, Rio das Velhas, Jequitaí, Paracatu, Rio Corrente, Urucuia, Cariranha, Verde Grande. Desvia, engana e rodeia, insiste no percurso até se fazer baiano antes da Bahia. Acumula vestígios debruçando sob seu leito lamas, areias e folhas desesperadas por redemoinhos da passagem. Firme, o Rio sabe onde quer chegar e empina seu fluxo dobrando a terra com sua língua molhada e lambe miudezas de animais enormes nadadoras, escamas luminosas, surubins, jardins submersos de escuridão e, em sua invenção persistente, que não conhece dia ou noite a não ser pelas histórias Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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que ele cospe na beira de fantásticas memórias de Pankararu, Atikum, Kimbiwa, Truka, Kiriri, Tuxa e Pankarare e nomear barcos, canoas, embarcações, remos gentis navegam conhecendo a correnteza abrindo sulcos, garimpando lendas esculpindo carrancas de renhidos dentes o desconhecido. O Rio dorme e com ele e nele todos os seres dormem. As águas têm sono leve os afogados se aquietam e param de gritar os peixes bóiam e a cobra perde seu veneno a mãe d’água aproveita o silêncio para enxugar seus cabelos e os barcos fingem que não existem mais enquanto o Rio dorme. O Rio míngua finge que se esquece, deixa de correr desbotando toda forma de vida que não o conhecer. Convive com todas as desistências de climas e aridez partilha do fracasso assíduo da população da beira ribeirinhos, quilombolas resistentes e enfrenta ele mesmo sua imensidão seu medo de morrer e ressurge caudaloso aos poucos em Bom Jesus da Lapa tímida altivez que engole águas improváveis novíssimas de afluentes parcimosos e generosos de umidade imensa alma do sertão. “Sabeis assim que sou pobre, mãe e pai de todo o povo.” O Rio cabeceia e vence
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rompe em cheia e força e despenca em cachos de espuma pleno imenso glorioso lânguido de indecisão quer ser Pernambuco sem deixar de ser Bahia e arrisca o duplo acostumando suas margens a estar ao mesmo tempo em mais de um lugar. Tem pressa! Já pressente o mar mas se atrasa em detalhes do contraditório exercitando a aridez com promessas de grão e se deixa ficar em Cabrobó e Petrolina. … E avança pelo fio tênue que inventou Sergipe e Alagoas antes de existirem e se atira em direção ao mar abandonando sem querer Piranhas e Gararu. Invadindo o mar de igual pra igual adeus! Piaçabuçu. E morre doce: cumpriu seu destino inventou a terra e foi morrer no mar.
Segundo Testamento Um Rio assim tem nome de Santo Francisco de antes, Chico mais conhecido. Leitor assíduo das linhas de Deus e suas criaturas na palma da mão que feito cuia serve água aos bebericos ao Nosso Senhor Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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e todos os jegues de sua infância e todos os jegues de sua paixão. Ensina a nadar os peixes e a multiplicá-los pelas mãos de milagreiros pescadores e fêmeos milagres de acabar com a fome. E quando visita a roça engravida a mandioca de perdão, grão e farinha Santa Eucaristia. E conhece o corpo de beiras e beradeiros banha suas dores cura nos aflitos a sofreguidão. Quando o céu se abre batiza os mais pequeninos. Eis! Meu Rio amado em suas águas há profecia, evangelho e sabedoria de arrastar demônios e curar o mundo. Paira sob suas águas o Divino Espírito Santo. Recebe os tecidos de lázaros vestidos da morte de todo dia que trazem as santas mulheres que descem na beira do Rio para a Transfiguração. Boa Hora da Lavação. Esfregam pecado e ira Ensaboam sangue e suor e trazem de novo à via panos, roupas e seus viventes quarados no sol do agreste e acenam com louvor ao Rio varais de Ressurreição. E quando chega sua hora da morte e da traição puído de sobra e lucro, desmatamento e queimada,
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Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
desmando e poluição, carrega os pecados do mundo, esgoto e mineração, projetos mirabolantes de cercas de irrigação e insiste em ser bacia dos pobres: de joelhos toma os pés do mundo e se entorna em agua-pés. De tortura em tortura abrem em seu corpo as chagas com obras e ambição e crucificam o Velho Chico na cruz da Transposição. E o céu rasga o véu da verdade sísmicos abalos dos fatos do que diziam os profetas, ecologistas e poetas, geógrafos e adivinhas: Não se mexe no curso de um Rio que junta terra e céu, bicho e povo, o que foi e o que pode ser numa rede fina de vida. Esta é a hora! Esperamos ativamente a Páscoa de ressurreição e ver de novo o Velho Chico “bater no meio do mar dormir ao som do chocalho e acordar com a passarada sem rádio, sem notícia das terras civilizadas” São Francisco Vivo: terra, água, rio e povo. Nancy
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Alternativas mais eficientes para a transposição do São Francisco
Ricardo Feijó* Sergio Torggler**
1. INTRODUÇÃO
Este estudo visa calcular os parâmetros de eficiência econômica da transposição e compará-los com os índices de eficiência da atividade alternativa para a oferta de água pela contenção evaporativa e dos índices da expansão da área agrícola irrigável do próprio vale do São Francisco. Os parâmetros de comparação serão o custo da água ofertada, o impacto do custo da água como insumo da cultura de milho, os subsídios envolvidos, a relação investimento/ capacidade produtiva e o custo do hectare irrigado adicional. Também serão discutidos resumidamente os aspectos energéticos, ecológicos e logísticos das alternativas. Sempre que possível procura-se trabalhar com unidades que permitam comparações mais próximas da realidade dos consumidores, unidades usuais tais como R$/m3, R$/kWh, kWh/m3, m3/ha. Para tanto, o artigo divide-se em duas seções gerais: uma que trata da transposição e outra que analisa a opção da contenção evaporativa. Na primeira, começa-se com o histórico da idéia de transposição do rio São Francisco para levar água às regiões secas do Semi-Árido nordestino, depois se faz a análise dos custos desse projeto em termos de custos variáveis e fixos e finaliza-se com comentários gerais sobre essas alternativas. A outra seção trata da possibilidade de minimizar o drama da seca pela contenção evaporativa dos açudes nordestinos. Assim Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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Ricardo Feijó e Sergio Torggler
sendo, após uma introdução ao tema e uma descrição das propostas alternativas ao revestimento dos açudes, oferece-se uma simulação econômica e discutem-se os resultados. Na conclusão do artigo, também são comentados os benefícios da alternativa de ampliar a área irrigada do próprio vale do São Francisco. 2. TRANSPOSIÇÃO
2.1. Histórico e descrição A idealização da transposição do rio São Francisco iniciou-se ainda no reinado de Dom Pedro II, havendo deste então inúmeras e variadas propostas. O Projeto atual do governo Lula é uma adaptação daquele desenvolvido na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo maior de criação de núcleos de agricultura irrigada. A fim de calcular seus custos, é preciso entender o funcionamento físico da transposição e conhecer as grandezas dos seus números. Abaixo apresenta-se os parâmetros considerados relevantes para a análise, números estes selecionados da descrição apresentada pelo governo no item 3 do “Parecer sobre a Moção sobre o Projeto de Transposição do Rio São Francisco e a Transposição do Rio Tocantins”. O Projeto é constituído de dois eixos principais. O maior, chamado Eixo Norte, representa um volume de transposição de 17 à 90 m3/s, vazões correspondentes às situações de baixa e cheia do rio São Francisco (uma vazão média anual de 47 m3/s). Neste eixo, a altura de recalque, uma vez que esta água será bombeada morro acima para transpor a barreira geográfica entre as bacias hidrográficas, será de 165 metros. No entanto, haverá recuperação de parte da energia despendida no bombeamento por meio da geração de energia hidroelétrica na descida, sendo que a coluna de água útil na geração soma 85 metros, os quais, com as perdas de conversão, equivale a 64 metros, permitindo, assim, calcular que a altura líquida total a ser bombeada será de 101 metros. O eixo menor, chamado Eixo Leste, que abastecerá os Estados de Pernambuco, Paraíba e áreas de irrigação no próprio vale do São Francisco, deverá operar com vazão de 9 à 25 m3/s, vazões correspondentes às situações de baixa e cheia do rio São Francisco, correspondendo a uma vazão média anual intraano de 16 m3/s. Neste eixo, a altura de recalque será de 300 metros no canal para abastecer Pernambuco, de 500 metros no canal para abastecer a Paraíba e de 35 metros para uso agrícola no vale do São Francisco. Nestes ramais não haverá recuperação energética por geração hidroelétrica.
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Alternativas mais eficientes para a transposição do São Francisco
FIGURA 1
CORTE ALTIMÉTRICO DO EIXO NORTE
Fonte: Suassuna, 2004.
A Figura 1 mostra o perfil altimétrico da transposição no Eixo Norte. TABELA 1
VOLUMES DA TRANSPOSIÇÃO EM M3/S São Francisco
Eixo Leste
Paraíba
Eixo Norte Pernambuco
Ramais
Total
Vazão para os anos em que Sobradinho verter (média intra-ano) Vazão máxima (152,9 dias)
89,3
9,0
9,0
7,0
114,3
Vazão mínima (212,1 dias)
17,0
3,0
3,0
3,0
26,0
Vazão média
47,3
5,5
5,5
4,7
63,0
Vazão para os anos que Sobradinho não verter (média intra-ano) Vazão
17,0
3,0
3,0
3,0
26,0
Vazão média plurianual para sete anos Média com vazão mínima em 3 anos
34,3
4,4
4,4
4,0
47,1
Média com vazão mínima em 4 anos
30,0
4,1
4,1
3,7
41,9
Média com vazão mínima em 5 anos
25,7
3,7
3,7
3,5
36,6
Média com vazão mínima em 6 anos
21,3
3,4
3,4
3,2
31,3
Volume anual de água transposta na seca*
819,9
Volume anual de água transposta (5 anos de vazão mínima em 7)*
1.153,2
Volume anual de água transposta (anos chuvoso)*
1.986,4
Fonte: Suassuna, 2004. * Em bilhões de m3.
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Já a Tabela 1 apresenta dados de vazão em várias situações. Observa-se que, somadas os dois eixos, a vazão média diária é de 63 m3/s (intra-ano). Neste cálculo prevê-se estarem operando por 152,9 dias à vazão máxima e por 212,1 dias à vazão mínima. Também foram consideradas as paradas do bombeamento entre 18 e 21 horas. João Suassuna (2004) relata que Sobradinho verteu no ano de 1997 e voltou a verter em 2004, o que resulta na relação 2:5 anos entre anos de vazão normal (ou média) e anos de vazão mínima, fato que altera a média de transposição anteriormente calculada para 36,6 m3/s, conforme se nota na referida Tabela. A relação investimento por unidade de capacidade produtiva para a transposição é obtida pela divisão do custo total do projeto, orçado em R$ 6 bilhões (cf. Ministério da Integração Nacional, 2005)1, pela capacidade plurianual de 36,6 m3/s, resultando no valor de R$ 164 milhões por m3/s. No entanto, o volume que excede a 26 m3/s (vazão mínima com Sobradinho não vertendo) deverá perder-se, considerando-se a elevada aleatoriedade da oferta, uma vez que não se justifica fazer um investimento para ser utilizado apenas duas vezes em cada sete anos. Considerando-se essas perdas, o custo unitário da vazão mínima subirá para R$ 231 milhões por m3/s. Quando o Projeto estiver em funcionamento ter-se-á dois custos a serem analisados: os variáveis, formados basicamente pelo custo da energia consumida, ou seja, custo aplicado ao processo, e os fixos, representados pelos custos administrativos operacionais, custos de depreciação e de juros. Estes custos fixos independem do volume de água transposta, existindo mesmo que o Projeto não opere. 2.2. Análise do Custo Variável O custo da energia consumida para o bombeamento da água é praticamente a totalidade do custo variável desta atividade, uma vez que o bombeamento é a única atividade realizada com relação direta e proporcional ao produto produzido. A quantidade de energia consumida na atividade pode ser calculada utilizando-se o padrão teórico da quantidade de energia para erguer água (no caso, utilizaremos o kWh)2. Assim, calcula-se na Tabela 2 o consumo de energia teórico em cada ramal da transposição: 1. O custo total do projeto até a entrega da água na unidade rural favorecida pode chegar a R$ 24 bilhões, de acordo com o JB Ecológico (cf. “Salve o Velho Chico”, 2005). Este valor parece exagerado. 2. 1 kWh corresponde à energia necessária para elevar 1 m3 de água a 360 metros de altura, ou 360 m3 de água a 1 metro de altura.
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No entanto, há de se aplicar um fator de eficiência da conversão, uma vez que, no bombeamento, há perdas de calor e atrito, devendo ser aplicada mais energia que a do cálculo teórico (Tibau, 1987). O índice normal de eficiência das moto-bombas de mercado é da ordem de 73%. Assim, no Eixo Norte, cada metro cúbico transportado, com consumo teórico de 0,29 kWh, exigirá uma demanda real de energia de 0,40 kWh. A Tabela 2 também mostra os custos para outros ramais. A média ponderada, pelas vazões mínimas de cada ramal, será de 0,628 kWh/m3. TABELA 2
CONSUMO DE ENERGIA TEÓRICO POR RAMAL DE TRANSPOSIÇÃO (EM KWH/M3) Ramais
Eixo Norte
Eixo Leste
Média
Pernambuco
Paraíba
São Francisco
Ponderada
101
300
500
35
155
Consumo teórico
0,281
0,833
1,389
0,097
0,431
Consumo real
0,384
1,142
1,903
0,133
0,590
Altura de recalque (metros)a
a Ministério do Interior. Fonte: Cálculo dos autores.
Conhecido o consumo de kWh para cada m3 transportado, o próximo passo seria transformar este consumo de energia em custo monetário. Há diversos caminhos para determinar-se o valor do kWh: um deles é apurar o custo real da concessionária geradora e distribuidora, outro é adotar o valor aplicado a outros consumidores de mesma atividade (tarifa diferenciada da agricultura de outras regiões) ou usar o valor padrão de custo internacional. A primeira alternativa (cálculo do custo da concessionária) é difícil e complexa, não cabendo seu uso aqui. As atividades que recebem energia elétrica com custo diferenciado, tais como indústria e irrigação, pagam uma média de US$ 0,06 por kWh consumido (fora do horário de pico). O custo desta tarifa foi calculado convertendo-se o valor da tabela da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), referente a dezembro de 2004, de R$ 114,18/MWh, pelo câmbio de R$ 2,50/US$ (cf. Aneel, 2005). O padrão internacional do custo de kWh (sem diferenciação) é da ordem de US$ 0,10 por kWh. Portanto, para o presente raciocínio, utilizarse-á doravante o menor custo (US$ 0,06/kWh). Para esse custo energético, a Tabela 3 (a seguir) mostra o custo total de energia nos diferentes eixos, na hipótese dos níveis de consumos para transposição dos mesmos. Para apurar o custo de energia do m3 transposto, multiplica-se o consumo de kWh/m3 pelo custo de 0,06/kWh. Quando se faz bombeamento em pequenos Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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projetos, quase a totalidade da água bombeada é utilizada na irrigação, contudo, em projetos deste porte, que utilizam canais construídos e naturais por longas distâncias, há de se considerar as perdas por evaporação, vazamento, infiltração e do excedente que não será utilizado, que chegará ao mar sem ser utilizado, principalmente no Eixo Norte. Neste caso, para facilitar os cálculos, mas não estando muito fora das perspectivas reais, considera-se que as perdas sejam de 74,6% em média, conforme mostra a Tabela 3: de cada 100 m3 bombeados, apenas 74,6% serão utilizados em agricultura irrigada comercial e para uso humano. O custo final da água (custo da energia) foi obtido pela divisão do custo da energia pelo fator de utilização ou eficiência de uso da água. TABELA 3
CÁLCULO DO CONSUMO DE ENERGIA E CÁLCULO DO SEU CUSTO (DESPESA VARIÁVEL) Ramais
Eixo Norte
Eixo Leste Paraíba
Pernambuco
Média São Francisco
Ponderada
Consumo de energia (a) m recalque, (m)
105
300
500
35
158,330
(b) padrão 1kWh,((m*m3)/kWh)
360
360
360
360
360,000
0,292
0,833
1,389
0,097
0,440
144
411
685
360
Consumo (em kWh/m3)
0,384
1,142
1,903
0,133
0,592
Custo por m3 (em US$/m3)
0,023
0,068
0,114
0,008
0,036
70%
85%
85%
97%
75,6%
0,033
0,081
0,134
0,008
0,046
(c) kWh/m3, (a / b) m necessários (d) fator eficiência
Eficiência do uso da água a Custo da energia (em US$/m3) a
73%
Estimativa dos autores. Valor arbitrado em função do desenho do projeto. Fonte: Cálculo dos autores.
Agora se deve apurar o impacto deste custo na atividade agrícola para uma unidade de área padrão de um hectare. Para tanto, comparamos na Tabela 4 a receita bruta de um hectare de milho com a despesa de água gasta nesta mesma área. Essa receita será o produto de 150 sacas3 vezes o preço de 6,56 US$ por 3. Correspondente a uma situação de alta produtividade, com 9.000kg/ha.
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saca, totalizando-se US$ 984. Na estimativa do custo de água será considerado o consumo de 6.000 m3 por hectare, correspondente ao consumo 60 m3/dia/ ha durante 100 dias. Tem-se em conta também que, em clima semi-árido, é recomendável que a irrigação supere a evaporação para se evitar a salinização dos solos (Cruciani, 1980). Destarte, o volume apontado é conservador, podendo em condições normais haver necessidade de mais água. A Tabela 4 apresenta os custos da água por ramal. Nos ramais de Pernambuco e Paraíba, o alto custo inviabiliza o uso agrícola. No Eixo Norte, o custo é aparentemente suportável, mas implica numa perda de competitividade permanente da atividade perante as demais áreas agrícolas que tenham alta produtividade e não utilizem irrigação. No ramal do São Francisco, o custo é compatível com outras áreas irrigadas do país. Também é relevante constatar que este custo é apenas o da energia. Os projetos normais de irrigação trabalham com recalques hidráulicos muito menores, da ordem de algumas dezenas de metros, e próximos da eficiência máxima de utilização da água, assemelhando-se à performance da área irrigada do São Francisco. Esta energia está sendo dispensada apenas para disponibilizar a água para as propriedades ribeirinhas da bacia recebedora. A fim de que tais propriedades se utilizem desta água para irrigação, ainda haverá a necessidade de recalques adicionais até a área de cultivo. TABELA 4
COMPARAÇÃO DO CUSTO VARIÁVEL DA ÁGUA COM A RECEITA BRUTA DE UM HECTARE NA CULTURA DE MILHO Custo da água Custo da água por Participação da água na (US$/m3) hectare (US$/ha) receita bruta de US$ 984 Eixo Norte
0,033
198
20,12%
Ramal da Paraíba
0,081
486
49,39%
Ramal de Pernambuco
0,134
804
81,71%
Irrigação do São Francisco
0,008
48
4,88%
Custo médio ponderado
0,046
276
28,05%
Fonte: Cálculo dos autores.
Dos cálculos energéticos, pode-se fazer uma crítica secundária, mas não menos importante, relativa ao efeito desta obra no sistema elétrico regional, que seguiria o seguinte raciocínio: de acordo com a Tabela 5 abaixo, cada m3 bombeado consumirá diretamente 0,592 kWh/m3 do sistema regional de Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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geração4, o que, somado à perda da energia que o mesmo m3 produziria se fosse utilizado na geração, no valor de 0,689 kWh (altura útil da usina em 248 metros), totalizaria uma perda de 1,281 kWh/m3. Ou seja, o sistema de geração pública vai perder, em média, US$ 88,6 milhões por ano. A perda estimada segue o raciocínio análogo ao de custo de oportunidade: caso não haja a transposição, o sistema de geração obterá receita até o limite de sua capacidade. Havendo a transposição, o sistema perde arrecadação pela energia gasta e pela não gerada, podendo, inclusive, ter de comprar energia cara de termoelétricas para suprir a demanda. TABELA 5
CÁLCULO DO “CUSTO” ENERGÉTICO TOTAL E DO EFEITO DO PROJETO NO SISTEMA ELÉTRICO REGIONAL, PARA UM VOLUME MÉDIO DE 2 ANOS VERTENDO EM 7 Eixo Norte
Eixo Leste Paraíba
Pernambuco
Média São Francisco
Ponderada
Consumo (em kWh/m3)
0,384
1,142
1,903
0,133
0,592
Consumo total (gasto + perda)
1,073
1,831
2,592
0,822
1,281
Custo + perda (em US$mil/ano)
52.094
12.878
18.232
5.411
88.615
Fonte: Cálculo dos autores.
No caso de haver necessidade de geração termoelétrica, o modelo emergencial prevê que o custo adicional será repassado ao custo de todos os usuários do Brasil. Em outras palavras, o subsídio energético ao Projeto da Transposição será custeado pela sociedade brasileira. Para não ocorrer o repasse do custo adicional ao resto do país, os usuários finais deverão pagar tarifas suficientes para remunerar as despesas ou, então, os Estados recebedores deste benefício deverão assumir o subsídio a seus agricultores e usuários finais. 2.3. Análise por Custos Fixos Três grandes grupos de custos fixos são identificados: a depreciação da obra, os juros do capital investido e as despesas operacionais e administrativas. Os custos fixos têm por natureza serem proporcionais ao tempo e não à produção, 4. Média ponderada para os dois eixos. Este valor foi obtido considerando-se o consumo teórico e o índice de eficiência de 73%.
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o que implica que existirão quer o sistema opere a plena carga quer não funcione. Nesta análise utiliza-se como unidade de tempo o ano. Apuram-se as despesas anuais e depois se as divide pelo volume de água transportada. O custo individualizado de cada ramal da transposição não é conhecido5, o que impossibilita a projeção teórica por ramal: qualquer número seria arbitrário, mesmo utilizando-se critérios racionais na sua obtenção. Assim, todos os valores calculados são referentes aos custos totais. A cobrança do custo de depreciação no preço do produto entregue representa a recuperação do capital investido ao longo da vida útil estimada do Projeto. Neste sentido, seria a forma do governo recuperar os impostos que investiu sem subsidiar o consumidor final do produto ou o serviço oferecido. No caso do Projeto de Transposição do rio São Francisco, em que a maior parte do investimento se destina à construção de canais, aquisição das bombas e linhas de transmissão, a vida útil média é estimada em 35 anos, enquanto o investimento total apontado pelo governo é de R$ 6 bilhões. Então, se calcula que a despesa anual de depreciação seria de R$ 171,43 milhões. Supõe-se que o governo recuperará as despesas financeiras cobrando as despesas de juros na tarifa do usuário final. O saldo médio devedor nos trinta e cinco anos é estimado pela média do saldo devedor inicial e final (R$ 6 bilhões e zero), ou seja, R$ 3 bilhões. Aplica-se juro anual de 12% sobre este saldo, resultando numa despesa de R$ 360 milhões. Apesar do valor de 12% ao ano ser inferior à taxa básica de financiamento da dívida pública, trata-se de uma boa estimativa para prever a média dos próximos 35 anos. O custo operacional administrativo anual deverá ser da ordem de R$ 18,9 milhões, calculado da seguinte forma: haverá de ser constituída uma empresa pública para gerir as atividades ou criar uma divisão em empresa já existente, com os devidos cargos de confiança, cargos técnicos gerenciais e os cargos operacionais de administração e manutenção. Devido ao caráter público, ao tamanho da obra e às pressões políticas, estima-se que a atividade terá 350 funcionários diretos a um custo médio de R$ 3.000,00 (lembrando que englobam custos indiretos), totalizando uma despesa anual de R$ 12,6 milhões. Crê-se que haverá uma despesa adicional anual de R$ 6,3 milhões para manutenção das bombas, da frota de veículos, dos maquinários, das despesas administrativas, das viagens, refeições etc. Somando-se o total da folha anual 5. O Ministério da Integração não fornece esse dado.
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de pagamentos ao das outras despesas operacionais chega-se ao valor anterior do custo operacional administrativo anual. O custo fixo do metro cúbico transposto é calculado dividindo-se o valor anual de 550,33 milhões de reais (ou 220 milhões de dólares, ao câmbio de 2,5 R$/US$) pelo volume de água transposta (819 milhões de m3 para ano seco, 1.153,22 milhões de m3 para média plurianual e 1.986,43 milhões de m3 para ano úmido). Sem considerar as perdas, isto é, que 100% será vendida, calcula-se o custo unitário, na mesma ordem, em 0,268; 0,191 e 0,111 US$/m3. Apurado os prováveis custos fixos por m3, pode-se avaliar o impacto no custo de produção do milho, que tem um consumo estimado de 6.000 m3/ha, conforme apontado na Tabela 66. TABELA 6
CUSTO FIXO DA ÁGUA: POR M3, POR HECTARE E PARTICIPAÇÃO DO CUSTO DA ÁGUA NA RECEITA BRUTA Custo fixo
Custo da água Custo da água por Participação da água na (US$/m3) hectare (US$/ha) receita bruta de US$ 984
Ano úmido
0,111
666
68%
Média plurianual (2 anos úmidos em 7)
0,191
1146
116%
Ano seco
0,268
1608
163%
Fonte: Cálculo dos autores.
Como mostra a Tabela 7, quando somamos os custos variáveis aos custos fixos, a situação fica ainda pior: TABELA 7
CUSTO TOTAL (FIXO E VARIÁVEL) DA ÁGUA: POR M3, POR HECTARE E PARTICIPAÇÃO DA ÁGUA NA RECEITA BRUTA Custo total (fixo e variável)
Custo da água Custo da água por Participação da água na (US$/m3) hectare (US$/ha) receita bruta de US$ 984
Ano úmido
0,155
930
95%
Média plurianual (2 anos úmidos em 7)
0,262
1572
160%
Ano seco
0,312
1872
190%
Fonte: Cálculo dos autores.
6. O milho foi usado pela facilidade na obtenção de dados a seu respeito e por ser uma cultura típica da agricultura familiar.
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Os custos foram calculados como se 100% da água fosse utilizada na ponta final, o que dificilmente ocorrerá. Também é muito difícil de se estimar qual será a perda num projeto complexo e extenso como este. Contudo, toda vez que houver a perda, o custo unitário da unidade utilizada será aumentado a fim de compensá-la. Destarte, se hipoteticamente as perdas em evaporação, infiltração e água descartada ao mar forem de 50%, o custo ao usuário da água utilizada deverá ser dobrado, podendo, neste caso, chegar a 0,310 US$/ m3 no ano úmido e 0,614 US$/m3 no ano seco. O custo total apontado corresponde somente ao custo da água, sem considerar outros custos como semente, adubo, maquinário, mão de obra, diesel, manutenção, administrativa, juros, defensivos etc. Conclui-se que a cobrança do custo da transposição aos usuários finais inviabilizaria a atividade agrícola, aquela que pretensamente justifica o projeto, por resultar na redução da miséria e faria a inserção da população na economia competitiva, criando empregos e melhorando a renda do trabalhador. Outro problema relevante está relacionado ao ciclo de alternância de 153 dias de irrigação com 212 dias de seca, nos anos que Sobradinho verter, bem como à aleatoriedade do bombeamento à vazão máxima, o que implica em dizer que as fruticulturas perenes não poderão se estabelecer neste cinturão irrigado, ou seja, apenas lavouras de ciclo anual poderão se beneficiar, restringindo em muito as alternativas dos agricultores. 2.4. Comentários gerais sobre a Transposição Técnicos do governo asseveram que o custo total da transposição da água do rio São Francisco é de 11 centavos de reais por m3, como assegura o chefe do Projeto, o economista Pedro Brito (2005), garantindo que ele será inferior ao custo de um projeto equivalente na Espanha. O valor é muito inferior ao que se demonstrou anteriormente neste estudo, que aponta um custo aproximado de 15,5 a 31,2 centavos de dólares por m3, dependendo do ano ser úmido ou seco. Na área agrícola, acredita-se que nem mesmo esse o custo “oficial” será cobrado dos usuários finais e, ao se confirmar tal fato, o subsídio cobrirá a totalidade do custo. Ainda que cobrados os R$ 0,11 por m3 do consumidor final, o subsídio ainda será da ordem de US$ 0,22 por m3, ou seja, 83% do custo real. O custo “oficial” é baixo por que, nos cálculos daqueles técnicos, há erro na estatística de vazão, bem como omissão da depreciação e dos juros. Na verdade, acredita-se que o custo total anual será da ordem de US$ 309 milhões, sendo US$ 220 milhões associados ao custo fixo da água, mais Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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US$ 41 milhões de custo variável relativo à energia consumida e US$ 48 milhões de perda de geração do sistema elétrico regional, ou R$ 771 milhões anuais. Este montante por certo terá que ser retirado da sociedade, por meio de impostos, nos próximos 35 anos, a fim de pagar a conta final. Ou seja, uma geração de brasileiros terá um acréscimo nos seus custos por conta desta obra, todos os anos7. O que significa a não cobrança dos custos totais ao usuário final? Significa um subsídio que o restante da sociedade irá pagar com impostos para cobrir o déficit público. No caso desta obra, se a População Economicamente Ativa (PEA) for de 60 milhões de brasileiros, cada qual terá de recolher, pelos próximos 35 anos, US$ 3,67 anuais apenas para custear tal projeto de irrigação. O uso da água para abastecimento humano, principal argumento do governo para justificar o projeto, é economicamente viável para o custo anteriormente estimado (2 anos úmidos em 7) de 0,262 US$/m3, tendo-se em conta que, em muitos lugares do mundo, o custo da água potável supera em muito este valor. Por exemplo, as águas dessalinizadas do mar, por osmose reversa e destilação multiestágios, têm o custo do metro cúbico produzido orçado em valores que superam a US$ 0,65 (sem computar o custo de distribuição). No entanto, considerando-se que a população beneficiada pelo Projeto de Transposição em tela é de 4 milhões de habitantes (33% da população do Semi-Árido nordestino), e um consumo diário per capita de 0,2 m3 (preconizado pela Organização das Nações Unidas para a Organização para a Agricultura e a Alimentação/FAO como satisfatório), o consumo total seria de 800 mil m3/dia, ou seja, 9,2 m3/s: apenas 14,6% da capacidade do Projeto. O que prova que o Projeto está de fato dimensionado para atender a demanda agrícola das águas transportadas, sendo apenas marginal a destinação para o consumo humano. Não é válido o argumento de que a transposição oferecerá segurança hídrica à 12 milhões de habitantes do Polígono da Seca. Isto fica mais evidente quando se acrescentam os seguintes argumentos: (1) A população se encontra dispersa numa grande área geográfica e somente uma pequena fração terá acesso direto. Acredita-se que não mais de 5% da população resida a menos de 10 km de distância dos canais, ficando o restante 7. Como foram negados financiamentos internacionais, o investimento se dará com recursos da União, subtraindo-os da Nação.
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a depender de algum sistema de distribuição. Em termos de logística e distribuição, o Projeto faz o transporte no atacado, não havendo qualquer menção ao sistema de atendimento capilar; (2) O Eixo Norte alimentará o rio Salgado, que, logo abaixo em seu curso, recebe as águas do maior açude do Nordeste, o Orós. A capacidade deste açude já é suficiente para atender à necessidade de consumo humano e manter perene o rio a jusante de sua barragem. Vale dizer, a transposição levará água para onde ela já está disponível. (3) Há inclusão de áreas não afetadas pela seca ou áreas com reservas suficientes para se sustentar na seca (a exemplo de Fortaleza), numa evidente maquiagem oficial para exagerar os benefícios. Argumentado que a transposição não atenderá às necessidades hídricas da população, mas, sim a demanda de projetos de irrigação, desqualifica-se a seguir outro argumento oficial, de que “a obra se justifica porque representa apenas o custo social de duas secas” (sic). Da forma que é apresentado o argumento, dá-se a entender que, feita a obra, não haverá mais o custo social da seca, ou seja, que em duas secas a sociedade recuperará o investimento. Na verdade, o que haverá é a sobreposição de investimentos: a sociedade fará o investimento da transposição e continuar-se-á tendo as despesas sociais das secas futuras. A informação oficial disponível indica ainda que o sistema de bombeamento máximo somente funcionará nos anos de seca, e utiliza este fato como argumento positivo em defesa da transposição, mais uma vez subentendendo-se que haverá redução de custo e menor impacto ambiental quando se bombear pouco. Na verdade, o bombeamento somente nos anos de seca é um fator que aumenta o custo da água transportada, pois, conforme já demonstrado, a maior parte do custo (aproximadamente 82%) é constituída de custo fixo (administração, manutenção, depreciação e juros), presente quer se opere o sistema ou não. Quando se reduz a produção, o custo por unidade aumenta. Conforme argumentou-se, o custo sobe quando se compara o custo do ano úmido com o do ano seco. O critério de bombear o volume máximo somente quando a represa de Sobradinho estiver com capacidade superior a 94% de sua capacidade, ou quando ela verter acima de sua barragem, deverá implicar em grande redução do volume transposto, pois, a longo de sete anos (de 1997 a 2003), em apenas dois deles tal situação ocorreu. O mais drástico se configura na área irrigada criada: para a irrigação, a previsão anterior deste ensaio é de utilização de 70% da vazão média esperada de 63 m3/s. Nesta base, isto proporcionaria incorporarSalvador Julho/Setembro 2007 no 227
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se 88 mil hectares ao cinturão irrigado. Quando se aplica a média plurianual de 37m3/s, a área irrigada diminui para 51 mil hectares (consumo de 0,5 l/s por hectare). O custo do hectare criado, correspondente ao custo do Projeto dividido pela área criada, atinge uma cifra entre 68 e 117 mil R$/ha. A disponibilidade de irrigação de apenas 153 dias por ano, além de impedir o cultivo de culturas perenes (as mais rentáveis e que geram mais emprego), também implica em limitar a rentabilidade do Projeto, pois para um mesmo investimento sua área gerará de 1 a 2 safras ao ano, em vez de 2 a 3 safras caso não houvesse limitação de água. Além disto, grande parte deste cinturão irrigado somente produzirá nos anos em que houver o bombeamento máximo, ou seja, apenas em 2 de cada 7 anos. Se considerarmos apenas 70% do volume de 26 m3/s, uma vez que a elevada aleatoriedade do excedente torna inaproveitável economicamente o recurso, a quantidade criada de hectares irrigáveis fica em 36 mil hectares e o custo do hectare vai a 164 mil R$/ha. A Figura 2, a seguir, ilustra a relação entre o investimento e a produtividade: o custo por capacidade utilizada fica estável até o limite de bombeamento contínuo de 26 m3/s. A partir deste ponto, o investimento é crescentemente mais oneroso, não havendo correspondente impacto na oferta de água ao acréscimo de investimento. Se o Projeto fosse redimensionado para operar apenas a 26 m3/s, quase 100% dos benefícios do Projeto atual já seriam atingidos a um custo provável de somente 1/3 do investimento proposto. Isto significa dizer que o mesmo apresenta sérios problemas de dimensionamento quando se correlaciona o investimento ao benefício gerado. FIGURA 2
RELAÇÃO CUSTO DA CAPACIDADE INSTALADA CONTRA A CAPACIDADE UTILIZADA
Fonte: Cálculo dos autores
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3. CONTENÇÃO EVAPORATVA DOS AÇUDES NORDESTINOS
3.1. Introdução Diversas alternativas são aventadas pelos críticos da transposição do rio São Francisco, dentre as quais destacam-se: a) Perfuração de poços profundos aproveitando-se o lençol freático da região, um dos maiores do planeta. Há, inclusive, poços já existentes, como o de Violeta (PI), que não vem sendo aproveitado por falta de um projeto de utilização. Poços artesianos minimizam investimentos em redes de distribuição e resultam em menos perdas por evaporação. Ademais, não geram custos energéticos (cf. ”Salve o Velho Chico”, 2005). b) Contenção evaporativa das águas represadas em açudes da região do Semi-Árido nordestino. c) Utilização das águas do rio São Francisco para beneficiar uma parte dos 2,4 milhões de hectares irrigáveis às margens do seu leito. Estima-se que a bacia deste rio possui em Minas Gerais e Bahia um potencial hídrico suficiente para beneficiar pelo menos 360 mil hectares de terras. A alternativa de poços tubulares, embora muito alardeada, tem serias limitações de aplicação no Polígono das Secas. Segundo Suassuna (1999), em termos geológicos a região é constituída por duas estruturas básicas. O embasamento cristalino, representado por 70% da região semi-árida, e as bacias sedimentares. Essas estruturas têm importância fundamental na disponibilidade de água, principalmente as de subsolo. No embasamento cristalino só há duas possibilidades da existência de água no subsolo: nas fraturas das rochas e nos aluviões perto de rios e riachos. Em geral, essas águas são poucas, de volumes finitos (os poços secam aos constantes bombeamentos) e, como se isso não bastasse, de má qualidade. As águas que têm contato com esse tipo de estrutura se mineralizam com muita facilidade, tornando-se salinizadas. Devido à facilidade de escorrimentos superficiais e a baixa capacidade de infiltração da água no solo, essas características possibilitaram, na região cristalina, a construção de um número expressivo de açudes e barragens, estimado em cerca de 80 mil, que represam cerca de 30 bilhões de m³ de água (somente no cristalino). Isto significa a maior reserva de água artificialmente acumulada em região semi-árida do mundo. Já as bacias sedimentares possuem um significativo volume de água no subsolo, mas estão localizadas de forma esparsa no Nordeste, verdadeiras ilhas Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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distribuídas desordenadamente no litoral e no interior da região, com seus volumes distribuídos de forma desigual. Para ter uma idéia dessa problemática, estima-se que 70% do volume da água do subsolo nordestino estejam localizados na bacia sedimentar do Piauí/Maranhão. Portanto, para a região principal do Polígono da Seca há pouca água de poço disponível. Uma vez descartada a discussão da opção de poços como alternativa à transposição, nesta seção discorre-se sobre a segunda delas, qual seja, a contenção evaporativa. Na conclusão, faremos um comentário acerca da terceira alternativa, que não é uma forma de obter água para o Sertão mas uma alternativa de atividade agrícola irrigada para se promover a geração de emprego de forma mais econômica na própria bacia do São Francisco. A análise que se segue não é mais do que um estudo teórico, porém, solidamente embasado em fundamentos físicos. A proposta aventa uma solução que utiliza materiais já existentes e, para ser executada em grande escala, exigiria investimento modesto. Ademais, na fase de execução também seria pequeno o prazo para dissipar-se as dúvidas de montagem e gestão anteriores à obra. Acredita-se que o potencial de ganho de água pode chegar a um valor equivalente a 24 transposições. O princípio é conter a evaporação na medida em que ela é responsável pela perda de 2 m3 de água por metro quadrado em cada ano. O revestimento da superfície dos lagos e açudes poderá conter em quase 100% a evaporação. Assim, na medida em que cada metro quadrado de lago for protegido, economizar-se-á 2 m3 de água que seriam evaporados anualmente. A evaporação é uma função linear da área de exposição. Como ilustração do fenômeno pode-se visualizar uma piscina de 2 metros de profundidade, sem vazamento e cheia: estando no Polígono das Secas, mesmo com as chuvas, a piscina secará no prazo de um ano. A evaporação no clima semi-árido é extremamente alta, considerando-se as altas temperaturas médias, a baixa umidade do ar e os ventos. O fenômeno é medido em milímetros de água que se evaporam por ano, chegando em alguns lugares do Nordeste a ter um potencial de evaporação de 3.000 mm por ano (cf. Ambiente Brasil, 2005). De fato, a perda de água é enorme. Estudos feitos em 90 açudes da região demonstram que boa parte da água é perdida dessa forma, restando apenas 25% para o abastecimento humano. Pouco ou nada sobra para as atividades produtivas: para cada metro cúbico disponível perdem-se três metros cúbicos de água com evaporação. O custo é enorme, pois é preciso guardar quatro para, no final, usar apenas um metro cúbico de água (cf. Codevasf, 2005). De acordo com Suassuna (2004), a
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incidência de ventos fortes e quentes, somada às longas horas de sol sobre o solo nordestino, acarretam elevados índices de evaporação. A Tabela 8 apresenta alguns valores dessa evaporação nas regiões de Seridó, Caatinga e Sertão, que compõem o Semi-Árido. Na média, a evaporação atinge 2.000 mm anuais, o que significa que diariamente são evaporados em torno de 6 mm de água, correspondendo, por sua vez, a 500 mm ou 0,5 m em três meses (cf. Suassuna, 1994). TABELA 8
EVAPORAÇÃO MÉDIA EM TRÊS REGIÕES NORDESTINAS Região
Município
Anos
Seridó
Cruzeta (RN) Quixeramobim (CE)
(1912-1958)
1.898
Caatinga
Floresta (PE)
(1939-1958)
1.897
Monteiro (PB)
(1942-1954)
1.740
Paratinga (BA)
(1947-1955)
2.135
Barra (BA)
(1946-1954)
1.716
Juazeiro (CE)
(1940-1954)
2.054
Sertão
(1933-1938); (1940-1946)
Evaporação Média
a
2.975
Ibipetuba (BA)
(1945-1955)
1.831
Souza (PB)
(1939-1958)
1.865
Fonte: Suassuna (1994). a Milímetros anuais.
A soma global das reservas dos açudes do nordeste é de 37 bilhões de m3. Sabendo-se que se perde 75% por evaporação, estima-se que a parcela perdida é da ordem de 27,7 bilhões de metros cúbicos anuais, o que equivale a uma vazão de 880 m3/s, ou seja, igual à 24 transposições com capacidade de 37 m3/s (média plurianual de 2:5, cf. Tabela 1)8. 3.2. Descrição sumária da proposta alternativa de revestimento para contenção evaporativa A técnica em análise envolve a colocação de material impermeável na superfície dos açudes. Avalia-se a viabilidade econômica de se utilizar os seguintes materiais: (1) filme plástico, como já é feito na África do Sul, (2) malha tipo ráfia, (3) filme de reciclagem de PET ou (4) uso de garrafas 8. O dado das perdas está em JornalExpress (2005).
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flutuantes. Posteriormente vai-se esclarecer aspectos de natureza técnica: o custo, a durabilidade sob efeito do raio solar ultravioleta (UV), o percentual de impermeabilização, a transparência, a resistência mecânica, a resistência química, o potencial de contaminação do material, a técnica e custo da montagem e desmontagem, a ancoragem, o custo de manutenção etc. Na simulação econômica, utilizamos de início cinco arranjos construtivos. 1. Filme Plástico Micro Perfurado: de produção industrial, modificado e aditivado para resistir ao UV solar. A manta é montada à beira do açude, emendando-se faixa por faixa, lateralmente. No açude, é posicionada previamente e depois amarrada em rede de cabos de polipropileno, a fim de manter ancorada a estrutura e que ela venha a resistir aos ventos. 2. Ráfia: também modificada quimicamente para resistir ao UV solar. Podese aventar o uso de junção de ráfia com filme em sanduíche para aumentar a impermeabilização. A montagem é análoga à solução anterior. 3. Filme de Reciclagem de Garrafas PET: reaproveitamento da porção cilíndrica das garrafas, primeiro obtendo-se placas retangulares de 25 x 30 cm, depois se tem a união dos retângulos por solda térmica, formando bobinas. A atividade de corte e soldagem das placas em bobinas deverá ser feita nas unidades de reciclagem. A montagem da capa propriamente segue etapas idênticas às das soluções anteriores. 4. Garrafas Flutuantes na Disposição em Paliçada Vertical: neste projeto, a construção é muito rudimentar, consistindo basicamente em encher parcialmente as garrafas plásticas com lastro (só água ou água e areia), fechá-las e depositá-las no lago. Colocando-se a quantidade de 44 garrafas por m2, haveria uma obstrução estimada em 79% da superfície. Também se promoveria a quebra do vento junto à borda molhada. A diferença entre o modelo presente e o seguinte, entre vertical e horizontal, consiste na densidade do lastro. Se for lastro com densidade superior ao da água, as garrafas tenderão à posição vertical; se o lastro for apenas de água, a garrafa tenderá a ficar na horizontal. O lastro deverá ser suficiente para manter a garrafa com 40% a 50% de seu volume submerso. Utiliza-se para tanto qualquer garrafa. Haverá necessidade de desenvolvimento de dispositivos que evitem as garrafas irem embora quando o açude verter nas chuvas. 5. Garrafas Flutuantes na Disposição Paliçada Horizontal: idêntico ao caso anterior, somente que consumirá apenas 20 unidades/m2, com vedação arbitrada de 75% da área.
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3.3. Resultados e discussão Inicialmente, apura-se o custo por unidade produtiva, considerando-se os insumos consumidos e os serviços aplicados, estimados por unidade de 1 metro quadrado, conforme Tabela 9, abaixo. Conhecido o custo total do metro quadrado, o passo seguinte consiste em relacioná-lo à capacidade de ganho de água por unidade, calculando-se o custo fixo da água produzida, o custo variável e o custo total da água ofertada (cf. Tabela 10, na página seguinte). Trabalhamos aqui com um ganho em água de 2 m3 por m2 por ano, taxa de câmbio de 2,5 reais por dólar, participação do custo de manutenção anual em 30% do custo fixo e vida útil do projeto de cinco anos. Considerando-se, por exemplo, o projeto Garrafas Flutuantes Na Disposição Paliçada Horizontal, o custo total corresponde ao custo do metro cúbico em 19 centavos de reais. Em dólares, a água custará 8 centavos por m3. Nesse custo está previsto remunerar as atividades de manutenção geral, quer seja para reparo de danos, recuperação da depreciação, reposição de material, administração e pagamento dos juros sobre o capital investido. Conhecido o custo da água produzida, apura-se em seguida os demais parâmetros de comparação propostos, tais como o investimento necessário para se produzir 1 m3/s e o custo do hectare irrigado criado. TABELA 9
CUSTO POR UNIDADE PRODUTIVA DE CINCO PROJETOS DE CONTENÇÃO EVAPORATIVA (EM REAIS) Filme
Ráfia
Reciclagem de PET
PET Vertical
PET Horizontal
m2
m2
garrafas
garrafas
garrafas
1
1
12
44
20
Custo unitário (R$/unid)
1,50
1,50
0,05
0,05
0,05
Custo direto por m2
1,50
1,50
0,60
2,20
1,00
Ancoragem
0,10
0,10
0,10
Unidade Unidades/m
2
Barreira no vertedouro Serviço em montagem
0,30
0,30
-
-
0,01
0,01
0,01
0,30
0,05
0,05
Frete
0,03
0,03
0,03
0,03
0,03
Custo total (R$/m2)
1,93
1,93
1,04
2,29
1,09
Fonte: Cálculo dos autores.
A alternativa da contenção evaporativa apresenta potencial de conseguir uma relação investimento por m3 de água gerada por segundo inferior a R$ 30 milhões, muito abaixo da mesma relação no caso da transposição, que apresenta Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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relação unitária de R$ 162 milhões quando se divide o investimento de R$ 6 bilhões por 37 m3/s. Conforme visto anteriormente, quando utilizamos a vazão aproveitável da transposição (26 m3/s), a relação chega a R$ 231 milhões por m3/s. TABELA 10
CUSTOS DA ÁGUA PRODUZIDA E OFERTADA POR CONTENÇÃO EVAPORATIVAS (EM REAIS) Filme Custo total (R$/m2)
1,93
Ráfia
Reciclagem de PET
PET Vertical
PET Horizontal
1,93
1,04
2,29
1,09
Percentual de contenção
97%
95%
94%
77%
75%
Ganho real m3/m2/ano
1,94
1,90
1,88
1,54
1,50
Custo fixo (R$/m3/ano)
0,199
0,203
0,111
0,297
0,145
Custo variável (R$/m / ano)
0,060
0,061
0,033
0,089
0,044
3
Custo total (R$/m3/ano)
0,259
0,264
0,144
0,387
0,189
Custo total (US$/m3)
0,103
0,106
0,058
0,155
0,076
Fonte: Cálculo dos autores.
TABELA 11
COMPARAÇÃO DE CUSTOS ENTRE PROJETOS ALTERNATIVOS E COM A ESTRATÉGIA DE TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO Filme Ganho real (m3/m2/ano) Tamanho da contenção para ganho de 1 m3/s (ha) Custo da unidade produtiva (R$ milhões / m3/s) Comparação de custos (transposiçãoa/ contenção) Condição de equivalência de custo (R$/m2)
Ráfia
Reciclagem de PET
PET Vertical
PET Horizontal
1,94
1,90
1,88
1,54
1,50
1.626
1.660
1.677
2.048
2.102
31
32
17
47
23
7,36
7,21
13,24
4,93
10,08
14,21
13,92
13,77
11,28
10,99
Fonte: Cálculo dos autores. a Custo unidade para vazão útil de 26m3/s de R$ 231 milhões.
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A Tabela 11 mostra, para cada um dos projetos de contenção evaporativa, o ganho real anual (m3/m2/ano), o custo da unidade produtiva (dado a dimensão dela e o custo do m2) e o custo alternativo da unidade produtiva com a transposição. Apresenta também a relação entre estes dois últimos custos e o custo adicional pela opção da alternativa mais cara. O enfoque alternativo da contenção evaporativa, portanto, resolve o problema da seca com um investimento que pode chegar a ser mais de 14 vezes menor que o da transposição das águas do São Francisco. O ponto de equilíbrio, definido como o custo do metro quadrado para que a alternativa de contenção evaporativa apresente similaridade de desempenho à transposição, é de aproximadamente R$ 13,00 por metro quadrado. Como a alternativa de contenção evaporativa pode chegar a um custo próximo a R$ 1,00/m2, o investimento pode ser substancialmente menor. A relação de investimento necessário para irrigar 1 hectare é obtida a partir do volume anual de água para irrigar 1 hectare multiplicando-se o número de segundos do ano pela demanda de 0,5 l/s de 1 hectare. Divide-se por mil para ajustar a unidade para m3, em seguida dividese novamente pela quantidade em m3 que cada metro quadrado pode gerar de água: considerando-se 2 m3/m2, chega-se à área necessária para “obter” a água de 1 hectare, que é de 7.884 m2. Custando o m2 R$ 2,00, o investimento para criar 1 hectare será de 15,77 mil reais. O custo da água será de 0,06 a 0,15 US$/m3; para uma lavoura de milho que consuma 6 mil m3, o custo será de 360 a 900 US$ por hectare, correspondendo a 36 a 91% da receita bruta da lavoura. O custo final da água está condicionado a inúmeros fatores que ainda dependem de maior estudo, entre os quais a vida útil do material (o qual, caso supere os cinco anos aplicados, proporcionará uma redução de custo adicional). Apesar do investimento para obter uma unidade de água pela contenção evaporativa ter sido calculado com potencial menor que um décimo do investimento para oferta equivalente através da transposição, o diferencial de custo é de apenas um quarto, o que se justifica pela diferença no prazo de depreciação (na transposição, 35 anos; na simulação da contenção evaporativa, apenas 5 anos). Considerações adicionais devem então ser feitas sobre o prazo de depreciação: a primeira é dizer que, havendo uma vida útil maior que o estipulado, o custo será diminuído na direta proporção do aumento deste prazo aplicado sobre o montante da depreciação, que representa aproximadamente 70% do custo total. Outra forma de computar este ganho é cobrar-se o custo pelo prazo especificado, sendo que o custo nos anos de sobrevida do material seria reduzido apenas ao custo de manutenção (30% do custo total). Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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3.4. Observações complementares O segundo maior problema causado pela alta evaporação é o da salinização dos pequenos açudes. Como afirma, Suassuna (2004), o processo funciona da seguinte forma: “Levando em conta os efeitos da evaporação em um pequeno açude cuja lâmina de água (distância do espelho d’água ao fundo do reservatório) varie de 10 m a 1,6 m, chegaremos à conclusão que, no primeiro caso, a concentração salina ao final de um ano pode chegar a 25%. Isso é fácil de entender porque, na evaporação, o que é subtraído do açude é a água, enquanto a concentração dos sais vai aumentando progressivamente”. Pior do que ter pouca água é quando a pouca água que se tem fica imprópria para consumo e irrigação. Assim, a segunda maior vantagem deste sistema ocorre quando ele é aplicado nas lagoas rasas, diminuindo significativamente a salinização que é grande nesta condição particular. Isto é, além de economizar água, vai-se conservá-la potável por mais tempo. Outra vantagem é que a técnica de contenção evaporativa poderá ser aplicada de forma uniformemente distribuída no Polígono das Secas: a água pode ficar disponível para grande parte da população da área rural, evitando-se efetivamente a calamidade do êxodo rural e estabilizando a oferta de água. A contenção evaporativa não consome energia elétrica para funcionar, pois seu princípio usa apenas a contenção física da evaporação. 3.5. Conclusão Por fim, introduzimos, na Tabela 12 (na página seguinte), outra alternativa de geração de área irrigada que é a irrigação das regiões ribeirinhas ao São Francisco. Assim, o investimento na contenção evaporativa em detrimento da transposição tem as seguintes vantagens: 1. Não consome energia para operar, desonerando o sistema de geração. A transposição “consumirá” 1,281 kWh/m3 para o resto da vida. Além da perda direta, ela provocará o aumento do custo da energia para os usuários em geral9. 2. Não utiliza o recurso hídrico do São Francisco: não divide o recurso atual, apenas suprime as perdas (sai-se da briga de direitos de outorga). 3. Não traz qualquer risco ambiental da invasão de espécies da bacia do São Francisco nas bacias receptoras. 9. As estações de bombeamento consumirão 15% da capacidade energética instalada em todo o Nordeste (cf. “Salve o Velho Chico”, 2005).
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TABELA 12
QUADRO COMPARATIVO FINAL Item
Transposição
Custo da unidade produtiva (R$ milhões / 1m3/s)
164 a 231
Contenção Evaporativa 17 a 30
Irrigação Ribeirinha Não calculado
Custo do m3 (US$/m3)
0,11 a 0,61
0,06 a 0,15
< 0,05
Custo do hectare criado (milhares de R$)
68 a 164
7 a 16
< 10
Custo fixo anual (US$ milhões)
220
36 a 97
Não calculado
41
11 a 29
Não calculado
48
Zero
Não calculado Não calculado
a
Custo variável anual (US$ milhões)
a
Perda de geração elétrica (US$ milhões) Custo total anual (US$ milhões)
a
309
47 a 126
Consumo + perda de energia (kWh/m3)
1,281
Zero
Não calculado
Disputa de recurso atual
Sim
Não
Sim
a
Distribuição da oferta
Restrita
Ampla
Não aplicável
Sinergia
Não
Sim
Não aplicável
Fonte: Cálculo dos autores. a As comparações foram feitas para oferta equivalente de água.
4. Reduz a salinização, especialmente nos açudes rasos, aumentando o tempo que a água fica potável e disponível. A disponibilidade de água nos açudes pequenos, a grande maioria dos açudes do Nordeste, apresenta-se assim distribuída mais uniformemente no vasto Polígono das Secas e, destarte, irá possibilitar um maior acesso do sertanejo à água. 5. Pode ser feito com material reciclado, proporcionando uma demanda firme para uma fração do lixo urbano. 6. O investimento nas medidas de contenção evaporativa pode chegar a ser 13 vezes menor que o equivalente à capacidade de produção na transposição. 7. O ponto de equilíbrio com a transposição é de 10 a 14 R$/m2 no custo da contenção evaporativa, sendo que o custo da contenção evaporativa poderá aproximar-se à 1 R$/m2. O Projeto de Transposição tem profundos erros de dimensionamento, devendo, no mínimo, sofrer uma redefinição, limitando-se apenas ao volume fixo de 26 m3/s: o investimento acima deste volume não proporciona mais benefícios devido ao regime da transposição tornar inaproveitável sua água para utilização de forma econômica. Os defensores da transposição afirmam que ela permitirá reduzir as perdas evaporativas dos açudes em 50%. Chamam este fato de sinergia. Na verdade, Salvador Julho/Setembro 2007 no 227
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este ganho será obtido pela diminuição da superfície dos açudes, esvaziando-os. O que aparentemente seria uma vantagem acarreta, na verdade, na inutilização dos açudes já construídos, os quais serão mantidos vazios. É o mesmo que dizer que a sociedade pode jogar fora todos os investimentos realizados nos açudes pois eles não mais serão aproveitados. A relação custo/benefício pode chegar a mais de 13 vezes a favor da contenção evaporativa. Esta vantagem constitui um argumento suficiente em defesa de esforços para torná-la realidade. O Projeto da Transposição está cheio de dúvidas desde sua concepção há mais de 120 anos. Sendo assim, é recomendável postergá-lo mais um pouco até que se tenha uma maior segurança da sua racionalidade. Por exemplo, adiando-o em mais dois anos, ter-se-ia tempo suficiente para esclarecer os benefícios da contenção evaporativa à sociedade. Em outras palavras, a paciência de mais dois anos para conseguir funcionar a contenção evaporativa pode proporcionar uma economia de até 5,4 bilhões para o Brasil obter a mesma água. Terras agrícolas de São Paulo, com topografia suavemente ondulada, na beira do asfalto, com energia elétrica, telefonia, próxima ao centro consumidor e indústrias de beneficiamento, em área sem especulação imobiliária, têm custo próximo à R$ 30 mil o hectare. Terras nuas de primeira qualidade custam menos de mil dólares o hectare. Como se pode desenvolver o Projeto da Transposição sabendo que o hectare criado poderá custar R$ 117 mil sem nenhuma benfeitoria? Tal custo da transposição é apenas para levar água às margens das áreas aptas à irrigação. No entanto, para torná-las irrigadas de fato ainda haverá necessidade de mais investimentos no preparo de solo, sistematização do terreno, construção de canais de distribuição secundários e terciários, compra dos equipamentos de irrigação, correção e adubação do solo etc. O custo do hectare irrigável neste Projeto chega a ultrapassar 10 vezes o custo do hectare irrigável que se criaria nas margens do rio São Francisco. Em outras palavras, com tal investimento poder-se-ia irrigar quase um milhão de hectares no vale do São Francisco. Nesta região, dependendo do tamanho da área beneficiada, sobrariam recursos para demais infra-estruturas, tais como rodovias, eletrificação rural, financiamento de maquinários, de insumos e mudas, entre outros. O mais importante: nesta segunda opção, boa parte do investimento não seria feito a fundo perdido, pois a atividade seria rentável, com capacidade de pagamento e não vivendo de subsídios do resto da sociedade. Não cabe discutir a lisura dos ganhos de agentes beneficiados com a obra (agricultores, construtoras, políticos e outros). No entanto, suspeita-se da
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real intenção de um governo que se decide por uma obra que só perpetua o assistencialismo, que cria e pereniza uma atividade deficitária para ser custeada pela sociedade brasileira para o resto da vida (35 anos é o que sobra de vida da nossa geração!). Se o objetivo da transposição fosse a criação de empregos na agricultura irrigada, deveria ser escolhida a opção de expandir o pólo irrigado da área ribeirinha ao rio São Francisco, pois esta área tem potencial de criar dez vezes mais emprego por unidade de investimento que a transposição. A alternativa de contenção evaporativa oferece a mesma água da transposição a um custo muito menor. Mesmo que o custo da contenção evaporativa fosse elevado a ponto de tornar essa estratégia alternativa semelhante à transposição em termos de eficiência de investimento, ainda assim a contenção evaporativa deveria ser a opção escolhida porque tem as vantagens qualitativas adicionais de não consumir energia elétrica, não dividir o limitado recurso do rio São Francisco e oferecer água de forma mais distribuída dentro do Polígono das Secas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ambiente Brasil. www.ambientebrasil.com.br, acessado em 30 de junho de 2005. Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). www.aneel.gov.br, acessado em 5 de agosto de 2005. Brito, Pedro. ”Água para todos”. Folha de S. Paulo. São Paulo, 20 de fevereiro de 2005. Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Paraíba (Codevasf). www. codevasf.gov.br, acessado em 30 de junho de 2005. Cruciani, Décio Eugênio. A drenagem na agricultura. São Paulo, Nobel, 1980. “Salve o Velho Chico”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, julho de 2005, Cad. JB Ecológico, p. 38-39. JornalExpress. www.jornalexpress.com.br, acessado em 30 de junho de 2005. Ministério da Integração Nacional (www.integracao.gov.br/saofrancisco, acessado em 20 de julho de 2005) _________. “Pedido de Vista do Processo 2000.002324/2003-65”. www.integracao.gov.br, acessado em 5 de agosto de 2005. Suassuna, João. “A pequena irrigação do Nordeste: algumas preocupações”. Ciência Hoje, 18: 104. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), out., 1994. ________. “Transposição: impactos na bacia do São Francisco”. Fundação Joaquim Nabuco, 1999. www.fundaj.gov.br/docs/tropico, acessado em 6 de agosto de 2005. ________. “Transposição do São Francisco e a reeleição do presidente Lula”. Carta Maior, 9 de novembro de 2004. agenciacartamaior.uol.com.br, acessado em 30 de junho de 2005. Tibau, A. O. Técnicas modernas de irrigação. São Paulo, Nobel, 1987.
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* Ricardo Feijó é doutor e Livre-Docente pela Universidade de São Paulo (USP) e professor associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP-USP). [riccfeij@usp.br] ** Sérgio Toggler é engenheiro agrônomo. [torgglerrp@aol.com]