Aventuras Na História - Edição 195

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EDIÇÃO 195 | AGOSTO/2019

POR QUE

HITLER

QUIS GUERRA CONTRA O MUNDO?

HÁ 80 ANOS, A VONTADE INABALÁVEL DE UM ÚNICO HOMEM DAVA INÍCIO AO EPISÓDIO MAIS IMPORTANTE E ASSUSTADOR DO SÉCULO PASSADO. E NINGUÉM CONSEGUIU DETÊ-LO

QUILOMBOS URBANOS: OS REDUTOS DA LUTA DE COMBATE À ESCRAVIDÃO

OS AVANÇOS DA IDADE MÉDIA PARA A HUMANIDADE

A INSÓLITA SAGA DO CORPO DE EVITA PERÓN



SUMÁRIO

CAPA: EM SETEMBRO DE 1939 CAÍA A PRIMEIRA BOMBA NA POLÔNIA. E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ERA ANUNCIADA

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GALERIA A centenária arte popular dos caminhões do Paquistão e da Índia

18 ARTE

A Grande Onda de Kanagawa

12 HOJE NA HISTÓRIA 20 14 LINHA DO TEMPO 21 DÚVIDA CRUEL À MESA

Café já foi motivo de prisão na Turquia

Aconteceu em agosto

Qual a diferença entre piratas, corsários e bucaneiros?

Os pensadores que construíram a filosofia

16 MITOS E LENDAS

Nhanderuvuçu: o deus que criou o mundo na mitologia indígena

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COMO FAZÍAMOS SEM Escola

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ILUSTRADA

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MEMÓRIA

Como era a vida em Pompeia antes da erupção do vulcão

Marilyn Monroe

24 BRASIL

Quilombos urbanos: os redutos que se tornaram focos de resistência na luta abolicionista

40 IDADE MÉDIA

A criatividade e os avanços do milênio que ficou conhecido como a Idade das Trevas

48 PERSONAGEM

Há 100 anos nascia Eva Perón, que só teve seu descanso final duas décadas depois de morrer

54 COLUNA M.R.TERCI

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COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

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COLUNA JORGE DE SOUZA

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ENTREVISTA GILBERTO VENTURA


EDITORIAL

O MAL DA VISTA GROSSA

DIRETOR-SUPERINTENDENTE Luis Fernando Maluf

P

oucos anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, muitos alemães que votaram em Adolf Hitler disseram que não faziam ideia de que aquele indivíduo traria tanta amargura, traumas e miséria ao mundo. Afinal, muitas pessoas não levavam a sério seus discursos polêmicos contra judeus, comunistas, gays, imigrantes e minorias em geral. Todo discurso era um espetáculo. Um show que convencia cada vez mais eleitores desiludidos e raivosos contra o sistema político que vigorava naquela época – e que tinha acabado de causar a maior crise econômica na história da Alemanha. O povo queria mudança e acreditou na mensagem de segurança que Hitler transmitia. Seu radicalismo incomodava, mas não a ponto de contê-lo. A questão é que Hitler não chegou ao poder porque a sociedade alemã era antissemita e queria guerra, mas porque muitas pessoas fizeram vista grossa. Pessoas e países. E quando o mundo viu cair a primeira bomba na Polônia, há 80 anos, já era tarde demais. O início do episódio mais importante e assustador do século passado, tema da nossa reportagem de capa, nos mostra algo bem particular: que para viver num mundo pacífico, é necessário cada um de nós assumirmos uma fatia de responsabilidade por ele. Boa leitura!

DIRETORES CORPORATIVOS Editorial: Pablo de la Fuente Comercial: Márcio Maffei Finanças e Controle: Filipe Medeiros Internet: Alan Fontevecchia Jurídico e RH: Wardi Awada Digital: Guilherme Ravache DIRETORIA E GERÊNCIAS Publicidade: Thaís Haddad (Diretora) Circulação: Luciana Romano (Assinaturas) Tecnologia Digital: Nicholas Serrano Arte, Prepress e Coordenação Gráfica: André Luiz P. da Silva

(Lançada em 2003) Editora: Izabel Duva Rapoport; Arte: Marília Filgueiras; Revisão: Bianca Albert; Colaboraram nesta edição: Joseane Pereira (repórter); Hellen Ribeiro (revisão) REDAÇÃO E CORRESPONDÊNCIA SÃO PAULO: Av. Eusébio Matoso, 1.375, 5º andar, Pinheiros, CEP 05423-180, SP, Brasil. Publicidade: Tel. 2197-2104/2122

Izabel Duva Rapoport Editora

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AVENTURAS NA HISTÓRIA 195 ISSN (18062415), ano 16, nº 7, é uma publicação mensal da Editora Caras. Edições anteriores: Solicite ao seu jornaleiro pelo preço da última edição em bancas, mais despesa de remessa; sujeito a disponibilidade de estoque. Distribuída em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. AVENTURAS NA HISTÓRIA não admite publicidade redacional A Editora CARAS informa que não realiza cobrança telefônica de débitos pendentes e não aplica qualquer tipo de multa em virtude de cancelamento de assinatura. Todos os nossos boletos são emitidos através do banco Santander, com cedente Editora CARAS SA. Em caso de dúvida, ligue para nós. PARA ASSINAR OU RESOLVER OS ASSUNTOS RELATIVOS À SUA ASSINATURA, ACESSE: www.assineclube.com.br/faleconosco SE PREFERIR LIGUE: São Paulo: (11) 3512-9479 Rio de Janeiro: (21) 4063-6989 Belo Horizonte: (31) 4063-8156 Segunda a sexta-feira das 9h às 18h IMPRESSA NA COAN INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA. Avenida Tancredo Neves, 300 Tubarão - SC - Brasil

EDITOR RESPONSÁVEL Wardi Awada


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GALERIA

ARTE NA ESTRADA NO PAQUISTÃO E NA ÍNDIA, A CENTENÁRIA ARTE POPULAR NÃO ESTÁ SÓ NAS CASAS E MUSEUS, MAS TAMBÉM NAS RODOVIAS POR ALEXANDRE CARVALHO

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


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GALERIA

HERANÇA INGLESA A criatividade das frases espirituosas nos para-choques de caminhão – uma tradição das rodovias brasileiras – fica no chinelo perto do que se vê nas rodovias do sul da Ásia. A arte popular de decorar caminhões é mais que um costume: é uma expressão cultural centenária. No Paquistão (ilustrado nestas duas páginas), suas origens remontam à década de 1920, quando caminhões importados da Inglaterra invadiram as ruas do país com grandes proas de madeira na parte superior e parachoques decorativos.

AMORPRÓPRIO No livro On Wings of Diesel, o paquistanês Jamal J. Elias, professor de estudos religiosos, explica que a arte de caminhão é uma poderosa ferramenta de comunicação em seu país, uma projeção externa das tensões locais. Suas inscrições religiosas, símbolos e o mosaico de fitas reflexivas, pinturas, metais, espelhos, madeira, contam histórias – individuais e coletivas. Expressões de uma identidade que torna cada veículo um motivo de orgulho.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA



GALERIA


BELEZA QUE LUCRA

IMAGENS PAULA BRONSTEIN, ALIRAZA KHATRI, RAJA ISLAM, SM RAFIQ, AMIR MUKHTAR, TIM GRAHAM, FRÉDÉRIC SOLTAN, CHRISTIAN ENDER, VEENA NAIR / GETTY IMAGES

Há quem decore seus caminhões só pela satisfação pessoal. Mas também existem os motoristas profissionais asiáticos que veem nos ornamentos uma forma de investimento. Acreditam que quanto mais reluzente o veículo, mais atrai clientes. Tanto que alguns chegam a investir dois anos de salário para ter sua própria instalação artística sobre rodas. Em Karachi, cidade mais populosa do Paquistão, a decoração de caminhões é um negócio que emprega 50 mil pessoas.

PODE BUZINAR Na Índia (ilustrada nestas outras páginas), os ornamentos incluem imagens de uma religião: hindu, muçulmana, sikh e cristã. Mas a fé não é a única inspiração no país. Estrelas de Bollywood – a indústria do cinema indiano –, iconografia política e símbolos de boa sorte também fazem parte da decoração. Na traseira, uma tradição bem-humorada: a mensagem “Horn please”, em inglês mesmo, incentiva que os demais motoristas buzinem ao passar o caminhão. Como numa festa móvel.

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HOJE NA HISTÓRIA

ACONTECEU EM AGOSTO O cientista britânico Joseph 1774 Priestley descobre o gás oxigênio. O achado aconteceu após ele recolher o gás de uma reação química. Notou que a respiração ficava mais fácil com o gás.

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Na Batalha de Alcácer-Quibir, 1598 o rei d. Sebastião é visto pela última vez numa carga de cavalaria em meio aos inimigos. Aos 21 anos, sem filhos, seu sumiço levaria à união dinástica com a Espanha.

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Ao vencer o rei Farnaces II do 47 a.C. Ponto, na Batalha de Zela, e dominar a Ásia, Júlio César profere suas famosas palavras: “Veni, vidi, vinci” (“Vim, vi e venci”). E torna-se ditador perpétuo e absoluto.

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O navegador italiano Cristóvão 1498 Colombo pisa pela primeira vez no continente americano, chegando à enseada de Yacua, ao norte da atual Venezuela. Era sua terceira viagem à América.

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Acontece a Batalha de 881 Saucourt-enVimeu. O evento marcou a disputa dos vikings, pagãos, contra o exército cristão de Luís III, da França. Cerca de 8 mil vikings foram mortos.

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Seis meses depois de ter 1815 deixado o exílio na Ilha de Elba, Napoleão Bonaparte é novamente condenado a se afastar. Desta vez, vai para a Ilha de Santa Helena, onde morre em 1821.

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Singapura, ex-colônia do 1965 Reino Unido, ganha soberania como república, menos de dois anos depois de fundir-se com Malaya, Sabah e Sarawah para formar Malásia.

O Museu do Louvre é aberto 1793 em Paris. Antes moradia para a monarquia, passou a abrigar peças de arte da realeza em 1682, quando Luís XVI escolheu o Palácio de Versalhes para viver.

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A Alemanha Oriental, comunis1961 ta, inicia a construção do Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria, que dividiu a cidade e a população. O muro seria derrubado 28 anos depois.

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Sob a liderança de Simón Bolívar, 1825 o Alto Peru conquista a independência. Embora tivesse se proclamado livre em 1809, houve anos de luta. O nome Bolívia foi adotado em sua homenagem.

Flaviano, arcebispo de Constanti449 nopla, é deposto, atacado e morto no Concílio de Éfeso. Todo o Concílio foi excomungado pela Igreja Católica, no caso chamado de Latrocínio de Éfeso. O submarino russo Kursk 2000 naufraga com uma tripulação de 118 homens. A tragédia ocorreu no Mar de Barents. A causa foi a explosão do combustível de um torpedo. 12

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Duncan I, rei da Escócia desde 1040 1036, entra em batalha contra seu primo Macbeth para manter o reinado. Ele perde e é sucedido por Macbeth. A história inspirou a obra de William Shakespeare.

É promulgada a lei que cria os cursos 1827 de ciências jurídicas e sociais do Brasil. Hoje, são as faculdades de direito da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de Pernambuco.

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Erguida pelo arquiteto italiano 1483 Giovanni dei Dolci sob as ordens do papa Sisto IV, a Capela Sistina tem a primeira missa celebrada. Sua construção havia começado oito anos antes.

IMAGEM FINE ART IMAGES/HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

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Aos 54 anos, em Neuilly-sur-Seine, 1900 na França, morre o escritor e diplomata português Eça de Queiroz. Entre suas obras clássicas estão Os Maias, O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro.

É publicado pela primeira vez no 1945 Reino Unido o livro Animal Farm (A Revolução dos Bichos, no Brasil), de George Orwell. A obra é um romance satírico e uma crítica à União Soviética comunista.

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Morre o líder mongol Gengis 1227 Khan, provavelmente vítima de uma febre alta com sintomas de dores de cabeça. Chefe de uma tribo nômade, é um dos maiores conquistadores da história.

Louis Jacques Mandé Daguerre 1839 apresenta um método para fixação de imagens chamado daguerreótipo. O invento é considerado o primeiro processo fotográfico conhecido.

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A baiana Maria Quitéria 1823 de Jesus Medeiros, primeira mulher soldado brasileira, recebe de dom Pedro I a condecoração de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro.

A Mona Lisa é roubada do 1911 Louvre. O quadro de Da Vinci ficou desaparecido por dois anos até ser encontrado na Itália. O ladrão afirmou querer devolvê-la ao seus reais donos, os italianos.

Um dos presidentes mais popula1976 res do Brasil, Juscelino Kubitschek, morre vítima de um acidente de carro na Via Dutra, nas proximidades da divisa entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Os britânicos usam pela 1877 primeira vez no mundo a expressão made in, para melhorar as exportações e diferenciar os produtos da Grã-Bretanha dos de outros países.

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Getúlio Vargas comete suicídio 1954 em seu mandato democrático. Sob forte oposição da imprensa e ameaça de deposição, ele “saiu da vida para entrar na história”, como deixou em sua carta-testamento.

O físico e astrônomo italiano 1609 Galileu Galilei apresenta ao mundo o telescópio. Ele não inventou o instrumento, mas o aperfeiçoou e fez as primeiras observações astronômicas com ele.

Acontece a erupção do 1883 Krakatoa, nas Índias Holandesas (atual Indonésia). Os 20 milhões de toneladas de enxofre lançados na atmosfera tornaram o pôr do sol vermelho por meses.

É perfurado o primeiro poço 1859 de petróleo do mundo, em Titusville, Pensilvânia, EUA. A partir daí, teve início a Corrida do Petróleo americana. A busca fez surgir cidades nos desertos do país.

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Soldados do Império reprimem 1824 com violência a Confederação do Equador. A revolta contra a Constituição que centralizava o poder nas mãos de dom Pedro I acabaria em novembro.

No Candlestick Park, em São 1966 Francisco, EUA, acontece o último show oficial dos Beatles. Foi visto por 25 mil pessoas e durou 30 minutos. Depois disso, o grupo dedicou-se ao trabalho em estúdio.

Morre o ostrogodo Teodorico, o 526 Grande. Tornou-se rei da Itália, soberano de Roma, ao derrotar, em 493, Odoacro, o primeiro rei bárbaro de Roma desde a renúncia do último césar em 476.

O rei Eduardo I publica o Édito 1290 de Expulsão, em que ordena a expulsão dos judeus da Inglaterra. Milhares partem para a França e para a Bélgica e muitos morrem ao longo do caminho. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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A.C.

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É ele quem apresenta ao mundo as reflexões de Sócrates. Apontado como um dos pilares da filosofia ocidental, ele divide seu pensamento entre o mundo sensível (onde vivemos) e o das ideias (acessível só para a alma), além de fundar sua própria escola, a Academia, onde transmitiria suas ideias para futuros filósofos.

PLATÃO

Embora desde o século 6 a.C. nomes como Heráclito e Pitágoras já tentassem buscar o princípio material das coisas (physis), Sócrates é considerado o marco da filosofia – mesmo sem ter deixado obra escrita. Segundo ele, todo comportamento ilegal ou imoral é um erro, o conhecimento é a virtude e ninguém faz o mal por querer. Sócrates deixa o mundo físico de lado e se volta para a metafísica e a moral.

SÓCRATES

Nascido no Reino da Prússia (atual Alemanha), Nietzsche coloca em questão a história da filosofia, criticando os valores morais defendidos por Sócrates. Ataca a crença da realidade imutável e estimula a confiança no senso comum como uma forma eficaz de entender o mundo.

FRIEDRICH NIETZSCHE

Símbolo da influência existencialista de Nietzsche, com Sartre, a existência humana não necessita mais de justificativa exterior e o aqui e agora é a questão da vez. Sua pergunta primordial é: “O que é existir como ser humano?”. Publica uma das obras de referência do existencialismo, O Ser e o Nada, e descreve o que denomina a realidade dos homens de modo geral.

JEAN-PAUL SARTRE

PALAVRA DE ORIGEM GREGA QUE SIGNIFICA “AMOR À SABEDORIA”, A FILOSOFIA É CONSIDERADA A ATIVIDADE QUE USA A RAZÃO E A ARGUMENTAÇÃO PARA ALCANÇAR A VERDADE. VÁRIOS FORAM OS PENSADORES QUE CONSTRUÍRAM A CHAMADA FILOSOFIA OCIDENTAL POR MARIA CAROLINA CRISTIANINI

FILOSOFIA

1844

1905

LINHA DO TEMPO


É considerado o pilar da filosofia moderna e um dos responsáveis por libertá-la do pensamento teológico. Autor da frase “Penso, logo existo”, René Descartes elabora uma teoria racionalista e defende o dualismo, em que a mente e o corpo têm naturezas distintas: a essência do “eu” seria o pensamento, e a do corpo, a extensão.

RENÉ DESCARTES

As reflexões do pensador são um marco na transição entre a filosofia praticada anteriormente e o período medieval (época em que a atividade esteve relacionada à teologia, suplementar à religião). Moldando as ideias platônicas de acordo com sua abordagem, combina a fé (fundamental para a filosofia cristã) e a razão (sem a qual a fé não se consolida).

SANTO AGOSTINHO

Embora tenha sido aluno de Platão na Academia, nunca foi seu discípulo incontestável – não concordava com a ideia de mundo superior e se concentrou nas ciências da natureza. Fundou o sistema-base de estudos de lógica até o século 19, que usa o silogismo, como: “Todos os homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal”.

ARISTÓTELES

IMAGEM WESLEY VANDINTER / GETTY IMAGES

1596

A.C.

354

A.C.

384 FRIEDRICH HEGEL

Contrário ao pensamento de que o homem possui ideias natas, funda o empirismo, sucedendo o racionalismo de Descartes – é autor de Ensaio Sobre o Intelecto Humano, obra que colaborou para essa escola. Sua atenção se volta para questões como as capacidades da mente e a natureza do conhecimento, influenciando o pensamento britânico da época.

JOHN LOCKE

Suas reflexões surgem no momento em que a filosofia estava dividida entre o empirismo de Locke (adotado na Grã-Bretanha) e o pensamento racional da Europa. O filósofo faz uma síntese das correntes: reconhece a ideia empírica de que a experiência é a origem das crenças e rejeita a afirmação de que verdades são determinadas apenas pela razão.

IMMANUEL KANT

Filósofo idealista alemão influenciado pelo pensamento de Kant, Hegel acreditava que a mente ou o espírito constituíam o que chamava de realidade última. Suas ideias influenciam o pensamento europeu com a dialética do absoluto, sistema em que tudo estava inter-relacionado – filosofia, religião e arte formam meios de compreensão absolutos.

1632

1724

1770


MITOS E LENDAS

NHANDERUVUCU NA MITOLOGIA INDÍGENA, ESTE É O DEUS QUE NASCEU PARA DAR ORDEM AO CAOS NA TERRA POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

IMAGENS GETTY IMAGES

N

o início de tudo era o caos. Não havia nada de sólido no planeta. As sementes de todos os seres giravam embaralhadas sem rumo, sem centro, sem direita ou esquerda. E no meio dessa tormenta, algo sem explicação aconteceu: uma respiração. Um simples suspiro surgiu, cresceu e se multiplicou tomando forma até se transformar em um pensamento. Era, ainda, uma alma sem corpo. E bem lentamente, com toda a paciência de uma árvore, o novo ser foi criando a si mesmo. Os pés e os braços foram ganhando forma e firmeza como galhos, assim como a cabeça, que se ergueu no meio do nevoeiro. Os olhos se abriram e viram que era preciso dar ordem naquela bagunça ao redor. Esta é apenas uma das versões para os mitos que os guarani contam nos territórios que hoje formam o Brasil e o Paraguai. Segundo o folclorista Barbosa Lessa, em seu livro Rodeio dos Ventos: Uma Síntese Fantástica da Formação do Rio Grande, este deus recém-nascido recebe o nome de Nhanderuvuçu. E era valente. As trevas eram assustadoras, mas seu coração, enquanto batia, soltava raios, espantando as sombras e acalmando a ventania. E tudo foi ficando silencioso e monótono... até chegar a uma calmaria que entediou a nova divindade. O criador do mundo, então, tratou de criar um meio-termo entre o repouso e o conflito. Separou o caos da ordem e, de tempos em tempos, tempestades escapavam. Às vezes, devastando tudo, outras vezes, criando mudança: um mundo que, até hoje, oscila entre a criatividade e a destruição. Só que Nhanderuvuçu se viu sozinho e resolveu criar outros deuses, como Yara (senhora das águas), Tupã (guardião do relâmpago) e Curupira (espírito das matas), que fizeram crescer árvores, ervas e bichos por todo lado. Depois, criou Kayuá, o dom da palavra – o início da narrativa que dá sentido ao mundo.


COMO FAZÍAMOS SEM

ESCOLA

PAIS E PADRES ERAM OS PROFESSORES E AS AULAS, DE ESSÊNCIA RELIGIOSA, OCORRIAM EM UM CÔMODO DA CASA POR JANAÍNA ABREU

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para desempenhar atividades políticas. O pai perdeu posto para o padre durante a Idade Média. Nesta época, a Igreja organizava comunidades e os sacerdotes recebiam rapazes em suas próprias casas. O ensino reduzia-se às Escrituras. No século 8, o imperador romano Carlos Magno ordenou que padres estudassem as letras. Mais tarde, todo mosteiro foi obrigado a ter uma escola. Em 1088, surgiu a primeira universidade, em Bolonha, na Itália. E no fim do século 15, o acesso à escola ampliou-se, mas a essência da educação continuou religiosa. No Brasil, antes da chegada dos portugueses, os indiozinhos eram instruídos por adultos e, em algumas tribos, o pajé passava adiante valores culturais. Em 1549, os jesuítas chegaram trazendo na bagagem não só a religiosidade europeia, mas também alguns métodos pedagógicos. Detiveram o monopólio educacional por 210 anos, até 1759, quando foram expulsos do país. A partir do século 19, a chegada da cultura capitalista fez com que a educação deixasse de refletir apenas valores religiosos para ter a ciência como base. E assim nasceu a escola como conhecemos hoje: com normas específicas, agentes próprios e estrutura de ensino – que mantém vários alunos em salas de aula, provas, notas, carteiras em fila e diplomas. Tudo para educar cada vez mais indivíduos.

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nsinar é um hábito que nos acompanha desde a Pré-História. Mas, claro, naquela época não existia escola, professor, provas. O homem primitivo costumava passar para seus filhos coisas práticas como técnicas de caça e rituais religiosos. Com o desenvolvimento das civilizações, o ensino passou a ser exercido conforme cada cultura. No Antigo Egito, por exemplo, o importante era saber falar. Faraós e nobres educavam os filhos para dominar a palavra oral – e, assim, comandar a sociedade, intervindo nos conselhos do poder. A escrita, instrumento para registrar atos oficiais, era tarefa dos escribas, que aprendiam a arte com os pais. Já quando se tratava do povão, os pais ensinavam noções básicas de suas profissões. Escravos tinham o capataz como professor – e o chicote como recurso pedagógico. Na Grécia, o Estado já começava a interferir. Em Esparta, a criança ficava em casa até os 7 anos e, depois, era confiada ao governo, que a formava para a guerra. Já os atenienses eram educados para a formação completa. O Estado oferecia educação física, formação musical e alfabetização, mas só para os meninos. Na Roma antiga, o papel do pai era levado tão a sério que a autonomia da educação paterna era lei do Estado. Nas classes dominantes, a educação familiar visava ao ensino das letras, o direito e o domínio da retórica e das condições

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ARTE

A ONDA UM RETRATO DA FRAGILIDADE HUMANA DIANTE DA NATUREZA POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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IMAGEM METROPOLITAN MUSEUM OF ART

sentimento de tensão é inevitável. Uma monstruosa onda prestes a engolir três barcos de pesca à deriva e suas tripulações. Ao fundo, no horizonte, o Monte Fuji coberto de neve, também pequeno diante da imensidão – e da ameaça – do mar: um cenário que deixa clara a tamanha fragilidade do homem quando está exposto à força da natureza. Criada no final da década de 1820 pelo artista japonês Katsushika Hokusai (1760 – 1849), A Grande Onda de Kanagawa, também conhecida como A Onda, é uma das obras de arte mais reproduzidas no mundo. E certamente a mais famosa xilogravura, o método que entalha cuidadosamente a arte em pranchas de madeira, pinta o relevo com tinta e depois transfere o desenho para o papel, como se fosse carimbo. Entre os estilos de xilogravura está o chamado ukiyo-e (retratos do mundo flutuante, em tradução livre), um gênero adotado por Hokusai, nesta obra de arte, que prosperou no Japão do período Edo (atual Tóquio; 1603 – 1867). A Grande Onda, aliás, faz parte da série que mais trouxe fama ao artista: Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji. “Se há uma obra de arte que fez o nome de Hokusai, tanto no Japão quanto no exterior, ela deve ser uma pintura desta série monumental”, concluiu o historiador Richard Lane. De seu molde, foram feitas milhares de cópias, que hoje estão espalhadas – e seguem celebradas – pelos quatro cantos do planeta. A composição do artista, com medida de 25 centímetros de altura e 37 centímetros de largura, tem como elemento dominante o mar agitado por uma tormenta criada por ventos e marés da província de Kanagawa, no Japão.

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A onda que mais chama a atenção na obra tem um formato parecido com as garras afiadas de um felino pronto a atacar. Já a outra onda, mais discreta, guarda similaridade com a silhueta do Monte Fuji.

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Os três barcos, usados para transportar peixes vivos, carregam oito remadores cada um, além de passageiros. Na imagem, os elementos humanos são secundários e parecem desesperados diante do perigo iminente.

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Para calcular o tamanho da onda colossal, especialistas usaram como referência a medida padrão de 12 a 15 metros de comprimento desse tipo de barco (os oshiokuri-bune). A conclusão é de que ela chega a 12 metros de altura.

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A montanha ao fundo é o Monte Fuji coberto de neve. No Japão, além de símbolo de beleza natural e de identidade, essa montanha é considerada sagrada. Atrás dele, a cor obscura mostra o amanhacer de um novo dia.

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Nesta obra de arte há duas assinaturas: a que está dentro de uma moldura retangular mostra o nome da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji. A outra, Litsu, indica o nome do autor, que costumava mudar conforme a fase da sua vida.

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À MESA

CAFÉ O

ANTES DA FAMA, ELE JÁ FOI PROIBIDO E PODIA DAR CADEIA POR IZABEL DUVA RAPOPORT

bida do demônio”, afinal, era a preferida dos “infiéis turcos”. Mas, em vez de excomungar o café, o papa acabou virando seu fã de tanto que gostou – chegando até a abençoá-lo. Em 1714, os holandeses, que já cultivavam café em suas colônias no Pacífico, presentearam o rei da França, Luís XIV, com sementes. E, então, as colônias francesas viraram a maior concorrente do país. Na década seguinte, os grãos chegaram ao Brasil, no estado do Pará. E foi neste mesmo século que o conceito de “café da manhã” foi criado. Os antigos europeus acordavam com o nascer do sol e não tinham uma bebida específica para espantar o sono. Antes de conhecerem o café, os mais ricos bebiam leite ordenhado na hora ou vinho quando acordavam. Os pobres encaravam água ou cerveja logo de manhã – inclusive as crianças.

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primeiro produto anunciado e vendido como estimulante no mundo foi o café. Descoberto na Etiópia por volta de 800 a.C., já naquela época era considerado perigoso – deixava o povo acordado e disposto a discutir. A bebida chegou à Europa séculos depois, impulsionada pelo sucesso do chá. Nos anos 1300, o chá, já bem popular no Oriente, foi “descoberto” pelos portugueses e passou a ser comercializado pelos holandeses. Duzentos anos mais tarde, o café seguiu o mesmo rumo, saindo da Turquia, onde já era bastante consumido. Antes da fama, porém, ele chegou a ser proibido na Turquia do século 14 pelo alto grau de estímulo e dava cadeia para quem fosse pego bebendo-o: seis meses de prisão. Na Itália, o povo chegou a pedir ao papa Clemente VIII, em 1615, que declarasse que o cafezinho era a “be-

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


DÚVIDA CRUEL

PIRATAS, CORSÁRIOS OU BUCANEIROS? AS DIFERENÇAS ENTRE OS SAQUEADORES DE CARAVANAS COMERCIAIS SÃO MUITO SUTIS, MAS EXISTEM POR DANILA MOURA

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o fundo, no fundo, todos são piratas. Corsários e bucaneiros são, portanto, tipos diferentes de piratas, a versão marítima dos saqueadores que atacam caravanas comerciais desde que os povos negociam entre si, ou seja, desde que surgiu o comércio marítimo. Os mais antigos registros vêm dos gregos: segundo relato de Homero, em Odisseia, os piratas já pilhavam navios fenícios e assírios em 730 a.C. Porém, a imagem que temos hoje dos piratas (e que aparece reproduzida aí ao lado) é a dos bandidos europeus dos séculos 17 e 18. Nessa época, a exploração das colônias na América e na África havia se tornado a principal atividade econômica mundial. Uma fortuna em ouro, prata, madeira, escravos e marfim, entre outras coisas, atravessava o Atlântico todos os anos. E é aí que aparecem os chamados corsários. Países que não tinham suas próprias colônias (ou as tinham em número insuficiente para proporcionar grandes lucros), como Inglaterra, França e Holanda, incentivavam os ataques aos navios de outros países. E para dar um ar oficial a esses atos de sabotagem, os piratas do tipo corsários usavam a “Carta do Corso”, documento que liberava um capitão de navio e sua tripulação para perseguir e atacar qualquer embarcação que levasse a bandeira de um país inimigo. O saque deixava de ser crime, tornando-se uma atividade legal e tributável – desde que fosse em cima dos outros. Bucaneiros, outro nome utilizado para esse tipo de atividade, é a forma como eram chamados os piratas franceses que aportaram na região da Ilha de Hispaniola, atual Haiti, por volta de 1600. O nome vem do termo francês bucan, que designava a grelha com a qual defumavam car-

ne. Esses piratas logo se apossaram da então colônia espanhola e criaram suas próprias regras, sem obedecer a ninguém – o que acabou atraindo gente de todo tipo para a região, incluindo ex-presidiários, escravos fugitivos e perseguidos da Inquisição Católica. Os bucaneiros foram expulsos em 1620, quando a Espanha resolveu dar um basta no que já estava se transformando em uma verdadeira terra de ninguém. Os piratas franceses escolheram então a Ilha de Tortuga como novo destino. Lá, continuaram a praticar a pirataria, tendo as embarcações espanholas como alvo predileto. Toda a região das Antilhas ficou famosa pela violência bucaneira. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ILUSTRADA

POMPEIA

COMO ERA A VIDA ANTES DA ERUPÇÃO DO VULCÃO VESÚVIO, QUE DEVASTOU A CIDADE EM 79 POR GIBA STAM

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o século 1, prosperidade econômica, liberdade religiosa e uma profusão de opções de lazer e diversão faziam de Pompeia um dos locais mais agradáveis para se morar em todo o Império Romano. Suas terras férteis e clima temperado eram perfeitos para o plantio da uva, que movimentava a fabricação do vinho. A indústria de lã também era poderosa. O porto às margens do Mediterrâneo estava sempre cheio: cargueiros partiam com trigo, vinho e objetos de bronze e prata, e pesqueiros chegavam carregados. Nos mercados e no comércio de rua podia-se encontrar utensílios domésticos, espelhos, louças, roupas e perfumes. Havia também profissionais disponíveis no que se chama hoje de setor de serviços: médicos, pintores, condutores de mula, músicos e professores. No total, quase 12 mil homens e mulheres livres e 8 mil escravos estavam envolvidos em alguma atividade econômica. Com tanta gente assim, ganhando e gastando dinheiro, não podiam faltar os banqueiros, as figuras mais ricas e poderosas da cidade. Para os momentos de folga, o esporte era uma das atividades preferidas. Na cidade havia dois ginásios onde era praticado lançamento de disco, salto a distância e luta livre. Depois da malhação, homens e mulheres se revezavam nos salões de banhos: a sessão completa dava direito a água aquecida, sauna a

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vapor e duchas frias. Limpinhos e relaxados, eles seguiam para sessões de depilação (prática comum também entre os homens jovens) e massagem. Pompeia possuía uma vida cultural e tanto. Os mais pobres frequentavam o teatro a céu aberto, onde as sátiras, as comédias e as tragédias eram muito populares. Já a aristocracia preferia o ambiente fechado do odéon, que abrigava shows de música e recitais de poesia. Porém, nada atraía tanta gente quanto os combates dos gladiadores, que lotavam o anfiteatro, com capacidade para receber toda a população da cidade. Era uma paixão perigosa. Em um dos jogos, em 59 a.C., uma briga pesada entre os hooligans locais e os visitantes de Nucéria, uma cidade das redondezas, fez o senado proibir os jogos em Pompeia por uma década. E, claro, com tantas opções para a satisfação carnal, era necessário cuidar da alma. Em Pompeia predominava o sincretismo religioso e havia templos dedicados a deuses romanos, gregos e egípcios. Vênus, deusa do amor, era a mais homenageada, mas Mercúrio, deus do comércio, também estava presente em lojas e pousadas, muitas vezes ao lado da inscrição Lucrus gaudium, que, em latim, quer dizer: “lucro é alegria”. Mesmo na hora de cultuar os deuses, os habitantes de Pompeia não deixavam de lado seus principais valores: amor, trabalho e boa vida.

O setor de serviços era um dos mais movimentados da economia: de médicos a massagistas, todos tinham mercado


Erguendo-se 1277 metros acima do Golfo de Nápoles: o Vesúvio era um vizinho sempre visível no horizonte

A indústria de pão era uma das bases da economia de Pompeia e empregava um grande contingente de trabalhadores livres e escravos

A dolce vita de Pompeia acabou em 24 de agosto de 79. O Monte Vesúvio entrou em erupção lançando lava e nuvens de gases sobre a cidade. Os habitantes morreram em poucas horas, mas a erupção, que durou três dias, soterrou tudo e todos sob 6 metros de rochas. As ruínas da tragédia foram encontradas no século 16, mas só foram escavadas em 1748. O que foi encontrado tornou-se o maior museu a céu aberto da Antiguidade. A poeira penetrou em todos os espaços e ajudou a preservar intactos objetos, pinturas e inscrições nas paredes, que permitiram uma reconstrução inédita e detalhada da vida cotidiana da cidade e de seus moradores.

AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ILUSTRAÇÃO MARCELO GOMES

DAS CINZAS PARA A ETERNIDADE


BRASIL

Quilombos URBANOS Quitandeiras em rua do Rio de Janeiro, 1875

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Largo São Bento e Estação da Luz, em São Paulo, nos meados do séc. 19

NOS ARREDORES DAS GRANDES CIDADES, ESCRAVOS FUGITIVOS PLANTARAM COMUNIDADES CLANDESTINAS QUE SOBREVIVIAM DO INTERCÂMBIO COM OS NEGROS LIBERTOS. OS REDUTOS SE TORNARAM FOCOS DE RESISTÊNCIA NA LUTA ABOLICIONISTA POR MÁRCIO SAMPAIO DE CASTRO

Rio de Janeiro, 1880

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ra o ano de 1880. Pelas acanhadas ruas da cidade de São Paulo, um negro descalço e vestindo calça de algodão carrega um pedaço de pau com quatro galinhas amarradas nas extremidades. Ao dobrar a esquina, ele se depara com uma patrulha policial. Sua trajetória é, então, bruscamente interrompida. Os oficiais querem saber a quem o homem pertence e o que faz por ali. Com duas ou três respostas muito bem decoradas, o escravo disfarçado se livra da patrulha e segue seu caminho. Deixa a mercadoria no Largo do Rosário com uma quituteira, também negra, e rapidamente desaparece no meio da multidão que transita por ali, encaminhando-se para as bandas do riacho Saracura. Nas metrópoles emergentes no final do século 19, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, já era quase impossível diferenciar quem era escravo, ex-escravo ou fugitivo. A portuária Santos, por exemplo, contava com cerca de 10 mil negros fugitivos que conviviam com uma população oficial de 13 mil pessoas. A presença de tantos fujões nas cidades produziu o fenômeno menos conhecido da história da escravidão no Brasil: os quilombos urbanos. O Saracura, para onde nosso personagem escapou no início desta reportagem, hoje o bairro da Bela Vista (também chamado de Bexiga), era um desses recantos em que os escravos que escapavam da servidão se aproveitavam da vasta vegetação de Mata Atlântica para montar abrigos e esconderijos. Ali, estavam livres para cultuar seus deuses, fazer música, pequenas roças e criar animais, que depois eram vendidos ou trocados nos mercados locais. Um ato de rebelião que se renovava todo santo dia. Ao contrário dos chamados quilombos de rompimento, como o de Palmares, que se caracterizavam por se assentarem em locais distantes, com o objetivo de evitar caçadores de recompensa e, ao mesmo tempo, romper com o modelo de civilização europeia, tentando recriar o mundo africano, os quilombos urbanos pareciam pequenos povoados. Localizados bem próximos das cidades, tinham casas de pau a pique, construídas com barro e pequenos AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BRASIL

troncos de árvores, bambus e cipós. Os casebres, plantados em clareiras na mata, eram rodeados pelas criações de cabras, galinhas, porcos e animais de estimação. Com o tempo, os quilombolas fizeram pequenas roças de milho e de mandioca, sem dúvida, um traço da inf luência indígena. “No modelo tradicional de resistência à escravidão (o quilombo de rompimento), a tendência dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso, os quilombolas esforçavam-se para proteger o seu dia a dia, sua organização interna de todo tipo de forasteiro”, descreve o pesquisador do setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa do Rio de Janeiro, Eduardo Silva. “Já os quilombos urbanos eram dormitórios dos negros fugitivos que tentavam a sobrevivência nos mercados e nos portos das cidades”, completa. Os esconderijos urbanos proliferam com a vinda da família

Os quilombos urbanos eram dormitórios de negros fugitivos que tentavam sobreviver no mercado local real portuguesa para o Brasil, em 1808. O boom aconteceu principalmente nas cidades portuárias como Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Pelotas. Por quê? Ora, porque agora era preciso mais mão de obra. A economia local havia ganhado impulso com a chegada da corte, e, com o empurrão financeiro, crescia também o número de negros “importados” da África. Bastava um passeio pelas ruas do Rio de Janeiro, por exemplo, para perceber o frenesi. No porto, os escravos perambulavam de um lado para o outro carregando sacas dos navios para o cais. Já no centro da cidade encontravam-se os chamados escravos de ganho, que trabalhavam como marceneiros, sapateiros, prostitutas, quitandeiras ou carregadores. No final do dia, eles levavam o dinheiro arrecadado para os seus senhores. No meio dessa massa misturavam-se os negros libertos e fugitivos das fazendas – ou 26

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seja, os habitantes dos quilombos urbanos. Esses agrupamentos de negros fujões tiraram o sono dos poderosos. Preocupados com as concentrações clandestinas de negros, as autoridades espalhavam capitães do mato (os caçadores de escravos fugidos), patrulhas policiais e até o Exército pelos subúrbios com a missão de descobrir e destruir os esconderijos. “As aglomerações ficavam a quatro ou cinco quilômetros da cidade, encravadas no alto dos morros ou nos vales”, explica o professor Wilson do Nascimento Barbosa, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. Dois bons exemplos que demonstram o pânico causado pelos quilombos urbanos estão em correspondências expedidas por autoridades coloniais. Em 1791, o governador de São Paulo, Bernardo José Maria Lorena, ordenou ao seu capitão-mor que transmitisse instruções aos “capitães de suas ordenanças”. Sua exigência: espalhar soldados com armas de fogo para “prender ou matar os negros dos quilombos que tanta desordem andavam fazendo na cidade”. Em 1807, o governador da Bahia, João de Saldanha da Gama Mello e Torres Guedes de Brito escreveu de Salvador para o Conselho Ultramarino em Portugal: “Sendo muito frequentes as deserções de escravos do poder de seus senhores, entrei na curiosidade de saber que destino seguiam, e sem dificuldade, conheci os subúrbios desta capital, onde são inumeráveis os ajuntamentos desta qualidade de gente”. Com tanto burburinho, os quilombos urbanos tornaram-se, ao mesmo tempo, mais atraentes e mais perigosos para os negros que ali se refugiavam, já que caçar negros virou um negócio lucrativo para os cidadãos livres. Tanto que o que mais rendia anúncios para as seções de classificados dos jornais eram exatamente os valores oferecidos pela captura de um fugitivo. “Para uma pessoa pobre, fosse branca ou mulata, prender um cativo fujão era uma ótima forma de ganhar uns trocados, o que unia a população livre contra o escravo fugitivo”, conta o pesquisador Mário José Maestri Filho, da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.

Homens conversando em banco de praça de São Paulo


MUNDO MARGINAL

Vendedora de frutas no Rio de Janeiro

Escravo de ganho trabalhando como barbeiro em 1865

Casal de ex-escravos de mãos dadas em frente ao seu barraco, em Porto Alegre, 1900

Com o fim da escravidão, os quilombos urbanos não desapareceram da paisagem das cidades. Só se transformaram. Segundo a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, os antigos redutos de resistência à escravidão viraram “territórios negros”, onde as tradições herdadas dos africanos floresceram. Manifestações como a capoeira, o batuque, as danças de roda e o culto aos orixás, práticas malvistas pela sociedade, encontraram nesses locais um porto seguro. “A organização espacial do terreiro, da família matriarcal, unicelular, era vista pelas autoridades como cortiços que precisavam ser eliminados. Os espaços dos quilombos continuaram sendo estigmatizados”, diz. Mesmo com a perseguição, os bairros que nasceram sobre as ruínas dos velhos quilombos – Liberdade, em Salvador; Gamboa e Serrinha, no Rio de Janeiro, e Bexiga e Barra Funda, em São Paulo – tornaram-se berços das escolas de samba, dos grupos de jongo, dos templos de cultos africanos e das rodas de tiririca, nome antigo da capoeira. Se não chegavam a ser guetos exclusivamente ocupados por descendentes de escravos eram pontos de encontro para a celebração de sua cultura. Ao mesmo tempo que serviam de quartel-general da cultura afro, as vizinhanças negras ganhavam a imagem de redutos marginais. Como os descendentes dos escravos tinham dificuldade para conseguir empregos no comércio e nas indústrias, acabavam envolvidos em atividades ilícitas. A situação atingiu tamanha proporção, que, em 1937, o então presidente Getúlio Vargas baixou um decreto que obrigava as indústrias a contratar “brasileiros”. “E a ideia de malandro, vagabundo e prostituta acabou se associando aos negros e ao submundo da pobreza para o qual eles foram empurrados”, diz o professor da USP Wilson Barbosa.

AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BRASIL

FLORES E HERÓIS Nos últimos anos do regime de escravidão no Brasil, a camélia virou o símbolo que identificava os simpatizantes da causa abolicionista. Usar a flor na lapela, plantá-la no jardim ou dá-la de presente para alguém era considerado um ato de ativismo político. A ideia nasceu na Confederação Abolicionista. Formada por políticos, por homens ricos (como Joaquim Nabuco e João Clapp) e por negros livres e intelectuais (como José do Patrocínio e André Rebouças), a entidade tinha ramificações país afora. Seu principal foco de ação era o Rio de Janeiro. Para lutar pela liberdade, valia tudo, desde as tribunas do parlamento, passando pelos jornais, compra de alforrias e até o incentivo às fugas. Uma das páginas mais interessantes do abolicionismo foi escrita em São Paulo por Luis Gama, também um símbolo da abolição. Filho de uma africana com um fidalgo português, Gama viveu como escravo até a adolescência, apesar de sua mãe ter conquistado a liberdade quando ele nasceu. Após conseguir fugir das garras da servidão, formou-se em direito. Baseado em uma lei de 1831, que proibia o contrabando de escravos para o Brasil, Gama percorreu a província defendendo cativos nos tribunais. Com eloquência, conseguiu libertar mais de 500 pessoas. Faleceu em 1882, aos 52 anos de idade. As ações jurídicas de Gama abriram espaço para atitudes muito mais radicais. O também advogado Antonio Bento e seu grupo, o “Caifazes”, por exemplo, percorriam as fazendas paulistas libertando e levando negros para os quilombos urbanos. Em 1886, os movimentos abolicionistas promoveram e apoiaram fugas em massa de várias fazendas na região. Era o início do fim da escravidão. 28

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André Rebouças


Luis Gama

José do Patrocínio

A LUTA PELA LIBERDADE Enquanto as aglomerações de negros tomavam conta dos subúrbios das cidades, a abolição da escravatura passava a fazer parte das rodas de conversas dos intelectuais, dos políticos, de integrantes da classe média urbana e até da elite econômica, que, timidamente, começava a criar estratégias para pressionar pelo fim do regime servil. A primeira vitória dos defensores da liberdade dos negros foi uma nova legislação que entrou em vigor em setembro de 1850, graças à pressão da coroa britânica. Por motivos econômicos, os ingleses vinham perseguindo e dificultando a vida dos traficantes de escravos desde o início do século. A nova lei, denominada “Eusébio de Queiroz”, previa penas para o tráfico negreiro que iam da apreensão dos navios e suas “cargas” até a prisão de todas as pessoas que fossem flagradas participando desse tipo de negócio. Um golpe dramático para os fazendeiros e demais escravocratas. Por outro lado, a Guerra do Paraguai (1865-1870), onde milhares de combatentes negros lutaram pelo Brasil, fez com que muitos militares se tornassem também simpáticos à causa. O resultado disso tudo é que as ações abolicionistas encontravam cada vez menos resistência e repressão. Estavam criadas as condições para que surgisse um novo tipo de quilombo urbano, o quilombo abolicionista. Essa forma de organização dos escravos apre-

sentava diferenças marcantes dos quilombos de rompimento, localizados no interior do país. Eram comandados por líderes que mostravam a cara e brandiam a bandeira da abolição sem medo. “Os líderes eram cidadãos livres, com documentação civil em dia e muito bem articulados politicamente. Não se tratava mais dos guerreiros do modelo anterior. Agora a liderança representava uma espécie de ponte entre a comunidade de fugitivos e a sociedade”, diz o historiador Eduardo Silva. Integrantes do movimento pela liberdade dos negros, como André Rebouças e Antonio Bento, por exemplo, incentivavam a formação dos quilombos abolicionistas. E entidades como a Confederação Abolicionista, localizada no Rio de Janeiro, e os Caifazes, da cidade de São Paulo, promoviam e apoiavam as fugas em massa das fazendas. Depois de viajar de trem, amontoados em charretes ou mesmo

A Lei Áurea oficializou a liberdade que já estava conquistada, a duras penas, pelo movimento abolicionista a pé, os negros desembarcavam nos principais quilombos abolicionistas: Petrópolis, na Serra Fluminense; Leblon, no Rio de Janeiro; Cupim, em Recife, e Jabaquara, em Santos. Este último chegou a ter cerca de 10 mil escravos. Nos anos que se seguiram, muitos quilombos abolicionistas pipocaram país afora. E a presença crescente desses quilombolas nas paisagens urbanas somada à intensificação dos movimentos de libertação, à facilidade cada vez maior para os deslocamentos dos negros e à diminuição das perseguições resultaram no fim, de fato, da escravidão no Brasil. Quando, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a famosa Lei Áurea, a liberdade já fazia parte da vida da população negra. A lei apenas oficializou uma realidade conquistada a duras penas. O Brasil foi o último país do Ocidente a acabar com o regime de trabalho servil. AVENTURAS NA HISTÓRIA

IMAGENS GETTY IMAGES E DOMÍNIO PÚBLICO

No meio de tantos delatores, os negros fugitivos podiam contar especialmente com a ajuda dos escravos de ganho e dos africanos que já tinham conquistado a liberdade. Eles davam um jeitinho de camuflar os companheiros. A estratégia era bastante simples: misturavam-se uns aos outros nos mercados para que o trabalho de repressão ficasse difícil. Na bagunça, tornava-se quase impossível saber quem era quem. Alguns comerciantes também colaboravam com os fujões. Para eles, era vantajoso manter os fugitivos por perto. Em troca do silêncio, exploravam a mão de obra, além de comprar produtos baratos e de boa qualidade produzidos nos quilombos.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


HÁ 80 ANOS, A VONTADE INABALÁVEL DE UM ÚNICO HOMEM DAVA INÍCIO AO EPISÓDIO MAIS IMPORTANTE E ASSUSTADOR DO SÉCULO PASSADO POR ALEXANDRE CARVALHO


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e perder o fôlego. Assim era a beleza da vista dos Alpes em Berghof, a residência de férias na Baviera do líder máximo do povo alemão. Foi para lá que se encaminhou Kurt Schuschnigg, o homem que entraria para a história como o último chefe de Estado antinazista da Áustria antes da anexação de seu país à Alemanha – uma união forçada que ele tentava evitar na reunião que teria naquele paraíso alpino, em fevereiro de 1938. Diante do Führer, o chanceler austríaco tentou amenizar a tensão da conversa elogiando aquela paisagem de cartão-postal. Mas a resposta que recebeu do dono da casa não tinha nada de descontraída. “Sim, aqui minhas ideias amadurecem. Mas não estamos aqui para falar sobre a bela vista e o tempo”, disse impacientemente Adolf Hitler, que logo emendou com uma ameaça: “Herr Schuschnigg, o senhor não acredita que pode me deter por meia hora, acredita? Quem sabe? Talvez eu apareça em algum momento em Viena, da noite para o dia, como uma tempestade de primavera. Então o senhor verá”. Mesmo assustado, Schuschnigg não se curvou às ameaças de Hitler, não aceitou as impo-

sições que na prática deixariam a Áustria sob domínio nazista. Mas a oposição do político só serviu para enfurecer ainda mais o líder alemão, que não tolerava ser contrariado. “Desde sua meninice em Linz, Hitler pensava que o futuro da população austríaca de língua alemã estava na sua incorporação ao Reich”, afirma o historiador britânico Ian Kershaw. E Hitler deixaria isso bem claro logo na primeira página de Mein Kampf (“Minha Luta”), sua autobiografia. “A Áustria alemã deve retornar à grande mãe-pátria alemã, e não por motivos econômicos. Um sangue único exige um Reich único.” A “tempestade de primavera” que Hitler anunciava se materializou um mês após o encontro com o chanceler austríaco. Em 12 de março, o Exército Alemão invadiu a Áustria sem nenhum esboço de resistência, e logo um ministro do Partido Nazista local assumia o posto de novo chanceler do país. Um dia depois, a Alemanha anunciava oficialmente a anexação da república austríaca, convertendo-a numa província do Terceiro Reich. Kurt Schuschnigg foi imediatamente encarcerado: primeiro teve prisão domiciliar, depois amargou uma solitária no quartel-general da Gestapo (a polícia política dos nazistas) até finalmente ser levado para

Uma placa na vitrine de um restaurante vienense adverte os judeus de que eles não são bem-vindos no local. O ano era 1938

Adolf Hitler na Câmara Municipal de Viena, Áustria, faz saudação nazista ao povo, que o retribui, como sinal de lealdade, no dia 15 de março de 1938

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o terrível campo de concentração de Dachau. Ainda assim, o ex-chanceler e sua família conseguiram sobreviver aos mais terríveis dos terrores: seriam libertados pelas forças aliadas em 1945, no epílogo da Segunda Guerra Mundial. A independência da Áustria havia sido uma das imposições do Tratado de Versalhes, o acordo de paz assinado em 1919 pelas potências europeias, que basicamente responsabilizava a Alemanha pelas perdas e danos da Primeira Guerra. Hitler era um dos incontáveis alemães que não se conformavam com aquela “paz da vergonha”, que obrigara o país a pagar uma reparação astronômica para seus inimigos – especialmente a França –, a ceder parte de seus territórios e a reduzir suas Forças Armadas a um nível de insignificância. Nos comícios que marcaram a ascensão do líder nazista, desde os anos 1920, o político não perdia a chance de apontar o contraste entre o passado glorioso do Império Alemão e a situação em que o país se encontrava pós-tratado. De fato, ao longo da República de Weimar – que foi a democracia parlamentar alemã entreguerras –, a dificuldade de um ressurgimento econômico por conta das restrições do Tratado de Versalhes disseminava um sentimento generalizado no povo: um

misto de humilhação, saudosismo dos tempos do império e revanchismo. A política democrata era associada ao fracasso e à rendição, terreno fértil para a acolhida de um ditador com discurso ultranacionalista. Uma retórica preparada mesmo antes que o maior criminoso da história fosse uma personalidade conhecida – e temida – por todo o planeta.

ÀS PORTAS DA FRANÇA Ainda jovem, Adolf Hitler já era um admirador das ideias do político de extrema-direita Georg Schönerer, o mais radical entre os defensores do pangermanismo, uma ideologia que pregava a reunião de todos os povos de língua alemã sob o guarda-chuva de um grandioso Estado germânico – e que também tinha uma visão de mundo racista e de apoio a minorias alemãs em outros países. A recuperação da Áustria era um passo coerente nesse caminho infame para fortalecer um Reich eterno e invencível. Assim, os nazistas levaram sua perseguição aos judeus para a capital cosmopolita e multiétnica que era Viena, forçando o exílio de alguns dos mais ilustres de seus habitantes – como Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Mas, além da realização do sonho pangermânico, aquela agres-

Propaganda nazista nas ruas de Viena em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial: “Um povo, uma nação, um líder, Heil Hitler”

Kurt Schuschnigg, o último chefe de Estado antinazista da Áustria, em discurso de 1936


CAPA

são militar se revelaria um salto em direção à maior de todas as guerras da humanidade. Mesmo antes da invasão do território austríaco, Hitler já desafiava a tolerância internacional. Em 1935, divulgou abertamente o rearmamento da Alemanha – um processo que já ocorria de maneira secreta e informal desde os tempos de Versalhes, mas que só se solidificou depois que os nazistas se tornaram a força dominante no país, em 1933. O envolvimento das indústrias na produção de material bélico foi, inclusive, um importante fator de renascimento econômico depois da depressão que causara desemprego e inflação incontrolável, após o crash de 1929. Com o rearmamento, o país também retomava o alistamento compulsório, uma afronta ao artigo 173 do capítulo 3 do Tratado de Versalhes, que determinava: “Será proibido na Alemanha todo o serviço militar obrigatório. O exército alemão só poderá se constituir por recrutamentos voluntários”. A Inglaterra, a França e outros países da Liga das Nações se pronunciaram condenando o rearmamento proibido, mas nada fizeram além dessas declarações. Assim como não tomaram nenhuma atitude quando, no ano seguinte, Hitler violou o chamado Pacto de Locarno ao estabelecer forças militares na Renânia, uma região do lado ocidental do país que fora desmilitarizada pelo acordo, assinado em 1925. A “pacificação” do local era estratégica para a Europa Ocidental: a Renânia fica justamente na fronteira entre Alemanha e França. Ao proibir os alemães de erguer fortificações, estacionar tropas ou fazer qualquer preparativo militar naquela margem esquerda do Rio Reno, o acerto garantia que os franceses não precisavam temer uma agressão direta dos vizinhos por aqueles lados. Re-

REARMAR A ALEMANHA E RETOMAR O ALISTAMENTO OBRIGATÓRIO FOI UMA AFRONTA AO TRATADO DE VERSALHES 34

AVENTURAS NA HISTÓRIA

tomar a soberania da área, portanto, era um ousado movimento do xadrez geopolítico do Führer, que ouviu argumentos contrários à ação de diversos conselheiros militares. Hitler, no entanto, preferia sempre agir a esperar, ainda que isso fosse contar com a sorte. Ou melhor, com a crença interior de que era um predestinado, e que os rumos da história sempre estariam a seu lado. Era, inclusive, apoiado nessa fé pelos mais fanáticos entre seus apoiadores, como o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que escreveu na ocasião: “Chegou a hora da ação. A sorte favorece os corajosos! Quem não ousa nada não ganha nada”. A França, apesar do risco envolvido, achou que não valia a pena acabar com a paz mundial por causa daquela região – e deixou por isso mesmo. “Não havia, na década de 1930, um político capaz de defender, na França ou na Inglaterra, a necessidade de uma nova guerra contra a Alemanha”, escreveu outro historiador britânico, Eric Hobsbawm. Os franceses não sabiam, mas estavam acionando o gatilho da psique de Hitler que levaria, três anos mais tarde, aos eventos que precipitaram o início da Segunda Guerra – que teria entre suas consequências a ocupação do território francês pelos nazistas. Muitos estudiosos concordam que a “Crise da Renânia” afetou profundamente a disposição de Adolf Hitler, que viu no sucesso dessa ocupação um sinal de que era infalível. E a euforia popular com a reocupação contribuiu para esse sentimento. “Milhares de pessoas se aglomeraram nas margens do Reno e lotaram as ruas próximas à ponte”, conta Ian Kershaw na biografia de Hitler. “Os soldados foram alvo de uma recepção delirante ao atravessá-la. Mulheres forraram o caminho com flores. Padres católicos abençoaram-nos.” O fato é que, à época, bastaria uma divisão francesa para destruir a aventura dos alemães que surgiram armados na fronteira – um risco que o próprio Führer não ignorava. “Se os franceses tivessem então entrado na Renânia”, comentaria o líder nazista, “teríamos de nos retirar novamente com o rabo entre as pernas. A força militar à nossa disposição não era sufi-


Família alemã em Berlim, entre 1920 e 1925, durante a crise econômica que abalou o país sob a República de Weimar

Nazistas em campanha contra judeus. Era o início de 1933

Março de 1936: tropas alemãs cruzam o Rio Reno, na Renânia, fronteira entre Alemanha e França. E os soldados são recebidos com saudações nazistas

Crianças entregam flores aos soldados de Hitler, na Renânia

O ESTADO SOU EU Nos últimos dias de paz antes que eclodisse a Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler reuniu seus generais para explicar o que via como imprescindível para o futuro do Terceiro Reich: seus planos de varrer a Polônia da face da Terra, mesmo que isso implicasse um conflito maior – muito maior – contra as grandes potências europeias. O discurso passava por uma exaltação de si mesmo no papel de salvador da Alemanha. “Tudo depende de mim, da minha existência, devido aos meus talentos políticos. Ademais, é provável que ninguém jamais tenha a confiança de todo o povo alemão como eu tenho. É provável que jamais venha a existir um homem com mais autoridade que eu. Minha existência é, portanto, um fator de grande valor.” Transtorno de personalidade narcisista à parte, Hitler tinha razão ao dizer que tudo dependia dele. Desde 1933, quando os nazistas foram alçados ao poder no país, o governo vivia um progressivo desmonte estrutural que deixava todas as decisões importantes nas mãos de seu Führer. Os oficiais ansiavam por uma diretriz qualquer que norteasse suas operações de invasão ou anexação de outros países, seus embaixadores eram meros mensageiros das ideias de Hitler. Mesmo que suas decisões parecessem improvisadas, ele era a fonte de toda autoridade do regime nazista, um estado de coisas que resultou num modo de governar altamente personalizado. Por isso, o regime refletia basicamente as obsessões pessoais do líder: expansionismo por meio da dominação de países vizinhos e antissemitismo patológico, que culminaria no Holocausto da década seguinte. Uma centralização de poder absoluto – e de loucura genocida – que deixaria aflito um de seus chefes do Exército, Werner von Fritsch: “Este homem é o destino da Alemanha para o bem ou para o mal. Se ele está agora no abismo, carregará todos nós junto com ele”.


CAPA

Conferência préguerra em 1937. Hitler, Paul Goebells, Heinrich Himmler e Rudolph Hess

1936: Hitler discursa em Nuremberg Rally, onde aconteciam as reuniões anuais do Partido Nazista

Jovem coloca suásticas em torno de um retrato de Hitler para aguardar tropas alemãs

ciente nem para uma resistência limitada”. O erro de cálculo francês foi também um erro de timing: o país só decidiria retaliar as seguidas invasões alemãs em países mais frágeis da Europa quando seu rival já era uma potência militar insuperável – o que provavelmente ainda não era o caso em 1936. Esse atraso acabaria dando toda a vantagem militar aos nazistas, como explica James M. Lindsay, diretor de estudos do Council on Foreign Relations, organização americana especializada em política externa: “Estados expansionistas e agressivos são mais facilmente bloqueados cedo, quando ainda estão fracos e vulneráveis. Mas, justamente porque sua capacidade ainda está limitada nesse ponto, e suas intenções ainda não podem ser pressupostas com exatidão, costuma ser difícil persuadir outras nações a agir contra eles”. Se, mesmo diante da militarização da Renânia e da anexação da Áustria, dois anos depois, as principais potências europeias ainda achavam que poderiam aplacar o apetite de Hitler à base de diplomacia, as investidas seguintes do governo nazista fariam com que finalmente a ficha caísse: estavam lidando com um caso patológico de líder predador, para quem sempre era uma questão de tudo ou nada. 36

AVENTURAS NA HISTÓRIA

“ESPAÇO VITAL” Em novembro de 1937, ainda antes da anexação da Áustria, Hitler reuniu, na Chancelaria do Reich, os chefes do Exército, da Força Aérea e da Marinha, além do ministro da Guerra. Todos esses militares acreditavam que o motivo do encontro seria definir a alocação de suprimentos de aço para as Forças Armadas. Faltava matéria-prima para a contínua ampliação do armamento da Alemanha, e isso de fato pedia uma decisão do Führer. Mas o líder nazista tinha mais urgência em outro tema, o que pegou a todos de surpresa. Hitler queria falar de política externa. Num monólogo de cerca de duas horas, explicou detalhadamente a suposta necessidade de expandir o “espaço vital” alemão. Segundo ele, sem aumentar os territórios do Terceiro Reich, logo faltaria lugar para a produção agrícola, e o país dependeria sempre da economia estrangeira. Como nenhuma nação teria a gentileza de ceder territórios para o fortalecimento da Alemanha, Hitler expôs o que estava ficando claro na mente daqueles militares: o problema alemão só poderia ser resolvido com o uso da força. E não dava para esperar décadas pelo momento mais propício. Segundo o Führer, questões como o declínio das taxas de nascimento e o envelheci-


1938: povo de língua alemã recebe Hitler em rua decorada com suásticas na Tchecoslováquia

Mulheres choram de alegria na cidade de Eger, ocupada pela Alemanha, ao saudar soldados nazistas

mento do regime nazista tornavam fundamental conquistar esse espaço extra antes de 1943. Até lá, apontou como estratégico incorporar a Áustria – como já vimos – e ainda a Tchecoslováquia, o que ainda aumentaria a segurança das fronteiras alemãs. Nas contas de Hitler, os nazistas expulsariam 3 milhões de pessoas desses dois países (judeus, comunistas, padres, democratas etc.), resultando numa aquisição de alimentos para até 6 milhões de alemães. Para quem esteve naquela reunião, não foi surpresa que apenas sete meses após a anexação da Áustria o exército alemão estivesse incorporando a região dos Sudetos, na Tchecoslováquia, onde havia uma maioria de população de origem germânica. O pretexto oficial era de que os alemães que moravam por ali seriam perseguidos pelas autoridades – as crianças não podiam passar férias na Alemanha, por exemplo. Porém, se o senso de oportunidade de Hitler se mostrara aguçado nas incursões anteriores, atacar os tchecos era visto como loucura por parte do seu próprio comando militar. Não que a Tchecoslováquia representasse algum risco – e aquela democracia no caminho da expansão alemã parecia mesmo uma pedra no sapato para qualquer nazista. O problema era outro: um ataque

Tropa alemã marcha sob os portões de ferro de Hradcany, o antigo Castelo de Praga

aos eslavos parecia ser a gota d’água para que as aventuras do Führer abrissem a caixa de pandora de uma guerra contra as potências ocidentais. O general Ludwig Beck, chefe do Estado-Maior da Alemanha, escreveu um memorando que ressaltava a impossibilidade de o país vencer um conflito generalizado de longa duração, que poderia explodir se os ingleses decidissem por uma intervenção em favor dos tchecos. Hitler reagiu furioso àquelas constatações, e logo Beck perderia seu posto. Hitler não queria ouvir nenhuma voz da razão: ele queria guerra. E estava convicto de que as maiores forças da Europa não tomariam as dores dos tchecos. Apesar dos temores dos militares, a leitura internacional do Führer mais uma vez estava certa. Os britânicos quiseram tanto evitar o desgaste de uma guerra que colocaram os pesos-pesados de sua diplomacia para convencer os tchecos de que, sim, deveriam aceitar as exigências quanto aos Sudetos, principalmente dar autonomia aos alemães nessa região. Depois de idas e vindas das negociações, nas quais Hitler sempre tendia a aumentar suas exigências, um acordo foi selado: o país dos tchecos foi desmembrado. Um preço alto para a manutenção da paz – uma paz que desagradava ao líder alemão. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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CAPA

A PSIQUE DE HITLER Quando os EUA decidiram ajudar os Aliados contra a ameaça nazista, já no meio da Segunda Guerra, o psicanalista Walter Charles Langer recebeu uma encomenda confidencial do Escritório de Serviços Estratégicos – a agência precursora do que viria a ser a CIA. Ele precisava montar um perfil psicológico de Hitler, para que os americanos pudessem prever os próximos passos do nazista. Seu estudo permaneceu secreto até 1972, quando finalmente foi publicado. Mas acertou tanto no alvo que deu origem a uma nova disciplina na CIA: a ciência dos perfis políticos. Também ajudou a entender por que o Führer convenceu um país inteiro de seu destino pessoal de grandeza e da necessidade de ir à guerra. Hitler tinha, segundo Langer, a “capacidade de apelar às inclinações mais primitivas do homem para despertar os instintos mais baixos e, mesmo assim, mascará-los com nobreza, justificando as ações como meios para alcançar um objetivo”. É mais impressionante ainda que esse retrato tenha sido feito quando o mundo ainda não desconfiava da matança sistemática de judeus nos campos de concentração – algo que só ficou conhecido após o fim da guerra. O psicanalista concluiu que o fato de ter sido o primeiro filho a vingar, quando irmãos mais velhos morreram ainda na primeira infância, contribuiu para uma espécie de “complexo de messias”, que faz com que o indivíduo acredite ser um predestinado a algo importante – o que lhe dá absoluta confiança em tudo. Essa crença em sua própria infalibilidade de super-homem não permitia aceitar o fracasso. Daí uma outra previsão do estudo que assombra pelo acerto histórico do que aconteceria dois anos depois: Langer escreveu que, na eventualidade de uma derrota alemã, o Führer provavelmente cometeria suicídio. Exatamente o último ato da vida de Adolf Hitler, que levou junto em sua autodestruição a companheira, Eva Braun.

Setembro de 1939: piloto nazista sobrevoa cidade polonesa prestes a ser destruída

Cidadãos poloneses assistem, perplexos, à primeira invasão aérea alemã sobre Varsóvia, em 1939

1934: Hitler, diante de Nuremberg, no congresso de seu partido, faz saudação nazista


IMAGENS GETTY IMAGES

Mas a frustração de Hitler seria amenizada com uma solução em dois tempos. Em março do ano seguinte, ameaças militares dos nazistas, com envio de tropas na direção de Praga e uma banana para os acordos de paz, dariam à Alemanha o “protetorado” do que restava do país vizinho. “Este é o dia mais feliz da minha vida”, o Führer diria a suas secretárias. “Consegui a união da Tchecoslováquia com o Reich. Serei lembrado como o maior alemão da história.” As potências europeias mais uma vez não agiram em retaliação. Mas a ocupação da Tchecoslováquia mudou definitivamente a percepção de britânicos e franceses em relação a Hitler. Até então, eles achavam que poderiam apaziguá-lo. Daí para frente, sabiam que precisavam detê-lo.

CORREDOR POLONÊS Vale registrar que, incluindo a conquista da Tchecoslováquia, os nazistas vinham conseguindo dominar Estados menores vizinhos sempre com base na ameaça do uso da força, mas sem efetivo derramamento de sangue. Tudo mudou quando Hitler estabeleceu seu próximo objetivo expansionista: a Polônia. O pretexto novamente eram as injustiças do Tratado de Versalhes. O acordo forçara a Alemanha a ceder a cidade de Danzig e o chamado Corredor Polonês – uma faixa de terras que dava acesso ao mar para a Polônia, ao mesmo tempo que deixava a Prússia Oriental separada do Reich. Danzig tinha uma população 98% alemã, favorável à anexação, e só 1% polonesa (mais 1% de cidadãos de outras origens). Em sua política que unia expansionismo e revisão do tratado pós-Primeira Guerra, Hitler queria essas terras de volta. Mas a intimidação que funcionara tão bem na Áustria e Tchecoslováquia não surtiria o mesmo resultado desta vez. Os poloneses não abriam mão de seus territórios. Estavam mais confiantes graças a um acordo com a Inglaterra, firmado justamente para frear os impulsos nazistas. O problema é que o líder alemão que eles enfrentariam estava mais autoconfiante do que nunca. A sucessão de triunfos tinha sido um combustível e tanto para a megalomania de Hitler, que agora vivia se comparando em público a ninguém menos que Na-

QUANDO A POLÔNIA FOI ATACADA SURGIU A CERTEZA DE QUE A GUERRA ERA A VONTADE DE APENAS UM ÚNICO HOMEM poleão. Seus instintos agressivos também estavam num ponto nunca visto antes. Em maio de 1939, numa reunião com seu comando militar, o Führer antecipava o que tinha em mente para os conflitos que estavam por vir – um raciocínio que já incluía franceses e ingleses entre seus prováveis oponentes: “Não haverá mais chance de recuo e não será mais uma questão de certo ou errado, mas de ser ou não ser”. Quando, em 1º de setembro, a Polônia começou a ser bombardeada pelas tropas nazistas, a Alemanha entrava enfim numa contenda global que seu povo não queria – ainda era fresca a memória dos horrores da Primeira Guerra, que tivera um custo tão alto aos germânicos. Muitos dos comandantes das Forças Armadas nazistas também achavam que essa era uma ação prematura, que seu líder estava jogando o país num combate que teria melhor prognóstico se adiado por uns seis anos. O que ninguém tinha dúvida era de que os motivos para a Segunda Guerra Mundial se concentravam na vontade inabalável de um indivíduo. Era essa a linha de raciocínio do então primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, que expôs na Câmara dos Comuns, imediatamente após a invasão da Polônia, sua resignação quanto à impossibilidade de evitar um conflito de dimensões inimagináveis. “A responsabilidade por essa terrível catástrofe repousa sobre os ombros de um único homem: o chanceler alemão, que não hesitou em mergulhar o mundo na miséria para servir suas próprias ambições absurdas.” Dois dias após a primeira agressão nazista ao território polonês, 80 anos atrás, Inglaterra e França declararam guerra à Alemanha de Adolf Hitler. E o capítulo mais importante do século 20 começava a ser escrito – uma história que terminaria com mais de 70 milhões de mortos, a maioria civis inocentes. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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IDADE MÉDIA

AS LUZES DA

IDADE MÉDIA INJUSTAMENTE CONHECIDO COMO O PERÍODO DAS TREVAS, O MILÊNIO QUE LIGA O SÉCULO 5 AO SÉCULO 15 FOI MUITO MAIS DINÂMICO E CRIATIVO DO QUE A NARRATIVA OFICIAL NOS ENSINOU POR RAPHAELA DE CAMPOS MELLO

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AVICENA

ano era 1305. Em vez de enaltecer as glórias do Senhor aos fiéis italianos, o dominicano Jordano de Pisa exaltou apaixonadamente algo bastante mundano. “Não faz 20 anos desde que se encontrou na arte de fazer óculos que permitem enxergar bem, uma das mais necessárias artes do mundo, e é tão pouco o que se fez: uma arte nova, que nunca existiu. Eu vi aquele que primeiro os inventou e fez, e falei com ele.” Se você, leitor, tem alguma dificuldade de visão, mas está lendo perfeitamente este texto com o auxílio de lentes com grau, agradeça à inteligência da Idade Média. As mentes vivazes do período injustamente conhecido como “Idade das Trevas” inventaram não só os óculos, como também o relógio mecânico, o papel, os botões, as notas musicais, os algarismos arábicos. Enfi m, uma série de valiosos recursos – tanto criações europeias como adaptações de conhecimentos vindos do Oriente – que impactaram as mais diferentes áreas da vida humana. Diante dessas evidências de luz e de engenhosidade, fica difícil sustentar a tese de que a Idade Média teria sido um dos piores momentos da humanidade, marcadamente associado ao obscurantismo religioso, cultural e científico. Hoje, a maior parte dos estudiosos defende que o milênio, desde a queda do Império Romano no Ocidente (476) até a descoberta da América (1492), foi um tempo dinâmico e criativo, apesar da opressão social e econômica exercida pelos nobres e pela Igreja.

Grande estudioso desse período, com mais de 40 obras sobre o assunto, o historiador francês Jacques Le Goff é categórico: “Na Idade Média surgiram os traços essenciais da civilização ocidental”. Isso muda tudo. Em vez de uma era de regressão da civilidade, da arte e do pensamento, ela representa nada menos que “a base do nascimento da Europa Moderna, uma Europa de povos autônomos e politicamente definidos, mas, ao mesmo tempo, bastante conscientes de pertencerem a uma entidade político-cultural, religiosa e social mais ampla”, segundo a historiadora italiana Elena Percivaldi, autora de A Vida Secreta da Idade Média (editora Vozes). Se corrermos atrás de culpados por pregarem rótulos tenebrosos em um ciclo tão importante da História, chegaremos aos contemporâneos do Iluminismo. Os partidários da razão acima de todas as coisas viam as sociedades precedentes como bárbaras, irracionais e retrógradas. No entanto, estavam, em boa medida, enganados. “As ciências na Idade Média eram muito mais produtivas do que o senso comum acredita”, afirma o historiador Icles Rodrigues, criador do canal no YouTube Leitura ObrigaHistória. Ele lembra que não podemos restringir o que se passou nesse período à Europa ocidental. “Aproximadamente entre os séculos 8 e 13, o mundo muçulmano teve o que alguns chamam hoje de ‘renascimento islâmico’, uma era de profundo avanço científico em


áreas como matemática, astronomia, medicina e fi losofia, só para citar algumas. Mas, como estamos falando de algo ocorrido fora da Europa, muita gente não sabe”, lamenta. Não por acaso, uma grande referência da filosofia medieval foi o persa Avicena (980-1037), que em mais de cem livros versou sobre lógica, ciências naturais, matemática, metafísica, teologia e medicina – nessa época, o saber era integrado, ou seja, um mesmo indivíduo dominava várias disciplinas. Esse legado de peso levou o medievalista francês Alain de Libera a considerá-lo introdutor da ciência e da racionalidade religiosa no mundo ocidental. Jacques Le Goff, por sua vez, enaltece a figura de São Tomás de Aquino (1225-1274), autor da célebre Suma Teológica, como o grande conciliador da fé e da razão – cerne do pensamento escolástico. Vale lembrar que Aquino foi aluno de Santo Alberto Magno (1206-1280), filósofo e teólogo alemão, notório pensador que se aprofundou nos estudos do grego Aristóteles e acabou inserindo o aristotelismo no pensamento cristão, segundo o qual o empirismo e a sistemática do conhecimento têm valor fundamental. Como destaca Aline Dias da Silveira, professora associada no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em História Antiga e Medieval, o trânsito do conhecimento não ficou restrito às igrejas e aos mosteiros. Ele também passava 42

AVENTURAS NA HISTÓRIA

pelas cortes da alta nobreza no mundo cristão latino e grego, e pelas madrassas (escolas muçulmanas) e casas da elite do mundo islâmico. “É importante ter em mente que as pessoas viajavam anos atrás do conhecimento e que existiam muitas rotas marítimas e terrestres de comércio que ligavam os três continentes (Europa, Ásia e África). Neste contexto, a questão religiosa não impedia que o califa de Bagdá, por exemplo, tivesse em sua corte cristãos, judeus, zoroastristas e hindus traduzindo, juntos, textos de saberes de diversas culturas para a língua árabe.” De fato, se pensava muito na era medieval. Do contrário, as universidades não teriam surgido no século 12, em resposta ao crescimento populacional, econômico e urbano. A Universidade de Bolonha, por exemplo, data de 1158; a de Paris, de 1200. Nelas havia quatro ramos do saber: Artes, Direito, Medicina e Teologia.

CRIATIVIDADE EM ALTA genialidade humana se mostrou com força e expressividade no ramo artístico, tendo como expoente a arquitetura. Símbolos da ligação entre Deus e os homens, as igrejas despontavam na paisagem medieval como se fossem joias. E, no final do século 12, essa diretriz ficou ainda mais evi-

SANTO ALBERTO MAGNO

SÃO TOMÁS DE AQUINO

IDADE MÉDIA


MULHERES NOTÁVEIS As mulheres medievais cumpriam o script da submissão. Pertenciam aos pais e, posteriormente, aos maridos. Viviam para zelar e procriar. Algumas, porém, trilharam caminhos radicalmente diferentes e deixaram legados revolucionários para a época. A monja beneditina alemã Hildegard von Bingen (1098-1179) possuía inúmeras aptidões e tratou de desabrochar todas elas. Foi teóloga, mística, compositora, pregadora, naturalista, médica informal, poeta, dramaturga, escritora, mestra (e fundadora) do Mosteiro de Rupertsberg e até mesmo conselheira do Imperador Frederico Barbarossa. Virou santa e doutora da Igreja. Mais tarde, na Itália, a veneziana Christine de Pizan (1362-1431) ousou seguir a carreira de escritora profissional após a morte do marido. Não é de se estranhar que tenha

defendido os interesses femininos em suas obras. “Escreveu tratados em que encorajava as mulheres a tomar consciência de si e, sobretudo, o Livro da Cidade das Mulheres, uma resposta à misoginia alastrada em muitas obras contemporâneas”, revela a historiadora Elena Percivaldi em A Vida Secreta da Idade Média (editora Vozes). Imbuída de espírito guerreiro, a também italiana Matilde de Canossa (1046-1115), além de governar cidades e castelos, e fundar igrejas e mosteiros, comandou os seus exércitos contra os inimigos. Administrava a justiça viajando por seus territórios, sem se preocupar com os perigos. “As fontes a descrevem como o modelo do príncipe laico, mas cristão; fiel à Igreja, mas politicamente habilidoso; mecenas nas artes e reformador no campo jurídico”, define Elena.


dente com a introdução do estilo gótico, rebuscado e suntuoso. Criada no norte da França, essa linha arquitetônica substituiu o estilo anterior, o românico, trazendo soluções construtivas que se expandiram para grande parte do continente nos séculos posteriores. Os arquitetos da época implementaram, por exemplo, as abóbodas ogivais, sustentadas por colunas mais leves, que possibilitaram aumentar a altura das construções. Isso permitiu a remoção de parte das paredes laterais, agora ocupadas por estonteantes vitrais. Além dessas estruturas de sustentação mais leves, foram desenvolvidos os chamados arcobotantes nas paredes externas, utilizados para sustentar o peso da abóboda da nave central sobre os tetos das naves laterais. Um dos mais representativos exemplos do estilo gótico, a Catedral de Chartres, situada no noroeste da França, ostenta números impressionantes: 137 metros de comprimento, 36,55 metros de altura da nave, 64,30 metros de extensão do transepto. Ela surgiu da reconstrução da igreja românica local, incendiada em fins do século 12, e foi consagrada em 1260, com a presença do rei São Luís. Até hoje encanta seus visitantes pelo naturalismo de suas esculturas e pela beleza de seus vitrais, que cobrem mais de 2 mil metros quadrados. A Idade Média também pode se orgulhar de ter sido o berço de uma das obras mais importantes da literatura universal: A Divina Comé44

AVENTURAS NA HISTÓRIA

dia, de Dante Alighieri (1265-1321). Para os estudiosos, o escritor italiano foi um visionário que antecipou o espírito do Renascimento por seu caráter humanista, irônico e político, ainda que bastante influenciado pela religiosidade. Escrito entre 1307 e 1321, o poema épico, dividido em três partes, narra a viagem imaginária que o próprio Dante empreende pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso. Nesses domínios, ele encontra inúmeros personagens históricos (políticos, burgueses, fi lósofos, poetas, santos, teólogos) e transforma esse percurso numa alegoria do mundo terreno sob a perspectiva de um homem medieval. Como queria ser entendido pelo maior número de pessoas, Dante optou por uma linguagem acessível, sendo A Divina Comédia o primeiro dos grandes livros ocidentais a ser escrito numa língua vernácula, ou seja, não escrita em latim, e sim num dialeto que viria a se tornar o idioma italiano. Dessa maneira, o poeta florentino se posicionou como um defensor da laicização cultural.

O CULTIVO EM CAMPO vanços também ocorreram no campo, tendo em vista o aumento populacional a partir do século 11. Para se ter ideia, na Idade Média central – do século 11 ao fi nal do século 13 – a população cristã dobrou. A necessidade de alimentar tanta gente

DANTE ALIGHIERI

MATILDE DE CANOSSA

IDADE MÉDIA


LUTA POR DIREITOS campo também viveu anos de efervescência político-social, uma vez que foi palco de uma série de movimentos populares pela busca de direitos. A subordinação dos camponeses – o maior contingente populacional – aos nobres e à Igreja era a base das relações. Estavam todos de acordo, como rezava a tradição, segundo a qual permutava-se trabalho por segurança. No entanto, quando os mais poderosos impunham condições abusivas,

JOHN BALL

estimulou a criatividade dos camponeses para que a lida se tornasse mais eficiente. Então, novas técnicas e ferramentas passaram a fazer parte do dia a dia desses trabalhadores, tais como a “utilização mais constante do ferro na fabricação de enxadas, rastelos e forcados, ou de equipamentos como a charrua, arado grande com rodas e pontas de metal”, lista o historiador José Rivair Macedo, no livro Movimentos Populares na Idade Média (editora Moderna). No entanto, a maior invenção do setor foi o sistema de cultivo trienal, no lugar da rotação bienal. O solo passou a ser dividido em três partes, de modo que, a cada ano, uma permanecia em descanso e as demais eram trabalhadas. Passados três anos, todas tinham sido utilizadas. “A nova técnica era melhor, pois permitia um maior aproveitamento do solo, facilitando a variação das culturas”, justifica Macedo.

a base da pirâmide reagia, levada por um forte senso de coletividade e solidariedade. Não raro, as reivindicações viravam insurreições. A primeira grande revolta camponesa de que se tem notícia ocorreu na Normandia, no norte da França, em 996, durante o governo do duque Ricardo II. Os trabalhadores resolveram explorar a reserva senhorial sem a devida autorização e acabaram sendo massacrados pelas tropas oficiais. Séculos adiante, contudo, outra querela obteve resultados favoráveis. “Entre 1250 e 1251, os servos de Orly, uma aldeia localizada no sul de Paris, recusaram-se a pagar impostos pessoais aos seus senhores, os padres da Abadia de Notre-Dame. O movimento de insatisfação cresceu. Aldeias vizinhas se rebelaram e em pouco tempo havia aproximadamente 2 mil vilãos revoltados”, relata o historiador José Rivair Macedo. A pressão popular levou a disputa aos tribunais da Coroa e, após negociações, os servos ficaram livres da taxa extra. Anos mais tarde, em 1263, a própria servidão acabou sendo abolida no sul de Paris. Vitória do povo. Outros motins, também deflagrados por cobranças de impostos, atingiram as cidades. Nessas localidades, líderes populares despontaram e entraram para a História, como, por exemplo, Estevão Marcel, representante dos comerciantes parisienses que, entre 1356 e 1357, junto com seus partidários, forçaram a retirada do regente Carlos e controlaram Paris. Mais tar-


IDADE MÉDIA

São Francisco de Assis (1182-1226) é um dos ícones medievais por sua aura simples e caridosa, fiel ao exemplo de Jesus Cristo. Entretanto, pouco se fala sobre a sua verve revolucionária. Numa época em que a Igreja detinha o monopólio do saber e valorizava a formação erudita de seus pares, o frade abriu sua Ordem aos leigos, pouco se importando com a bagagem de seus integrantes. Além disso, seu projeto foi originalmente concebido para homens e mulheres e, no lugar da hierarquia, defendia a fraternidade e a comunhão com a natureza. De acordo com a historiadora italiana Chiara Frugoni, uma das maiores estudiosas da vida de São Francisco de Assis, essa

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

postura representou uma grande novidade na época. O santo também demonstrou ousadia ao estender a mensagem de paz e amor aos muçulmanos em plena vigência das Cruzadas. Na Regra de 1221, Regula non bullata, isto é, que não recebeu o selo papal de aprovação, ele explicava aos frades como deviam viver entre os muçulmanos: “sem brigas, nem disputas”. Apesar da clara oposição às diretrizes da Igreja, Francisco nunca entrou em embate com a cúpula cristã nem com aqueles que agiam de modo diferente ao seu. Para ele, o Evangelho era sinônimo de mansidão, não de violência. Assim ele viveu e inovou, inspirando até hoje a espiritualidade, inclusive entre não católicos.

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REVOLUCIONÁRIO DA ESPIRITUALIDADE


de, em 1381, na Inglaterra, foi a vez de Watt Tyler e John Ball assumirem as reivindicações de camponeses e artesãos, e dominarem a cidade de Londres. Os dois episódios, contudo, terminaram com o assassinato de seus líderes. Mesmo assim, somaram-se a tantos outros espalhados pela Europa, reforçando o anseio popular por justiça e melhores condições de trabalho. Ao contrário do que nos foi ensinado, havia espaço para as camadas populares medievais se expressarem e viverem a vida conforme suas crenças e anseios. O problema é que, por muito tempo, aprendemos sobre a Idade Média tendo como base fontes eclesiásticas, que expressavam um ideal religioso e moral proveniente de uma restrita parcela da população. Portanto, como explica Aline Dias da Silveira, é equivocado afirmar que a Igreja detinha total controle sobre o comportamento das pessoas. “Até o século 9, o papa era apenas o patriarca da Roma ocidental e estava submetido ao Imperador Romano do Oriente (ou Bizantino). Não havia uma unidade entre o poder local dos bispos que pudesse constituir uma instituição que tivesse tal poder. Além disso, os padres falavam em latim na missa para uma população que não sabia ler ou escrever e a igreja não possuía exércitos, logo necessitava do apoio de reis e de nobres para qualquer tipo de coerção, como foi o caso da perseguição às heresias nos séculos 12 e 13.” O que existia, de fato, era a influência religiosa

sobre as práticas cotidianas, principalmente porque o cristianismo se fundiu aos antigos ritos pagãos, como provam as festas do calendário litúrgico. Mas, do ponto de vista comportamental, incluindo a sexualidade, a repressão não foi tão severa assim.

LITERATURA LIVRE produção literária da nobreza medieval dá pistas de como as coisas funcionavam naquela época. “Havia sensualidade na poesia trovadoresca e ousadia das cantigas de escárnio. No entanto, o auge do humor sexual das mentes medievais encontra-se nos Fabliaux, pequenas histórias de escárnio, das quais o teor pornográfico é de deixar os leitores de hoje ruborizados, lembrando que numa sociedade, em que a maioria não sabia ler, inclusive os nobres, essas histórias eram lidas em voz alta para uma plateia”, pontua a professora. Para ela, estes são indícios de que os padres poderiam pretender reprimir o comportamento sexual dos leigos na Idade Média, mas não tiveram tanto sucesso. “Seria no período Moderno, a partir do século 16, que a intervenção das monarquias fortalecidas, fundamentadas na moral da Igreja, se tornara mais contundente”, esclarece. Antes disso, entre o Céu e o Inferno, as mais variadas manifestações humanas fizeram da Idade Média um milênio dos mais interessantes. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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PERSONAGEM

AS DUAS MORTES DE HÁ 100 ANOS NASCIA A MAIS CÉLEBRE PRIMEIRADAMA ARGENTINA, QUE SÓ TEVE SEU DESCANSO FINAL DUAS DÉCADAS DEPOIS DE DEIXAR ESTE MUNDO POR XAVIER BARTABURU


N

a noite em que Evita morreu, não tardou nem 12 horas para que se tornasse imortal. Trinta minutos depois do último suspiro, seu corpo foi entregue ainda morno ao embalsamador Pedro Ara, que varou a madrugada injetando soluções químicas para debelar a morte em seu rápido processo de decomposição. Ao amanhecer, o corpo de Eva Perón estava incorruptível. Seria velado pelos 13 dias seguintes por 2 milhões de argentinos. Meio milhão beijou seu ataúde. Alguns desmaiaram quando a viram. Outros, segundo se conta, tiveram de ser contidos para não se matar com navalhas e vidrinhos de veneno. Do lado de fora, 18 mil coroas de flores decoravam a fachada do Ministério do Trabalho. As filas alcançavam trinta quadras. Era tanta gente enlutada que,

quinta filha de Juan Duarte, rico fazendeiro, e a cozinheira de sua estância, Juana Ibarguren, a quem tinha por amante. Deram-lhe o nome de Eva María, as duas mulheres cruciais do cristianismo numa pessoa só: a santa e a pecadora. Juan Duarte sustentou a família de Evita até morrer, em 1926, desencadeando longos anos de penúria e privações à menina, além da humilhação que as crianças sofriam pelo fato de serem bastardas. Decidida a deixar no interior esse passado de vergonha, Evita mudou-se aos 15 anos para Buenos Aires para se tornar atriz. Em 1935, já interpretava melodramas no rádio-teatro, revelando intimidade com os microfones que ganharia contornos épicos nos discursos que viria a fazer da Casa Rosada, o palácio presidencial. Em 1944, Eva Duarte – já atriz consolidada

PERON naquela semana, as gravatas pretas se esgotaram nas lojas de Buenos Aires. Enquanto isso, um sindicato local se apressava em enviar ao Vaticano o pedido de canonização de Santa Evita. Nas rádios, vozes solenes anunciavam: “Ha muerto la Jefa Espiritual de la Nación”. Eva Perón morrera às 20h25 de 27 de julho de 1952, encerrando 33 anos de uma vida breve, mas notável. Naquele mesmo minuto, começava outra existência, a de um corpo inerte, mas não menos vívido, que duraria 24 anos e atravessaria continentes numa epopeia insólita que desafia até a mais desvairada das ficções. Morta, Evita tornou-se mais viva do que quando respirava. O primeiro ato dessa saga começa em 7 de maio de 1919 no povoado de Los Toldos, a 300 quilômetros de Buenos Aires, quando nasce a

na Argentina, com direito a capas de revistas e alguns filmes no currículo, conheceu o general Juan Domingo Perón, então secretário de Trabalho e Previdência Social do governo federal. A ocasião: um festival organizado por Perón com a presença de diversos artistas em solidariedade às 8 mil vítimas fatais de um terremoto que havia ocorrido na cidade de San Juan. Perón tinha 48 anos; Evita, 24. Quem seduziu quem, é matéria de especulação. O fato é que, poucos dias depois, o general já frequentava a casa de Eva na Calle Posadas. Atrizes não eram muito bem-vistas na Argentina da época, mas Perón sentiu que Evita podia lhe ser útil: tinha a seu lado uma companheira que, vinda do povo, o aproximava do povo. Com o adicional, claro, do carisma e do poder da

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PERSONAGEM

comunicação radiofônica. Evita, por sua vez, sabia que a ideia de se associar a um homem de grande poder alavancaria sua carreira. “Nesse casamento, se juntaram duas vontades, duas paixões de poder. Não foi um casamento por amor”, escreve Alicia Dujovne Ortiz na biografia Eva Perón: a Madona dos Descamisados. O que Evita não sabia era que seu grande papel não a aguardava na rádio ou nas telas. E a estreia se deu em outubro de 1945, quando Perón foi destituído do cargo de secretário por um golpe civil e militar que culminou com sua prisão. Na madrugada do dia 17, milhares de trabalhadores marcharam até a Plaza de Mayo e, diante da Casa Rosada, exigiram a libertação do general. Evita foi uma das articuladoras desse ato, que entrou para a história como o marco fundador do peronismo. Cinco dias depois, casou-se com Perón. Ao cabo de quatro meses, com a vitória do marido nas eleições de 1946, tornou-se a primeira-dama da Argentina. À semelhança de Getúlio Vargas no Brasil, Perón inaugurou uma era de forte ingerência do

O MITO DE EVITA CRESCEU TANTO ENTRE O POVO A PONTO DE ELA SER VENERADA QUASE COMO SANTA Estado na economia e no bem-estar da população. Nacionalizou setores estratégicos, impulsionou a indústria, criou um sistema unificado de saúde pública, instituiu a gratuidade do ensino universitário e concedeu benefícios à classe trabalhadora, como a ampliação da aposentadoria e a criação do décimo terceiro salário. Em seu governo, também as mulheres conquistaram o direito de votar – um triunfo em grande parte viabilizado pela intensa campanha de Eva em favor da aprovação da lei do sufrágio universal, promulgada em 1947. Conhecida como “Ley Evita”, ela também levou as primeiras mulheres a ocupar cargos legislativos. No pleito de 1951, foram eleitas 23 deputadas e seis senadoras, todas do Partido Peronista Femenino – criado, é claro, por Evita. 50

AVENTURAS NA HISTÓRIA

A DAMA DA ESPERANÇA O foco do peronismo nos direitos sociais foi um campo fértil para que Eva Perón construísse uma imagem pública fortemente associada à população de baixa renda, os chamados “descamisados”. Já no primeiro ano de mandato montou um gabinete próprio onde começou a organizar sindicatos e promover ações de assistência social. Recebia pessoalmente, todos os dias, cada cidadão que chegasse lhe solicitando ajuda, fosse um pedido de emprego, moradia ou atendimento médico. “Vocês têm o dever de pedir”, dizia. Para um povo acostumado à obediência, aquilo soava quase como uma insurreição. Em 1947, foi constituída a Fundação Eva Perón, que passaria a centralizar diversas iniciativas de auxílio à classe trabalhadora. Em pouco mais de quatro anos, o órgão criou 30 mil novos leitos hospitalares, botou 16 mil crianças nas escolas e ergueu dezenas de conjuntos habitacionais. Evita supervisionava pessoalmente cada iniciativa, visitando com frequência hospitais, fábricas e bairros populares, onde enfeitiçava a audiência com seus discursos de palavras simples, mas contundentes, marcados por uma retórica impecável talhada pelos anos de experiência como atriz de radionovelas. E mesmo quando visitava favelas, vestia-se de maneira impecável, desfilando modelos desenhados por estilistas como Christian Dior. Em 1953, numa entrevista à revista Paris Match, o estilista francês declarou: “A única rainha que vesti foi Eva Perón”. Aos críticos, ela rebatia: “Os pobres gostam de me ver linda. Não querem ser protegidos por uma velha malvestida”. A presença cativante, a fala vigorosa e, sobretudo, o fervor com que Evita se entregava às causas sociais ajudaram a moldar a figura da “Dama da Esperança” dos argentinos. Desenvolveu-se um forte culto à sua imagem, reforçado pelos meios de comunicação – vale lembrar que os principais jornais e rádios do país pertenciam ao governo, e os que não eram peronistas sofriam constantes censuras. Tonificado pelo eficiente aparato ideológico presidencial, o mito de Evita cresceu a ponto de ela ser venerada quase como santa. Montavam-se altares com


flores, velas e fotos arrancadas das revistas. Notas de dinheiro dadas por ela eram emolduradas. No Teatro Colón, em Buenos Aires, por muitos anos manteve-se intacta uma taça de champanhe com sua mancha de batom. Em Mendoza, um museu guardava um vidrinho de descongestionante que ela usara quando passara pela cidade. Não à toa, Evita era cada vez mais odiada pela elite. Chamavam-na “la yegua”. A égua. Eva se tornou ainda mais perigosa às vésperas das eleições de 1951, quando os sindicatos propuseram que se candidatasse à vice de Perón. Para ela, seria uma vitória pessoal, uma maneira de legitimar uma existência que lhe fora sempre negada ou questionada: primeiro uma filha bastarda, depois uma atriz namorando um general e por fim uma primeira-dama metendo-se

em assuntos de política. O povo estava com ela: em um comício, a multidão diante da Casa Rosada exigiu, fanática, sua candidatura. Evita aceitou, mas acabou renunciando dias depois. Não são claros, porém, os motivos de sua renúncia. A biógrafa Alicia Dujovne Ortiz aponta ciúme por parte de Perón: “Ele não havia imaginado a intensidade do diálogo amoroso entre Evita e o povo. Encontrar-se obscurecido pelo resplendor de uma paixão a dois e excluído do triângulo não estava em seus planos”. Outras fontes sugerem problemas de saúde, que já davam os primeiros sinais na forma de hemorragias, desmaios e fortes dores no baixo-ventre. Se assim foi, resta saber o que lhe disseram para convencê-la a desistir da vice-presidência. Pois Eva Perón nunca soube que tinha câncer. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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Era um tumor no colo do útero, curiosamente o mesmo que matara a primeira esposa de Perón, Aurelia, em 1937 – o que tem levado à hipótese de que o general teria transmitido a ambas o vírus do HPV, hoje sabidamente um fator de risco para esse tipo de câncer. A Evita disseram-lhe que tinha uma “úlcera” no útero. Mesmo emagrecendo a olhos vistos, ela também se recusava a crer que estivesse doente. Acreditava que era uma desculpa que lhe davam para escanteá-la, logo quando sua força política só fazia crescer. “Sua ideia de que aquilo era mais uma conspiração para tirá-la da política foi sua condenação à morte. Quando a doença eclodiu, já era tarde demais”, escreveu Nelson Castro no livro Los Últimos Días de Eva: Historia de un Engaño, que trouxe à tona fatos até há pouco tempo ignorados, como a lobotomia que fizeram em Evita na fase final da doença. Segundo o autor, o corte de alguns nervos cranianos teria sido feito para conter a agressividade da primeira-dama, que, talvez ciente de que fosse morrer, teria acirrado sua beligerância nos últimos meses de vida

POR MAIS DE 20 ANOS, SEU CORPO VAGOU POR LUGARES INUSITADOS, USADO ATÉ EM RITUAIS DE MAGIA – chegara inclusive a encomendar da Holanda 5 mil pistolas e 1.500 metralhadoras para equipar um exército de sindicalistas na eventualidade de um golpe. Um golpe que Evita não viu.

A INSÓLITA SAGA DO CORPO Em 1955, o corpo de Eva Perón – embalsamado já havia três anos – jazia na sede da Confederação Geral do Trabalho (CGT), a maior central sindical da Argentina, à espera do mausoléu que seria erguido em sua honra: um monumento de 137 metros de altura (três vezes maior que o Cristo Redentor), em que o sarcófago de Evita descansaria sob os pés da estátua colossal de um descamisado. O sepulcro nunca saiu do papel: neste ano, os militares tomaram o poder e acharam por bem sumir com o cadáver para evitar 52

AVENTURAS NA HISTÓRIA

que se tornasse objeto de culto peronista. Morta, Eva Perón era mais perigosa do que viva. Cogitou-se cremá-la, lançá-la no Rio da Prata e até dissolvê-la em ácido, mas Pedro Aramburu, líder do golpe e católico devotado, insistiu em lhe dar “sepultura cristã”. Em segredo, claro. Dois meses após a tomada do poder, um comando militar já invadia a sede da CGT para sequestrar o corpo. Pedro Ara, o embalsamador, passara os últimos três anos retocando o cadáver, a ponto de fazer de Evita quase uma obra-prima da mumificação: quem a viu, dizia que parecia dormir. O sequestro ficou a cargo do coronel Carlos Koenig, chefe do Serviço de Inteligência do Exército, que terminou por desenvolver uma espécie de obsessão necrófila pelo corpo de Evita: durante anos, conta-se que rodou com ela por toda Buenos Aires, escondendo-a em lugares como a caçamba de um furgão, os fundos de um cinema, o sótão de uma casa e até mesmo seu escritório, onde convidava pessoas a visitar o corpo. Acredita-se que os peronistas seguiam o cadáver à distância, pois era comum que, nas redondezas dos esconderijos, aparecessem flores e velas acendidas misteriosamente como forma de demarcar o lugar onde a qualquer momento poderia dar-se início a uma peregrinação. Corre a lenda de que os militares chegaram a fazer três cópias de cera do corpo de Eva Perón para despistar os peronistas, tão perfeitas que a própria mãe da defunta teria se confundido. Em 1957, temendo que os peronistas roubassem o corpo, Pedro Aramburu ordenou que Evita fosse enviada para fora da Argentina, em uma complexa operação que teria envolvido até o Vaticano. Os detalhes seguem obscuros, mas sabe-se que Eva Perón deixou Buenos Aires sob um nome falso com destino a Gênova, onde foi recebida por uma freira que se encarregaria de sepultá-la em um cemitério de Milão. Era uma operação tão bem ajambrada que ninguém conhecia todos os pormenores: nem a freira sabia que estava enterrando Evita, nem o general Aramburu sabia onde a haviam sepultado. Tanto que, em 1970, quando os montoneros, guerrilheiros peronistas de esquerda, sequestraram o ex-ditador com o intuito de reaver o corpo,

IMAGENS BETTMANN / GETTY IMAGES

PERSONAGEM


Aramburu pagou com a vida o fato de desconhecer seu paradeiro. A execução do general pelos montoneros deflagrou uma crise política que o então ditador argentino, Alejandro Lanusse, achou por bem mitigar. Em 1971, decidiu devolver o corpo de Evita a Perón, que vivia exilado em Madri com sua nova esposa, Isabelita. Mesmo de volta à companhia do ex-marido, porém, seus despojos não tiveram descanso: na casa de Perón, um assistente chamado José López Rega, entusiasta do ocultismo, realizava macabros rituais de exorcismo com o objetivo de transferir a alma de Evita para o corpo de Isabelita. Dois anos depois, Perón voltou do exílio e foi eleito presidente, com Isabelita como vice. Evita ficou na Espanha, o que rendeu um último e insólito lance dessa funesta odisseia: os monto-

neros decidiram sequestrar o cadáver do general Aramburu, executado três anos antes, para exigir em troca o retorno do corpo de sua heroína. A “Mãe dos Pobres” só voltou em 1974, após a morte de Perón em pleno exercício da presidência, por iniciativa de Isabelita, que havia assumido o cargo. Por dois anos, Eva e Perón descansaram lado a lado, na Quinta de Olivos, a residência presidencial. Uma saga, porém, que só terminou com mais um golpe de Estado: em 1976, os militares decidiram encerrar essa obsessão pelo corpo embalsamado e entregaram a múmia de Evita aos parentes, que finalmente a colocaram na sepultura da família no Cemitério da Recoleta. Não é um mausoléu de 137 metros de altura, mas vive cheio de turistas. E nunca faltam flores cravadas no portão de ferro. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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COLUNA M.R. TERCI

AS GUERRAS SECRETAS E O ÁS TUPINIQUIM H avia uma batalha diferente nos céus da Europa. Uma peleja incessante que não era delimitada pelas fronteiras geográficas ou ideologias antagônicas. Bandeiras e ideais poderiam queimar, mas o que ardia no coração dos aviadores era o desejo de glória e isso, muitas vezes, os levava para longe. Pouca gente sabe, mas um brasileiro se tornou o Ás da Luftwaffe – Força Aérea Alemã. Difícil acreditar? Sim, mas essa é a história de Egon Albrecht Lemke, natural de Curitiba, capital do Paraná, descendente de alemães. Também não é de se estranhar. O partido nazista no Brasil não apenas era o maior fora de território alemão como também o mais empenhado em convocar cidadãos leais ao Reich. Atendendo aos apelos de Hitler, o brasileiro Egon Albrecht Lemke viajou para a Alemanha nos anos 1930, se juntou à juventude hitlerista e, mais tarde, com pouco mais de 20 anos de idade, tornou-se um dos mais destacados pilotos de caça alemães, participando de dezenas de missões de ataque na Europa. A bordo de sua máquina voadora, um caça bimotor Messerschmitt BF 110, Lemke combateu nas grandes invasões nazistas dos Países Baixos, em missões de apoio às tropas em terra na França e na épica batalha nos céus da Inglaterra. Na frente russa, o caça de Lemke abateu, sozinho, 15 aviões. Condecorado diversas vezes, o piloto foi promovido à capitão e passou a liderar uma das mais mortíferas esquadrilhas da Luftwaffe. Retomou o combate aéreo na França em 1943 e, posteriormente, participou da defesa da Áustria, em 1944, quando

bombardeiros Aliados decolaram da Itália. Por sua bravura em combate e grande número de aviões Aliados abatidos – 25 aeronaves inimigas – foi condecorado com a Ritterkreuz, o Cavaleiro da Cruz de Ferro e, com isso, o brasileiro entrou para o restrito rol de aviadores alemães que receberam a mais alta condecoração nazista. Egon Albrecht Lemke continuou tocando o terror nos céus até a data em que Paris foi libertada. Em sua última missão, à leste da capital francesa, Lemke foi atacado por vários aviões Aliados. Saltou de paraquedas, mas não sobreviveu. Morreu em ação no dia 25 de agosto de 1944. O aviador brasileiro foi considerado, ao lado de lendários ases como Hans-Ulrich Rudel, Adolf Galand e Walter Krupinski, um dos maiores e mais destacados pilotos da Segunda Guerra Mundial. Egon Albrecht Lemke serviria de modelo para a propaganda nazista, aparecendo em fotos que mobilizariam milhares de jovens ao redor do mundo a ingressarem nas linhas germânicas. O curitibano inspiraria, assim, muitos outros jovens a somarem forças aos alemães, entre estes, um outro brasileiro. Wolfgang Ortmann, nascido em São Bento do Sul, no estado de Santa Catarina, topou com a propaganda nazista de seu conterrâneo brasileiro e, movido pelo mesmo desejo de glória, ingressou nas esquadrilhas da Luftwaffe. Combateu no front russo e os registros de época o descrevem como habilidoso piloto. Contudo, obteve menos êxito do que o curitibano Lemke. Wolfgang Ortmann morreu em fevereiro de 1942, abatido por aviões russos.

M.R. TERCI É ESCRITOR, FINALISTA NO PRÊMIO CUBO DE OURO, AUTOR DE IMPERIAIS DE GRAN ABUELO (2018), OBRA AMBIENTADA NO PÓS-GUERRA DO PARAGUAI, E BAIRRO DA CRIPTA (2019), NA BELLE ÉPOQUE BRASILEIRA

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

Piloto brasileiro combateu na Segunda Guerra e se tornou o único do país com a mais alta condecoração nazista


COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

No Intenso Agora Brasil, 2017 Direção: João Moreira Salles

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

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O DESEJO E O REAL

m outubro de 1966, Elisa Moreira Salles, então com 37 anos, visitava a China com um grupo de ricaços, industriais e banqueiros. A esposa do dono do Unibanco fez filmes amadores da viagem, registrando os sorrisos dos amigos na Grande Muralha, mas também um lirismo que não imaginava encontrar. Em pleno alvorecer da Revolução Cultural Chinesa, quando a Guarda Vermelha perpetrava as maiores violências contra intelectuais e supostos opositores de Mao Tsé-tung, Elisa prestou atenção ao que havia de beleza naquele país e naquele momento. Viu poesia nas mãos de crianças dançando o balé revolucionário. E se impressionou com a devoção do povo ao líder chinês – um misticismo que ela associou à semana da Paixão de Cristo. Segundo João Moreira Salles, seu filho, que descobriu esses registros 40 anos depois, a viagem foi um período em que sua mãe lhe pareceu plenamente feliz. Um comentário que ganha outra dimensão por uma tragédia que ele não expõe em No Intenso Agora: Elisa cometeria suicídio aos 59 anos. Essas cenas na China, de um colorido vivo, são o ponto de partida para outras filmagens caseiras e outras reflexões, também associadas à segunda metade dos anos 1960. Boa parte do documentário tra-

ta de maio de 1968, quando estudantes franceses quiseram mudar o mundo, lutando contra a autoridade nas fábricas e universidades. A euforia daqueles jovens, que achavam que ser realista era pedir o impossível, é associada à da mãe do realizador. Ambos viam a história acontecer diante dos olhos – como espectadores simpáticos ou agentes da revolução. “Era tão bom estar vivo e alerta naquele período que ninguém queria dormir”, comenta João Moreira Salles, cuja voz em off é um guia sentimental das transições do filme. No trecho final do documentário, entretanto, resta a desilusão. Uma marcha de franceses conservadores, estimulada por um discurso do presidente, reafirma a tradição que a juventude desafiava. No mesmo ano, em Praga, tanques soviéticos esmagam qualquer ambição democrática na Tchecoslováquia. Uma opção de montagem que se abre a uma leitura freudiana: a mãe e os jovens em pleno gozo de uma felicidade irracional, de desordem, seguida pela repressão do pai (Charles de Gaulle, restaurando a disciplina na França). Um acomodamento ao status quo que transforma a excitação no desalento de uma sociedade que é flor carnívora – como anunciava o slogan de uma Paris que nunca foi tão jovem.

ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)

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COLUNA JORGE DE SOUZA

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O GRANDE TESOURO PERDIDO ATÉ HOJE

o século 17, o galeão Nuestra Senõra de las Maravillas armou uma confusão que gerou o próprio naufrágio e um mistério que dura até hoje: onde foi parar a parte mais valiosa do seu tesouro? A noite estava escura e sem lua na perigosa região dos baixios das Bahamas, naquele 4 de janeiro de 1656. Uma tempestade se aproximava. O capitão do galeão espanhol, que liderava uma flotilha de 22 naus abarrotadas de ouro e prata extraídos das minas da América Central, sentiu-se no dever de alertar os colegas das demais embarcações sobre os riscos da navegação naquelas águas tão rasas. Disparou, então, um tiro de canhão que podia ser ouvido a distância. Mas os outros capitães não entenderam o sinal. Julgando que a primeira nau estava sendo atacada por piratas – e por isso fizera o disparo –, as tripulações dos demais galeões entraram em pânico, executaram manobras desesperadas e passaram a disparar seus canhões contra um inimigo que não existia. No tumulto, um dos galões colidiu com o próprio Maravillas, que começou a afundar rapidamente. Vendo que sua nau não aguentaria muito tempo, o capitão do galeão abalroado – o mesmo que, involuntariamente causara tudo aquilo –, deu ordens para rumar exatamente para as águas rasas que tanto temia. O objetivo era fazer com que o navio afundasse numa região de pouca profundidade para, mais tarde, facilitar o resgate da fortuna que transportava. Nos baixios, já açoitado pelas ondas da tempestade que se aproximava, o Maravillas durou pouco. E logo se partiu em dois. A proa afundou na hora, levando junto muitos homens. Mas a popa, justamen-

te onde estava a maior parte da carga milionária, foi empurrada pelos ventos para longe, antes de também sucumbir no oceano. Só que nunca se soube onde. E é justamente nesta dúvida – onde estará a popa do Maravillas? – que reside o fascínio de um mistério que dura até hoje. Três séculos se passaram até que, um dia, no início da década de 1970, a âncora de um barco de pesca enganchou em algo no fundo daqueles baixios. Os pescadores acharam um velho canhão. Depois, garrafas, pedaços de ferro, moedas. Era a proa do Maravillas, cuja localização, com o tempo, também havia sido perdida. Mas, da popa, nenhum sinal. Até que, em 1990, outros pescadores acharam uma lancha naufragada não muito distante do ponto onde jaziam os restos da proa do Maravillas. Dentro dela, havia objetos do galeão, indicando que haviam pessoas saqueando os escombros. Mas, e se a lancha estivesse vindo da popa - e não da proa - da nau perdida? E se os ocupantes tivessem encontrado a parte valiosa do tesouro e não revelado, antes de afundar também? Entre outras preciosidades, o Maravillas transportava esmeraldas de mais de 100 quilates, cerca de 40 toneladas de ouro e uma imagem da Virgem Maria em tamanho quase real, feita do mesmo material. No total, calcula-se que aquela nau levava o equivalente a cerca de 4 bilhões de reais, em dinheiro de hoje. Seria, portanto, o mais rico galeão naufragado conhecido da História. E, ao que tudo indica, a maior parte da fortuna continua no fundo do mar de algum ponto dos baixios das Bahamas, à espera do sortudo que, finalmente, responda a pergunta que intriga há mais de três séculos: Onde está a popa do Maravillas?

JORGE DE SOUZA É AUTOR DO LIVRO HISTÓRIAS DO MAR – 200 CASOS VERÍDICOS DE FAÇANHAS, DRAMAS, AVENTURAS E ODISSEIAS NOS OCEANOS, DO QUAL ESTA HISTÓRIA FAZ PARTE. VENDAS E INFORMAÇÕES: WWW.HISTORIASDOMAR.COM

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AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

O galeão armou uma confusão que gerou o próprio naufrágio e um mistério que já dura três séculos


ENTREVISTA

VIDA JUDAICA

RABINO RESGATA A CULTURA ENTRE OS DESCENDENTES DOS JUDEUS QUE FORAM CONVERTIDOS À FORÇA POR TAINÁ GOULART

O

carisma é o cartão de visitas do rabino Gilberto Ventura. E sua fala, cheia de euforia, se entusiasma ainda mais quando resolve explicar seu projeto Sinagoga sem Fronteiras. Trata-se de um movimento que resgata as comunidades brasileiras dos Bnei Anussim: os descendentes dos judeus que foram convertidos à força pela Inquisição – “a mãe do nazismo”, segundo ele. Após 80 anos do início da Segunda Guerra Mundial, e diante de antissemitismos que perduram entre nós, o rabino Ventura roda o Brasil com sua missão: a de resgatar, mas também a de promover a cultura judaica no mundo atual. “E por que não acolher e ensinar outras pessoas?”, diz.

FOTO DIVULGAÇÃO

Você teve algum parente que passou pelo Holocausto? Sim. Uma trisavó minha, Hudla Pintchowsky, que foi assassinada em Treblinka. E uma de suas sobrinhas foi deixada num convento pelos pais, para ser protegida, e conseguiu sobreviver. Minha família materna é da Polônia e eu cresci ouvindo essas histórias. Como você enxerga o antissemitismo e as ideologias extremistas de hoje? Trabalho na perspectiva de promover o judaísmo e não combater o antissemitismo. Criei meu projeto justamente para mostrar como o judaísmo

pode ser uma cultura inclusiva e respeitosa. E como é possível construir um futuro melhor com a mudança das relações de agora, sem nenhum estereótipo. De que forma seu projeto funciona? Uso as mídias sociais para divulgar o judaísmo ortodoxo, nossas tradições, fazer rezas, ensinar hebraico... Tudo está lá para quem quiser ver. Além disso, eu e minha mulher, Jacqueline, viajamos Brasil afora em busca dos Bnei Anussim. E já encontramos comunidades do sertão nordestino que mantinham costumes judeus e não sabiam.

Nosso papel é orientar judeus e não judeus que querem conhecer a cultura, porém, de um modo mais acessível e contemporâneo. E este novo olhar já sofreu (ou sofre) alguma resistência na comunidade em que vive? Sim, infelizmente. Mas também tenho apoio de muitas autoridades do nosso meio e fora dele. Certa vez, me deparei com cartazes de neonazistas no centro de São Paulo e resolvi tirar satisfações dos autores. Um deles descobriu meu telefone e começou a fazer ameaças. Eis que recebi muito apoio e mensagens de paz das comunidades que frequento na região, como o Capão Redondo. Percebi também que meu trabalho é respeitado em diferentes esferas da sociedade – especialmente por estar presente nelas, realizando ações sociais. Esse é o caminho, pois só se combatem as trevas com a luz.

“Já encontrei comunidades no sertão brasileiro que mantinham costumes judeus e não sabiam”

GILBERTO VENTURA É RABINO FUNDADOR DO PROJETO NACIONAL “SINAGOGA SEM FRONTEIRAS” E PRESIDENTE DO MOVIMENTO “REUNINDO OS DISPERSOS DE ISRAEL” NO BRASIL, UMA INICIATIVA COM SEDE EM ISRAEL E NOS ESTADOS UNIDOS QUE DÁ APOIO ÀS PESSOAS QUE BUSCAM A CULTURA JUDAICA.

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MEMÓRIA

INTENSA MARILYN

FOTO BARON / STRINGER / GETTY IMAGES

POR TRÁS DA ALEGRIA E DO GLAMOUR DE MARILYN MONROE, TAMBÉM HAVIA UMA MULHER FRÁGIL E SEMPRE VERDADEIRA. NORMA JEANE MORTENSON, SEU NOME DE NASCIMENTO, VIVEU O MELHOR E O PIOR DA INDÚSTRIA HOLLYWOODIANA. FOI ENCONTRADA SEM VIDA NO DIA 6 DE AGOSTO DE 1962, AOS 36 ANOS DE IDADE.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


PRA VER SENTIR EMOCIONAR IR E VOLTAR ONDE QUISER



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