Aventuras na História - Edição 194

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EDIÇÃO 194 | JULHO/2019

PRÉ-HISTÓRIA: QUEM FORAM OS PRIMEIROS BRASILEIROS? A QUEDA DA BASTILHA E O GRANDE TERROR ATÉ NAPOLEÃO O MARTÍRIO DOS CRISTÃOS QUE LEVOU À CRIAÇÃO DA SANTIDADE

O GRANDE PASSO DA HUMANIDADE

HÁ 50 ANOS, COMEÇAVA A PRIMEIRA VIAGEM DO HOMEM À LUA: A MAIOR DE TODAS AS AVENTURAS. E QUE, POR POUCO, NÃO TERMINOU EM TRAGÉDIA



SUMÁRIO

36 CAPA: O VOO HISTÓRICO DA APOLLO 11, A PRIMEIRA VIAGEM QUE LEVOU O HOMEM À LUA, COMPLETA CINCO DÉCADAS

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GALERIA Kabuki: o exagerado teatro japonês

SURREAL Um convento que está mais para cemitério

13 COMO FAZÍAMOS SEM

17 À MESA

Hambúrguer não é invenção americana

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LINHA DO TEMPO As piores epidemias ao longo dos séculos

14 ARTE

52 PARA ENTENDER NA 56 HOJE HISTÓRIA

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Dinheiro

Série de mosaicos feita por Gustav Klimt

DITO E FEITO De onde vem o termo “elefante branco”?

Manicômios no Brasil

Aconteceu em julho

MEMÓRIA O início do movimento de orgulho LGBT+

20 RELIGIÃO

O martírio dos primeiros cristãos que deu origem aos santos na Igreja Católica

28 REVOLUÇÃO

Há 230 anos, Tomada da Bastilha em Paris marcava o fim do regime absolutista

46 BRASIL

Pré-História: quem foram e como viviam os primeiros brasileiros no país?

53 COLUNA M.R.TERCI

54 COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

55 ENTREVISTA JONATHAN BEREZOVSKY


EDITORIAL

MAR DA TRANQUILIDADE

U

m dos desafios da equipe de Aventuras na História é tratar de temas contemporâneos. Explico: uma das nossas missões, por aqui, é justamente estimular o senso crítico de momentos atuais tendo como base as tramas do passado, o conhecimento. Como contar uma história recente sem o apoio da reflexão que só a distância traz? Ou mostrar os fatos sem colocá-los em perspectiva e compará-los com outros momentos da história? O tema da reportagem de capa desta edição tem disso. E não poderia ser outro. Afinal, estamos em pleno mês de aniversário dos 50 anos do primeiro passo do homem na Lua. O desafio de relatar essa conquista fugindo do lugar-comum foi dado ao jornalista Alexandre Carvalho, dono de uma prosa poética, que se preocupou em contar algo bem especial: as impressões dos próprios astronautas durante o passeio histórico, incluindo os momentos de alegria e de tensão de cada viajante. Uma leitura que, no fim, virou experiência. De quebra, conseguiu nos fazer pensar sobre um tema atual e de muita importância para a vida de todos nós: a ambição do homem pelos recursos da natureza. Neil Armstrong virou herói: o primeiro a pisar na Lua, único satélite natural da Terra, no Mar da Tranquilidade. Vida longa ao astro! Boa viagem. Um abraço, Izabel Duva Rapoport Editora

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(Lançada em 2003) Editora: Izabel Duva Rapoport; Arte: Marília Filgueiras; Revisão: Bianca Albert; Colaboraram nesta edição: Joseane Pereira (repórter); Hellen Ribeiro (revisão) REDAÇÃO E CORRESPONDÊNCIA SÃO PAULO: Av. Eusébio Matoso, 1.375, 5º andar, Pinheiros, CEP 05423-180, SP, Brasil. Publicidade: Tel. 2197-2104/2122

AVENTURAS NA HISTÓRIA 194 ISSN (1806-2415), ano 16, nº 6, é uma publicação mensal da Perfil Brasil. Edições anteriores: Solicite ao seu jornaleiro pelo preço da última edição em bancas, mais despesa de remessa; sujeito a disponibilidade de estoque. Distribuída em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. AVENTURAS NA HISTÓRIA não admite publicidade redacional A Perfil Brasil informa que não realiza cobrança telefônica de débitos pendentes e não aplica qualquer tipo de multa em virtude de cancelamento de assinatura. Todos os nossos boletos são emitidos através do banco Santander, com cedente Perfil Brasil. Em caso de dúvida, ligue para nós. PARA ASSINAR OU RESOLVER OS ASSUNTOS RELATIVOS À SUA ASSINATURA, ACESSE: www.assineclube.com.br/faleconosco SE PREFERIR LIGUE: São Paulo: (11) 3512-9479 Rio de Janeiro: (21) 4063-6989 Belo Horizonte: (31) 4063-8156 Segunda a sexta-feira das 9h às 18h IMPRESSA NA COAN INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA. Avenida Tancredo Neves, 300 Tubarão - SC - Brasil

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GALERIA

O EXAGERADO E TRADICIONAL ESTILO DE TEATRO JAPONÊS, CRIADO EM 1603, REPRESENTA A ARTE POPULAR E FAZ OPOSIÇÃO AO REQUINTE ARISTOCRÁTICO SUAVE E ZEN DAQUELA ÉPOCA POR ALEXANDRE CARVALHO

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


TRADIÇÃO RENOVADA Um superstar no Japão, com participações em quase 40 filmes (incluindo Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood), Shido Nakamura começou no kabuki aos 8 anos, dando continuidade ao trabalho de seu pai. E até hoje, aos 46, mantém-se fiel ao mais popular entre os estilos tradicionais do teatro japonês. Nesta foto, de 2016, o ator se apresentava num festival que combinou a herança cultural do kabuki com animação de vanguarda. A integração de elementos contemporâneos tem ajudado a renovar o interesse nacional por essa arte cênica, Patrimônio Cultural da Humanidade. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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GALERIA

CROSSDRESSER Décimo-primeiro de uma linhagem de artistas do kabuki, Ebizo Ichikawa XI surge aqui caracterizado como mulher. O transformismo vem desde o século 17, quando as mulheres foram proibidas nessa arte por serem consideradas eróticas demais. No entanto, o kabuki nasceu para ser uma performance feminina: a sacerdotisa Okuni inventou o estilo de dança dramática em 1603, fazendo encenações cômicas sobre o cotidiano. A rápida popularidade que esse teatro alcançou esteve ligada à sensualidade das exibições.

BUNRAKU O teatro de fantoches japonês, o bunraku, rivalizou durante um período com o kabuki como arte cênica do povo, um entretenimento para as classes de baixa renda. Então, no século 18, o que era concorrência virou colaboração entre os dois estilos. A interação rendeu inovações marcantes, como as atuações em que atores do kabuki reproduzem os movimentos característicos dos fantoches – mas, em contrapartida, pintados e vestidos como no kabuki. 8

AVENTURAS NA HISTÓRIA


HANAMICH Para momentos que exigem efeitos dramáticos diferentes – ou para entradas e saídas de cena –, o kabuki conta com uma passarela chamada de hanamich (“caminho da flor”), que também tem a função de aproximar os artistas de seu público – quem já viu um show dos Rolling Stones, com Mick Jagger correndo por uma estrutura semelhante, vai entender a sensação. Na foto, um personagem com quimono e guarda-chuva tradicional é observado por um grupo de gueixas. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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GALERIA

KESHO

FOTOS CARL COURT, BRUNO VINCENT, M. LEIGHEB, JOHN S LANDER, G. NIMATALLAH, NOBORU HASHIMOTO / GETTY IMAGES

Mesmo quem não tem familiaridade com esse estilo do teatro japonês reconhece fácil uma maquiagem kabuki, chamada de kesho, que se assemelha a máscaras. A base branca é feita de pó de arroz e as expressões são pintadas de modo a enfatizar – geralmente de forma exagerada – traços animalescos ou sobrenaturais. No kabuki, a pintura no rosto é tão fundamental que expressa a própria essência do personagem. As linhas vermelhas indicam aspectos positivos, como heroísmo ou generosidade, as roxas expressam nobreza. Já as azuis são do mal: revelam inveja ou mau-caratismo.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


MIE Nos momentos de maior emoção, um auge de expressividade toma forma no mie. Esse é o termo para o instante em que o ator segura uma determinada pose – como se o tempo parasse sobre o palco para que o público contemplasse com a merecida atenção aquela cena especial. Nessa hora, pessoas da plateia gritam palavras de incentivo ou bradam o nome do ator. É o arrebatamento tomando conta do kabuki – um espetáculo incomparável.

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HOJE NA HISTÓRIA

ACONTECEU EM JULHO Começa a Batalha de 1863 Gettysburg, na Pensilvânia, em meio à Guerra Civil dos EUA. Durante o conflito, esse foi o combate que deixou o maior número de vítimas fatais: 28 mil pessoas.

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Astrônomos chineses, árabes 1054 e, talvez, maias observam a existência de uma Supernova nos céus. Brilhava tão forte que se via de dia. Seus restos, hoje, formam a Nebulosa do Caranguejo.

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Ocorre o primeiro voo de Zepelim, 1900 no Lago Constance, em Friedrichshafen, na Alemanha. No comando do dirigível, que tinha 140 metros de comprimento, estava Ferdinand Graf von Zeppelin.

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Realizado o primeiro voo entre 1914 São Paulo e Rio de Janeiro pelo aviador paulistano Eduardo Pacheco Chaves (conhecido por Edu Chaves). A viagem durou 4 horas e 40 minutos.

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O imperador bizantino Miguel I 813 abdica em favor do general Leão V, o Armênio. Mudou seu nome para Atanásio e tornou-se monge. Seus filhos foram castrados e confinados num mosteiro. 12

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Saladino, sultão do Egito e da 1187 Síria, derrota o exército cristão dos cruzados perto do Mar da Galileia, na Batalha de Hattin. Depois, o muçulmano reconquistaria Jerusalém.

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Como forma de homenagem 776 a.C. aos deuses, em especial a Zeus, tem início a era das Olimpíadas entre os gregos. Os jogos eram realizados de quatro em quatro anos, em Olímpia, na Grécia Antiga.

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O navegador português Vasco 1497 da Gama parte de Portugal com a frota (de quatro navios e 170 homens) que descobriria o caminho entre a Europa e o Oriente contornando a costa africana.

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O bispo católico Diego de Landa 1562 queima os livros sagrados dos maias sob afirmação de que as obras difundiam o “culto de ídolos”. Um número indeterminado de obras maias se perdeu.

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Aos 16 anos, Edson Arantes 1957 do Nascimento, o Pelé, faz sua primeira partida pelo Brasil, contra a Argentina, e marca o único gol brasileiro da partida – o primeiro de seus 95 gols pelo país.

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No Congresso de Tucumán, na 1816 casa de Francisca Bazán de Laguna, é proclamada a independência das Províncias Unidas do Rio da Prata da Espanha, que passam a se chamar Argentina.

Henrique VI, rei da Inglaterra, 1460 é feito prisioneiro após perder a Batalha de Northampton, na Guerra das Rosas (1455-1487). As casas Lancaster (à qual pertencia) e York lutaram pelo trono do país.

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Os EUA fazem o primeiro teste 1945 nuclear da história, de codinome Trinity, no Deserto de Alamogordo, no México. É considerado o início da Era Atômica (dias antes do bombardeio em Hiroshima e Nagasaki).

O espanhol Luiz Gálvez Rodrí1899 guez de Arias transforma o território que pertencia à Bolívia na República do Acre e se torna seu presidente. Em 1903, o Acre seria incorporado pelo Brasil.

IMAGENS REPRODUÇÃO

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Guiado por índios guaranis, o 1542 navegador espanhol Alvar Nuñes Cabeza de Vaca descobre a Foz do Rio Iguaçu. Seu destino era o Paraguai quando encontrou as cataratas.

O imperador Haile Selassie 1931 assina e decreta a primeira Constituição da Etiópia. O decreto estabeleceu padrões democráticos, mas manteve privilégios da nobreza.

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Nicolau II, último czar da Rússia, é fuzilado com a esposa, czarina Alexandra, e cinco filhos por revolucionários bolcheviques, que temiam ser descoberto o local da prisão do czar.

O Uruguai é anexado ao Brasil 1821 com o nome de Província Cisplatina. A situação mudou em 1825, quando líderes separatistas invadiram a região e proclamaram sua independência.

Jerusalém é invadida e 586 a.C. destruída pelo exército de Nabucodonosor, o todo-poderoso da Babilônia, atual Iraque. Os judeus partem do Reino de Judá para o chamado Exílio Babilônico.

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Durante a Segunda Guerra 1944 Mundial, Hitler sobrevive a um atentado. O ato partiu de militares liderados por Claus von Stauffenberg, oficial alemão executado no dia seguinte por nazistas.

É assinado o Tratado de Paz 1718 de Passarowitz, em Požarevac, na Sérvia. Depois de batalhas contra o Império Austríaco e a República de Veneza, em busca de terras, o Império Otomano foi derrotado.

Durante a Guerra dos Farrapos, 1839 Giuseppe Garibaldi toma Laguna, em Santa Catarina. Quatro meses depois, o local foi retomado e os farroupilhas iniciaram a retirada por terra.

É dado o Golpe da Maioridade: 1840 dom Pedro de Alcântara, então com 14 anos, é declarado maior de idade, tornando-se imperador do Brasil, dom Pedro II. Rumo a sérias tribulações políticas.

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Nasce Simon Bolívar, militar 1783 e estadista venezuelano que liderou os movimentos revolucionários que promoveram a independência da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia.

É criado o Ministério da 1953 Saúde. Desde 1930, no governo provisório de Vargas, as questões de saúde eram tratadas pelo Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública.

Morre o rei Offa da Mércia, líder 796 anglo-saxão e o primeiro a receber o título “rei dos anglos”. Cristão, unificou o território inglês, difundiu a religião e introduziu a moeda de prata para pagamentos.

Fim da Guerra da Coreia, com 1953 a assinatura de um armistício e a fixação de fronteiras: os coreanos do Norte e os do Sul ficam divididos pelo Paralelo 38, uma linha de demarcação militar.

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O governo dos EUA aumenta o 1965 número de soldados na Guerra do Vietnã de 75 mil para 125 mil homens, marcando o auge do conflito. Diante da pressão pública, o país se retiraria em 1973.

Vincent Van Gogh morre nos 1890 braços do irmão, Theo, dois dias depois de dar um tiro em seu próprio peito. Segundo Theo, as últimas palavras ditas pelo pintor foram: “A tristeza durará para sempre”.

Na marcha de Marselha para 1792 Paris, tropas cantam A Marselhesa, música de Claude Joseph Rouget de Lisle. A canção se torna símbolo da revolução e o hino nacional da França.

Fidel Castro renuncia ao cargo 2006 de presidente de Cuba após 46 anos de mandato. Ele passou o poder para o seu irmão mais novo, Raúl Castro, que esteve na cadeira até abril de 2018. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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SURREAL

O CEMITÉRIO DAS CLARISSAS POBRES O

Castelo Aragonês, localizado na costa da Itália, já é curioso por si só. Construído acima de uma imensa rocha vulcânica que se liga à Ilha de Ischia por uma ponte, o local já foi residência de mais de 2 mil famílias entre os séculos 16 e 18, tendo sido um belo refúgio de proteção contra piratas. Sua origem é antiga: foi arquitetado no século 5 a.C. pelo grego Gerone I, o tirano de Siracusa – naquela época, a única maneira de alcançar a fortificação era por alto-mar. Em 1441, o rei Afonso V de Aragão ordenou a construção de uma ponte, tirando o castelo do isolamento total. Mas algo que seus idealizadores não imaginavam é que uma tradição horripilante seria levada a cabo nos subsolos da construção algum tempo depois.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

No século 17, o Castelo tornou-se o lar do convento das Clarissas Pobres, ordem de freiras que seguiam Santa Clara. Entre suas tradições estava o culto à brevidade da vida e, para isso, tinham um hábito curioso: quando uma delas morria, era transportada a um cômodo no subsolo e sentada em uma cadeira de pedra com orifícios no assento e nos braços. Seu corpo inerte se decompunha lentamente enquanto o líquido era captado pelos orifícios e coletado em vasos especiais sob os assentos. O esqueleto restante era lavado e transferido para um ossuário. Apenas isso já renderia um conto de Edgar Allan Poe. Mas outra parte da tradição era seguida à risca: todas as noites, as Clarissas vivas desciam ao cemitério para visitar as cadeiras da morte, rezando e meditando sobre a efemeridade da vida terrena. Passando horas em lugar tão insalubre, as freiras frequentemente contraíam doenças, que em alguns casos eram fatais. Esse ambiente temporário, conhecido como “Putridarium”, existia em muitos conventos na região do sul da Itália. Assistindo à modificação diária na aparência do cadáver, cuja carne (símbolo de impureza) dava lugar à liberação completa dos ossos, era possível refletir sobre os estágios de purificação encarados pela alma em sua jornada para a eternidade. Durante as Guerras Napoleônicas, o Castelo Aragonês foi bombardeado até sua quase completa destruição. Depois disso, virou uma prisão e, em 1912, foi vendido a um proprietário privado, tornando-se hoje o monumento mais visitado da Ilha de Ischia. Aos turistas que querem uma experiência mais forte, os assentos de pedra ainda podem ser vistos na cripta do subsolo.

FOTO G. SOSIO / GETTY IMAGES

UM CONJUNTO DE FREIRAS NO SUBSOLO DE UM CASTELO: ENQUANTO UMAS REZAM, OUTRAS SE DECOMPÕEM BEM AO LADO POR JOSEANE PEREIRA


COMO FAZÍAMOS SEM

DINHEIRO

HOUVE ÉPOCAS EM QUE QUALQUER UM PODIA LANÇAR DINHEIRO NO MERCADO E ISSO, É CLARO, GERAVA O CAOS POR DENNIS BARBOSA

FOTO GETTY IMAGES

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os presídios, é comum maços de cigarros servirem como unidade de valor – porque, ali, é proibido o uso do dinheiro convencional. Na história, em diferentes civilizações se observou um estágio semelhante na evolução que levou à criação do dinheiro. A dificuldade de encontrar alguém oferecendo o que se buscava disposto a trocar por algo de que se dispunha motivou a adoção de algum bem como referência, a chamada moeda-mercadoria. Em povos pastoris, por exemplo, essa unidade era o gado. Daí surgiu o termo “pecúnia”, sinônimo de dinheiro que tem raiz no latim pecu (rebanho). Outra palavra que surgiu daí é “capital”, que remete a caput (cabeça). E da moeda-mercadoria para o uso de metais como unidade de valor foi um pulo. Mais fáceis de transportar e armazenar, tinham um inconveniente: o de terem de ser pesados a cada transação. O problema foi eliminado quando os governos passaram a fundir quantias padronizadas de metal, colocando sobre elas seu selo para garantir o valor. Creso, rei dos Lídios entre 560 e 546 a.C., é tido como o primeiro a instituir a cunhagem oficial e a difundi-la pelas cercanias, a Ásia Menor, então centro do mundo.

O próximo passo foi a gradual substituição de metais preciosos por outros mais comuns, como o ferro, processo em que a malandragem dos governantes teve papel fundamental. Os imperadores romanos, por exemplo, que detinham o direito de cunhar dinheiro a seu bel-prazer, chegavam a fabricar moedas com 98% de chumbo, o que diminuía consideravelmente seu valor. Isso gerou crises econômicas que contribuíram para a decadência de Roma. A escassez de metal precioso fez da Suécia o primeiro país europeu a adotar o papel-moeda, em 1661. Já estávamos, então, na era da moeda lastreada, feita de material barato mas pelo qual o governo se comprometia a guardar o ouro ou a prata em seu tesouro. Houve épocas em que bancos e outras instituições privadas imprimiram dinheiro próprio. Foi assim nos Estados Unidos, entre 1837 e 1863. Qualquer um podia lançar dinheiro no mercado se pudesse pagar por ele o valor prometido. Isso, é claro, só poderia resultar em caos. Em 1860, havia cerca de 8 mil tipos de dinheiro circulando no país, emitidos por bancos, igrejas e até restaurantes. Quando algum desses estabelecimentos fechava, os portadores de suas notas ficavam a ver navios.

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ARTE

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ÁRVORE DA VIDA SÉRIE DE MOSAICOS FEITOS COM MÁRMORE, PÉROLAS E PEDRAS SEMIPRECIOSAS AMBIENTA PALÁCIO BELGA E MESCLA REALISMO E ABSTRAÇÃO POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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onviver com a arte. Essa era a vontade do banqueiro belga Adolphe Stoclet, quando encomendou o trabalho do arquiteto Josef Hoffmann para construir sua casa entre 1905 e 1911: o famoso Palácio Stoclet, ainda ocupado pela família. O local, tombado em 2009, é uma das mansões mais luxuosas de Bruxelas do século 20 e, até hoje, referência quando o assunto é Gesamtkunstwerk (obra de arte total, em tradução livre), cujo conceito é a integração de arquitetos, artistas e artesãos. Para decorar a sala de jantar do magnata, Hoffmann convidou o pintor austríaco Gustav Klimt (1862-1918). No entanto, em vez de se limitar à pintura,

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o artista produziu uma série de três mosaicos feitos com materiais como mármore, cerâmica, azulejos dourados, esmaltes, pérolas e pedras semipreciosas. Este trabalho recebeu o nome de Stoclet Frieze e retrata especialmente a árvore da vida. O menor dos painéis ocupa o centro da pequena parede que separa os outros dois maiores – que, embora associados (com traços que dão continuidade ao mesmo desenho), ficam separados, um diante do outro, ocupando as paredes mais longas da sala. Está tudo interligado. O estudo que deu origem à série de mosaicos (foto acima) está exposto em Viena, no Museu de Artes Aplicadas.

A ESPERA De perfil, voltada para a complexidade da árvore da vida, esta jovem figura feminina representa o olhar para o futuro: a tal da expectativa. Ela também é chamada de A Dançarina, pois, para criá-la, Klimt foi fortemente influenciado pelas protagonistas da dança moderna na época, como Isadora Duncan, Loïe Fuller e Grete Wiesenthal. O bracelete e o acessório na cabeça foram inspirados nos desenhos de Wiener Werkstätte, empresa que elevou o nível do design de objetos de uso cotidiano para arte. Solitária, a moça está vestida com formas pontiagudas e sem fluidez.

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Ao lado, é possível observar a escala monumental desta obra de arte. Em toda ela, Gustav Klimt (1862-1918) se inspirou em recursos da arte bizantina e egípcia, revelados em várias coleções espalhadas pela casa Stoclet

A ÁRVORE O elemento central desta obra é a árvore da vida, que, cheia de ramos e de ornamentos, se espalha por toda a sala de jantar – mostrando que não há fim na complexidade e na subjetividade dos caminhos da vida. Rica em detalhes e simbolismos, sob seus galhos é possível observar amuletos bem populares, como olhos gregos e egípcios – sinais de sabedoria, poder e proteção. Também vale perceber a presença de pássaros, que simbolizam a liberdade, mas também a morte, já que são pretos. Este luto pode representar a transição para o futuro.

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O ABRAÇO A mais intensa das imagens desta sala de jantar representa a realização do amor verdadeiro: o futuro daquela mesma mulher, que, para encontrá-lo, deixou para trás suas riquezas materiais. Neste abraço íntimo (que dizem ser entre o próprio artista, Gustav Klimt, e sua companheira de vida, Emilie Flöge), os elementos rígidos e pontiagudos que apareciam na vestimenta da moça solitária dão lugar a círculos e composições mais orgânicas, formando dois corpos em um: o molde perfeito de um abraço sem fim.

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O GUARDIÃO A figura abstrata que fica na parte dianteira da sala de jantar, separando a expectativa da realização, representa um cavaleiro. Não à toa, era justamente abaixo desta imagem que se sentava o patriarca da família, o banqueiro Adolphe Stoclet. Composta de quadrados, triângulos e círculos bem projetados, é peça única no local.

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O JARDIM Os detalhes que formam as folhas, as flores e as borboletas desta obra de arte (e de várias outras produzidas durante a vida do artista) foram inspirados nos jardins que rodeavam o lago da Villa Oleander, um conjunto de casas de veraneio em Kammer, na Alemanha, que Klimt frequentava desde 1900. Seu lugar favorito.

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DITO E FEITO

ELEFANTE BRANCO A

locução que remete a algo tão indesejável quanto um “presente de grego” vem de longe. No antigo reino do Sião – atual Tailândia –, o rei presenteava com um elefante branco os cortesãos que, por alguma razão, lhe desagradavam. Como os animais eram considerados raros e sagrados pelo budismo (a principal religião do país desde o século 7), os presenteados sentiam-se honrados num primeiro momento, mas logo percebiam que aquilo, na verdade, se tratava de um castigo. De acordo com o professor e escritor Ari Riboldi, autor do livro O Bode Expiatório (editora AGE), que traz uma coletânea de termos e de expressões populares com nomes de animais, o elefante dado pelo rei não podia ser recusado, devolvido, trocado, emprestado, vendido e muito menos sacrificado. Afinal, era um presente real. Cuidar do animal, portanto, tornava-se uma obrigação do infeliz presenteado, que, além 18

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de alimentá-lo todos os dias, tinha de manter o pelo do paquiderme sagrado sempre tosado e impecável. E ainda todo enfeitado com luxo! Tudo isso, claro, representava um alto custo e um trabalho constante, sem nenhum retorno ou utilidade prática. Aliás, o elefante albino tampouco podia ser aproveitado em qualquer tipo de ocupação ou atividade. A regra da realeza era clara: manter o raro e simpático animal sempre limpo, sadio e confortável pelo resto da vida – o que significava algo em torno de 50, 60 ou até mesmo 70 longos anos. O rei siamês exigia também que qualquer elefante branco encontrado na região deveria ser dado a ele. Ninguém escapava da tradição. Não à toa, esta é a expressão popular que, até hoje, dá nome às obras públicas ou privadas de grande porte, construídas com alto custo de investimento, mas sem nenhuma (ou quase nenhuma) utilidade para a sociedade.

IMAGEM REPRODUÇÃO

NO REINO DE SIÃO, O PAQUIDERME ERA ANIMAL SAGRADO E UM PRESENTE DO REI: NÃO PODIA SER RECUSADO POR IZABEL DUVA RAPOPORT


À MESA

HAMBÚRGUER O MAIS POPULAR DE TODOS OS LANCHES NÃO FOI INVENÇÃO AMERICANA COMO MUITOS PENSAM. E NEM HAMBURGUESA... POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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FOTO GETTY IMAGES

uito antes de se tornar praticamente um símbolo dos Estados Unidos, na segunda metade do século 19, o hambúrguer já tinha um lugar na história – e num passado bem distante, lá pelos séculos 12 e 13, quando a Europa sofria as invasões dos mongóis. Entre as tribos invasoras estavam os tártaros, guerreiros nômades que viviam pelas regiões da Rússia: os responsáveis por introduzir na Europa a técnica de moer carne dura e de má qualidade para torná-la mais fácil de digerir. Reza a lenda, aliás, que os cavaleiros tártaros, antes de galoparem rumo às missões exploratórias pelo continente europeu, colocavam a carne crua embaixo da sela dos animais. Assim, na hora de comer, o bife já estava feito uma pasta. O estilo rústico, saboroso e barato do preparo logo agradou aos alemães que viviam em Hamburgo, onde o alimento ficou conhecido popularmente como “bife de carne moída”. Este nome mudou para hamburg style steak (bife ao estilo hamburguês) quando uma leva de imigrantes da cidade chegou aos Estados Unidos. Os primeiros americanos que provaram a iguaria foram os marinheiros. Sempre atarefados, trataram de colocar o bolo de carne no meio do pão para comer enquanto trabalhavam. Nascia, então, a principal estrela do fast-food da América – que ganhou o coração do mundo. No Brasil, o hambúrguer popularizou-se em 1952, quando o tenista norte-americano Robert “Bob” Falkenburg fundou o primeiro Bob’s, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

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LINHA DO TEMPO

AS PIORES EPIDEMIAS

AO LONGO DOS SÉCULOS, LOCAIS MUITO POVOADOS FORAM ARRASADOS POR MALES ESTRANHOS E MORTES EM ESCALA. POR ISSO, AS ONDAS AVASSALADORAS DE DOENÇAS NO MUNDO SÃO UM ÓTIMO (E BRUTAL) RETRATO DA NOSSA HISTÓRIA CLAUDIA DE CASTRO LIMA

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IMAGENS GETTY IMAGES, REPRODUÇÃO

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SÉC.

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PESTE NEGRA

LEPRA

MALÁRIA

Depois de matar 10 mil pessoas por dia em Constantinopla no século 6, a peste bubônica provocou a mais mortal epidemia da história. Facilmente transmitida pelos ratos e pulgas nos burgos fechados e fétidos da Europa, fez 25 milhões de vítimas em cinco anos. Em 1563, a moléstia voltou a atacar em Londres, matando um terço da população da cidade.

Durante as Cruzadas, a doença se difundiu fortemente pela Europa. Como os guerreiros cristãos eram grande parte dos infectados, os doentes passaram de renegados socialmente a santos, cuja mão era beijada pelos fiéis. Esse costume fez muitas pessoas vulneráveis à doença contraírem-na, o que obrigou a construção de milhares de leprosários na Europa.

Foi registrada pela primeira vez como epidemia entre os romanos, que passaram a aterrar pântanos (devido à sua associação com terrenos alagados), na tentativa de afugentar os “maus ares” – daí o nome da doença. Era tão comum na região, que chegou a ser conhecida como “febre romana”. Ainda hoje, 250 milhões de pessoas contraem malária anualmente.

1494

20

SÉC.

1805

1832

SÍFILIS

TIFO

CÓLERA

Essa doença venérea apareceu entre os marinheiros de Cristóvão Colombo e entre nobres europeus como o rei Carlos VIII, da França, e Henrique VIII, da Inglaterra. Nos séculos seguintes, espalhou-se de forma devastadora entre os exércitos francês, espanhol, austríaco e italiano.

Durante a invasão de Napoleão a Viena, uma epidemia de febre tifoide alastrou-se pela Europa central. Em 1812, aliada à fome, ao frio e à disenteria, a febre poupou apenas 30 mil dos 600 mil soldados franceses na Rússia. A transmissão ocorre por piolhos que parasitam animais e contaminam o homem.

Com a urbanização, combates em trincheiras e facilidades no transporte, o século 19 foi amplamente atacado por epidemias. Entre elas, o cólera fez vítimas quase em todo o mundo: Europa, Ásia e América. Apesar da descoberta da água como meio de contaminação, a falta de saneamento básico faz a doença persistir até hoje.

AVENTURAS NA HISTÓRIA


1550 A.C.

VARÍOLA O primeiro vestígio da doença foi encontrado numa múmia da 18ª dinastia egípcia (1550-1307 a.C.). No ano 700, no Japão, ela matou vários membros da família imperial Fujiwara, criando um fervor religioso que facilitou a difusão do budismo. No século 16, transmitida pelos espanhóis, a varíola atacou maciçamente os astecas.

430 A.C.

PRAGA DE ATENAS Durante o apogeu cultural e político da principal cidade-estado da Grécia, que inclui um embrião da democracia, surgiu uma doença conhecida como a “grande praga de Atenas”, ainda não identificada. Com sintomas da varíola, da peste bubônica e do tifo, este mal favoreceu a derrota dos atenienses contra Esparta, na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

1889 GRIPE ESPANHOLA A “influenza”, que nos assusta até hoje, foi registrada pela primeira vez na Espanha, ainda no século 19, mas só tomaria grandes proporções durante a Primeira Guerra, atacando as tropas na Europa. De lá, se espalharia pelos cinco continentes, inclusive para o Brasil. Até 1919, matou mais de 20 milhões de pessoas no mundo todo.

Sem nenhum conhecimento científico, os “médicos da peste”, como eram chamados na Idade Média, usavam roupa especial para andar entre os doentes. As máscaras, parecidas com o rosto de um pássaro macabro, carregavam um bico com itens aromáticos para proteger o médico do ar fétido. Tinham de se virar para enfrentar a pior epidemia da história


REVOLUÇÃO

Liberté, Egalité, Fraternité

HÁ 230 ANOS, TOMADA DA BASTILHA MARCAVA O FIM DO ABSOLUTISMO E O INÍCIO DA MAIS IMPORTANTE REVOLUÇÃO DA HISTÓRIA: A REVOLUÇÃO FRANCESA POR RODRIGO TRESPACH

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


Paris, 14 de julho de 1789. Uma recém-formada Assembleia Nacional, com representantes de toda a França, estava reunida na capital pela primeira vez depois de quase dois séculos. O país beirava o caos: enquanto a desigualdade imperava, o governo esbanjava nos gastos e deixava mais de 25 milhões de pessoas inconformadas. Em maio daquele ano, sob pressão, o rei Luís XVI (1754-1793) reuniu os Estados Gerais – como eram chamados os representantes da nobreza, do clero e do povo – para buscar apoio às reformas econômicas que, segundo ele, tirariam o país da tribulação. Sem apoiá-lo, o grupo fundou a própria Assembleia Nacional, legalizada pelo rei como Constituinte. Rumores, no entanto, espalhados por oradores inflamados, como o jornalista Camille Desmoulins, diziam que o soberano forjaria um golpe e que se preparava para uma repressão violenta contra o povo. Agitadas, as multidões famintas protestavam contra a falta de pão enquanto os funcionários reais eram acusados de desviar alimentos para vendê-los a

preços exorbitantes (o pão consumia a metade dos ganhos diários de um trabalhador). Surgia, então, uma onda de saques e uma turba violenta que assaltava diversos pontos da capital sem que as tropas do rei pudessem conter distúrbios e pilhagens. Tudo isso, claro, culminou no pedido de reforços para proteger a Bastilha, a fortaleza militar erguida em 1370 no bairro de Saint-Antoine e que se firmou como cadeia para prisioneiros do rei no século 17, um alvo potencial dos revoltosos daqueles dias. Porém, o pedido, feito pelo governador da muralha, o marquês de Launay, foi em vão. As masmorras do imponente edifício medieval, com oito torres, paredes de 2,75 metros de espessura e muros de 25 metros de altura, aprisionavam políticos – mas o povo fora convencido de que ali estava também o exército de mercenários aguardando uma ordem real para atacar a indefesa população parisiense. Como esperado, naquela manhã de terça-feira, uma multidão se reunia diante da Bastilha. Na tentativa de apaziguar o povo, Launay garantiu que seus homens não agiriam contra o populacho – o que não passou de um blefe: o marquês contava com apenas 82 veteranos pensionistas e outros 32 mercenários suíços para defender o bastião. E para piorar sua


REVOLUÇÃO

situação, ordenou que todos saíssem das muralhas externas e se agrupassem em uma das torres, deixando de lado os canhões de defesa. Em pânico, ao ver a multidão tomar o pátio interno da fortaleza, Launay ordenou que os soldados atirassem contra a turba. Apesar das baixas – mais de 90 mortos –, os atacantes não se dispersaram. Pelo contrário: ficaram fora de controle e decididos a tomar a fortaleza a qualquer custo – mais tarde, 954 atacantes receberiam a distinção “Conquistador da Bastilha”; o mais novo tinha 8 anos de idade, o mais velho, 72. Com auxílio de amotinados do Exército, os invasores conseguiram apontar os canhões para os portões internos da Bastilha e, em desespero, o marquês negociou com os líderes revoltosos que renderia a fortaleza mediante salvo-conduto. Um erro fatal. Tão logo Launay depôs armas, os revoltosos lhe cortaram a cabeça – imediatamente posta na ponta de uma lança e erguida em triunfo. Ao entrar nas mas-

No Antigo Regime, as pessoas eram "naturalmente desiguais" e o rei uma "escolha divina"

morras, os atacantes revolucionários encontraram dois loucos, quatro falsários e um aristocrata acusado de devassidão. Enquanto a cabeça do marquês de Launay era exibida pelas ruas de uma Paris em convulsão, em Versalhes, a pouco mais de 25 quilômetros dali, o duque de Liancourt (1747-1827) noticiava ao rei os acontecimentos. Luís XVI teria perguntado a seu informante se era uma revolta, ao que teria recebido como resposta: “Não, majestade, é uma revolução”.

O ANCIEN RÉGIME Louis Auguste assumira o trono da França como Luís XVI em 1774. O jovem rei, porém, nem de longe lembrava seu ancestral, símbolo do absolutismo e da grandeza das monarquias europeias: o “Rei Sol” Luís XIV (1638-1715), célebre por definir seu poder com a frase “O Estado sou eu”. Luís XVI era fraco, indeciso e inepto, preferia ocupar seu tempo com a marcenaria do que tomar decisões de Estado; herdara um país à beira da falência e contribuiu decididamente para arruiná-lo. No início da década de 1780, com a França em crise econômica, envolveu o país na guerra da independência americana, financiando os colonos rebeldes contra a Inglaterra, um tradicional


inimigo francês. Além disso, o rei era casado com a impopular Maria Antonieta (1755-1793), irmã do imperador do Sacro Império Romano-Germânico. A rainha, que gastava tanto quanto os combalidos cofres da França podiam arrecadar (a casa real consumia quase 10% das despesas do país), tornou-se o centro de mexericos e um dos principais alvos de críticas à corte. Alheia ao que ocorria no país, esbanjava fortunas em festas e recepções particulares. Os revolucionários a alcunharam de “Autre-chienne” (um trocadilho entre as palavras francesas para “austríaca” e “outra cadela”). Em 1787, o ministro das Finanças de Luís XVI propôs um conjunto de reformas como meio para aumentar a arrecadação. Entre elas estava a cobrança de impostos sobre todos os proprietários de terra – as despesas do país giravam em torno de 633 milhões de libras enquanto as arrecadações mal passavam de 471 milhões. A proposta era um sério problema para o rei, pois quebraria os fundamentos da estrutura hierárquica da França. A sociedade francesa estava alicerçada em uma divisão de ordens, os Estados Gerais, mas só o “Terceiro Estado”, o povo, pagava impostos. O clero e a nobreza eram isentos, além de deter inúmeros privilégios. O Ancien Régime (ou o Antigo Regime), como a monarquia passou a ser chamada depois da Revolução, tinha como premissa básica que as pessoas eram naturalmente desiguais e que essa desigualdade se expressava perante a lei. O rei era uma escolha divina e cargos e funções civis ou militares eram destinados exclusivamente à nobreza. Ao Terceiro Estado pertenciam aqueles que não eram nobres ou ligados à Igreja – o que correspondia a 98% de uma população de 28 milhões de pessoas: ricos mercadores, artesãos, comerciantes, profissio-

nais liberais, pequenos proprietários de terra e o povo em geral. O poder do rei, no entanto, não era absoluto: ele dependia, em parte, do apoio da nobreza e do clero. Para isso, havia o que se denominou de “hierarquia constitucional”, permitindo à nobreza privilégios que iam além da isenção de impostos: em certas regiões do país, nobres podiam legislar, exercer justiça e deter o monopólio sobre determinada atividade econômica – em 1780 havia mais de 300 sistemas regionais de tarifas e de impostos e cerca de 360 códigos de leis. Desse modo, ao sugerir retirar privilégios dos nobres, Luís XVI perdeu seu mais poderoso aliado. A recusa da nobreza em perder vantagens obrigou o rei a convocar os Estados Gerais para 1789, o que não ocorria desde 1614, e a vitória dos nobres mostrou o quanto o rei era fraco e a monarquia frágil. Se por um lado a nobreza se negava a contribuir com o Estado, do outro, o restante da população era incapaz de suportar mais impostos. De acordo com o historiador Luís Edmundo Moraes, a convocação dos Estados Gerais foi a articulação

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de “forças conservadoras”; “obra de uma nobreza ansiosa por retornar ao passado e não disposta para produzir algo novo”. Enquanto se instalava a Assembleia dos Estados Gerais, o país foi varrido por uma onda de protestos e uma avalanche de publicações liberais influenciadas pelo Iluminismo – que, por meio de filósofos desde um século antes, pregava liberdade, igualdade, progresso científico, governo constitucional, tolerância religiosa e a separação entre Igreja e Estado. A noção de que todos os indivíduos eram iguais e livres e de que um governo legítimo seria aquele que surgisse de uma Constituição e de leis que garantissem proteção à vida, à liberdade e à propriedade, ganhava força. O poder emanaria do povo, que escolheria seus representantes – e não mais de uma minoria privilegiada “escolhida” por Deus. Enquanto a Bastilha era destruída e seus tijolos transformados em miniaturas da fortaleza, Luís XVI enfrentava uma dura realidade: o edifício do absolutismo monárquico estava ruindo. Sem conter a maré da história, o rei capitula às exigências da Assembleia, na

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qual estavam reunidos mais de 1100 representantes dos três Estados. Em agosto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamou que “os homens nascem livres e iguais em seus direitos”. Os privilégios e distinções seculares entre nobres e cidadãos comuns, que marcaram os mais de oito séculos da monarquia francesa, haviam acabado. “Liberdade, igualdade, fraternidade” torna-se um lema e também um grito de guerra, com Luís XVI sendo obrigado a ratificar a Declaração. Em outubro, mulheres parisienses famintas marcham até Versalhes para exigir pão do rei. Armadas de lanças e de piques, elas tomam de assalto o palácio e obrigam o rei e a família real a retornar à capital sob a escolta de uma multidão de manifestantes.

PARTIDOS MODERNOS Nos dois anos seguintes, Luís XVI é refém do movimento revolucionário – que, por sua vez, era dividido quanto aos objetivos e aos rumos da Revolução. Surgem, então, os “clubes”, que, nas palavras do historiador Olivier Coquard, “são prefigurações dos partidos modernos” criados para o debate político já instaurado. O Clube dos Girondinos, cujos principais líderes representavam o departamento da Gironda, eram em sua maioria grandes negociantes provenientes da burguesia provincial: inicia l mente ma is moderados de ideia s iluministas, mas temerosos de que o poder caísse nas mãos da plebe. O Clube dos Cordeliers, formado por adeptos de transformações mais profundas na política nacional, como a implementação da república, contava com intelectuais e advogados, e tinha forte influência sobre os trabalhadores urbanos pobres, os chamados de sans-culottes (ou sem culotes), nome que deriva das roupas que usavam: calças com-


pridas, o oposto da nobreza, que usava culottes (as calças até os joelhos) – um dos símbolos da Revolução, o barrete vermelho, era marca dos sans-culottes. Já o Clube Jacobino, assim chamado por promoverem suas reuniões no Convento Jacobino, em Paris, também de inclinação republicana, era a mais radical (e temerosa) das facções revolucionárias. O nome de um dos seus principais líderes, Maximilien de Robespierre (1758-1794), logo se tornaria sinônimo de morte. Uma nova Constituição entra em debate e a discussão central recai, então, sobre quem deteria a soberania. De um lado, sentados à esquerda da sala legislativa (em relação à mesa do presidente), estão os defensores de que o rei detivesse o poder executivo, submetido a uma carta constitucional e tendo no máximo o poder de veto sobre leis aprovadas por uma assembleia de representantes do povo. Os que acreditam que o poder deveria se manter com o rei, podendo também ele propor leis, sentam-se do lado direito. Essa distribuição nos assentos da Assembleia dará origem aos termos “esquerda” e “direita” quanto às orientações políticas. Em 1790, a ala à “direita”, a de conservadores, é derrotada. Em 1791, a França se torna uma monarquia constitucional, e o poder

de governar, uma concessão da Assembleia ao rei, que não teria mais o poder de legislar. Luís XVI se torna, portanto, rei dos franceses, não mais da França. O monarca perde o poder de decisão sobre o destino do país e em breve perderá também a própria vida. A França fervilhava como uma chaleira em ebulição e a situação do país era observada com preocupação pelas demais monarquias europeias, temerosas de que a Revolução se alastrasse pelo continente e mais reis perdessem o poder. Os irmãos de Luís XVI e muitos nobres que haviam fugido do país articulavam secretamente o apoio de estrangeiros para uma invasão à França, cuja finalidade era restaurar a “velha ordem”. Em junho de 1791, Luís XVI e a família real também tentam fugir, conseguem escapar de Paris, mas são reconhecidos em Verennes, a 250 quilômetros da capital. Trazidos de volta sob escolta, rei e rainha são presos no Palácio das Tulherias. Neste momento, o ambiente político fica ainda mais ten-

Nobres articulavam com estrangeiros uma invasão para restaurar a "velha ordem"


REVOLUÇÃO

so com a iminência de uma guerra contra a Áustria e a Prússia, que declaram apoio a Luís XVI. Uma onda nacionalista percorre o país, a Guarda Nacional ganha milhares de novos voluntários e a ideia de república ganha força – não por menos uma das estrofes da Marselhesa, que viria a ser o hino da França, conclama: “Às armas, cidadãos, formai vossos batalhões, marchemos, marchemos! Que o sangue impuro banhe nosso solo!”. Por toda parte há manifestações contra o rei e a favor da abolição da monarquia. Em agosto de 1792, a Assembleia aprova a declaração de guerra e, enquanto exércitos estrangeiros se aproximam de Paris, revoltas lideradas por sans-culottes exigem a derrubada imediata da monarquia. O Palácio das Tulherias é invadido e a família real escapa de ser trucidada por pouco, refugiando-se na Assembleia Legislativa – durante a noite, ouvem passivamente os debates que decretariam o fim da monarquia na França. Pressionada, a As-

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Ao ver a cabeça do rei nas mãos do carrasco, a população grita: "Viva a República!"

sembleia suspende o rei e convoca uma Convenção Nacional, cujas primeiras ações são abolir a monarquia e fundar a república, em 21 de setembro. Com o fim da monarquia, Luís XVI transforma-se no cidadão Luís Capeto (referência a Hugo Capeto, primeiro rei do país, no século X). Em novembro, com a descoberta da correspondência pessoal do rei em um armário secreto do Palácio das Tulherias, Luís é acusado de alta traição por manter contato com governantes estrangeiros e tramar a invasão do país. A Convenção o considera culpado (691 votos dos 721 deputados). E, em janeiro de 1793, o monarca é condenado à morte na guilhotina. Ao ver a cabeça ensanguentada do rei nas mãos do carrasco, a população explode aos gritos de “Viva a República! Viva a liberdade! Viva a igualdade!”.

DO TERROR A NAPOLEÃO Com a execução de Luís XVI, a Revolução Francesa entra em sua fase mais radical. Em dois anos, entre 1793 e 1794, meio milhão de pessoas são presas sob acusação de conspiração contrarrevolucionária e cerca de 35 mil são executadas. O Comitê de Salvação Pública enviava para o cadafalso todo e qualquer “inimigo da revolução”, real e imaginário.


O período ficou conhecido como “O Grande Terror” e o nome de Robespierre está bem atrelado a ele. O jovem advogado instaura uma política radical e o “nós contra eles” faz com que a simples “falta de entusiasmo” pela Revolução sirva como prova de culpa – 85% dos executados são plebeus e, nesse período, a rainha Maria Antonieta também é executada. A radicalização, no entanto, começa a consumir até mesmo quem a promovera. Um a um, seus líderes seguem o caminho do cadafalso até que o próprio Robespierre seja executado. Com a morte do “ditador sanguinário”, o terror acaba e logo a Convenção também estará exaurida. Com uma terceira Constituição, a França passa a ser governada pelo Diretório, composto por um colegiado de cinco nomes de orientação moderada e burguesa. O sucesso militar da Convenção (1792-1795) e do Diretório (1795-1799), porém, havia levado o país não apenas a expulsar invasores como também a ocupar territórios vizinhos. Com isso, um elemento novo surge na Revolução: o Exército. Um militar, em especial, chama a atenção: jovem com sotaque corso feito general aos 24 anos de idade. Seu nome: Napoleão Bonaparte (1769-1821). Arrojado e ambicioso, Napoleão havia alcançado a glória ao derrotar os austríacos na Itália e participado de uma campanha contra os ingleses no Egito. Depois de uma sucessão de tentativas de golpes (de esquerda e de direita) em que o Exército salvara o Diretório, o próprio Napoleão Bonaparte é convidado a derrubar o governo. O Golpe do 18 Brumário – 9 de novembro de 1799 – instaura o Consulado e encerra o período revolucionário. Napoleão passa a governar brevemente com outros dois cônsules até se transformar em “primeiro-cônsul” da França. Em 1804, um

plebiscito popular permite o retorno da monarquia, tendo sido, ele próprio, coroado imperador. Depois do período napoleônico (18041815), revoluções sociais sacudiriam o país em 1830 e 1848, mas a república só voltou a ser uma realidade na França em 1870. A Revolução Francesa se torna, então, um dos mais importantes episódios históricos da humanidade; um acontecimento grandioso, com uma série de movimentos não coordenados – felizes e trágicos – que catapultaram a França e o mundo ocidental a uma nova era. Não à toa, foi com base em muitas das suas instituições – fracassadas ou de sucesso – que a democracia foi concebida. Até hoje, seus ideais seguem em cartas constitucionais, debates políticos e em manifestações e movimentos que lutam por direitos. No entanto, passados mais de dois séculos, as promessas de igualdade e liberdade individual ainda rendem acaloradas discussões. Para alguns, como o historiador Yuval Harari, os dois valores são tão contraditórios que, desde 1789, o mundo tem dificuldade em conciliá-los.

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CAPA

A P O L A

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C O N Q U I S


L O T A

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L U A

HÁ CINCO DÉCADAS, O PRIMEIRO GRANDE PASSO DA HUMANIDADE NAQUELE MUNDO INÓSPITO DE 4,4 BILHÕES DE ANOS FOI DADO POR ALEXANDRE CARVALHO

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destino ordenou que os homens que foram à Lua para explorá-la em paz tenham de permanecer na Lua para descansar em paz.” Assim começava o discurso de Nixon, que era uma peça de gestão de crise. Estava preparado para o caso de uma tragédia envolvendo os astronautas que viajariam ao espaço, em julho de 1969, com uma missão histórica: serem os primeiros homens a colocar os pés em solo lunar. Antes do pronunciamento, o presidente telefonaria para cada uma das viúvas e expressaria suas condolências. A preparação para um luto de dimensão nacional não era exagero. Um relatório em poder da NASA relacionava ocorrências que poderiam levar à morte dos astronautas durante a missão: “quebra do veículo espacial”, “falha do sistema de propulsão”, “colisão violenta contra a superfície da Lua”, entre outras. Michael Collins, o

a alunissagem (pouso na Lua) com sucesso. Afinal, a NASA tinha sido obsessiva quanto a cada detalhe da missão, e os três viajantes estavam mais que prontos para a tarefa. Armstrong e Aldrin treinaram por quase dois anos num simulador do Eagle (“águia”), o módulo lunar, enquanto Collins passou 400 horas simulando as manobras que faria ao redor da Lua. O treinamento repetitivo tinha outra consequência que inflamava a boa disposição de Armstrong: era um antídoto contra o medo. “O medo levava ao pânico, o que levava a cometer erros”, explica James Donovan, autor de Shoot for the Moon, obra que conta a jornada da Apollo 11, como era chamada a missão rumo à Lua. “Treinando para excluir o medo, você diminuía a zero as chances de um lapso numa situação de vida ou morte.” Fato é que os astronautas do fim dos anos 1960 odiavam a palavra e evitavam de todo modo ter

FORAM DOIS ANOS DE TREINAMENTO NO MÓDULO LUNAR E 400 HORAS DE SIMULAÇÃO AO REDOR DA LUA astronauta que ficaria a bordo do módulo de comando e serviço, permanecendo na órbita da Lua enquanto seus dois companheiros trabalhavam na superfície lunar, foi treinado em 18 variações de procedimentos de emergência. Um deles tratava das manobras que o piloto deveria fazer para retornar à Terra caso fosse obrigado a deixar seus colegas na Lua – para morrer. Collins desenvolveu tiques nervosos nos dois olhos, preocupado com esse risco. Décadas após a missão, ele recordaria o que pensava na época: “Se eles falharem na subida da superfície, ou se baterem contra ela, eu não vou cometer suicídio; vou voltar para casa imediatamente, mas serei um homem marcado pelo resto da vida. E eu sei disso”. Neil Armstrong, o líder da missão, escolhido para ser o primeiro a pisar na Lua, reconhecia os riscos, mas era mais otimista. Calculava em 90% as chances de voltar à Terra vivo, e de 50% a possibilidade de ele e seu colega Buzz Aldrin fazerem 32

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de usá-la. Quando questionados sobre os temores naturais em uma missão sem precedentes, eles preferiam o eufemismo “apreensão”. E o que não faltava era motivo para ficar apreensivo. O programa espacial que tinha como meta colocar astronautas caminhando sobre a Lua – antes que os soviéticos o fizessem – já começara de modo trágico: um incêndio na cabine durante um ensaio de lançamento matara a tripulação da Apollo 1, apenas dois anos antes. Mesmo com todo o aprendizado que as falhas trouxeram à NASA nesse intervalo, houve momentos em que tudo parecera estar por um fio. Principalmente a partir do momento em que o Eagle, levando Armstrong e Aldrin, se separou do módulo de comando e serviço. Foi quando Collins ficou sozinho, dando voltas na Lua – às vezes, até sem comunicação com a base terrestre. “Desde Adão, nenhum outro ser humano conheceu tamanha solidão quanto a de Mike Collins ao longo dos


NASA X COMUNISMO

Vinte e quatro de julho de 1969: o presidente Richard Nixon cumprimenta Armstrong, Collins e Aldrin na unidade de quarentena a bordo do navio de resgate USS Hornet / Painel de comando do Eagle, o módulo lunar / Michael Collins durante simulação das manobras que faria ao redor da Lua

“Companheiro de viagem.” Essa é a tradução do nome que os russos deram a um dispositivo que assombrou o Ocidente em 1957: o Sputnik 1. Apesar de a União Soviética ser considerada, na época, uma força tecnológica de segundo escalão, o país tinha chegado lá. Antes de qualquer nação, os russos colocaram um satélite na órbita terrestre. Era só uma esfera metálica de 50 centímetros, que viajou 22 dias ao redor do planeta até cair na atmosfera por falta de bateria. Parece pouco? Foi o bastante para instaurar uma crise de ansiedade nos EUA. “A nação que controlar o espaço vai controlar o mundo. A escolha está entre democracia e escravidão”, alardeava a revista de astronáutica Missiles and Rockets. Eram tempos de Guerra Fria, e a paranoia americana com a “ameaça comunista” ficou à flor da pele, virando neurose coletiva quando, 32 dias depois, a URSS enviou o primeiro ser vivo ao espaço. Era a vira-lata Laika, que morreu por superaquecimento ao entrar em órbita. Mas o passo que marcou de vez a superioridade russa aconteceu em 1961, quando o primeiro cosmonauta, Iuri Gagarin, viajou num foguete e orbitou nosso planeta por 108 minutos. Ainda, de quebra, retornou com uma das frases mais reveladoras – e belas – da história: “A Terra é azul”. Os estrategistas americanos temiam o estrago que a imagem de superpotência tecnológica da URSS podia causar aos interesses geopolíticos dos EUA. No cabo de guerra pela conquista de aliados, o prestígio desse pioneirismo podia reforçar o bloco comunista. “As nações neutras podem vir a acreditar que a onda do futuro é russa”, alertava o New York Times. Todo o empenho dos ianques para igualar – e ultrapassar – os feitos de seus arquirrivais se deu por conta desse temor. Foram as aventuras russas que empurraram os EUA para a corrida espacial, cuja linha de chegada – pelo menos até hoje – foi o sucesso da Apollo 11.


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47 minutos de cada volta à Lua”, foi dito à época. Enquanto isso, seus dois colegas de voo enfrentavam as incertezas de uma descida jamais feita a um outro mundo. Uma viagem ao desconhecido, que por pouco não foi abortada em plena execução – nem terminou com um motivo real para que Nixon lesse seu discurso fúnebre.

FLEXÕES NO ESPAÇO “Nós escolhemos ir à Lua nesta década não porque seja fácil, mas porque é difícil”, previu o presidente John Kennedy, discursando no Texas, em 1962. “E só se os EUA ocuparem uma posição de proeminência poderemos ajudar a decidir se esse novo oceano será de paz ou um novo teatro de guerra.” A missão assumida por Armstrong, Aldrin e Collins daria conta de cumprir com essa determinação, e no prazo previsto por Kennedy – que, assassinado em 1963, não teve a chance de

mente o espaço à Lua – uma viagem de três dias. Nesse período, os astronautas desfrutaram da parte mais calma da viagem, contemplando a imagem deslumbrante da Terra (redonda, como eles puderam conferir) de um ponto de vista privilegiado. Quando estavam já a 12 mil quilômetros do planeta, viajando a quase 31 mil km/h, a tensão havia dado lugar a uma alegria de meninos que invadem uma floresta desconhecida. “Pela primeira vez desde que deixara a órbita da Terra e se dirigira para a Lua, Neil pôde relaxar”, conta Jay Barbree, o biógrafo de Armstrong. Nessa breve descontração, os astronautas brincaram com os efeitos da gravidade, tiraram seus trajes espaciais pressurizados e ouviram música: Barbra Streisand, Peggy Lee, Blood, Sweat & Tears... Também fizeram filmes de si mesmos, transmitidos para o pessoal de controle em Houston: “Montaram um programa

SÓ NOS EUA, 26 MILHÕES DE PESSOAS APLAUDIRAM QUANDO O FOGUETE ASCENDEU RUMO AO ASTRO LUNAR ver a evolução de seu programa espacial. Mas a expedição de julho de 1969 não foi a primeira a chegar perto da Lua. Em dezembro de 1968, a Apollo 8 já tinha orbitado o astro, e a Apollo 10, em maio, chegou a sobrevoar a superfície a apenas 15 km. Mas pousar era inédito. E envolvia procedimentos nunca feitos fora de um simulador. A chegada até a órbita lunar havia sido um passeio mais tranquilo do que os astronautas poderiam imaginar. O lançamento do Saturno V, no dia 16 de julho, o foguete que os levou ao espaço, havia sido um sucesso absoluto, televisionado para 33 países. Só nos EUA, 26 milhões de pessoas acompanharam com ansiedade a contagem regressiva e aplaudiram quando o foguete ascendeu numa trajetória vertical, antes que, a 200 quilômetros da superfície da Terra, a maior parte da estrutura grandiosa fosse solta, voando em direção ao Sol. O que restava era uma espaçonave bem menor, atravessando calma34

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de TV improvisado, com o chef Mike preparando um ensopado, Buzz fazendo flexões e Neil se exibindo de cabeça para baixo”, conta Barbree. O clima só ficou tenso no dia 19, quando a espaçonave entrou na órbita lunar. Era um momento que exigia precisão de comandos – qualquer excesso de velocidade poderia fazer com que a gravidade da Lua os mandasse de volta à Terra ou, pior, colocá-los em rota de colisão com a superfície do astro. Mas a precisão dos comandos não deixou que nada saísse do previsto, e os astronautas puderam fazer 20 órbitas lunares. Até que, ao meio-dia de 20 de julho de 1969, um domingo, Neil Armstrong e Buzz Aldrin deixaram seu colega e entraram de vez no módulo lunar. Desacoplaram do restante da aeronave, que os esperaria de volta da Lua e, pouco depois, receberam uma autorização especial de Houston. “Eagle, você está pronto para acender seu motor de descida.” E a nave começou a


TEORIA DA CONSPIRAÇÃO

Neil Armstrong a bordo do Eagle na superfície lunar, logo após sua caminhada na Lua / O lançamento do Saturno V, foguete que os levou ao espaço, foi televisionado para 33 países / Fotografia da Terra feita de dentro da Apollo 11, que já estava a 10 mil milhas náuticas do planeta

“Tenho consciência das manipulações terríveis perpetradas por governos, serviços secretos, bancos etc. Mas afirmar que os pousos na Lua foram falsificados e filmados pelo meu pai? Como acreditar que um dos maiores defensores da humanidade cometeria um ato de traição assim?”. Este desabafo aconteceu há três anos e foi feito pela americana Vivian Kubrick, cansada de escutar a mesma pergunta: “As cenas do homem na Lua foram criações artísticas do seu pai?”. Esse pai, no caso, é o diretor de cinema Stanley Kubrick, responsável por obras-primas como Laranja Mecânica e O Iluminado. Teorias da conspiração levantadas desde os anos 1970 ora afirmam que ele teria sido contratado para forçar as imagens em solo lunar, ora alegam que as cenas seriam sobras das filmagens de 2001: Uma Odisseia no Espaço. O objetivo do governo americano seria dar a falsa impressão de que vencera a corrida espacial. Entre as “evidências” apontadas pelos conspiracionistas estão a ótima qualidade das fotos na Lua e o fato estranho de que não aparecem estrelas nas imagens. Mas a que mais chamou a atenção foi a observação de que a bandeira parece estar tremulando, sendo que na Lua não existe vento. A resposta dos cientistas foi que a bandeira só parece estar se mexendo nas fotos. Ela permaneceu na mesma posição após fazer uma ou outra onda no tecido cada vez que era tocada. Em 2016, para desmoralizar os arautos da conspiração, David Grimes, um físico da Universidade Oxford, fez um estudo que calculava quão improvável seria que um segredo dessa magnitude – de que os pousos fossem falsos – durasse por tantas décadas, e com tantas pessoas envolvidas. O cálculo demonstra que, se tudo fosse armação, a mentira acabaria vindo a público em até quatro anos – ou seja, até 1973. Não foi o que aconteceu.


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descer por aquele céu escuro, com o computador monitorando a desaceleração, julgando a altura em cada momento e confirmando se o ângulo de voo estava correto. A gravidade lunar, bem menor que a da Terra, permitiria um caminho suave até o pouso. Só que não foi bem assim.

POUSO DE CINEMA De repente, uma luz de alarme iluminou o rosto dos dois astronautas: “erro 1202”. Isso queria dizer que o computador de bordo estava sobrecarregado – e poderia entrar em pane. De fato, Buzz Aldrin executara tantos sistemas de orientação de voo ao mesmo tempo que o computador talvez não desse conta. Era hora de fazer escolhas. E escolhas rápidas. Em Houston, os especialistas não tinham tempo para uma avaliação minuciosa. O que lhes deu embasamento para a resposta foi o fato de que, apesar da sobrecarga,

Na superfície acidentada que estava logo à sua frente, Buzz notou uma cratera maior que um campo de futebol. Poderia ser uma opção interessante, um lugar para descobertas científicas, mas Armstrong percebeu que havia trechos íngremes perigosos no lugar – se alunissassem em uma inclinação, talvez o Eagle nunca conseguisse subir de volta. Com o pouco tempo que lhe restava, tinha de evitar a cratera e pousar imediatamente. Foi aí que sua experiência de piloto de testes da Aeronáutica fez a diferença. Identificado um local, os pequenos foguetes impulsionadores de altitude mantiveram o Eagle alinhado durante a parte final da descida. Buzz observava o radar de pouso, enquanto Neil conduzia o módulo lunar para longe de pedregulhos. Com um detalhe: só restavam mais 60 segundos de combustível. No Controle da Missão, na Terra, um silêncio de pedra. Não havia mais o que

SEGUNDOS DE TENSÃO SEPAR AR AM UM A LUZ DE C ON TATO N A C A BINE C OM A VOZ DE NEIL: “O EAGLE POUSOU” tudo estava funcionando perfeitamente bem no Eagle. E estavam tão perto... “Nenhum dano. Prossiga”, determinou o comando em terra. Ali já era Neil Armstrong quem pilotava o módulo lunar. E então novos sustos surgiram. Um ligeiro erro de navegação e uma velocidade de descida um pouco maior fizeram com que a espaçonave ultrapassasse em 5 quilômetros o local pretendido para o pouso. Era preciso, então, buscar outra área favorável, razoavelmente plana e sem grandes rochas ao redor. Mas o momento não permitia ser muito seletivo: o combustível para a descida estava no finzinho. Se o motor consumisse sua última gota antes da hora, eles cairiam. Em Houston, o diretor de voo Gene Kranz quis lembrar isso em um tom de voz que fosse de alerta, mas que tivesse o cuidado de não apavorar todo o comando num momento tão delicado: “É melhor lembrar Neil de que não há postos de gasolina na Lua”. 36

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eles pudessem dizer para ajudar os homens lá em cima. Muitos prenderam a respiração. Até que, na superfície de um mundo alienígena, uma luz indicando contato acendeu na cabine. Segundos de tensão insuportável separaram esse sinal do som da voz de Neil Armstrong, ressoando a 384 mil km de distância: “Houston, aqui é a Base Tranquilidade. O Eagle pousou”.

DESOLAÇÃO MAGNÍFICA A NASA divulgou que os astronautas tirariam algumas horas para descansar e, talvez, dormir. Mas a primeira população da Lua, composta de duas pessoas, não tinha tempo a perder. Passaram as próximas horas se preparando para o momento mais esperado: a abertura da escotilha. Finalmente, com imagens registradas por uma câmera de TV de baixa qualidade, Armstrong deslocou seu corpo para fora do módulo lunar e descobriu que a escada que o conduziria ao chão da Lua


O módulo lunar Eagle prestes a pousar na superfície da Lua, visto da órbita lunar. A fotografia foi feita por Collins a bordo do módulo de comando e serviço / Sala de controle de operações de Houston, Texas / Buzz Aldrin durante a missão do pouso lunar

A VIDA (E A MORTE) DEPOIS DA LUA As comemorações pelos 50 anos do pouso na Lua vão colocar o coração de dois idosos à prova. Aos 88 anos, Michael Collins deixou uma trajetória que incluiu, após o voo à Lua, trabalhos como secretário de Estado e diretor do Museu do Ar e do Espaço. Segue ativo, participando de entrevistas sobre o seu livro, escrito em 1973. É considerado o “astronauta esquecido”, eclipsado pelos colegas que pisaram na Lua. Segundo homem a sair do módulo lunar em 1969, Buzz Aldrin, hoje com 89 anos, pegou gosto pela celebridade após seus dias de Apollo 11. Deu a volta ao mundo para fazer palestras, escreveu uma dúzia de livros e fez inúmeras aparições na mídia – sempre promovendo a exploração espacial. Também teve fases de depressão e alcoolismo nos anos 1970. E o primeiro homem a pisar no satélite natural da Terra não era, no final das contas, um humano com superpoderes. Neil Armstrong morreu em 2012, aos 82 anos, em consequência de complicações cardíacas. Nos últimos anos de vida, não escondia o desapontamento com a decisão do governo americano de abandonar seu programa espacial. Acreditava que novas viagens à Lua trariam conhecimento para que a humanidade atingisse novos planetas. Considerado um herói americano, Armstrong aposentou-se da NASA em 1971 e se tornou professor de Engenharia Aeroespacial e porta-voz de empresas – especialmente a Chrysler, de automóveis. No fim da vida, se mostrou avesso a entrevistas e aparições públicas. Mas nunca perdeu a crença de que o destino da humanidade era conquistar outros astros. Em uma de suas últimas visitas ao local que o lançara ao espaço, na Flórida, comentou com sua mulher que já haveria marcianos entre nós. Ao estranhamento dela, respondeu sorrindo: “São nossos filhos. Eles serão os primeiros marcianos”.


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terminava a 1 metro de altura em relação ao solo. Era preciso dar um pequeno pulo para descer – algo que pode ser simples em 99,99% das situações, mas não para quem está vestindo trajes pressurizados, de 160 quilos. Além do desafio da descida, o primeiro homem na Lua precisava se certificar de que conseguiria voltar à escada com outro pulo, sem danos ao exoesqueleto que o mantinha vivo no espaço. Conseguiu. E foi nesse exato instante que proferiu uma das frases mais marcantes da história. Declaração que, ele próprio, teve o cuidado de abrigar o mundo inteiro, o nosso mundo. “Este é um pequeno passo para o homem... Um grande salto para a humanidade.” Surgiam então pegadas de um ser vivo no solo da Lua – as primeiras daquele mundo inóspito de 4,4 bilhões de anos. E Armstrong tinha muito o que fazer naquele satélite sem vida, sem vento, sem verde, onde tudo era levemente marrom e

Neil Armstrong e Buzz Aldrin implantaram um sismógrafo movido a energia solar para detectar tremores na Lua e um refletor a laser para ajudar os cientistas a medir a distância em qualquer momento entre o satélite e a Terra. Também coletaram amostras do solo lunar e de pedras, tiraram muitas fotos de tudo – inclusive deles mesmos – e desfraldaram a bandeira americana, endurecida com arame para que parecesse voar naquele ambiente sem nem uma brisa. Antes que voltassem ao módulo que os levaria com sucesso de volta à órbita da Lua e à companhia de Michael Collins, rumo ao planeta azul, Neil Armstrong conseguiu, por um breve momento, deixar Buzz se ocupando dos experimentos e se distanciou para explorar sozinho aquele miniuniverso. Foi quando encontrou uma pequena cratera, não maior que uma casa de tamanho médio. Na hora, chamou-a mentalmente de

E A PRIMEIRA POPULAÇÃO DA LUA, C OMP OS TA DE DUA S PES SOA S, DEI XOU SUAS PEGADAS EM SOLO LUNAR FOTOS DIGITAL VISION, STRINGER, CORBIS, BETTMANN / GETTY IMAGES; SCIENCE & SOCIETY PICTURE LIBRARY / NASA

cinza no chão e preto no céu. A ele juntou-se Aldrin, 20 minutos depois, brincando que teria o cuidado de não trancar a escotilha de um modo que os dois não pudessem voltar ao módulo lunar. Mas o bom humor logo deu lugar à emoção, quando Buzz finalmente contemplou, sem o filtro da janela do Eagle, a paisagem do satélite natural da Terra: “Desolação magnífica”, definiu. Em meio às atividades que tinham a executar, os dois receberam um telefonema de um outro planeta – algo que, ainda hoje, parece coisa de ficção científica. Era o próprio presidente Nixon, que os cumprimentava pelo feito histórico: “Por causa do que fizeram, os céus tornaram-se parte do nosso mundo. E, quando vocês falam conosco do Mar da Tranquilidade, nos inspiram a redobrar nossos esforços para trazer paz para a Terra”. Falou tão bonito que nem parecia o mesmo homem que insistia na Guerra do Vietnã e cairia pelo escândalo de Watergate. 38

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“Cratera de Muffie”. Era esse o apelido de sua filhinha Karen, que morrera aos 2 anos com um tumor no cérebro. Segundo seu biógrafo, naquele momento o astronauta imaginou que a pequena adoraria deslizar para dentro da cratera, e quase fez isso por ela – se não houvesse o risco de não conseguir voltar. Foi também na sua breve solidão selenita que Neil Armstrong, um herói da humanidade, refletiu que um dia os recursos naturais da Terra se esgotariam pela avidez do homem, que sabotaríamos nossa própria capacidade de nos sustentar e que, para sobreviver a esse instinto de autodestruição, a única saída seria encontrar novas casas no Universo – novos mundos habitáveis. Depois de Armstrong, mais 11 “Colombos” deixaram suas pegadas em solo lunar, todos do programa espacial americano. Desde a Apollo 17, porém, em 1972, nunca mais houve homem ou mulher sonhando acordados sobre o arenoso chão da Lua.


Sentido horário: a pegada dos astronautas na superfície arenosa da Lua virou registro histórico do dia 20 de julho de 1969, quatro dias após o lançamento do foguete / Buzz Aldrin durante a descida do módulo lunar, prestes a pisar no chão da Lua. Esta fotografia foi tirada por Neil, que já estava há 20 minutos caminhando pela superfície do astro / Buzz ao lado da bandeira americana, endurecida com arame para que parecesse voar naquele ambiente inóspito e sem nem uma brisa / Nesta última fotografia é possível ver os dois astronautas caminhando na Lua – a imagem de Neil Armstrong aparece refletida na viseira do capacete de Buzz Aldrin


RELIGIÃO

A ERA DOS

Mártires NOS PRIMEIROS SÉCULOS D.C., CRISTÃOS FORAM PERSEGUIDOS E MORTOS BRUTALMENTE POR AUTORIDADES ROMANAS. E FOI JUSTAMENTE DESSA VIOLÊNCIA QUE SURGIU A SANTIDADE NA IGREJA CATÓLICA POR ALEXANDRE CARVALHO

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eões e tigres emergem de uma escadaria em primeiro plano, no centro do Circus Maximus de Roma. À direita, um grupo de dezenas de religiosos – de crianças a homens de idade – reza antes do destino inescapável: terão seus corpos estraçalhados, depois devorados pelas feras. Ao fundo, entre eles e o público, que enche a arena, uma imagem ainda mais devastadora: nove cruzes com pessoas cobertas de piche, sendo queimadas vivas. O crime hediondo pelo qual essa gente comum está pagando – com a vida – por determinação do Império Romano: seguir uma nova religião, inspirada no rebelde Jesus de Nazaré. O cumprimento da pena é uma visão aterrorizante que o pintor francês Jean-Léon Gérome (1824 - 1904) eternizou no século 19, no quadro A Última Oração dos Mártires Cristãos. E que representa a história (entremeada de fatos e mitos) que atravessou os séculos como pedra fundamental do cristianismo primitivo: o martírio desses dissidentes da fé judaica, que transformaram uma seita messiânica na maior religião do planeta – 2,2 bilhões de cristãos hoje comparados ao 1,6 bilhão de muçulmanos. O momento histórico que essa obra de arte de 1883 simboliza é o período em que cristãos foram mortos às pencas pelas autoridades romanas, nos primeiros séculos d.C. E isso por conta de uma série de preconceitos e de questões políticas que foram se avolumando à medida que os “nazarenos” aumentavam de número exponencialmente – e se espalhavam para além dos limites da Judeia. Nas três décadas após a crucificação, os seguidores de Jesus já não eram bem-vistos nem pelos romanos nem pelos judeus tradicionais da época. Vale lembrar que os precursores do cristianismo nem se consideravam, categoricamente, “cristãos”. Para todos os efeitos, eles eram religiosos judeus – com a diferença de que achavam que o Messias, anunciado no Velho Testamento, já tinha chegado na figura de Jesus. Quando os adeptos dessa crença começaram a louvar seu ídolo nas sinagogas, houve tumulto. As autoridades judaicas bateram de frente com

as lideranças revolucionárias – um confronto que transformou a nova fé num movimento missionário, com muitos dos primeiros cristãos deixando Jerusalém e buscando refúgio em outras regiões do império. E os romanos? Estes, geralmente tolerantes com as religiões dos povos conquistados, também não viam motivo para simpatizar com a nova seita. Suportavam os judeus porque eram religiosos que se fechavam em seus rituais e não gostavam de se misturar aos gentios. Não davam muito trabalho, portanto. Já os cristãos tentavam converter os cidadãos de Roma, espalhando que havia um Reino dos Céus muito mais poderoso que qualquer outro governo terreno. Contudo, ainda assim, havia um motivo de intolerância bem mais impactante, pelo menos para o contexto da época: os cristãos eram maus cidadãos.

INIMIGOS DO ESTADO Ao decidir viver de acordo com os ensinamentos de Jesus, um cristão não tinha como ser coerente sem rejeitar todo o modo de vida do seu dominador. Assim, os mais fervorosos não davam as caras nos eventos sociais dedicados às divindades do politeísmo de Roma. Homenagear Apolo ou Minerva significava trair Jesus. Somando-se à indignação coletiva que essas ausências provocavam, a ética da vida cristã era uma manifestação pública de crítica à moral pagã. Como narra o historiador inglês Edward Gibbon, autor de Declínio e Queda do Império Romano, o apego da sociedade da época ao prazer e ao conforto material era motivo de desprezo para os pais da Igreja. “Vestuário garrido, casas luxuosas e mobiliário elegante eram considerados fontes de duplo pecado, da soberba e da sensualidade.” E a censura dos cristãos a esse lifestyle hedonista ia aos

A ética da vida cristã era uma manifestação pública de crítica aos rituais do império AVENTURAS NA HISTÓRIA

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RELIGIÃO

Mártires que viraram santos

INÁCIO DE ANTIOQUIA Alguns dos cristãos que morreram como mártires no cristianismo primitivo passaram a ser venerados pela Igreja Católica. Entre eles, destaca-se Santo Inácio de Antioquia (35 – 107), um bispo da Síria. A comunidade cristã de Antioquia data dos tempos dos apóstolos e é reconhecida como um dos grandes centros do cristianismo primitivo – foi lá que, pela primeira vez, os então chamados nazarenos, vistos como uma seita derivada do judaísmo, foram enfim denominados cristãos. Religioso erudito, Inácio escreveu sete epístolas famosas, sendo pioneiro em tratar de conceitos que regem a Igreja até hoje, como a ideia da Santíssima Trindade e a virgindade de Maria. Também foi o primeiro a usar a expressão “Igreja Católica”. Com tanto destaque assim, chamou atenção das autoridades romanas. Foi condenado à morte, devorado por leões no Coliseu. Comentando sua iminente execução, disse que seria “trigo de Cristo, moído nos dentes das feras”.

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mínimos detalhes: incluía as perucas dos romanos, as almofadas macias, os vinhos estrangeiros, os banhos quentes... Até fazer a barba era motivo de desaprovação. “O hábito de barbear-se seria uma mentira contra nossos próprios rostos e uma tentativa ímpia de melhorar a obra do Criador”, explica Gibbon. Não podia dar certo. Desprezar os rituais e a cultura do império era afrontar diretamente o conceito de cidadania. “É provável que os romanos vissem os cristãos como questionadores da virtude cívica pietas”, afirma o teólogo Lawrence S. Cunningham, professor da Universidade de Notre Dame (EUA). O estudioso se refere a uma das qualidades que teriam dado a Roma a força moral para conquistar e civilizar o mundo. “Piedade” significava devoção aos deuses romanos, mas também implicava a ideia de respeito pela ordem social e patriotismo. Então, quando os cristãos desdenhavam dos rituais do império, não estavam apenas esnobando a fé oficial: estavam trazendo instabilidade à pax deorum (expressão latina para “paz dos deuses”), a concórdia entre os homens e as divindades, que garantiria a segurança e o bem-estar da população. Eram, portanto, um risco à sociedade. Nas primeiras décadas do cristianismo primitivo, esse estigma geralmente rendia não mais que um ambiente de animosidade e preconceito. Isso até que um dos políticos mais aloprados da história assumisse o cargo de imperador. E colocasse fogo em Roma.

OS PECADOS DE NERO O mal-estar em relação aos seguidores de Cristo virou perseguição pela primeira vez quando, no verão de 64 d.C., um incêndio de proporções épicas tomou conta da capital do império. Começou numa pequena venda perto do Circus Maximus e logo se espalhou pelo comércio vizinho. Ficou tão forte que incendiou a arena inteira, os estabelecimentos comerciais e as casas, deixando a cidade em chamas por cinco dias. Não há nenhuma evidência histórica de como esse fogo começou, talvez fosse um simples acidente doméstico. Mas o povo não de-


A palavra “martírio” vem da expressão “prestar testemunho num tribunal” morou a achar um culpado. A fama de Nero era de cruel e demente – com grau máximo de psicopatia. O político mandara matar a própria mãe e, quando uma de suas esposas morreu, fez com que castrassem um jovem escravo para se casar com o eunuco. Quem, além dele, seria tão insano a ponto de botar fogo na cidade? Então Nero terceirizou a impressão de culpa para o único tipo de gente que o cidadão romano odiava tanto quanto a ele: os cristãos, lógico. Mandou prender, interrogar e executar com requintes de perversidade. Os condenados tiveram de vestir peles de animais antes de serem jogados às feras, para estimular o apetite dos grandes predadores. Também viraram tochas humanas a iluminar o céu de Roma. Nero era um tirano sádico, mas seus métodos cruéis não diferiam muito do padrão romano de punição. A pena capital era comum, por exemplo. O que chegou até os nossos dias sobre a Lei das 12 Tábuas, que versava sobre procedimento judicial na Roma Antiga, revela que uma pessoa podia ser executada brutalmente por atos às vezes banais. Caluniar alguém em uma canção, por exemplo, era punido com espancamento até a morte. E as práticas oficiais incluíam degola, empalamento, afogamento e queimar gente viva – além da popular crucificação. Antes das execuções, os cristãos presos eram questionados sobre se eram mesmo seguidores dos ensinamentos de Jesus. E foi esse papel que gerou o termo empregado para todo aquele que admitia, como sua própria testemunha de acusação, que era, sim, cristão. A origem da palavra “martírio” vem da expressão “prestar testemunho num tribunal”. E a perseguição sanguinária de Nero deu início aos séculos que ficaram conhecidos como “Era dos Mártires”.

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SÃO POLICARPO DE ESMIRNA O martírio de Policarpo é reconhecido como o primeiro documento a registrar uma execução de um cristão por se manter fiel à sua religião no Império Romano – foi a primeira vez que o termo “mártir” foi usado para se referir aos seguidores de Jesus que davam testemunho contra si nas audiências de Roma, tendo a morte como consequência. Considerado um dos registros mais importantes do segundo século d.C., a obra é evidência-chave para compreender como teve início uma mentalidade cristã sobre a importância dos relatos de martírio para o fortalecimento da cristandade. Bispo de Esmirna, cidade do sudoeste da Turquia, Policarpo (69 – 155) é considerado um dos três principais Padres Apostólicos do cristianismo primitivo, ao lado de Inácio de Antioquia e do papa Clemente de Roma. Ao se recusar a prestar homenagem aos deuses pagãos, foi condenado à morte, queimado vivo numa estaca.

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SÃO SEBASTIÃO O santo padroeiro dos gays tem uma história que é emblemática do quanto os cristãos foram moldando os detalhes dos martírios para fabricar heróis inspiradores. Sebastião (256 – 286) teria sido um dos casos de romano convertido ao cristianismo, com um “agravante”: era guarda pessoal do imperador Diocleciano – justamente o mais terrível perseguidor de cristãos. Quando sua fé em Cristo foi descoberta, seu chefe condenou-o à morte: seria executado a flechadas. Na época, Sebastião era um militar trintão, e as primeiras representações artísticas do santo, entre os séculos 6 e 11, mostram um homem maduro, barbudo e apropriadamente vestido. A partir do século 13, as pinturas foram rejuvenescendo a figura do mártir, criando a imagem que predomina até hoje: um jovem imberbe, musculoso, com o corpo cravado de flechas. O santo mais fotogênico da história da Igreja.

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ENTRE A CRUZ E A ESPADA Cristãos morreram por iniciativa do Estado em cinco períodos do domínio de Roma: logo após o grande incêndio de 64 d.C., e em determinados anos dos reinados de Décio, Valeriano, Diocleciano e Maximino Daia. “Nem todos esses episódios poderiam ser chamados razoavelmente de perseguição, e muitas vezes foram limitados a regiões específicas”, explica Candida Moss, professora de teologia da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e uma especialista em martírio no cristianismo primitivo. “Estamos falando em menos de dez anos de um total de 300 em que os cristãos foram executados como resultado de iniciativas imperiais”, descreve a professora. Em janeiro de 250 d.C., o imperador Décio lançou um decreto que obrigava todos os cidadãos de Roma a fazer sacrifícios de animais em honra ao próprio imperador. A pena para quem não o fizesse era a morte. Tratava-se de um teste de lealdade aos deuses do império e, ao mesmo tempo, um desafio aos cristãos. Entre a morte terrena sob tortura e colocar em risco sua vida eterna, muitos cristãos se recusaram a fazer o sacrifício institucional. Foram torturados e mortos. Outros preferiram não ter de fazer essa escolha terrível e partiram para o exílio. Foi o caso de São Cipriano, na época bispo de Cartago. Ele se escondeu num primeiro momento, mas acabou sendo preso na terceira onda de execuções de cristãos, já quando Valeriano era o imperador. O diálogo de sua audiência com o procônsul Galerius Maximus chegou até os nossos dias. Galerius: “Os imperadores mais sagrados ordenaram que você se conformasse aos ritos romanos”. / Cipriano: “Eu me recuso”. / Galerius: “Você viveu uma vida sem religião [a dos romanos], uniu um número de homens em uma associação ilegal, e se declarou abertamente um inimigo dos deuses e da religião de Roma. Os piedosos, mais sagrados e augustos imperadores tentaram trazê-lo em vão de volta à conformidade; e, no entanto, você foi detido como líder nesses crimes infames. A autoridade da lei será ratificada em seu sangue.


É a sentença desta corte que Cipriano seja executado com a espada”. E o bispo foi degolado. Quando o imperador Valeriano morreu, seu filho Galiano assumiu a frente do império e logo revogou as legislações que colocavam os cristãos na mira. E assim os seguidores de Cristo tiveram mais de 40 anos de relativa paz – época em que construíram igrejas e alguns, inclusive, ascenderam na escala social. Mas isso até que Diocleciano se tornasse o novo “César”. E inaugurasse a pior caça aos cristãos da história do Império Romano.

A GRANDE PERSEGUIÇÃO Entre 268 d.C. e a ascensão de Diocleciano, em 284, nada menos que oito imperadores haviam sido assassinados, e Roma tinha de lidar com focos de guerra civil e invasões bárbaras. A resposta do novo imperador à instabilidade foi dividir seu poder com mais três líderes, criando o sistema conhecido como Tetrarquia – que ajudava a controlar melhor as fronteiras do império. Por outro lado, ter quatro imperadores era um desafio para a unidade do seu território. Então, para dar coesão e o sentimento de um Estado único, Diocleciano buscou o mesmo recurso ao qual muitos ditadores apelam para fortalecer o patriotismo: elegeu um inimigo em comum. Os cristãos, claro. Os éditos do imperador foram gradualmente anunciados, retirando aos poucos os direitos legais dos cristãos, e praticamente tornando a nova religião um crime contra o Estado. Suas primeiras medidas persecutórias, de 303 d.C., removeram cristãos de cargos públicos (Hitler faria o mesmo com os judeus), destruíram igrejas, confiscaram escrituras sagradas e proibiram os cristãos de se reunir. Na parte leste do Império Romano, os seguidores de Cristo

Para fortalecer o patriotismo entre líderes, um inimigo em comum foi eleito: os cristãos

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SÃO LOURENÇO Nascido na Espanha, este religioso – morto na terceira onda de perseguição aos cristãos, quando Valeriano era imperador – ganhou fama de brincalhão, ironizando o próprio martírio em pleno ato da execução. Lourenço de Huesca (225 – 258) foi um diácono, clérigo que tinha a responsabilidade de cuidar dos bens da igreja e de distribuir esmola aos pobres. Após a execução do papa Sisto II, que foi decapitado pelas autoridades romanas, o imperador ordenou que a Igreja entregasse as suas riquezas num prazo de três dias. Desafiando a ordem, Lourenço levou ao imperador um grupo de miseráveis cujas vidas dependiam do amparo dos religiosos. “Estas são as riquezas da Igreja.” A frase rendeu-lhe a condenação à morte, um dos poucos episódios em que o humor se mistura à tragédia. Segundo a tradição cristã, Lourenço foi executado numa grelha gigante. E, em dado momento, virou-se aos carrascos, fanfarrão: “Este lado do corpo já está bem assado, podem me virar agora”.

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SÃO DÊNIS DE PARIS Nascido na Itália, Dênis (? – 250) foi outra vítima da perseguição de Valeriano, mas sua história é repleta da fantasia que a tradição cristã foi, aos poucos, adicionando à história dos mártires dos primeiros séculos – principalmente durante a Idade Média, quando as narrativas foram compiladas em registros cheios de uma criatividade dada ao sobrenatural. Missionário, enviado para falar de Jesus na antiga Gália (hoje França), Dênis se indispôs com os gauleses, que tinham suas próprias lendas e tradições. Entregue às autoridades romanas, foi executado no alto de um monte que, por ser um dos locais preferidos dos romanos para massacrar cristãos na região, ficou conhecido como “Colina do Mártir” – ou Montmartre, o bairro boêmio parisiense dos dias de hoje. E é aí que a fantasia entra na hagiografia (história da vida de um santo) de São Dênis: ao ser decapitado, o clérigo não teria morrido na hora. Seu corpo recolheu sua cabeça do chão e saiu caminhando com ela nas mãos.

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que não aceitaram as medidas do primeiro édito começaram a ser queimados vivos. Um segundo édito, no mesmo ano, ordenou que todos os clérigos cristãos fossem presos. Em Mártires da Palestina, o bispo Eusébio conta que tantos padres foram para a cadeia que o sistema prisional romano entrou em colapso. No terceiro édito, Diocleciano permitiu que os clérigos fossem anistiados, mas desde que fizessem sacrifício – os menos fervorosos tinham aí uma chance de escapar do martírio. Um breve refresco antes que o quarto édito, o mais terrível de todos, fosse lançado na primavera de 304. Ele obrigava que todos os cristãos – incluindo crianças –, não só os padres e bispos, se juntassem num espaço público para fazer sacrifícios aos deuses pagãos. Era isso ou a morte. A Grande Perseguição durou até a aposentadoria de Diocleciano, em 305 d.C., e foi brevemente retomada pelo imperador Maximino Daia, entre 311 e 313. Ao longo desses anos, alguns cristãos pagaram propina às autoridades para escapar da lei, outros partiram para o exílio em busca de refúgio em outros lugares. Mas os que copiaram o exemplo de Cristo reafirmaram sua fé diante de seus algozes – e se tornaram mártires da Igreja.

DE HERÓIS A SANTOS O que os romanos não previram foi que a perseguição aos cristãos se transformou em um tiro no pé. Os religiosos que perseveraram na sua crença em vez de aceitar a chantagem do governo – ou simplesmente fugir – acabaram se tornando os primeiros heróis da nova religião depois de Jesus. As execuções por intolerância religiosa fizeram com que os cristãos passassem a registrar as circunstâncias daquelas mortes heroicas e divulgar para outros grupos espalhados pelo império. Criou-se assim uma epidemia de narrativas inspiradoras, que conquistavam mais adeptos para o cristianismo. Nasceu, então, o costume de homenagear os restos mortais dos mártires. Ainda que só sobrasse um osso das execuções, esses restos


Os religiosos que se recusaram a renegar a fé viraram os primeiros santos da Igreja Católica eram enterrados em locais que pudessem servir de ponto de encontro, para uma celebração anual do martírio. Para não atrair a atenção dos romanos, essas reuniões eram feitas em cemitérios escondidos ou catacumbas – galerias subterrâneas. “As cerimônias nos túmulos dos mártires incluíam leituras, salmos e orações”, afirma o teólogo Lawrence S. Cunningham. Era o início do que a religiosidade cristã passou a chamar de veneração. Quando a “Era dos Mártires” terminou de vez, com a ascensão de Constantino ao poder – que adotou o cristianismo como a religião oficial do Império Romano –, esses ritos já eram uma tradição entre as comunidades cristãs. Os locais em que os mártires haviam sido enterrados viravam terra sagrada, e os religiosos construíam igrejas em cima desses espaços. Assim, muitos daqueles que pereceram devorados por leões, ursos e tigres nas arenas, para entretenimento dos cidadãos romanos, ou foram queimados vivos, degolados e crucificados, viraram um tipo especial de cristãos. Pessoas que, na crença que se disseminou entre os religiosos, teriam influência no céu de intermediar o acesso ao poder de Deus, atendendo às súplicas feitas nas orações. Viraram os primeiros santos da Igreja Católica. E assim o cristianismo ganhava um compilado de jornadas heroicas que estabeleceram o conceito de santidade – antes que existisse um modelo formal de canonização –, contribuindo para converter mais e mais judeus e romanos ao que tinha começado como uma pequena seita, organizada pelos apóstolos e parentes de Jesus de Nazaré. “Sanguis Martyrum est semen Ecclesia”, diria o autor cartaginês Tertuliano, ele próprio um convertido ao cristianismo, filho de um centurião romano – “O sangue dos mártires é a semente da Igreja”.

Mártires que viraram santos

SANTA LUZIA Esta é mais uma narrativa que se baseia em supostos acontecimentos milagrosos para reforçar a ideia de que os mártires do cristianismo primitivo seriam super-heróis da Igreja – uma inspiração para atrair mais convertidos. Nascida na Sicília, Luzia (283 – 304) vinha de uma família abastada, que mantinha em segredo a religião cristã para não ter problemas com as autoridades. Mas o segredo caiu por terra quando a jovem decidiu distribuir todos os seus bens aos pobres. Entregue ao imperador Diocleciano, a moça se recusou a renegar a fé cristã, e por isso teria passado por uma série de provações, entre ser forçada a trabalhar numa casa de prostituição (ela tinha feito voto de castidade) e ser queimada viva (segundo a lenda, as chamas não a atingiam). Como nada tinha resultado, Diocleciano mandou que arrancassem os olhos da jovem. E aí teria acontecido mais um milagre: outros olhos surgiram nas cavidades orbitais da santa. O martírio só teve um fim quando Luzia foi decapitada.

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BRASIL

A PRIMEIRA CERTIDÃO DE NASCIMENTO DO PAÍS É UM CRÂNIO DE 11 MIL ANOS ENCONTRADO EM 1975. MAS HÁ QUEM DIGA QUE ESTAMOS POR AQUI HÁ MAIS TEMPO. AFINAL, QUEM FORAM OS PRIMEIROS BRASILEIROS? POR RUI DANTAS

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urante quase 500 anos o Brasil praticamente ignorou uma parte do seu passado. A maior delas. Na escola, a primeira aula de história começa com o descobrimento do Brasil como se nada tivesse acontecido antes. No entanto, quando os portugueses chegaram, em 1500, civilizações avançadas e poderosas estavam no auge, outras já haviam desaparecido, mas deixado vestígios de passagem e de história no Brasil. O naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, em 1836, foi o primeiro a se interessar pelo Brasil pré-cabralino e tornou-se uma espécie de patrono da arqueologia e da paleontologia no país. Sua descoberta mais importante aconteceu na Gruta do Sumidouro, perto de Lagoa Santa, MG. Em meio aos ossos de grandes mamíferos, ele achou os primeiros fósseis humanos no Brasil. Em busca do primeiro brasileiro, Peter encontrou mais perguntas que respostas (algumas ainda sem solução). A primeira – e talvez a mais controversa de todas – é como e quando o homem passou a ocupar o território americano e, por extensão, o brasileiro? A teoria mais aceita é que os primeiros grupos humanos a chegar por aqui atravessaram da Ásia para a América pela Beríngia (região no extremo norte do continente, que há 15 mil anos, durante o fim da era glacial, ligava os dois continentes). A pé, os novos habitantes começaram a migrar para o sul, em busca de regiões mais quentes. Até a Patagônia, no limite sul da América, eles teriam levado algo em torno de 2 mil anos. Mas há quem discorde. A arqueóloga brasileira Niède Guidon, que há mais de 40 anos estuda os vestígios da presença humana na região da Serra da Capivara, no Piauí, acredita que o homem americano já ocupava o Brasil há mais de 60 mil anos. Sua pesquisa, que tem base em vestígios humanos cujas datações indicaram ter 48 mil anos de idade, é fruto do documentário Niède, de Tiago Tambelli, que acaba de ser lançado no país. Segundo a arqueóloga, a ocupação das Américas começou entre 80 e 100 mil anos atrás AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BRASIL

e o primeiro americano teria vindo da região da Austrália em embarcações simples – uma tese questionada dentro e fora do Brasil. Para os críticos, esperar que um aborígine de mais de 50 mil anos atrás atravessasse o Pacífico seria como pedir a Cristóvão Colombo que, em vez de cruzar o Atlântico para vir ao Novo Mundo, fincasse a bandeira na Lua. Mas Niède Guidon não está sozinha quando marca o início da presença humana no Brasil, além dos paradigmais 15 mil anos. O trabalho da arqueóloga Águeda Vilhena Vialou, entre o Museu de Arqueologia da USP e o Museu de História Natural de Paris, indicou a existência do homem no Mato Grosso, na Fazenda Santa Elina, há cerca de 23 mil anos. Lá, foram encontradas pinturas nas paredes e grande quantidade de pedras trabalhadas. “Fizemos três datações diferentes, em três materiais distintos: ossos, sedimentos e carvão. Todos à mesma data, entre 22 e 23 mil anos”, contou.

Luzia e seus amigos viviam em pequenos grupos e eram nômades, sempre procurando encontrar vegetais e animais de pequeno porte, como o porco-do-mato e a paca, que eles caçavam com a ajuda de lanças e de flechas com pontas feitas de pedras lascadas. Não ficavam mais que duas semanas no mesmo lugar. Por isso, não costumavam enterrar seus mortos. O corpo de Luzia foi encontrado jogado no fundo de uma caverna. Por volta de 6 mil anos atrás esse povo desapareceu. A explicação para isso é o surgimento de outro grupo de humanos, dessa vez, parecidos com os índios atuais. Eles chegaram em muito maior número e passaram a ocupar a região. As populações se misturaram, segundo Adriana, mas com o tempo as características dos Homens da Lagoa Santa submergiram. Essa nova leva de viajantes chegou a ocupar toda a costa brasileira e o Planalto Central até 2 mil anos atrás. “Esses bandos chegavam a uma região, montavam acampamento, geralmente em grupos de cinco a dez famílias em pequenas faixas de terra”, diz a pesquisadora. De acordo com ela, eles retiravam da região tudo o que podiam: vegetais, peixes e animais. Assim que esgotavam esses recursos e que os acampamentos apresentavam problemas sanitários, como o aparecimento de insetos em grandes quantidades, iam embora.

11,5 MIL ANOS É A IDADE DE LUZIA, A MAIS ANTIGA BRASILEIRA, COM TRAÇOS DISTINTOS DOS ÍNDIOS

HOMENS DA LAGOA SANTA A arqueóloga Adriana Schmidt Dias, da UFRGS, acredita que o primeiro brasileiro descende de uma das várias correntes migratórias vindas da Ásia, que ocorreram a partir de 15 mil anos atrás. A mais antiga dessas levas de humanos teria chegado ao Brasil há cerca de 12 mil anos e ficado conhecida como Os Homens da Lagoa Santa, nome dado em homenagem ao sítio arqueológico onde foram localizados – o mesmo pesquisado pelo dinamarquês Lund. Desse povo, faz parte o fóssil humano descoberto em 1975, que viveu por aqui há cerca de 11,5 mil anos e foi batizado pelos cientistas de Luzia, a mais antiga brasileira descoberta até hoje. Luzia era uma caçadora e coletora de vegetais, com traços bem distintos dos índios que Pero Vaz de Caminha descreveu em sua carta, em 1500. Em 1999, a Universidade de Manchester, na Inglaterra, reconstituiu o rosto de Luzia: ficaram óbvios os traços negroides, típicos de populações africanas e da Oceania. 50

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CIVILIZAÇÃO DAS CONCHAS Alguns dos descendentes desses novos habitantes criaram, no litoral do Brasil, uma das civilizações mais características e inusuais do período pré-cabralino. Eles ocuparam do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul entre 6 mil e mil anos atrás, e ficaram conhecidos pelas edificações que erguiam para sepultar seus mortos: os sambaquis. São pilhas de sedimentos, principalmente conchas e ossos de animais, cuidadosamente empilhados e que chegavam a ter 40 metros de altura e mais de 500 metros de comprimento. A princípio, os ar-


As pinturas rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, encontradas por Niède Guidon, são marcas da passagem de populações ancestrais. É apenas um dos tesouros históricos brasileiros que sofrem com a falta de recursos para manutenção

queólogos acreditavam tratar-se de grandes depósitos funerários, mas, com a descoberta sistemática de novos sítios, ficou provado que os sambaquis eram o centro da vida social desses povos, chamados sambaquieiros. Ali, eles sepultavam seus mortos, realizavam rituais e construíam suas casas. “Eles se alimentavam basicamente da pesca e da coleta de frutos do mar, feitas com o auxílio de canoas e redes”, explica o arqueólogo Paulo de Blasis, da USP. O sambaquieiro era baixo, no máximo 1,60 metro. A mortalidade infantil era altíssima, entre 30 e 40% dos corpos encontrados eram de crianças. Quem chegava à idade adulta também não ia muito longe: para os homens a perspectiva de vida era de 25 anos e as mulheres chegavam, no máximo, aos 35. Outro mito que as pesquisas vêm derrubando é que os sambaquieiros eram nômades, indo de um lugar para outro assim que se encerravam os recursos naturais. “Era uma civilização com estabilidade territorial e populacional. Um conjunto de sambaquis como os do sul de Santa Catarina podia reunir até 3 ou 4 mil habitantes”, conta Paulo. Para ele, uma ocupação dessa montada, por tanto tempo, só seria viável com um alto grau de complexidade social, que deveria incluir a divisão de tarefas e instituição de chefias regionais. Nos sambaquis foram encontrados também esculturas e ornamentos feitos de pedra polida, que eram colocados junto aos corpos sepultados. Representando animais como o tatu e a baleia, esses objetos demonstram um delicado senso estético, que exigia habilidade especial. Segundo Dione Bandeira, do Museu Nacional do Sambaqui, em Joinville, SC, é possível que houvesse pessoas designadas para produzi-los, até como algum tipo de ritual. Os sambaquieiros desapareceram há cerca de mil anos, com a chegada de povos agricultores vindos do planalto. “Eles provavelmente foram se afastando cada vez mais de seu local de origem, esquecendo suas tradições e se misturando ao conquistador”, descreve o arqueólogo da USP. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BRASIL

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tupi. Partindo de onde hoje ficam os estados OS POVOS DA AMAZÔNIA A Amazônia foi o berço de culturas avan- de Rondônia e do Amazonas, eles deixaram a çadas, que viveram mais de mil anos antes de região em duas levas principais: os tupi-guaraCabral chegar ao Brasil. Os registros mais an- ni desceram o Rio Paraná e chegaram à região tigos da presença dos homens na região foram sul; os tupinambá seguiram pelo Rio Amazodescobertos pela arqueóloga norte-americana nas até sua foz e, dali, rumo ao sul pela costa. Eles viviam em grandes aldeias, cujas popuAnna Roosevelt, em 1996. Ela encontrou pinturas rupestres datadas de 11 mil anos, na lações chegavam a ter milhares de pessoas. “Se organizavam em chefaturas, isto é, uma reuregião de Monte Alegre, PA. Na região da Ilha de Marajó, uma impor- nião de tribos em que algumas aldeias seriam tante civilização se desenvolveu entre os anos mais importantes e teriam influência sobre 400 e 1300 d.C. A civilização marajoara do- outras”, explica o professor e historiador Paulo minava a agricultura e possuía aldeias que Jobim. Segundo ele, as aldeias funcionavam chegaram a abrigar 5 ou 6 mil habitantes. Os como cidades, com famílias inteiras, com tios, marajoaras eram excelentes engenheiros e primos, pais, avós e filhos vivendo numa mesconstruíram aterros artificiais que se elevavam ma casa. “A hierarquia das tribos era baseada até 12 metros acima do solo. “Esses aterros no parentesco”, diz. Os espaços comuns desses exigiam a mobilização de um grande contin- lugares, normalmente na área central, eram gente de mão de obra e uma liderança consti- dedicados às práticas religiosas e sociais. Eles conheciam a agricultura, princituída e respeitada”, afirmou o palmente a de hortaliças, de arqueólogo Eduardo Neves, da CERÂMICAS mandioca e de milho, e produUSP. Tal requinte se refletia na DE 7 MIL ANOS ziam cerâmicas práticas, princicriação de sua cerâmica. De caráter cerimonial, seus desenhos ESTÃO ENTRE AS palmente para cozinhar. A guerra, além de demarcar correspondem ao mundo simMAIS ANTIGAS territórios, era tida como oporbólico e religioso dos marajoaras. Eles desapareceram miste- DO CONTINENTE tunidade para o desenvolvimento de lideranças, que se baseariosamente por volta de 1300. AMERICANO vam sobretudo na coragem, na Mas a superpotência da época era a civilização tapajônica, que ocupava a oratória e nos laços familiares. A expectativa de vida era curta, não ultraregião da atual cidade de Santarém, PA. Mesmo depois do contato com os europeus, ainda passando os 40 anos de idade em média. Por era uma das maiores e mais poderosas nações isso, os mais idosos eram muito respeitados, indígenas da Amazônia. Objetos de sua cerâ- ocupando papel de destaque na sociedade. A mica foram localizados em lugares distantes, divisão do trabalho também era feita por sexos: o que indica que havia contato intenso entre os homens caçavam, as mulheres coletavam, os tapajós e tribos vizinhas, incluindo comér- cuidavam das crianças e do preparo do solo cio. Segundo Eduardo, havia um poder central para a agricultura. Além disso, eram as resexercido por chefe tapajó, reunindo várias tri- ponsáveis pela produção da arte em cerâmica. “Os guarani eram um povo conquistador bos vizinhas. E algumas aldeias eram tão populosas que seus caciques podiam mobilizar e exclusivista”, descreve o historiador Pedro Schmitz. “Seus parentes tornavam-se aliados, até 60 mil homens para o combate. A Amazônia também foi o ponto de parti- mas outros povos eram considerados inimigos da para a migração de um povo tecnologica- e expulsos, dizimados ou incorporados, às mente avançado e conquistador, que levou ao vezes, literalmente, já que eram antropófagos.” declínio os brasileiros coletores e caçadores, e Os nossos descendentes que estavam na praia, que se espalhou de forma inédita pelo país: os naquela manhã de 22 de abril de 1500. 52

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ÍNDIO É O SEU PASSADO As tradições, mitos e lendas indígenas têm uma outra explicação para o aparecimento do homem e o povoamento das terras brasileiras. O índio Kaká Werá Jecupé, escritor, ambientalista e estudioso dos mitos indígenas, diz que, segundo os povos de tradição tupi, dois irmãos sobreviveram a uma grande chuva: Nhanderikey e Nhanderivuçu. Eles receberam de Tupã, o deus dos deuses tupi, o dom de criar pela fala e, assim, construíram a terra, as águas, o ar e a floresta. Um dia, se desentenderam e Nhanderikey foi enviado por Tupã para o

outro lado de uma montanha, afastando-se do seu irmão. Na separação, cada um constituiu a sua própria tribo. “Tupã, então, disse que um dia Nhanderikey voltaria, mas os dois povos não se reconheceriam como irmãos. Só depois de muito tempo, se reconciliariam”, descreveu Werá. Essa seria a explicação indígena para a chegada do homem branco. O índio se refere à sua origem sempre com o termo “aqui”. Se perguntar a ele de onde ele vem, a resposta será que ele sempre esteve lá. Que ele vem de “aqui”. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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PARA ENTENDER

MANICÔMIOS NO BRASIL

5 OBRAS PARA ENTENDER COMO ERA A VIDA NOS ANTIGOS HOSPÍCIOS DO PAÍS, CONSIDERADOS MODELO POR DÉCADAS

Lima Barreto, 1920 Duas obras escritas enquanto o autor esteve internado no Hospital Nacional de Alienados, RJ, o primeiro manicômio construído no Brasil. Nos relatos de Barreto, o que mais impressiona é a perturbadora lucidez e sensibilidade com que desvela suas impressões sobre a própria loucura e a de seu entorno.

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HOLOCAUSTO BRASILEIRO Daniela Arbex, 2013

Pacientes foram mantidos em condições desumanas no Hospital Colônia de Barbacena, MG, sem previsão de saída. Em 2016, este livro inspirou o documentário de mesmo nome (com direção de Daniela Arbex e Armando Mendz). Ambos buscam resgatar a memória de parte dessa história que vitimou 60 mil pessoas.

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HOSPÍCIO É DEUS E O SOFREDOR DO VER Maura Lopes Cançado, 1965/1968

Box reúne as duas únicas publicações da escritora mineira, que enfrentou diversas internações psiquiátricas ao longo da sua vida, desde que fora diagnosticada com esquizofrenia. A primeira, aos 18 anos, foi de forma voluntária. Seus relatos têm um tom denunciativo dessa experiência.

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NISE: O CORAÇÃO DA LOUCURA Roberto Berliner, 2015

Filme biográfico da psiquiatra Nise da Silveira, que, em 1950, adota uma abordagem de cuidado inovadora no setor de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, RJ. Seu trabalho questionou o paradigma da psiquiatria tradicional por considerar agressivos os tratamentos da época.

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A CHAVE DA NOSSA CASA Fundap, 2014

Documentário aborda a política de desinstitucionalização para residências terapêuticas, com suporte do SUS, de pacientes provenientes de antigos manicômios e hospitais psiquiátricos. Hoje, são moradores desses estabelecimentos devido às internações que se prolongaram por anos e até décadas.

POR ALINA Z F CAYRES PSICÓLOGA E PSICOTERAPEUTA, DOUTORANDA DA FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA DA USP. PESQUISA A IMPLANTAÇÃO DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (RAPS) NO ESTADO DE SÃO PAULO

IMAGENS REPRODUÇÃO

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DIÁRIO DO HOSPÍCIO E O CEMITÉRIO DOS VIVOS


COLUNA M.R. TERCI

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DA SENZALA AO FRONT DE BATALHA

a história do mundo sempre existiram guerras. Fosse por territórios, ideais ou diferenças intelectuais, o homem constantemente lançou mão de recursos bélicos para fazer valer suas ambições. Dizem que guerra é inferno. Não sei especular sobre o inferno, mas, sem dúvida, a guerra é o que mais nos aproxima dele. Para o ser humano, nenhum outro anseio é maior do que o desejo pela liberdade. Ninguém nasce para o grilhão ou o confinamento. Ser livre é desejo comum de todos e, talvez por isso, o direito de expressar qualquer opinião, agir, se relacionar, ter independência ou licença para ir e vir, permanecer ou ficar, seja uma das maiores motivações para calar fundo a baioneta no campo de batalha. Eis então o problema. Não se faz guerra sem o mais precioso dos recursos: vidas humanas. Não se peleja, jamais se ganha território, não se esclarece a diferença, nem se chega ao prêmio sem soldados. Em 1866, durante a Guerra do Paraguai, esse era o dilema do Império do Brasil. Fora um ano particularmente difícil para os soldados no front. Quase dois anos haviam se passado, a situação das forças militares brasileiras era caótica. A invasão do desconhecido território paraguaio expôs nossas fraquezas. Terrenos pantanosos, tocaias constantes e alagamentos súbitos. Deslocar tropas era demorado, acima de tudo, custoso. Perderam-se milhares de vidas e o Exército brasileiro estava desfalcado e terrivelmente desarticulado. Assim, para dar conta das baixas e fortalecer as linhas que ameaçavam desmoronar, o imperador

propôs uma audaciosa, porém polêmica solução, que tocava no nervo mais vulnerável e sensível da época: a escravidão. Dom Pedro II sugeriu, então, uma lei que permitia a alforria de escravos em troca de serviço militar. Apesar do grande receio dos conselheiros reais, que diziam ao imperador que as alforrias incentivariam a movimentação de escravos pelo país, fomentando fugas e sublevações pela abolição, e de todos os obstáculos colocados pelos senhores de escravos e fazendeiros, que argumentavam que tal libertação traria sérios transtornos para a agricultura nacional, o decreto número 3725/1866 foi aprovado em caráter emergencial, com a ressalva de se pagar indenização aos proprietários. Trocando em miúdos, os senhores vendiam seus escravos para o governo fazer guerra. Nas senzalas e nas lavouras, cartas de alforria e uniformes começaram a chegar endereçados a homens que, repentinamente, se viram no dever de defender a pátria que até então lhes negava condição de gente. Em janeiro de 1867, os primeiros libertos da guerra foram encaminhados para o Exército e a Marinha do Brasil. Forros e engajados como soldados, eles lutaram em pelo menos três dos quatro exércitos dos países envolvidos. O Corpo dos Zuavos da Bahia era um dos muitos batalhões formados exclusivamente por negros. O consenso entre muitos dos comandantes dos Aliados era de que aqueles homens de mãos calejadas e costas marcadas lutavam mais bravamente e com maior entusiasmo que os soldados brancos, porque lutavam por liberdade.

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

Decreto aprovado em caráter emergencial permitia senhores venderem seus escravos para o governo fazer guerra

M.R. TERCI É ESCRITOR, FINALISTA NO PRÊMIO CUBO DE OURO, AUTOR DE IMPERIAIS DE GRAN ABUELO (2018), OBRA AMBIENTADA NO PÓS-GUERRA DO PARAGUAI, E BAIRRO DA CRIPTA (2019), NA BELLE ÉPOQUE BRASILEIRA

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COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

Francofonia – Louvre sob Ocupação França / Alemanha / Holanda, 2015 Direção: Aleksandr Sokurov

aris, cidade aberta. A expressão define o centro urbano que, em tempos de guerra, se rende ao inimigo para evitar perdas humanas e materiais – e passa a ser ocupado pacificamente. Dominado também. Foi o que aconteceu quando parte da França foi subjugada pela Alemanha durante a Segunda Guerra. Embora os colaboracionistas, liderados desde julho de 1940 pelo Marechal Pétain, tivessem transferido a capital para Vichy, a cidade-luz permanecia um símbolo do que os franceses tinham de mais belo – toda uma delicadeza exposta aos coturnos alemães. “Como o vencedor iria se comportar ao assumir o comando do centro da cultura mundial?”, pergunta o narrador de Francofonia. Ele fala de Paris, mas especialmente do Museu do Louvre. Resistiria esse templo da arte à ocupação nazista? A resposta é uma lição de história de Aleksandr Sokurov – que já havia mirado sua câmera para outro museu, o Hermitage, no belíssimo Arca Russa. Aqui ele discorre a respeito da França sob o nazismo, da magnitude do Louvre e da origem de suas obras. Uma aula embalada em cinema autoral, que reflete sobre a natureza da cultura e dos homens, enquanto combina imagens de arquivo com

a reconstituição dramatizada da convivência entre dois personagens-chave: o diretor do museu na época e o oficial nazista responsável por administrar as coleções de arte francesas. O primeiro, Jacques Jaujard, agindo em contrariedade à política de colaboração com o inimigo, havia coordenado uma evacuação em massa: 6 mil obras foram retiradas do Louvre e escondidas antes que os soldados do Führer chegassem. O segundo, conde Wolff-Metternich, não ignorava essa ação subversiva. Mas agiu de acordo com seus próprios valores – não os de Hitler. Em vez de punir Jaujard, o oficial – ele próprio um historiador da arte – fez vista grossa. Sabia que, apesar do princípio alemão Kunstschutz, de preservar a herança cultural dos países dominados, não tardaria a hora em que os nazistas saqueariam os tesouros do museu mais importante do mundo. E esse aristocrata – de título e de coração – não seria cúmplice desse crime. Por sua “ineficiência” em recuperar as obras sumidas, Wolff-Metternich recebeu a Legião de Honra quando a guerra acabou – a mais alta condecoração francesa por méritos militares. Foi um mau nazista, mas um herói da humanidade.

ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)

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FOTO REPRODUÇÃO. AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

O MUSEU E OS NAZISTAS P


ENTREVISTA

IMIGRAÇÃO O

jovem argentino Jonathan Berezovsky, neto de poloneses fugidos da Segunda Guerra Mundial, já foi imigrante em três países, incluindo o Brasil – onde vive atualmente. Antes, morou por quatro anos em Israel trabalhando com refugiados em uma ONG. “Passei a conhecê-los de verdade, ouvir suas histórias e a me identificar com elas”, conta. No Brasil, decidiu seguir o mesmo caminho e se tornou empreendedor social criando, em 2015, o Migraf lix, um projeto que integra e valoriza imigrantes e refugiados que desembarcam às centenas, todo ano, em dificuldades no país.

ENTREVISTA POR IZABEL DUVA RAPOPORT FOTO JEREMY YOUNG

Qual o maior desafio, entre tantos, de um refugiado? Sem dúvida é a integração à sociedade local, seja pelo aprendizado do novo idioma, que nunca é fácil e demanda tempo, seja pela dificuldade em se conseguir um emprego, achar lugar para morar, ou até mesmo conseguir obter documentações. E como os brasileiros, em geral, enxergam os novos imigrantes? Muitos ainda os enxergam como uma ameaça ao Brasil em vez de os verem como pessoas que podem contribuir com o país. A Nova Lei de Migração já foi um grande avanço, ampliando os direitos dos refugiados e imigrantes, mas ainda falta apoio

para que eles possam se integrar cultural e economicamente à sociedade brasileira. Ignorar tal questão hoje pode colocar essa população em uma situação de marginalização, trazendo sérias consequências no futuro. Qual a atuação do Migraflix? É uma organização que empodera refugiados e imigrantes por meio do empreendedorismo cultural. Nela, eles são capacitados para criar experiências ou produtos culturais autênticos e também para se tornar fornecedores dos nossos serviços de catering, workshops culturais e palestras motivacionais em empresas, gerando, assim, conexões com a sociedade brasileira.

É um diálogo entre brasileiro e imigrante. Sim, nas atividades, além de o brasileiro aprender a nova cultura, aprende quem é o imigrante – e passa, naturalmente, a se identificar com ele. Percebem que são pessoas iguais a qualquer outra: de um lado, têm sonhos e desejam uma vida digna; do outro, têm muito a acrescentar à sociedade pela sua cultura, criatividade, determinação e enorme capacidade de resiliência. Antes de Israel, você já enxergou as crises imigratórias como algo distante da sua vida? Sim, já me considerei um ‘outro tipo’ de imigrante. Mas, com o tempo, entendi que isso era uma hipocrisia. Quase todo mundo tem esse histórico na família e é aí que está o ponto: ao pensarmos no imigrante devemos, necessariamente, partir de nós mesmos, nos reconhecer como imigrantes. Hoje percebo a capacidade que cada onda imigratória tem de revitalizar a vida comunitária e de nos ensinar a sermos pessoas cada vez mais tolerantes.

“Cada onda imigratória tem a capacidade de revitalizar nossa vida comunitária”

JONATHAN BEREZOVSKY É FUNDADOR E DIRETOR DO MIGRAFLIX, PROJETO QUE EMPODERA REFUGIADOS E IMIGRANTES NA PERSPECTIVA SOCIAL E ECONÔMICA PARA QUE ELES SE SINTAM VALORIZADOS DE NOVO

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M O AMOR QUE DIZ SEU NOME REVOLTA EM BAR DE NOVA YORK FOI O ESTOPIM PARA A CRIAÇÃO DO MOVIMENTO DE ORGULHO LGBT+ POR ALEXANDRE CARVALHO

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adrugada de 28 de junho de 1969. O bar nova-iorquino Stonewall Inn recebia mais uma visita indesejada da polícia. Clientes e funcionários daquele reduto LGBT+ estavam acostumados às humilhações e prisões, quando os agentes conferiam se os frequentadores estavam vestidos de acordo com seu sexo (travestir-se era ilegal) e, na dúvida, inspecionavam seus genitais. Mas não naquela noite. Gays e lésbicas repudiaram a batida policial. Um tumulto se instaurou – e a noção de que era legítimo revoltar-se contra a discriminação se espalhou em manifestações pelo país. Era a primeira vez que a comunidade LGBT+ se unia para lutar contra a violência homofóbica. Um ano depois, ativistas organizaram, em NY, uma Pride Parade para lembrar a resistência no bar histórico – uma marcha colorida, bem-humorada e política, que inspiraria versões mundo afora. E que tem sua representante mais grandiosa em São Paulo – onde a Parada do Orgulho LGBT 2019 tem como tema “50 anos de Stonewall”.

FOTO REPRODUÇÃO / THE NEW YORK PUBLIC LIBRARY

MEMÓRIA




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