Aventuras Na História - Edição 196

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EDIÇÃO 196 | SETEMBRO/2019

COMO O ISLÃ UNIU ESCRAVOS CONTRA A OPRESSÃO NA BAHIA HARAPPA: A PRIMEIRA CIVILIZAÇÃO DA ÍNDIA É UMA DAS MAIORES DA ANTIGUIDADE A MILENAR MISSÃO HUMANITÁRIA DOS CAVALEIROS DE MALTA

FREUD E AS MULHERES

O LEGADO DO AUSTRÍACO QUE ABRIU AS PORTAS PARA UM DEBATE QUE PERSISTE ATÉ HOJE: PSICANÁLISE E FEMINISMO



SUMÁRIO

30 CAPA: DE UM LADO, FREUD SE REVELOU UM ARQUÉTIPO MACHISTA. DO OUTRO, FOI UM LIBERTADOR DA ALMA FEMININA...

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GALERIA Terra Nova: expedição britânica à Antártida

HOJE NA HISTÓRIA Aconteceu em setembro

14 ILUSTRADA

Detalhes do primeiro submarino nuclear

18 ARTE

O Grito, a primeira obra expressionista

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DÚVIDA CRUEL O que significa Ku Klux Klan?

21 DITO E FEITO

A origem do termo “Agora, Inês é morta”

22 FAZÍAMOS 16 COMO SEM MEMÓRIA 58 À MESA 17

LINHA DO TEMPO Os principais passos para o 11 de Setembro

Cemitério

Brigadeiro: de onde vem o doce popular?

A troca do embaixador dos EUA por 15 presos políticos no Brasil

24 ANTIGUIDADE

Harappa: a primeira cidade da Índia foi tão desenvolvida quanto o Egito e a Mesopotâmia

40 BRASIL

A Revolta dos Malês, liderada por negros mulçumanos, uniu os escravos contra a opressão

46 ORDEM MILITAR

Uma irmandade milenar de monges-guerreiros que controla a menor nação do mundo

54 PARA ENTENDER BERLIM ORIENTAL

55 COLUNA M.R.TERCI

56 COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

57 ENTREVISTA RICARDO MIOTO


EDITORIAL

PSICANÁLISE É HISTÓRIA

DIRETOR-SUPERINTENDENTE Luis Fernando Maluf

S

e eu pudesse resumir psicanálise a uma única palavra, diria algo similar a mudança. Interna e externa. Algo que nos permite pensar e soltar a voz. Que nos ajuda a escolher nosso próprio rumo e seguir em frente – por mais difícil (e repressor) que o caminho seja. Sobretudo para nós, mulheres. Na virada do século 19 para o 20, num tempo em que ainda não tínhamos direito de opinar em nada, surgia em Viena a mais poderosa teoria sobre o funcionamento da mente: a psicanálise, um espaço de escuta. Seu criador, Sigmund Freud, oferecia, enfim, um lugar de fala às mulheres daquela época. Libertário? Progressista? Sim, mas nem tanto. Freud também foi um homem conservador (para não dizer misógino). Revelou-se um arquétipo machista típico da burguesia vienense de cem anos atrás e assumiu um paradoxo complexo que é estudado até hoje por historiadores e psicanalistas. É sobre isso que nos debruçamos na matéria de capa desta edição, assinada por Alexandre Carvalho. E a escolha do colaborador, mais uma vez, não foi à toa. Há dois anos, ele lançou o livro Freud – Para Entender de uma Vez, cuja obra tem um capítulo todo dedicado às contradições entre o pai da psicanálise e as mulheres. Um debate feminista que atravessou o século – em justa causa.

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Erramos: na última edição (195), página 12, é dito que, em 1682, Luís XVI escolheu o Palácio de Versalhes para viver. Trata-se, na verdade de Luís XIV.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 196 ISSN (1806-2415), ano 16, nº 8, é uma publicação mensal da Editora Caras. Edições anteriores: Solicite ao seu jornaleiro pelo preço da última edição em bancas, mais despesa de remessa; sujeito a disponibilidade de estoque. Distribuída em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. AVENTURAS NA HISTÓRIA não admite publicidade redacional A Editora CARAS informa que não realiza cobrança telefônica de débitos pendentes e não aplica qualquer tipo de multa em virtude de cancelamento de assinatura. Todos os nossos boletos são emitidos através do banco Santander, com cedente Editora CARAS SA. Em caso de dúvida, ligue para nós. PARA ASSINAR OU RESOLVER OS ASSUNTOS RELATIVOS À SUA ASSINATURA, ACESSE: www.assineclube.com.br/faleconosco SE PREFERIR LIGUE: São Paulo: (11) 3512-9479 Rio de Janeiro: (21) 4063-6989 Belo Horizonte: (31) 4063-8156 Segunda a sexta-feira das 9h às 18h IMPRESSA NA COAN INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA. Avenida Tancredo Neves, 300 Tubarão - SC - Brasil

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GALERIA

HÁ MAIS DE 100 ANOS, UM GRUPO DESTEMIDO DE EXPLORADORES E CIENTISTAS PARTIU DA INGLATERRA RUMO À ANTÁRTIDA. O OBJETIVO PRINCIPAL: SER A PRIMEIRA EXPEDIÇÃO A ATINGIR O POLO SUL. MAS DEU (QUASE) TUDO ERRADO POR ALEXANDRE CARVALHO


AVENTURAS NA HISTÓRIA

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GALERIA

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O PREÇO DA GLÓRIA

CAVALOS E CACHORROS

Terceira exploração britânica a se aventurar pela Antártida, entre 1910 e 1913, a Expedição Terra Nova acabou se tornando uma tragédia escrita no gelo, de confronto entre a força da natureza e os limites do corpo humano. A jornada tinha, além de metas científicas, um objetivo maior: entrar para a História. O capitão Robert Falcon Scott deveria ser o primeiro a chegar ao Polo Sul. De fato, ele e mais quatro aventureiros conseguiram vencer as intempéries e atingir o ponto mais meridional da Terra em janeiro de 1912. Seria uma conquista gloriosa não fosse por dois motivos: uma vez no polo, Scott descobriu que outra expedição, do norueguês Roald Amundsen, tinha chegado primeiro. E também porque o capitão e seus companheiros morreram, de fome e de frio, tentando voltar à base.

Em janeiro de 2011, o navio da expedição chegou à região de Ross Dependency, parte do continente gelado ao sul da Nova Zelândia, área dominada por uma gigante plataforma branca, conhecida como “Grande Barreira de Gelo”. Foi na borda dessa plataforma que os homens desembarcaram cães, trenós motorizados, pôneis e até uma cabana de madeira pré-fabricada. Mas a escolha pelos cavalos não foi das mais brilhantes: usados para o transporte de mantimentos pesados naquele ambiente inóspito, eles morriam de exaustão. Dois foram vítimas de orcas quando flutuaram em um bloco de gelo. Os trenós motorizados também não resistiram ao frio: logo pifaram, deixando os aventureiros em apuros. A solução, no fim das contas, foi fazer com que os cães puxassem os trenós.

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DOIS DESTINOS

VITÓRIA DA CIÊNCIA

Dos dois homens acima, só um sobreviveu à Terra Nova: o fotógrafo Herbert Ponting, autor da bela foto da gruta de gelo à direita, com o navio ao fundo. Um senhor de meia-idade, Ponting não participaria da viagem rumo ao polo, permanecendo na costa e voltando à civilização. Ficou conhecido como o grande fotógrafo da época heroica das explorações nesse continente. Já o capitão Scott, à esquerda, viu dois de seus companheiros de conquista do Polo Sul perecerem – de queimaduras de frio, gangrena e cansaço – antes que ele mesmo fizesse uma última anotação em seu diário: “O fim não pode estar distante. É uma pena, mas acho que não consigo escrever mais”. Scott e dois homens estavam encurralados por uma nevasca. Morreram a 17 quilômetros de um grande depósito de suprimentos.

Os aventureiros à direita são o geólogo Thomas Griffith Taylor e o meteorologista Charles Wright. Doze estudiosos participaram da expedição que, apesar de famosa pelas mortes do grupo que foi ao Polo Sul, realizou feitos científicos notáveis. Dos 2.100 animais, plantas e fósseis que a Terra Nova levou para a Inglaterra, 400 eram novidade para a ciência. Quando os corpos do capitão Scott e seus companheiros foram encontrados, eles traziam consigo fósseis antárticos de Glossopteris, um tipo pré-histórico de samambaia. Uma planta encontrada também em lugares muito mais quentes, como a Índia e a África. A descoberta revelou que a Antártida já teve calor suficiente para abrigar árvores. E mais: que já foi unida a outros continentes da Terra. A morte dos expedicionários não foi em vão.

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FOTOS HERBERT PONTING/UNIVERSITY OF CAMBRIDGE/GETTY IMAGES

GALERIA



HOJE NA HISTÓRIA

ACONTECEU EM SETEMBRO Nasce Tarsila do Amaral, artista 1886 da primeira fase do modernismo no Brasil. Dá início ao movimento antropofágico com o quadro Abaporu ("homem que come carne humana", em tupi-guarani).

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A China entra em atrito com a 1839 Inglaterra depois de queimar caixas de ópio como represália ao comércio do produto em suas fronteiras. É o início da Guerra do Ópio, que dura três anos.

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O Congresso Continental 1776 americano declara que o novo país independente da Inglaterra em julho do mesmo ano passa a se chamar Estados Unidos da América.

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O imperador romano Tito 81 Flávio, que inaugurou o Coliseu, morre de forma repentina. Seu irmão e sucessor, Domiciano, que o hostilizava, teria envenenado o soberano. 12

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Começo do maior incêndio de 1666 Londres, que destrói cerca de 13 mil edifícios, quase dois terços da cidade. Na época, a maioria das construções da capital inglesa é de madeira.

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O Marquês de Pombal proíbe 1759 a presença dos jesuítas no reino e em colônias de Portugal (como o Brasil). Os bens dos religiosos são confiscados e os colégios e missões, fechados.

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Inventor do filme de rolo, o norte1888 -americano George Eastman registra a marca Kodak. Ele foi o responsável por aproximar a fotografia das massas. Logo depois disso, muitas concorrentes surgiram.

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Escrita pelo poeta, crítico e ensaísta 1922 Joaquim Osório Duque Estrada, em 1909, a letra do Hino Nacional Brasileiro é oficializada por um decreto assinado pelo então presidente Epitácio Pessoa.

Na exposição comemorativa do 1922 primeiro centenário da Independência do Brasil, é realizada a primeira transmissão radiofônica do país, com transmissor instalado no alto do Corcovado.

É fundada a cidade de São 1612 Luís, no Maranhão. É a única cidade brasileira criada por franceses. Logo após, ela é invadida por holandeses e, então, colonizada por portugueses.

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É lançada a Gazeta do Rio de 1808 Janeiro, primeiro jornal impresso do Brasil. A pauta ainda se limita a distribuir comunicados oficiais do governo para o público em geral. Mas é o início da imprensa no país.

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Morre, na cidade de Ravena, na 1321 Itália, Dante Alighieri. Considerado o primeiro grande poeta da literatura do país, ele falece enquanto escreve o final de A Divina Comédia, sua obra-prima.

No Chile, Augusto Pinochet 1973 comanda um golpe de Estado contra o presidente socialista Salvador Allende. A ditadura dura até 1990, tendo matado mais de 3 mil opositores.

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Nasce Agatha Christie, 1890 escritora inglesa de romances policiais, como Morte no Nilo. Suas obras venderam 4 bilhões de exemplares, perdendo só para as de Shakespeare e a Bíblia.

Depois de oito anos em obras, 1911 o Theatro Municipal de São Paulo, um dos mais belos cartões-postais da cidade, é inaugurado com a peça Hamlet, tragédia de William Shakespeare.

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Morre o padre católico Tomás 1498 de Torquemada, principal organizador da Inquisição espanhola. Acredita-se que, durante sua gestão, perto de 2 mil pessoas tenham morrido na fogueira.

IMAGEM ACERVO MUSEU PAULISTA (USP)

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O astrônomo alemão Johann 1846 Galle e seu assistente Heinrich Louis d’Arrest descobrem, durante pesquisas no Observatório de Berlim, o planeta Netuno, o oitavo a partir do Sol.

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Após a vitória na Batalha de Kabuls, 1996 talibãs declaram o Emirado Islâmico do Afeganistão. O regime, de extremismo religioso, proíbe as mulheres de trabalhar e fecha escolas para meninas.

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Dom Pedro I, imperador do 1834 Brasil, morre na cidade portuguesa de Queluz. Ele, que abdicou do trono brasileiro em 1831, para conter uma revolução em Portugal, sucumbe à tuberculose.

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Pompeu, O Grande, líder 48 a.C. da República romana, é assassinado no Egito a mando do rei Ptolomeu. Ele fugiu para lá depois da derrota para Júlio César na Batalha de Farsália, no mesmo ano.

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O holandês Antonie Van 1683 Leeuwenhoek é o primeiro cientista da história a observar e descrever bactérias e protozoários (usando um microscópio que ele mesmo construiu).

Vasco da Gama regressa à 1499 Portugal com a notícia de que podia se chegar à Índia pelo oceano. Ele leva de volta à Europa somente 55 dos 170 homens que partiram na expedição.

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Os irmãos Montgolfier 1783 lançam ao ar o primeiro balão com criaturas vivas. Esse lançamento é feito diante do rei Luis XVI. Os passageiros: uma ovelha, um galo e um pato.

Tem início a Guerra dos 1835 Farrapos, a rebelião mais longa do período regencial. O conflito dura cerca de dez anos, quando parte do sul do Brasil se declara independente.

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Morre o poeta romano Virgílio. 19 a.C. Sua obra mais famosa é Eneida, um poema em 12 volumes que relata as andanças do herói Eneias após a queda de Troia, a quem foi dada a missão de fundar Roma.

Durante a Guerra de Secessão nos 1862 EUA, o presidente Abraham Lincoln determina liberdade aos escravos dos Estados Confederados da América. É a Proclamação da Emancipação.

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Liderando expedição com 1513 190 espanhóis e centenas de índios pelas montanhas, o explorador espanhol Vasco Núñez de Balboa é o primeiro europeu a avistar o Oceano Pacífico.

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A personagem Mafalda aparece 1964 pela primeira vez em um jornal argentino. A ideia vem de uma encomenda: o cartunista Quino a imagina para um anúncio de eletrodoméstico, que é recusado.

O líder cubano Fidel Castro 1960 critica duramente os Estados Unidos em Assembleia Geral das Nações Unidas, e anuncia apoio de Cuba à URSS, aumentando a tensão da Guerra Fria.

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Henrique IV, da Casa de 1399 Lancaster, toma o trono inglês depois de iniciar uma revolta e depor seu próprio primo, o monarca Ricardo II, a quem apoiou nos primeiros anos de reinado. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ILUSTRADA

USS NAUTILUS O PRIMEIRO SUBMARINO NUCLEAR ERA DE ATAQUE, EMBORA NUNCA TENHA ATACADO DE VERDADE POR FLÁVIA SOUTO MAIOR

O

INFOGRÁFICO RONALDO LOPES, BERNARDO BORGES, CLÁUDIA DE CASTRO LIMA, DÉBORA BIANCHI E JOSI CAMPOS

USS Nautilus foi uma importante revolução tecnológica. Primeiro submarino de propulsão nuclear da história – lançado ao mar pelos Estados Unidos em 21 de janeiro de 1954 –, o Nautilus tinha características fundamentais para lidar com a realidade pósSegunda Guerra. Até então, os submergíveis possuíam pouca autonomia sob as águas – precisavam emergir constantemente para abastecer e repor oxigênio, o que os tornavam vulneráveis a possíveis ataques. Já o Nautilus

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

podia operar durante anos sem reabastecimento, produzia seu ar e água potável e tinha autonomia para permanecer submerso por muito mais tempo que os submarinos a diesel. Numa época em que a disputa tecnológica valia mais do que o conflito armado direto, os americanos comemoraram a façanha de serem os primeiros a cruzar o Polo Norte por baixo da água sem voltar à superfície uma única vez. Em 1979, o USS Nautilus foi desativado e, três anos depois, se tornou museu.

VELOZ E FURIOSO

HOMENS AO MAR

O USS Nautilus alcançava 20 nós (cerca de 35 km/h), enquanto os antecessores a diesel navegavam, em média, a 8 nós (14 km/h). Por isso – e por ficarem muito tempo submersos – era quase invisível aos radares soviéticos, fator decisivo quando a espionagem era a principal arma entre os países rivais.

O submarino comportava uma tripulação de pouco mais de 100 pessoas, que se organizava em turnos de trabalho de seis horas por dia. Apesar de maior que outros submergíveis, o espaço interno não podia ser subutilizado. Apenas o comandante possuía aposentos individuais. Os demais tripulantes dormiam em beliches presos às paredes, distribuídos em algumas áreas do submarino.


HÁ VIDA LÁ FORA Era da sala do periscópio que o oficial responsável pelo comando das salas de ataque e controle ficava de guarda e dava suas ordens. Os dois periscópios eram os “olhos” do submarino e permitiam à tripulação avistar objetos na superfície quando o veículo estava submerso. Não à toa, pertinho deles ficavam os controles para acionar os torpedos.

HORA DO RECREIO

PRONTO PARA ATACAR

As condições de vida dentro do submarino não eram fáceis – durante meses, não havia nenhum contato da tripulação com o mundo exterior. Como forma de compensação, a comida oferecida a bordo era a melhor de todo o Exército. Refeições eram servidas a cada troca de turno, mas a qualquer hora era permitido saborear um sorvete geladinho, direto da máquina que ficava no refeitório, a maior área do submarino.

Embora a Guerra Fria não tenha sido marcada por combates armados, o USS Nautilus foi concebido como um submarino de ataque. Ele dispunha de uma sala de torpedos com espaço para 24 MK-48 e seis lançadores. Havia também salas de controle (onde estavam os instrumentos para submergir, emergir e manobrar o veículo) e de ataque, além de equipamentos de radar para detectar sinais inimigos.

SALA DE CONTROLE

A INSPIRAÇÃO ESPAÇOSO E ECONÔMICO O reator nuclear era bem menor que o tanque de combustível, liberando espaço para acomodar mais gente e mantimentos. Com menos de meio quilo de urânio, o Nautilus navegava por dois anos – outro submarino utilizaria 9 milhões de litros de diesel para operar pelo mesmo tempo.

O nome do submarino USS Nautilus foi uma homenagem a um outro submergível, criado pelo escritor Julio Verne em seu clássico Vinte Mil Léguas Submarinas. Em 1869, Verne imaginou um submarino que utilizava uma fonte de energia quase inesgotável, comandada pelo capitão Nemo. O livro virou um filme, feito pelos estúdios Disney, lançado em 1954. O Nautilus de Julio Verne era bastante sofisticado: tinha um salão de 10 metros com órgão, coleção de arte valiosa e fonte, além de uma biblioteca que contava com 12 mil volumes.

AVENTURAS NA HISTÓRIA

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COMO FAZÍAMOS SEM

CEMITÉRIO

ENQUANTO AS PESSOAS REZAVAM NA IGREJA, UM CERTO CHEIRO DE DEFUNTO APARECIA. E NÃO ERA À TOA... POR LÍVIA LOMBARDO

A

dentro de uma caverna, com 14 metros de profundidade – provavelmente para garantir que ficassem a salvo de animais carniceiros. A partir daí, cada civilização passou a enterrar seus mortos conforme a cultura e a religião. Os egípcios, por exemplo, mumificavam os faraós e os enterravam com pompas em pirâmides. Falecidos do povão eram colocados em um buraco no chão e cobertos com um manto de fibra natural. Os celtas, por volta de 1200 a.C., faziam grandes túmulos de terra para colocar os finados. E, mais tarde, entre os séculos 11 e 8 a.C., passaram a incinerá-los, guardando as cinzas em uma urna. Ainda na Antiguidade, na Índia, os defuntos eram incinerados em piras – e, por vezes, a viúva do morto era queimada também. Atualmente, quando algum ente querido morre, é costume que os familiares organizem cerimônias fúnebres para honrar o falecido. Mas nem sempre foi assim. Na Antiguidade, o medo era a principal razão dos ritos. Acreditava-se que, se a cerimônia agradasse ao morto, ele entraria no paraíso. Mas, se o defunto não gostasse dela, se vingaria mantendo-se entre os vivos e não descansaria em paz. Por causa do temor, as cerimônias deram origem às pompas fúnebres, que seguem até hoje.

IMAGENS GETTY IMAGES

vida sem cemitério não era, digamos, muito salubre. Nós, por exemplo, rezávamos em cima dos cadáveres. É sério. Até meados do século 19, o costume era enterrar os mortos dentro das igrejas. E na maior parte das vezes, nem caixão era usado. Os corpos eram sepultados na terra suja e repleta de ossos de defuntos antigos. Não é difícil imaginar a quantidade de doenças que a prática ocasionava. Segundo Francisco de Assis Vieira Bueno, em Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX, um ar maléfico enchia as igrejas e expunha as mulheres, que ficavam horas sentadas lá dentro, a todo tipo de infecção. São Paulo só acabou com esse hábito nada higiênico em 1850, quando a Câmara decidiu que a cidade deveria construir um cemitério. Na Europa, já havia locais próprios para enterrar os defuntos no século 16. O cemitério dos ricos ficava próximo das igrejas. O dos pobres era uma vala comum, afastado. Mas muito tempo antes de existirem igrejas o homem já tinha o costume de enterrar seus mortos. O primeiro rito funerário de que se tem notícia aconteceu há 300 mil anos, na atual Espanha – foi quando o homem tomou conhecimento da inevitabilidade da morte. O rito, coletivo, enterrou 32 corpos em um poço

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


À MESA

BRIGADEIRO

O SUCESSO DE UM MILITAR DA AERONÁUTICA COM AS MULHERES DEU ORIGEM AO DOCE MAIS POPULAR DO PAÍS POR ALEXANDRE CARVALHO

IMAGENS GETTY IMAGES

V

ote no brigadeiro, que é bonito e solteiro.” Realmente, a fama do aviador e político Eduardo Gomes (1896-1981) era de galã. Mas sua popularidade vinha também de ser bom de briga. Participou de rebeliões tenentistas, como a Revolta do Forte de Copacabana (1922) e a Revolta Paulista (1924), chegando a ser preso quando estava em vias de se juntar à lendária Coluna Prestes. Participaria até, 40 anos depois, das ações que vieram a depor João Goulart. Mas o pedido de voto acima é de 1945, época em que, promovido a brigadeiro com a criação do Ministério da Aeronáutica, Gomes entusiasmou-se com a própria notoriedade e se candidatou à presidência da República. Na época, suas apoiadoras decidiram organizar festas para angariar fundos para a campanha presidencial. E foi então que surgiu a ideia de criar um doce novo para esses eventos, uma guloseima que se tornasse uma marca da ascensão do militar ao cargo mais importante do Brasil. Os tempos eram de pós-guerra, e o país passava por escas-

sez de alguns produtos essenciais. Para doces, leite fresco fazia falta. Então veio a ideia de usar um substituto extremamente popular no período: o leite condensado, uma invenção para esterilizar a pré-refrigeração do leite. A Nestlé havia passado a comercializar o produto no Brasil justamente naquela década de 1940, assim como outra delícia que logo virou um hit entre as sobremesas locais: o chocolate em pó. Foi Heloísa Nabuco de Oliveira, proveniente de uma tradicional família carioca, que apoiava Eduardo Gomes, quem juntou os ingredientes, mais manteiga e açúcar, e encheu os eventos da campanha do aviador (hoje patrono da Força Aérea Brasileira) com o quitute, conhecido na época como o “doce do brigadeiro”. A delícia logo teve o nome encurtado e se tornou presença obrigatória em qualquer Parabéns a Você, conquistando de vez o Brasil. Um sucesso que não se estendeu ao brigadeiro-homem: Gomes perdeu a eleição para Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra de Getúlio Vargas. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ARTE

O GRITO

PRIMEIRA OBRA EXPRESSIONISTA DA HISTÓRIA SURGIU DE UM ATAQUE DE ANSIEDADE DO ARTISTA POR IZABEL DUVA RAPOPORT

E

m 1863, nascia o pintor norueguês Edvard Munch. No mesmo ano em que O Piquenique no Bosque, de Édouard Manet, era exposto no Salão dos Rejeitados, chamando a atenção para um movimento que ainda estava surgindo: o impressionismo. A principal proposta do novo estilo era quebrar com as técnicas convencionais do realismo, deixando-as para a fotografia, e trazer justamente o que ela não podia mostrar: as sensações. No entanto, Munch (que também era fotógrafo) achava a linguagem dos impressionistas superficial e científica, discreta demais para expressar tudo o que sentia. E não era pouco, considerando a trágica história da família: o norueguês perdeu a mãe e a irmã mais velha ainda na infância e a irmã caçula passou a vida em asilos psiquiátricos. Tornou-se artista sob forte oposição do pai, que morreu quando Munch tinha 25 anos, deixando-o na pobreza. Além disso, sempre viveu na boemia, entre bebedeiras, brigas e romances passageiros, tornando-se amigo do filósofo niilista Hans Jaeger, que acreditava que o suicídio era a forma máxima da libertação. Fruto de suas obsessões, O Grito não foi sua primeira tela, mas a que o tornaria célebre. Sua inspiração, ao que tudo indica, veio de um ataque de pânico, que ele escreveu em seu diário um ano antes do quadro: “Estava andando por um caminho com dois amigos – o sol estava se pondo – quando, de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Eu parei, sentindo-me exausto, e me encostei na cerca – havia sangue e línguas de fogo sobre o fiorde azul-negro e a cidade. Meus amigos continuaram andando, e eu fiquei lá, tremendo de ansiedade – e senti um grito infinito atravessando a natureza”. Ali nasceria um novo movimento artístico: O Grito seria a obra fundadora do expressionismo, a principal vanguarda artística alemã dos anos 1910 aos 1930.

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Edvard Munch produziu quatro versões deste quadro, entre 1893 e 1910. A retratada aqui é a de 1893, mas não a primeira. A versão em giz-pastel no Museu Munch, bem mais simples, foi feita poucos meses antes. Há também dezenas de litogravuras em preto e branco, impressas pelo artista nos anos 1890.

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Os dois homens que caminham na ponte parecem indiferentes ao desespero da figura central (isso se revela porque não aparecem distorcidos). Estes são os dois amigos de Munch que o acompanhavam e que o deixaram para trás, sem perceber o que acontecia.

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Assim como os dois homens ao fundo, a estrada não é distorcida, dando um contraste entre o desespero do pintor e a indiferença da realidade externa. O local foi identificado como a Estrada Valhallveien, que passa pela Colina Ekberg, na região sul de Oslo.

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Na capital norueguesa, as condições climáticas às vezes fazem o céu ficar vermelho. Mas existe uma explicação ainda mais curiosa: em 1883 e 1884, a explosão do vulcão Krakatoa, na Indonésia, fez o pôr do sol ficar vermelho por meses na Europa inteira. Ainda que o quadro tenha sido feito anos depois, a memória pode ter servido de inspiração.

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Outro contraste na figura é dado pela tranquilidade dos barquinhos no fiorde de Oslo. A estrada é uma atração turística com vista para um dos pontos recreativos mais aprazíveis da capital norueguesa.

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Os gritos podem ter sido literais. Em Ekeberg havia dois prédios sombrios: o matadouro principal de Oslo e o asilo psiquiátrico (onde a irmã do artista ficou internada por anos). De lá, se ouviam os gritos dos animais e também dos pacientes com transtornos mentais.

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A figura central da obra curva com a distorção da paisagem. Não é um autorretrato. Segundo especialistas, a inspiração pode ser uma múmia peruana, de um guerreiro chachapoya, exibida na Exposição Universal de Paris em 1889. Ela foi enterrada em posição fetal, com as mãos no crânio, sugerindo um grito.

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O Grito (Skrik) Autor: Edvard Munch Data: 1893 Tamanho: 91 x 73,5 cm Técnica: óleo, têmpera, pastel e giz de cera sobre papelão Local: Galeria Nacional, Oslo, Noruega


DÚVIDA CRUEL

O QUE SIGNIFICA KU KLUX KLAN?

Bill Wilkinson, fundador e “Mago Imperial” da Ku Klux Klan de Baton Rouge, capital da Louisiana, nos Estados Unidos. O ano era 1977

N

uma madrugada fria de 1866, seis oficiais do antigo Exército Confederado do sul dos Estados Unidos fundaram um clube social em Pulaski, no Tennessee. Vestiram lençóis brancos e saíram de casa para perseguir e assustar os negros que viviam nas fazendas locais. Era o início da Ku Klux Klan, uma sociedade secreta que nasceu como um subproduto da Guerra Civil Americana (1861-1865), iniciada pelos estados do sul do país, inconformados com o fim da escravidão. A luta terminou com a vitória da União sobre os insurgentes. Em um ano, o sexteto virou uma organização com mais de meio milhão de pessoas que viviam nas redondezas, e a perseguição aos negros, cada vez mais violentas, foram ganhando força e motivação política. O objetivo era claro: impedir a ascensão social dos escravos recém-libertos, como queriam os estados do norte – lá, os negros já tinham alguns direitos, como o de votar, por exemplo. E o crescimento da Klan era uma reação de ódio ao projeto do governo chamado Reconstrução, que integraria a população negra à sociedade. Esse rancor, aliás, está no nome:

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

“Ku Klux” vem da palavra grega kyklos, que significa círculo e representa unidade. “Klan” foi acrescentado porque, além de melhorar a sonoridade do nome, remetia aos tradicionais clãs familiares da região, confirmando a segregação. Por quase duas décadas, esta comunidade de supremacia branca aterrorizou os negros, cometendo atrocidades e atos covardes como atear fogo a casas e promover espancamentos que, não raro, terminavam em morte. Até que, em 1882, a Suprema Corte do país declarou a associação ilegal. No entanto, ela continuou clandestina e, em 1915, ressurgiu com toda força no estado da Georgia, com alvos ampliados: judeus, católicos e imigrantes também eram perseguidos. E agora, além da bata e do capuz triangular, uma cruz em chamas tornava-se símbolo da organização, que chegou a ter 4 milhões de associados. Após a Grande Depressão de 1929, o grupo perdeu força novamente, mas voltou à tona em 1960 para combater movimentos que pregavam a igualdade racial. Hoje, vem perdendo adeptos para grupos neonazistas, mas mantém seu status como a pioneira do supremacismo branco.

FOTO MICHAEL BRENNAN/GETTY IMAGE

GRUPO RACISTA SURGIU COMO SUBPRODUTO DA GUERRA CIVIL DOS EUA E CHEGOU A 4 MILHÕES DE ADEPTOS POR IZABEL DUVA RAPOPORT


DITO E FEITO

AGORA, INÊS É MORTA

A EXPRESSÃO VEM DA TRÁGICA HISTÓRIA DA RAINHA-CADÁVER DE PORTUGAL POR CELSO MIRANDA

H

oje, quando queremos dizer que uma situação é irreversível referimo-nos ao triste destino de Inês. Sua história é a de um amor impossível, como foi o de Romeu e Julieta, mas a diferença é que Inês existiu de verdade: ela e Pedro viveram no século 14. Oitavo rei de Portugal, Pedro reinou de 1357 a 1367. Quando era príncipe, em 1340, ele se casou com Constança, princesa de Castela, num acordo político comum na época. Porém, Pedro e Inês, dama de companhia de Constança, mantiveram um romance por anos e chegaram a ter quatro filhos. “Não eram raros os casos de adultério de reis e nobres”, afirmou o historiador Jaime Corrêa, da Universidade de Lisboa. “O romance, no entanto, nunca contou com o apoio do pai de Pedro, Afonso IV, e do clero, os fiadores do acordo entre Castela e Portugal.” Após a morte de dona Constança, porém, a ligação entre o casal se tornou mais estreita e a nobreza passou a temer que um dos filhos de Inês reivindicasse o trono. Em 1355, essa tensão alcançou o ponto máximo e, aproveitando que Pedro estava caçando, o rei Afonso ordenou a morte de Inês. Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco executaram a sentença, cortando-lhe a garganta. Quando recebeu a notícia, Pedro avançou em direção à cidade do Porto, pretendendo enfrentar o próprio pai. Mas, por fim,

A Coroação de Inês de Castro em 1361 (1849), por Pierre-Charles Comte

foi demovido da ideia pela mãe, dona Beatriz, e pelo seu primo, o bispo de Braga. Resignado, teria dito: “Agora, Inês é morta”. Assim que se tornou rei, no entanto, Pedro mandou prender os assassinos. Pacheco escapou para a França, mas Coelho e Gonçalves foram capturados em Castela e depois torturados (ambos tiveram o coração arrancado) na presença do rei. A segunda providência foi ainda mais macabra. Alegando ter se casado com Inês às escondidas, Pedro fez com que ela fosse coroada rainha. Seu corpo foi desenterrado e colocado no trono. E, durante a cerimônia, Pedro teria ordenado que toda a nobreza e membros do clero presentes ajoelhassem diante do cadáver e beijassem os ossos da mão de Inês. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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LINHA DO TEMPO

TRAGÉDIA ANUNCIADA

É DIFÍCIL ACREDITAR, MAS AS RELAÇÕES DO LÍDER DA AL-QAEDA COM OS ESTADOS UNIDOS JÁ FORAM DE COOPERAÇÃO. CONFIRA OS DEZ PRINCIPAIS PASSOS PARA O 11 DE SETEMBRO POR ÁLVARO SILVA

1979

1985

1989

1990

1992

GUERRILHAS

TRÁFICO DE ÓPIO

AL-QAEDA

ARÁBIA

Os soviéticos desistem da luta dez anos depois do início do conflito. O Afeganistão, porém, continua em guerra. Ao norte, os comunistas pró-URSS tomam Cabul. Entre os rebeldes, a situação é tensa. O milionário saudita Osama Bin Laden, pupilo de Abdullah Azzan, ordena um atentado contra seu mestre e torna-se o líder dos guerrilheiros. Ele incrementa a Al-Qaeda, criada em 1987.

SAUDITA

PRIMEIRA VEZ

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O mundo está dividido entre americanos e soviéticos. Abalados pela derrota no Vietnã, em 1975, os Estados Unidos querem o fracasso da União Soviética. E passam a investir nas guerrilhas do Afeganistão, que lutam para libertar o país do domínio vermelho. A CIA e o Paquistão financiam os rebeldes. E dólares são usados para recrutar militantes árabes mundo afora. 22

AVENTURAS NA HISTÓRIA

O sheik Abdullah Azzan, líder dos afegãos, recebe donativos dos americanos. Parte do dinheiro é usado no tráfico de ópio e heroína, que tornaria os terroristas livres economicamente. Bem armados, os rebeldes assustam Benazir Buttho, presidente do Paquistão. Ele alerta o governo americano sobre a “criação de um monstro”.

O Iraque invade o Kuwait. Bin Laden volta para a Arábia Saudita e oferece seu exército para combater Saddan, caso ele ameace expandir seus domínios. Os sauditas recusam e se ligam aos americanos. Bin Laden, então, rompe com seu país natal, e a Al-Qaeda começa a conspirar. Um militante é preso no Egito com documentos que discutem a destruição de prédios nos EUA.

Expulso da Arábia Saudita em 1991, Bin Laden fixa-se no Sudão. Em dezembro, uma bomba explode num hotel no Iêmen. Dois turistas morrem. Soldados americanos estavam hospedados no local, mas haviam partido. É o primeiro ato da Al-Qaeda contra os Estados Unidos.


1993

1996

1998

2000

2001

ATAQUE AO WTC

TALEBAN

É GUERRA!

Osama Bin Laden explode as Torres de Khobar, na Arábia Saudita, onde morrem 19 soldados americanos. O Sudão expulsa Bin Laden, que volta ao Afeganistão, onde é acolhido pelo Taleban. No mesmo ano, o movimento toma Cabul e assume o país.

Bin Laden declara guerra aos Estados Unidos. E conclama o povo árabe a matar os americanos. Em 7 de agosto, atentados a embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia matam 224 pessoas. No mesmo ano, Bill Clinton autoriza a CIA a planejar o assassinato de Bin Laden. Os passos do terrorista passam, então, a ser monitorados, mas o plano de homicídio nunca foi concretizado.

MORTE NO IÊMEN

11 DE SETEMBRO

Ataque suicida contra um destroier americano, o USS Cole, mata 17 soldados no Iêmen no dia 12 de outubro. O navio estava reabastecendo no porto de Aden, sul do país, quando um pequeno barco se aproximou. O número de vítimas americanas cresce a cada ataque.

Nove membros da Al-Qaeda vivem legalmente nos EUA. Outros dez usam documentos falsos. São eles os protagonistas do ataque. Minutos antes da tragédia que matou 2997 pessoas, os terroristas assumem o controle de quatro aviões, informam aos passageiros que estão armados com bombas e desligam os localizadores das aeronaves, tornando-as invisíveis para as torres de controle.

Em 26 de fevereiro, um caminhão-bomba explode no segundo andar do estacionamento da Torre Norte do World Trade Center. É o primeiro ataque terrorista ao prédio. Seis pessoas morrem e mil ficam feridas. A explosão deixou um buraco de três andares no edifício. O ataque é atribuído ao terrorista paquistanês Ramzi Ahmed Yousef, colaborador de Bin Laden.

AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ANTIGUIDADE

Cidades PRIMEIRA CIVILIZAÇÃO DA ÍNDIA E UMA DAS MAIORES DA ANTIGUIDADE, HARAPPA FOI TÃO DESENVOLVIDA QUANTO O EGITO E A MESOPOTÂMIA. MAS SUA HISTÓRIA ESTÁ APENAS COMEÇANDO A SER DESVENDADA POR BETO GOMES

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


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vaivém de peregrinos é intenso, frenético, louco. Eles chegam aos montes, vindos de pequenos vilarejos vizinhos, nos vales ao leste do Paquistão. As ruas, tomadas por mercadores itinerantes, ganham, aos poucos, o colorido dos artistas performáticos e das trupes de circo. Músicos ajudam a entreter as multidões. Luzes e sons misturam-se. Mulheres procuram peregrinos mais experientes, para dar a eles as oferendas religiosas que serão repassadas a divindades de lugares distantes – tudo para garantir que, no futuro, seus filhos sejam saudáveis e, de preferência, do sexo masculino. À primeira vista, esse é apenas mais um ritual de cultura popular, desses que o tempo insiste em manter vivos. E é mesmo. Conhecido por sang – algo como “feira de encontro” –, é realizado até hoje nas grandes cidades do Vale do Rio Indo, perto da fronteira entre o Paquistão e a Índia. Mas esconde uma curiosidade. Remete a uma das civilizações mais desenvolvidas de toda a Antiguidade, um povo que viveu ali há milhares de

anos. Não eram egípcios nem mesopotâmios, tampouco chineses. Esse povo esquecido atingiu um surpreendente grau de desenvolvimento, comparável ao dos célebres vizinhos. A diferença é que não ficaram tão conhecidos – pelo menos nos dias de hoje –, embora tenham interagido com algumas dessas culturas avançadas. Eles eram a civilização do Vale do Indo, ou civilização harappiana, nome derivado de sua principal cidade, a capital Harappa. Por volta de 3000 a.C., numa época em que Egito, Mesopotâmia e China começavam a esbanjar desenvolvimento e a ocupar o centro do mundo, os harappianos floresciam no Vale do Rio Indo. Como as potências vizinhas, também dominavam técnicas e conhecimentos inimagináveis para aquele período da história. No seu auge, entre 2600 a.C. e 1900 a.C., espalharam-se por mais de 1500 vilas e estenderam-se por uma área duas vezes maior que o próprio Egito Antigo e a Mesopotâmia. Ergueram cidades amplas e muito bem planejadas, com sistemas de drenagem sofisticados e prédios muito comple-

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ANTIGUIDADE

ALTOS E BAIXOS NO VALE DO INDO 3300 a.C. – 2800 a.C. É a primeira fase da civilização harappiana, chamada Ravi. No começo desse período, plantam trigo, cevada e leguminosas. Técnicas de artesanato avançam e as primeiras rotas comerciais se desenvolvem, com pequenos vilarejos formando-se ao seu redor. Na mesma época, sumérios construíam os primeiros zigurates e egípcios enterravam seus mortos junto com suas riquezas em túmulos de tijolos de barro.

2800 a.C. – 2600 a.C. Período conhecido como Kot Diji. Harappa torna-se um próspero centro econômico, dando início à urbanização. Artesãos tornam suas técnicas mais especializadas e produzem peças de cerâmica esmaltada, com mais sofisticação, trabalhando com fornos em altas temperaturas. Aumenta a quantidade de matérias-primas que chegam à cidade, em carroças e barcos. Rodas feitas de terracota surgem nesse período.

2600 a.C. – 1900 a.C.

1900. a.C. – 1300 a.C.

É o apogeu da civilização do Vale do Indo, com mais de 1.500 vilas espalhadas por uma área muito maior do que a de todas as antigas civilizações juntas, com exceção da China. As rotas comerciais chegam até o Golfo Pérsico, à Ásia Central e à Mesopotâmia. Cidades amplas e bem planejadas multiplicam-se, com sistemas de drenagem e prédios sofisticados.

Uma série de fatores ocasiona a queda de Harappa. Entre os motivos estão até variações climáticas, que provocaram a seca do Rio Sarasvati. Há indícios de batalhas nos restos arqueológicos, mas pesquisadores não acreditam que a civilização tenha sido aniquilada por outros povos. A cultura em torno do Ganges assume a hegemonia.

xos. Eram artesãos habilidosos, que se destacavam principalmente por seus trabalhos com cerâmica e argila. O conhecimento avançado traçou os rumos de Harappa. Seus habitantes abriram rotas comerciais que os levaram ao Golfo Pérsico, à Ásia Central e à Mesopotâmia. Por outro lado, as cidades harappianas viraram centros de comércio do mundo antigo. O artesanato local espalhou-se, tendo sido encontrado até nos sítios arqueológicos mesopotâmios. Textos antigos dessa civilização, as inscrições cuneiformes, comprovam o contato entre as duas culturas. Falam sobre o comércio com povos originários da distante Índia. Assim como ainda acontece atualmente, naquela época os moradores dos pequenos vilarejos harappianos iam para as grandes cidades em dias de festivais para comprar, vender ou trocar produtos, participar de cerimônias e até para rever familiares.

DEMOCRACIA E RELIGIÃO Apesar de ser a maior das quatro civilizações da Antiguidade, o Vale do Indo só foi desco26

AVENTURAS NA HISTÓRIA

berto em 1920, quando arqueólogos escavaram parte das ruínas de Harappa e Mohenjo-daro, as duas maiores cidades da região, áreas que hoje correspondem às províncias paquistanesas de Punjab e Sindh, respectivamente. Mesmo assim, ainda há muito a ser escavado e, principalmente, desvendado. Questões básicas sobre esses povos continuam sem respostas. Vários sítios arqueológicos permanecem intocados, incluindo grandes cidades, e sua escrita está longe de ser decifrada. Alguns pontos, porém, são dados como certos. A semelhança entre as plantas e a arquitetura das cidades harappianas, por exemplo, mostram que o Vale do Indo mantinha uma estrutura social e econômica uniforme. A economia era baseada na produção agrícola e nas atividades comerciais. O povo era pacífico, embora possuísse armas, como lanças e espadas. Não havia reis nem teocratas – prova disso é a inexistência de palácios e templos suntuosos, mesmo nas ruínas das grandes cidades. As maiores construções eram mercados e prédios de banhos


1300 a.C. – 1000 a.C. Uma nova ordem social entra em vigor. Seguidores da religião védica, que falam línguas indo-arianas, como o sânscrito, povoam o subcontinente indiano. O urbanismo e a arte harappiana, no entanto, sobrevivem. Artesanatos continuam sendo produzidos na região do Vale do Indo, embora adaptados a novas exigências. Surgem garrafas e contas de vidro. Mais tarde, desenvolvem, paralelamente ao Ocidente, o aço.

públicos, algo tão sofisticado para a época que nem mesmo no Império Romano, 2 mil anos depois, esse tipo de facilidade chegava às classes mais baixas. “As principais edificações não são voltadas para os líderes, mas sim para a população. Isso sugere que havia um possível exercício arcaico de democracia, baseado principalmente em valores econômicos”, comenta o professor de cultura da Índia e editor do site Yogaforum, Carlos Eduardo Barbosa. Essa organização social não exclui, no entanto, a participação e a influência de líderes religiosos na sociedade. É provável que eles tenham sido a chave para manter unida uma civilização tão abrangente, que não tinha como característica usar a força para subjugar outros povos. Apesar de não haver provas arqueológicas da existência desses líderes, estudos indicam que eles formavam uma elite, que manteve a hegemonia por meio da religião e de rituais sagrados. “Isso que aconteceu mais tarde com o hinduísmo, em que milhões de pessoas permaneceram unidas não pelo uso da força, mas

da persuasão”, ponderava o epigráfico indiano Iravatham Mahadevan (1930-2018), que estudou a escrita da Civilização do Vale do Indo por mais de 40 anos. Não à toa, existem selos encontrados nos sítios arqueológicos que mostram a prática de rituais sagrados, com adorações a deuses nus, sentados em posição de ioga.

O APOGEU A cidade de Harappa viveu seu boom econômico entre os séculos 2800 a.C. e 2600 a.C. Foi nesse período que os artesãos desenvolveram técnicas avançadas de manipulação de argila e outras matérias-primas, criando tijolos simétricos de barro e objetos refinados de cerâmica cobertos por uma espécie de esmalte. A fabricação de produtos têxteis também decolou

Diversos sítios arqueológicos da região permanecem intocados. O Vale do Indo ainda trará descobertas surpreendentes AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ANTIGUIDADE

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no período. Enquanto os egípcios notabilizavam-se pela manufatura de peças de linho, os harappianos teciam com algodão. Surgiu nessa época ainda o sistema formal de escrita do lugar, estampada em vasos e selos de argila. Esses objetos, ilustrados com figuras geométricas ou com representações de animais, parecem também ter tido uso comercial ou administrativo. Seriam usados pela elite e funcionavam como um mecanismo de controle econômico e demonstração de poder político. Alguns pesquisadores, como Mahadevan, acreditam que eles também indicavam os títulos de seus usuários e até nomes e profissões. Para os harappianos, seria algo útil numa cidade que chegou a ter cerca de 80 mil habitantes, segundo as estimativas do arqueólogo americano Jonathan Mark Kenoyer, um dos maiores especialistas do mundo na Civilização Antiga do Vale do Indo e um dos líderes dos grupos de escavações na região. Esses e outros segredos de Harappa, no entanto, continuam escondidos atrás de um enigma: a indecifrável escrita do Vale do Indo.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

A QUEDA Depois de quase 2 mil anos de existência, essa civilização começou a entrar em declínio. A mais aceita das teorias combina uma série de motivos. O primeiro seria a incapacidade da elite em manter a ordem num território tão vasto e povoado, que por volta de 1900 a.C. já se estendia para além das planícies do Rio Ganges. “Essa falta de autoridade levou a uma reorganização da sociedade em toda a região do Vale do Indo”, escreveu Kenoyer em artigo publicado na revista Scientific American. Prova disso é o desaparecimento gradual de símbolos característicos da região, como os selos, vasos e pesos usados na taxação e comércio de produtos. Outro fator importante para a queda da civilização harappiana foram as alterações climáticas que ocorreram ao longo dos séculos, ligadas provavelmente ao desflorestamento para obtenção de matérias-primas. Em 2000 a.C., um dos rios da região, o Sarasvati, começou a secar e deixou várias cidades sem uma base viável de subsistência. Essas populações teriam migrado


para áreas agrícolas e cidades como Harappa e Mohenjo-daro, superpovoando lugares que não tinham estrutura para receber mais pessoas. Por consequência, os mecanismos de manutenção das rotas comerciais acabaram comprometidos. Outra teoria diz que teria havido uma simples dispersão da população para outras regiões. Mas é improvável. “Vestígios arqueológicos encontrados em escavações recentes mostram que as cidades continuavam habitadas entre 1900 a.C. e 1300 a.C.”, escreveu Kenoyer. Uma terceira tese aponta que os harappianos foram aniquilados pelos indo-arianos a partir do segundo milênio antes de Cristo. De fato, o período entre 2000 a.C e 1300 a.C. foi conturbado, com guerras eclodindo em várias partes do mundo. Mesmo assim, não se imagina que os indo-europeus tenham destruído toda a civilização. A maioria dos especialistas acredita que a imigração ariana aconteceu depois que os harappianos entraram em declínio – e a relação entre esses povos foi pacífica. “Quando chegaram à região, os indo-europeus tornaram-se sedentá-

O fim da civilização harappiana está ligado à sua própria grandeza: de tão vasto, seu território ficou incontrolável rios e seus rebanhos ajudaram a fertilizar os campos agrícolas. Em troca, seus cavalos alimentavam-se da palha da cevada que era produzida pelos agricultores”, argumenta Barbosa. E por fim há uma hipótese indiana ultranacionalista, que defende a ideia de que a civilização do Vale do Indo deu origem aos védicos, povos que surgiram em seguida aos harappianos e formularam o Rig Veda, a mais antiga escritura sagrada hindu. De acordo com a tese, eles conquistaram os sumérios e expandiram seus domínios para o oeste, influenciando também os povos do Ocidente. Ufanismo? Pode ser. Mas, se a tese estiver correta, os harappianos mudaram o mundo que nós conhecemos. Como cabe às grandes civilizações da história.

O IDIOMA INTRADUZÍVEL DE HARAPPA Como ninguém consegue decifrar o harappiano, a civilização do Vale do Indo permanece envolta em mistérios. Deixou ruínas de grandes cidades, mas a única forma de escrita encontrada pelos pesquisadores são as pictografias dos selos e outros ornamentos artesanais. Decifrá-las segue sendo o desafio. Não existe uma Pedra de Roseta que contenha inscrições em duas línguas para ajudar os pesquisadores a quebrar o código. Além disso, a variação de

sinais dos milhares de selos é muito pequena – há uma média de cinco por objeto, apenas, repetidos em outras peças. “Tudo indica que a disposição é totalmente aleatória. Se alguém encontrar uma placa de automóvel daqui a milhares de anos, dificilmente vai dizer que se trata de uma forma de escritas”, compara o especialista Carlos Eduardo Barbosa. É certo que esses sinais foram difundidos na maioria das cidades da civilização harappiana,

por causa da unidade cultural e das necessidades econômicas desses povos. A maior parte dos selos reproduz figuras de animais e objetos usados em rituais. A imagem de unicórnios é a mais comum (em 65% das peças), mas há desenhos de elefantes, búfalos, tigres, rinocerontes e outros. Uma possibilidade é a escrita harappiana ser a forma arcaica de alguma língua dos dravidianos, que habitaram o norte e noroeste do subcontinente. Como o balúchi, que ainda é

falado em algumas partes do Irã. Entretanto, isso é apenas uma teoria. Iravatham Mahadevan já dizia que a única coisa que podemos afirmar com certeza nos dias atuais é que são sinais escritos da direita para a esquerda, assim como o árabe e ao contrário do sânscrito. E o estudioso indiano não perdia a esperança. “Sempre existirá a possibilidade de se descobrir um objeto ou mesmo uma tábua de argila bilíngue, em lugares como o Oriente Próximo.”

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O PARADOXO DE FREUD

CAPA

EM SUA TEORIA SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA, O AUSTRÍACO REVELOU-SE UM ARQUÉTIPO DE MACHISTA. MAS INVENTOU A PSICANÁLISE PARA DAR VOZ ÀS MULHERES POR ALEXANDRE CARVALHO 30

AVENTURAS NA HISTÓRIA


“U

ma mulher inquieta vai ao médico ou às compras.” A frase machista poderia ser dita num grupo de amigos bêbados, fazendo piada sobre as esposas. Mas saiu da boca do pensador que mais se dedicou a investigar a mente humana, partindo justamente dos distúrbios emocionais das mulheres. Sigmund Freud, aliás, teria como preencher um pequeno livro só com seus ditos misóginos – como este, que soltou durante os debates da Sociedade Psicanalítica de Viena sobre a “posição natural das mulheres na sociedade”, em 1906: “Uma mulher não pode ganhar o sustento e criar os filhos ao mesmo tempo”. Um ano antes, chamado a atuar como perito para uma reforma na lei do divórcio, o austríaco ainda diria: “A igualdade entre os sexos é impossível devido aos seus diferentes papéis no processo de reprodução”. Fosse apenas por essas falas desastrosas, o pai da psicanálise poderia ter passado abaixo do radar de feministas de diversas épocas. Mas o que gerou mais revolta, inclusive entre psicanalistas mulheres que seguem em grande parte o seu legado, foi que Freud não era um mero tio do pavê na virada do século 19 para o 20. O pensador construiu a mais poderosa e influente teoria sobre o funcionamento da mente, destacando o papel do inconsciente como fator determinante das nossas escolhas, nossos comportamentos... da nossa personalidade. E, entre as muitas teorias que alimentam o universo da psicanálise, Freud lançou, em 1905, sua obra mais polêmica – que lhe rendeu fama de pansexual, além do ódio de mulheres ativistas: Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Nesse estudo, baseado principalmente no que ouvia das pacientes que frequentavam seu divã em Viena, Freud apresentou em detalhes sua famosa teoria do complexo de Édipo (segundo a qual meninos teriam fixação sexual pela mãe, o que refletiria em seu amadurecimento). Também chocou papais, mamães e avós na mesma obra ao sugerir que crianças têm desejos e brincadeiras sexuais. E ainda aproveitou para transformar seus pensamentos conservadores a respeito da mu l her em suposto achado AVENTURAS NA HISTÓRIA

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científico: a famigerada inveja do pênis. Uma teoria que afirma, basicamente, que meninas são meninos com “defeito de fábrica”. E que a ausência desse órgão determinaria para sempre a inferioridade feminina em relação aos homens. Foi aí que esse viciado em charutos – curiosamente um símbolo fálico – comprou briga com mulheres do mundo todo. E foi contestado até pelos próprios seguidores. “Freud achava a psicologia das mulheres mais enigmática que a dos homens”, contemporizou seu amigo e biógrafo Ernest Jones (1879-1958). Mais contundente foi o comentário da psicanalista alemã Karen Horney (1885-1952), fundadora da escola neofreudiana – que alterna consensos e conflitos com o pai da psicanálise –, uma das pioneiras a combater a ideia de que o feminino nasce da constatação da falta do órgão masculino. “Como em todas as ciências, a psicologia das mulheres tem sido considerada até

têm de esperar por horas até que as esposas terminem de retocar a maquiagem diante do espelho. Calma, já chegamos lá...

A INVEJA DO PÊNIS Segundo a teoria de Freud sobre a sexualidade feminina, é na chamada fase fálica, entre os 3 e 5 anos, que as crianças começam a diferenciar o que é menino e o que é menina. Para sorte de uns e frustração de outras. Seria nessa fase que as mocinhas dão atenção ao fato de que seus amiguinhos, irmãos e primos têm pênis. Mesmo que ainda pequenininho, surge aos olhos das crianças como um órgão arrogante e exibido, que deu de aparecer no mesmo lugar do corpo onde elas só têm um imenso vazio. (Ou, para as mais atentas, um clitóris, percebido como um micropênis que não deu certo.) Assim como as crianças sentem desejo de possuir os carrinhos e bonecas das outras, a menina também passa

PA R A F R E U D, M E N I N A S E R A M M E N I N O S C O M “ D E F E I TO D E FÁ B R I C A” – O Q U E L H E R E N D E U O Ó D I O DA S F E M I N I S TA S agora apenas do ponto de vista dos homens.” Horney contra-atacou, sugerindo em seus escritos que o macho é que teria uma inveja do útero. “Quando alguém começa a analisar os homens, como eu fiz, após uma vasta experiência de análise de mulheres, tem a impressão surpreendente da intensidade dessa inveja da gravidez, do parto e da maternidade.” Até a filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), em seu livro O Segundo Sexo, dedicou um capítulo inteiro da obra para apontar os equívocos do ponto de vista psicanalítico a respeito das mulheres. Tanta revolta tem por quê. Sigmund Freud fez articulações geniais para dar verniz científico a concepções que, na sua essência, representam – ainda que por meio de uma elaboração ultrassofisticada – o pior do machismo de comercial de cerveja. E no intervalo do jogo de futebol. Chegou a especular por que os maridos, esses abnegados vigias da insensatez feminina, 32

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a querer aquele brinquedo. “Essa falta lhe cai como uma injustiça e como motivo para se sentir inferior”, explica o austríaco. Para simplificar aqui as teses psicanalíticas de Freud sobre as consequências dessa inveja, vamos apenas dizer que a constatação de que é um ser humano de segunda categoria vai criar na mulher um abalo sísmico no amor-próprio, que o pensador chama de ferida narcísica – sim, um machucado no seu ego. Esse sentimento de inferioridade será um fardo que a mulher poderá suportar através da vida com resignação ou com revolta. Para Freud, é como escolher entre a vida normal e a doença mental. O estigma de castrada fará com que o desenvolvimento da sexualidade feminina possa, segundo Freud, seguir três destinos. Primeiro: a frigidez ou neurose para aquelas que reprimem seus quereres dentro de uma sociedade que só permite a eles, os homens, a expressão de


UM HOMEM DE SEU TEMPO Antes de retratar Sigmund Freud como um ogro machista, é preciso contextualizar o pensamento do criador da psicanálise sobre as mulheres – tanto em seu tempo como no lugar onde ele criou suas teorias. “A mulher freudiana, fundamentada pela observação clínica dele, pertence a um estado de tempo muito curto”, afirmou a psicanalista Maria Rita Khel na palestra “Deslocamentos do Feminino”. “É o lugar da mulher no momento em que a família nuclear burguesa se forma. Ali é a passagem para a modernidade. A transição de um período em que a sociedade está mais organizada por um espaço monárquico – com a lei concentrada em um pai simbólico que é o rei – para uma sociedade mais horizontal, com mais democracia, quando as mulheres começam a se alfabetizar.” Freud tentou entender e explicar as mulheres num período em que elas próprias estavam em busca de se conhecer, com uma vontade imensa de abraçar as possibilidades que os direitos democráticos e as inovações tecnológicas traziam (o cinema nasceu junto da psicanálise), mas ainda eram reprimidas. E o machismo do pensador era o pensamento-padrão na Viena da época – como em tantos outros lugares. “Na sociedade vienense, as mulheres estavam sujeitas à interdição e intervenção masculinas. Todos nelas mandavam: pais e irmãos”, explica José Artur Molina em O Que Freud Dizia sobre as Mulheres. Muitas das operetas que faziam sucesso na cidade retratavam as personagens femininas como frívolas, infiéis, maliciosas. Claro, um gênio como Freud poderia ter se desviado desses estereótipos. Mas não foi assim. “Freud era o típico burguês oitocentista, ninguém mais certinho e mais século 19 do que ele”, define Maria Rita Khel.

AVENTURAS NA HISTÓRIA

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desejos sexuais e a ambição de altos voos no trabalho. Segundo: o complexo de masculinidade para as que não se conformam com sua “castração” e decidem “ser um menino”, fazendo de conta que têm um pênis. Freud coloca nessa categoria tanto as lésbicas quanto as mulheres com “vocação fálica”, as que assumem papéis de liderança na sociedade – com profissões que seriam pênis simbólicos. O terceiro destino é o que Freud considera o único capaz de evoluir como uma sexualidade feminina normal: a vida de dona de casa. Seria a aceitação de uma inferioridade que, por ser anatômica, não tem como ser superada. Só ao aceitar esse papel subalterno, vivendo à sombra de seu marido provedor, o senhor do seu castelo, a mulher teria chance de atingir a estabilidade psíquica. Melhor ser um bibelô feliz que enfrentar as angústias de um protagonismo que não seria da natureza delas.

Essa perspectiva “falocêntrica” a respeito da evolução da sexualidade feminina não nasceu apenas das conclusões vindas da prática clínica de Sigmund Freud com suas pacientes. Ela teve ligação direta com a personalidade e os valores do autor. Na juventude, o austríaco havia sido um irmão tão atencioso quanto autoritário em relação às mulheres da casa. Desaprovou que uma irmã lesse Honoré de Balzac (de A Comédia Humana e A Mulher de Trinta Anos) e Alexandre Dumas (de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo) por considerá-los autores de obras assanhadas. Quando ainda vivia com os pais, Freud teve privilégios com os quais as meninas nem podiam sonhar. Para se ter uma ideia, o piano da irmã foi retirado de casa porque a música podia atrapalhar os estudos do gênio – os pais tinham fé de que o jovem Sigmund pudesse melhorar a situação financeira da família no futuro. Mais tarde, Freud deixou claro para

O P E N S A DO R A D M I R AVA M U L H E R E S L I B E R TÁ R I A S, I N D E P E N D E N T E S. M A S PROIBIU SUA MULHER DE TR ABALHAR E a versão macho-jurubeba de Freud não para por aí. Ele ainda escreveu (chegamos lá, enfim) que a mulher demora tanto a se arrumar para sair por causa da bendita inveja do pênis. A vaidade, consumindo um bom tempo à frente do espelho, seria uma forma de equilibrar o jogo diante do glorioso pênis do maridão. “Elas não podem fugir à necessidade de valorizar seus encantos de modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual original”, escreveu. Já no artigo O Problema Econômico do Masoquismo, Freud disse que, enquanto o homem tem uma maior inclinação ao sadismo, a mulher é uma masoquista de nascença. “Sabemos agora que o desejo, tão frequente em fantasias, de ser espancado pelo pai se situa muito próximo do outro desejo, o de ter uma relação sexual passiva (feminina) com ele.” Um jeito bem mais elaborado de repetir o bordão cafajeste “mulher gosta de apanhar”. 34

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a noiva, Martha Bernays, que qualquer ambição profissional que ela pudesse ter não deveria extrapolar os limites da gerência... doméstica. “Espero que estejamos de acordo que administrar uma casa e educar os filhos requer da pessoa tempo integral, e praticamente elimina qualquer profissão.” Está aí o perfil exato de alguém com tendência a achar que qualquer mulher é um ser inferior a qualquer homem. Mas a complexidade da figura de Freud desafia as tentativas de descrevê-lo de maneira simplista – ele foi um gênio paradoxal em diversos aspectos. Foi um investigador da sexualidade que resolveu se abster de sexo quando decidiu não ter mais filhos. Um terapeuta que foi entusiasta do consumo de cocaína. Um amante da tradição que defendeu a homossexualidade como uma característica humana normal. Conservador e progressista.


ANNA FREUD – A HERDEIRA Freud teve três filhos homens, mas quem seguiu seus passos no estudo da mente e se tornou guardiã de seu legado foi a filha caçula, Anna (1895-1982), que depois se tornaria uma das maiores psicanalistas da história, sendo pioneira na psicanálise voltada para crianças. Foi também ela quem estudou a fundo e estendeu os conceitos de seu pai sobre os mecanismos de defesa do ego (projeção, negação, sublimação etc.). Anna nunca se casou e dedicou a vida a acompanhar seu pai, de quem foi tanto discípula quanto assistente. Na contramão de uma das regras da psicanálise, que proíbe a análise de pessoas próximas, Freud analisou sua própria filha. E ficou preocupado ao constatar que Anna não queria saber de homens. Escrevendo a uma amiga, disse: “A menina me dá bastante preocupação: de que modo ela vai enfrentar a vida sozinha [depois da morte dele] e se consigo trazer sua libido do esconderijo no qual se enfiou”.

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Sua relação com as mulheres não poderia ser menos conflitante. Além de Freud ter se cercado de mulheres que o marcaram e de quem foi grande admirador (veja nos boxes desta matéria), sua visão do feminino a partir do masculino, tão arcaica quanto o mito da costela de Adão, conflita com o marco histórico mais importante de toda essa aventura do conhecimento: Sigmund Freud construiu a psicanálise a partir de sua preocupação em dar voz a mulheres reprimidas, cujas personalidades estavam aprisionadas dentro de uma sociedade e uma época que as impediam de se expressar. Nesse sentido, ele foi o inverso de um misógino: foi um libertador da alma feminina.

AS HISTÉRICAS Prostitutas, mulheres adúlteras e jovens “libertinas”. Esse era o público predominante na Salpêtrière, em Paris, antes que essa prisão, cons-

ções a alunos e outros médicos nas quais conseguia a regressão momentânea dos quadros com o auxílio de hipnose. Um desses alunos, certamente um dos mais interessados, foi Sigmund Freud. Embora as apresentações de Charcot tivessem um forte componente teatral, com os efeitos “mágicos” da hipnose, o neurologista conseguiu comprovar que a misteriosa histeria não era fingimento das acometidas. Nem consequência de uma lesão física – ou não teria regressão com o hipnotismo. Era, sim, uma questão da psique, algo psicossomático, efeito de algum distúrbio emocional sobre o qual nem mesmo as pacientes tinham consciência. Quais eram essas questões não parecia um problema para Charcot, que se contentava em estudar os sintomas histéricos e provar que a doença estava no campo da neurologia – não era possessão demoníaca nem frescura, como

A P S I C A N Á L I S E N A S C E U DA VO N TA D E D E E S T U DA R M U L H E R E S R E P R I M I DA S – E L I B E R TÁ- L A S DA N E U RO S E truída no século 17, se transformasse num imenso hospital, já no século 19. Curiosamente, seriam também mulheres fora do padrão que voltariam a dar notoriedade ao lugar. E isso aconteceu a partir dos anos 1870, quando o neurologista Jean-Martin Charcot começou a separar epilépticas e esquizofrênicas de outras mulheres que sofriam de um determinado mal coletivo, que parecia ter se transformado em epidemia na época: a histeria. Embora também acometesse homens, o distúrbio parecia afetar sobretudo as mulheres – tanto que o termo vem do grego hystera, que significa útero. Sem qualquer fonte em problema físico, mulheres começavam a apresentar paralisias em partes do corpo, sufocamentos, cegueiras, problemas respiratórios, vertigens, desmaios, alucinações, fobias súbitas. Alguns desses sintomas seriam descritos pela primeira vez por Charcot, que se dedicou a estudar essas mulheres e fazia exibi36

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muitos pensavam à época. Mas Freud tinha ambições maiores. Ele queria ir até o fim: desejava curar essas mulheres. A complicação vinha justamente da impossibilidade de lidar com a moléstia na esfera do consciente. Isso até que o caso de uma histérica em especial, paciente de um amigo de Freud, trouxesse pistas sobre como acessar esses sentimentos ocultos que tinham acarretado transtornos físicos. O nome da jovem era Bertha Pappenheim. Mas a história da psicanálise a conheceu como Anna O. Anna foi o pseudônimo que Freud e o amigo Josef Breuer, médico de Bertha, deram à mulher quando descreveram seus distúrbios e sua cura no livro que escreveram juntos, Estudos sobre a Histeria, de 1895 – uma obra em que relatam casos clínicos de mulheres histéricas. Criada no ambiente repressor de uma família da burguesia judaica de Viena, ela começou a apresentar


LOU ANDREAS-SALOMÉ – A LIBERTÁRIA Filósofa, poeta, romancista e... psicanalista. A russa Lou AndreasSalomé (1861-1937) foi uma mulher à frente de seu tempo, uma alma independente, que surgiu em Viena aos 51 anos determinada a estudar psicanálise. Mal chegou, logo era uma rara mulher no fechado círculo freudiano, deixando o mestre austríaco fascinado com o que chamava de “inteligência perigosa” e também com sua beleza. A postura de superioridade intelectual masculina do austríaco se esvanecia diante dessa mulher. Freud, aliás, não foi o único gênio que se rendeu à figura magnética de Lou Andreas-Salomé. Ela se relacionou com o filósofo Nietzsche, que escreveu Assim Falou Zaratustra influenciado por ela. Na ocasião da morte da amiga, Freud disse que Salomé era “destituída de todas as fraquezas femininas e talvez da maioria das fraquezas humanas”. Essa russa libertária certamente desaprovaria o comentário machista.

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sintomas psicossomáticos quando seu pai adoeceu gravemente. Primeiro uma tosse nervosa, depois estrabismo, paralisias. Também teve amnésia (esqueceu a própria língua durante um período) e alucinações (via serpentes negras no lugar dos cabelos). Breuer descobriu que os sintomas da paciente diminuíam quanto mais ela falava sobre suas emoções e acontecimentos do dia anterior para ele – sob efeito de hipnose, ainda a técnica de Charcot. Até que um dia, conseguindo se lembrar de um evento no qual sentira nojo de um cachorro bebendo água no copo de sua dona, Bertha conseguiu curar-se de uma repulsa que estava tendo de beber qualquer líquido. E outras curas se sucederam assim. O médico descobriu que a descrição de uma emoção incômoda, antiga, que não era lembrada sem ser provocada pelas conversas da terapia, fazia com que um sintoma fosse removido. Freud viu nesse sucesso terapêutico do ami-

cilmente para que o paciente lide com elas, como quando alguém recebe um diagnóstico de hipertensão. Por elas serem tão chocantes (o desejo homossexual na mente de uma mulher de valores tradicionais, por exemplo), a mente dá um jeito de que não tenhamos consciência delas. E esses sentimentos ficam reprimidos no universo escuro do inconsciente. Para acessá-los, só em circunstâncias especiais. Para Freud, poderia ser pela interpretação dos sonhos. Ou na terapia psicanalítica. Conceitos como “recalque”, “associação livre”, “transferência”, entre outros, foram sendo construídos a partir desse insight sobre traumas inconscientes – e da disposição de Freud para tratá-los. Diferentemente de grande parte dos médicos de sua época, o austríaco não aceitou a generalização de que “mulher é tudo louca”. Dedicou-se a investigar e tratar as questões mais profundas dessas mulheres – ainda que derrapasse

M A R I E B O N A PA R T E F R EQ U E N TO U O D I VÃ D E F R E U D. V I R O U P S I C A N A L I S TA E S A LVO U A V I DA D E S E U M E S T R E

IMAGENS GETTY IMAGES

go uma descoberta muito maior, que seria a base de sua grande teoria: a de que temos traumas e outros sentimentos negativos reprimidos, que provocam transtornos emocionais com efeitos diversos sobre a nossa vida. Podem ir de um distúrbio psicossomático (como a histeria) a um excesso de timidez, uma perversão sexual, uma fobia específica, um comportamento qualquer fora do padrão da “normalidade”. Na Viena daquele início de século 20, quando as mulheres da burguesia viviam trancadas em casa, numa época sem televisão nem internet, vontades reprimidas não faltavam. É como definiu a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Sigmund Freud: “Para exprimir sua aspiração à liberdade, as mulheres não tinham outro recurso senão a exibição de um corpo atormentado”. Mas há um labirinto aí: essas emoções não estão acessíveis e nem podem ser descritas fa38

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quando o assunto foi a sexualidade delas. O paradoxo de Freud revela, no aspecto dos costumes, um indivíduo conservador, machista, que via o homem como centro não apenas do amadurecimento sexual do ser humano, mas também da cultura e do avanço da sociedade, restando à mulher ser coadjuvante, um acessório – ou um alicerce – desse sucesso. Mas o Sigmund Freud que entrou para a história só se tornou um dos pensadores mais influentes de todos os tempos por uma iniciativa que é o inverso desse perfil: buscou ouvir as mulheres, descobrir suas emoções represadas. Deu-lhes, enfim, espaço para que se comunicassem num mundo e numa época em que a própria falta de oportunidade para expressão as deixava doentes. Levou-as tão a sério quanto alguém que pressupõe e respeita uma igualdade – de direitos e aspirações – que ainda depende de luta cotidiana. Aqui no nosso século 21.


MARIE BONAPARTE – A SALVADORA Was will das Weib? (“o que quer a mulher?”). Foi à sua amiga francesa que Freud confessou a própria incapacidade de captar a essência do que ele chamava “o continente negro”... a mulher. “A grande pergunta que nunca foi respondida e a que eu ainda não pude responder, apesar dos meus trinta anos de pesquisa da alma feminina, é o que quer a mulher.” Sobrinha-bisneta de Napoleão, esposa do príncipe da Grécia, Marie Bonaparte (1882-1962) frequentou o divã de Freud, apaixonou-se pela psicanálise e se tornou ela mesma psicanalista – além de amiga próxima de Sigmund, ouvinte de suas confidências. Responsável por difundir na França as teorias avançadas do amigo, Marie teve outro papel essencial num momento histórico importante. Quando os nazistas tomaram conta da Áustria, foi ela, com seus contatos influentes, quem conseguiu que o judeu Freud fosse tirado do país antes de cair nas mãos da Gestapo.

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BRASIL

GUERREIROS DE

Alá

NA BAHIA

COM UMA ESPADA NA MÃO E O CORÃO NA OUTRA, OS AFRICANOS CONHECIDOS COMO MALÊS PUSERAM SALVADOR EM PÂNICO NUMA MADRUGADA DE 1835, USANDO O ISLÃ PARA UNIR OS ESCRAVOS CONTRA A OPRESSÃO POR REINALDO JOSÉ LOPES

O

os poucos soldados da polícia de Salvador que foram acompanhar o que parecia outra averiguação de rotina sobre escravos rebeldes, numa madrugada sonolenta de janeiro de 1835, provavelmente tiveram a pior surpresa de suas vidas ao darem de cara com aquela cena. De espada em punho, um bando enfurecido de uns 50 homens negros partiu para cima dos incrédulos policiais, gritando “mata soldado” e palavras de ordem em idiomas africanos. De repente, o papel de escolta do juiz de paz Caetano Galião, que comandava a diligência, deu lugar a uma reação desesperada para tentar salvar a própria pele. Carregando afobados as espingardas, os soldados nada puderam fazer para impedir o avanço dos guerreiros africanos, que mataram um patru-

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lheiro e feriram outros quatro, ganhando a seguir as ruas da cidade. Começava o que ficaria conhecido como o “levante dos malês”, uma rebelião comandada por muçulmanos em plena Bahia. Esse primeiro esquadrão de revoltosos, impelido a começar o levante algumas horas antes do combinado devido à delação de outros africanos, alertou os demais grupos malês da cidade para se unirem ao combate. No fim, centenas de muçulmanos e seus aliados enfrentaram o Exército nas ruas de Salvador durante a madrugada, no que foi a maior revolta urbana de escravos das Américas. A documentação da época sobre o levante não é muito clara quanto ao objetivo final dos rebeldes, mas há indícios de que eles pretendiam implantar um Estado comandado por africanos islâmicos, no qual até os negros e


mulatos nascidos no Brasil teriam um status subalterno. Aos poucos, as investigações do governo baiano sobre o levante foram revelando uma rede clandestina de propaganda islâmica, que unia os escravos que já tinham vindo da África como muçulmanos a outros convertidos no Brasil e a africanos adeptos de outras religiões. Graças ao ambiente um pouco menos sufocante da escravidão urbana na Bahia, os malês conseguiram criar uma organização rebelde bem diferente da representada pelos quilombos, em geral formados por escravos que escapavam de grandes propriedades rurais. “A maioria das mais de 20 conspirações e levantes escravos, acontecidos na Bahia na primeira metade do século 19, envolveu escravos rurais dos engenhos do Recôncavo”, afirma o historiador João José Reis, autor de Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. A África e o Brasil que produziram a rebelião malê eram bem diferentes da situação que favoreceu a existência do quilombo de Palmares por quase 100 anos durante o século 17. E isso a

começar pela própria região de origem dos negros trazidos para a Bahia no final do século 18 e começo do 19. Em vez das tribos de agricultores angolanos que predominavam no início da colonização, a principal fonte de novos escravos para Salvador e os engenhos de açúcar baianos eram os belicosos reinos da África Ocidental, onde hoje é a Nigéria. “Eram as civilizações mais desenvolvidas da África negra”, afirmava o historiador Décio Freitas (1922-2004), autor de Palmares, a Guerra dos Escravos. Donos de tecnologia comparável à da Europa medieval e totalmente integrados às rotas de comércio que uniam a África ao Ocidente, povos como os iorubás, os jejes e os haussás chegaram a formar Estados poderosos, muitos deles já influenciados pelo islamismo. Contudo, naquela época, tais nações não estavam durando muito, dizimadas por uma série catastrófica de conflitos. O destino dos guerreiros derrotados (e o de suas famílias) tanto podia ser o trabalho de pastor escravo no reino iorubá de Oyo, quanto a terrível travessia do Atlântico rumo à AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BRASIL

Bahia. A moeda que pagava essa viagem sem volta normalmente era o fumo baiano. “Graças a esse rentável comércio de fumo que a Bahia foi a única região do Brasil a receber escravos sudaneses em grande quantidade.” Não demorou muito para que os senhores de escravos percebessem que estavam dormindo com o inimigo, já que décadas de guerras internas ou contra Estados rivais haviam forjado uma forte tradição guerreira entre os africanos recém-chegados. Para João Saldanha da Gama, o conde da Ponte, governador português da província entre 1805 e 1810, os novos escravos pertenciam às “nações mais guerreiras da Costa Leste” e eram uma séria ameaça à paz. Dentro de alguns anos, contudo, os baianos se viram às voltas com problemas ainda mais sérios. No rastro da independência do Brasil, foi preciso retomar em combate a própria Salvador das mãos dos portugueses, e a província toda, assim como diversas outras regiões do país, virou palco dos conflitos entre brasileiros e portugueses que permaneceram aqui, sem

falar nas rebeliões militares e nas revoltas das camadas mais pobres da população contra a crise econômica. O cheiro de insurreição contra os impopulares regentes, que estavam no poder enquanto o jovem dom Pedro II ainda era menor de idade, estava tão forte no ar que o levante dos malês explodiu no mesmo ano que a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, e a Cabanagem, no Pará. Como se não bastasse todo esse fermento revolucionário, boa parte dos escravos de Salvador (dos quais 63% tinham nascido na África) gozavam de um grau de liberdade insuspeito. É que, diferentemente dos negros que se esfalfavam nos engenhos, muitos deles nem moravam com seus senhores ou, quando isso acontecia, trabalhavam o dia todo fora de casa. Era a chamada escravidão de ganho, na qual os escravos exerciam os mais variados ofícios (vendedores ambulantes, pescadores, pedreiros, carregadores de cadeiras) para sustentar o próprio dono, trazendo-lhe depois o que conseguiam trabalhando.


LIVRES NA CIDADE Alguns até podiam ficar com uma porcentagem (ridícula, obviamente) do que ganhavam, e com esse dinheiro compravam mais tarde a própria alforria. Além de gerar um número considerável de libertos (que incluía também os que eram libertados pelo patrão por qualquer que fosse o motivo), esse sistema permitia que os negros montassem sua própria rede de amizades e contatos. Entre os malês, por exemplo, não era raro encontrar um liberto morando no andar térreo de um sobrado que alugava a sua “loja” (uma espécie de porão das antigas casas coloniais) para um escravo e este, por sua vez, alugava um cantinho do lugar a outro amigo. Foi graças a isso tudo que a revolta começou a tomar forma em Salvador. Inadvertidamente, os traficantes de escravos acabaram trazendo para as praias baianas não só guerreiros experientes, mas também pessoas que frequentaram escolas onde se ensinava a ler e escrever em árabe, a recitar as suras ou versículos do Corão e a seguir os demais preceitos do profeta Maomé. A maioria dos que tomaram parte no levante parece ter sido de origem iorubá (ou nagô, como se dizia na Bahia de então), etnia africana criadora da religião dos orixás, mas entre a qual o Islã estava em expansão no começo do século 19. A própria palavra “malê” parece vir do termo iorubá imale, que quer dizer “muçulmano”. Sujeitos como os escravos iorubás Ahuna e Pacífico Licutan, pessoas experientes, muito cultas e carismáticas, logo se puseram a unir em torno de si seus companheiros que já eram muçulmanos e a espalhar a palavra de Maomé entre outros escravos. Essa pregação incluía ensinar a ler e escrever em árabe, a recitação de passagens do Corão e a distribuição de pequenos amuletos de couro, recheados com trechos do livro sagrado. Esses talismãs foram muito difundidos e eram considerados poderosos até por quem não era islâmico. Aparentemente, a ideia de uma revolta só foi tomando corpo devagar. A princípio, os malês se contentavam em organizar um fundo comum para pagar alforrias uns dos outros, ou em se reunir para celebrar sua religião. Segundo João

Nas cidades, os escravos podiam trabalhar e ganhar algum dinheiro. E isso permitiu que criassem uma rede de amizades José Reis, o grupo chegou até a construir uma espécie de mesquita – uma palhoça no quintal dos fundos do inglês conhecido como Abraham, senhor dos escravos malês James e Diogo. Ali, eles conseguiram celebrar o Lailat al-Miraj, festa que comemora a ascensão de Maomé ao céu, no final de novembro de 1834. Tudo ótimo, não fosse o aparecimento do inspetor de quarteirão Antônio Marques, que pôs os pobres malês para correr e denunciou a reunião às autoridades baianas. Abraham, tentando evitar problemas para si próprio, ordenou que seus escravos pusessem a mesquita abaixo. “Não é impossível que essa última humilhação tenha sido o estopim da revolta”, afirma João Reis. Tanto a união em torno do Islã quanto a solidariedade étnica influenciaram os rebeldes. Para Décio, era o cimento religioso que conseguia unir povos diferentes e até inimigos entre si no mesmo levante. “O grande problema dos africanos aqui é que eles eram muito diferentes uns dos outros. Em Palmares, foi preciso até inventar uma nova língua, com base em vários idiomas africanos e no português. Uma religião universal como o Islã conseguiu aglutiná-los”, descreveu o historiador. Mesmo assim, era difícil esquecer as velhas divisões. Em 1835, nem todo muçulmano entrou na revolta e nem todo rebelde era muçulmano. Segundo João José, os haussás, por exemplo, que constituíam o grupo étnico mais numeroso entre os mais islamizados, compareceram com poucos guerreiros. O movimento foi levado a cabo sobretudo por muçulmanos de origem iorubá, os nagôs. Esse contorno étnico da revolta permitiu, por seu turno, que muitos nagôs não islamizados – mas que acreditavam na solução armada para a liberdade e na força protetora dos amuletos malês – entrassem no levante. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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GUERREIROS DO RAMADÃ Seja como for, não poderia haver data mais religiosa para a revolta. O dia 25 de janeiro, um domingo, era a festa de Nossa Senhora da Guia, mas também o dia 25 do mês muçulmano do Ramadã – época do ano consagrada ao jejum, na qual se acreditava que espíritos malignos e forças do mal eram neutralizados. O plano era simples: ao amanhecer, a vanguarda dos rebeldes, espalhada por vários grupos menores na cidade, reuniria o maior número possível de africanos e depois iria se juntar aos adeptos da zona rural do Recôncavo. A ideia era tomar o poder matando todos os nascidos no Brasil, inclusive outros negros, embora alguns depoimentos falem em conservar os mulatos como escravos dos vitoriosos. O inimigo principal, é claro, eram os brancos. Informações sobre o levante, porém, vazaram no começo da noite anterior, por meio de alguns libertos que, sabendo do plano, o denunciaram a seus ex-senhores. Estes, por sua vez, alertaram o presidente da província da Bahia, Francisco de Souza Martins. Sem perder um segundo de tempo, ele reforçou a guarda do palácio do governo, colocou todos os quartéis da cidade em alerta e redobrou as rondas noturnas. E as casas de africanos suspeitos começaram a ser reviradas no início da madrugada... Foi então que explodiram os confrontos, por volta da 1h30 da manhã, na “loja” onde morava Manoel Calafate, um dos líderes malês. Tentando arrombar a casa onde parte dos conspiradores se reunia, a patrulha ficou impotente diante dos muitos guerreiros muçulmanos, armados de espadas e vestindo o abadá, espécie de camisolão branco que era o traje ritual dos malês. A maioria deles subiu a Ladeira da Praça, onde estava o sobrado de Calafate, enquanto outros

Os malês, armados apenas com facas, foram abatidos com uma saraivada de balas pelos soldados e civis baianos

pularam o muro dos fundos e seguiram outro caminho. Ambos os grupos tentavam acordar e reunir o maior número possível de adeptos do movimento, muitos dos quais ficaram desnorteados com o início precoce do levante. A primeira parada foi a praça do Palácio. A intenção dos malês era arrancar da cadeia seu líder Pacífico Licutan, preso para ser leiloado por causa de uma dívida de seu senhor. Má ideia: os guardas da prisão, que ficava no subsolo da Câmara Municipal, se entrincheiraram e disparavam sem parar sobre os africanos, que também ficaram sob fogo cerrado dos guardas do palácio governamental. Os rebeldes mataram só um dos guardas palacianos e saíram dali, recebendo reforços de todos os lados. Uma tentativa de tomar o quartel do Convento de São Bento repetiu o que acontecera na prisão: os soldados se fecharam dentro da fortaleza e acabaram repelindo os malês. A essa altura, alguns deles já tinham morrido. Depois desse último combate, o grupo conseguiu se reorganizar perto do Convento das Mercês, para onde se dirigiram mais malês vindos do bairro da Vitória, muitos deles escravos de uma colônia de ingleses do lugar. O ataque seguinte dos malês, que já contavam centenas de guerreiros, foi sobre o quartel de polícia no Largo da Lapa. Tudo conforme o figurino de novo: dos 32 guardas, dois foram mortos, enquanto os demais recuaram para o interior do quartel e, à bala, impediram que os malês o tomassem. Após mais algumas escaramuças, os rebeldes viram que aquilo não estava funcionando. Decidiram deixar a cidade e buscar seus companheiros que viviam no Recôncavo, mas, no meio do caminho, havia um quartel da cavalaria baiana, numa localidade chamada Água de Meninos. Tentando passar, foram recebidos com uma saraivada de balas e forçados a combater a cavalaria lá fora, enquanto aguentavam os disparos dos soldados a pé dentro do quartel. Foi um massacre. Uma primeira carga de cavalaria dispersou o grupo inicial de 50 ou 60 africanos e passou a caçá-los pela estrada. Logo chegaram mais malês, mas não dava para suportar por muito tempo os tiros ininterruptos que vinham

ILUSTRAÇÕES ANDRÉ TOMA

BRASIL


do quartel, ainda mais com o baixíssimo número de armas de fogo de que dispunham os rebeldes. Um segundo ataque dos soldados montados encerrou qualquer resistência. No total, cerca de 70 rebeldes tinham morrido, contra apenas nove soldados e civis baianos. Bem antes de amanhecer, tudo estava terminado.

SALDO DA DERROTA A devassa que se seguiu puniu cerca de 500 africanos, mas como muitos processos estão incompletos é difícil identificar a sentença de todos eles. Apenas quatro foram condenados à morte, já que isso acarretaria prejuízos sérios a seus senhores, que recorreram quase invariavelmente desse tipo de sentença. Muitas chibatadas, em geral na casa das centenas, aguardavam 45 deles, enquanto 34 foram deportados de volta à África. É difícil especular qual teria sido o destino da rebelião se ela tivesse sido vitoriosa. “Isso não fica claro, exceto que seria uma sociedade controlada pelos africanos, possivelmente pelos nagôs islamizados. Mas eles não

conseguiriam manter-se no poder sem alianças sólidas com outros grupos étnicos e sobretudo com os numerosos nagôs adeptos do culto aos orixás”, acredita o autor de Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. A delação certamente selou a sorte dos rebeldes mais cedo, mas os fatores se encontram tanto entre os africanos como entre seus adversários. Além de mais bem armados, estes estavam unidos quando se tratava de dar combate aos africanos, já que contavam com brasileiros de todas as classes e cores, escravos ou não. O controle sobre os escravos cresceu na Bahia, mas a revolta também ajudou a impor uma redução do tráfico negreiro e, finalmente, sua extinção em 1850, por medo de que mais africanos se unissem como os malês. Segundo João José, os escravos baianos ganharam fama de rebeldes e, de certa forma, isso pode ter aumentado seu poder de barganha junto aos senhores. “O medo foi uma consequência nada desprezível que a revolta de 1835 conseguiu fincar por muito tempo na mente senhorial”. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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ORDEM MILITAR

A SOBERANA ORDEM DE

MALTA DE ORIGENS QUE REMONTAM ÀS CRUZADAS, A IRMANDADE DE MONGES-GUERREIROS CONTROLA ATUALMENTE A MENOR NAÇÃO DO PLANETA. E SEGUE COM A MISSÃO MILENAR DE AJUDAR VÍTIMAS DE CONFLITOS E DESASTRES EM MAIS DE 120 PAÍSES POR CARLO CAUTI

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“S

iyah şeytanlar”. Era assim – “os demônios de preto” – que os soldados otomanos chamavam os cavaleiros da Ordem de Malta, uma irmandade de monges-guerreiros vestidos de preto e famosos pela habilidade em batalha (e pela sobrevivência) após um milênio de guerras, intrigas, fugas e perseguições. No passado, a Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta (esse é o nome oficial da organização) era formada por clérigos nobres cavaleiros – que antecipariam o atual movimento internacional da Cruz Vermelha. Hoje, a ex-potência militar de tradição aristocrática controla um Estado soberano e sem território, com apenas alguns palácios em Roma, e segue católica, fiel ao papa. Porém, sua força está nas relações diplomáticas que a irmandade mantém com mais de 120 países pelo mundo (católicos ou não), tendo representação inclusive na Organização das Nações Unidas, como Observadora Permanente. A Ordem de Malta, a mais antiga instituição humanitária do planeta, tem uma história com diversos capítulos fascinantes. A começar pelo nome.

OS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS Seus membros, que hoje são chamados de Cavaleiros de Malta, surgiram como os Cavaleiros Hospitalários. Depois, se tornaram os Joanitas, Hierosolimitanos, Rodes e apenas “a Religião”. Mudanças de nome geradas pelas peripécias geográficas que a Ordem enfrentou no decorrer dos séculos. Tudo começou na Alta Idade Média, justamente no tempo em que surgiam outras ordens monástico-militares. Seu fundador, o monge italiano Gerardo Sasso, e mercantes da república marinara de Amalfi, na Itália (que dominava o Mediterrâneo oriental na época), obtiveram do califa do Egito a autorização para construir um hospital para forasteiros e peregrinos em Jerusalém, dedicado a São João

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ORDEM MILITAR

Batista, o futuro patrono da Ordem. Com o início da Primeira Cruzada (1096-1099), aquela obra de caridade na Terra Santa passou a atrair cada vez mais adesões entre os “soldados de Cristo”, que chegavam à região para lutar contra os muçulmanos. Até que, em 1113, uma declaração oficial do papa Pascoal II autorizava a criação formal da Ordem Religiosa de São João, em Jerusalém – uma congregação independente das autoridades eclesiásticas locais que se tornaria o primeiro exemplo de organização internacional de beneficência e caridade. “Os membros da Ordem precisavam fazer voto de pobreza, castidade e obediência, e tinham duas missões: defender a fé cristã na Terra Santa, contra os muçulmanos, e ajudar os peregrinos construindo hospitais. Essa segunda era a missão principal. Por isso, ficou conhecida como a Ordem dos Cava lei ros Hospitalários”, explica o professor Charles Dalli, historiador da Universidade de Malta. Como símbolo da nova instituição, foi escolhida a cruz de oito pontas de Amalfi, que representava as oito beatitudes evangélicas do “Discurso da Montanha” de Jesus. E como lema, a frase em latim Tuitio Fidei et Obsequium Pauperum, cuja tradução é “defesa da fé e serviço aos pobres”. Logo, o segundo grão-mestre hospitalário, o cavaleiro francês Raymond du Puy, general do lendário rei de Jerusalém Godofredo de Bulhão, dividiu a Ordem em três classes: religiosos, trabalhadores e combatentes – o que espelhava, aliás, as três classes sociais da Idade Média. “Os Hospitalários começaram a se estruturar, obtendo doações de europeus ricos, ganhando terras enormes e melhorando suas capacidades de combate. Com isso, se espalharam por toda a Terra Santa, permanecendo por

mais de 200 anos nos Reinados Cruzados de Além-Mar”, diz Emanuel Buttigieg, historiador e professor, também da Universidade de Malta. Segundo ele, esses monges-guerreiros foram os protagonistas de épicas batalhas e de brilhantes negociações diplomáticas. “Criaram o primeiro sistema de saúde pública da história, até para quem não era cristão.” Do outro lado do Mar Mediterrâneo, em Roma, os papas olhavam com atenção para a Ordem, mantendo seus membros sempre em consideração: ao longo dos séculos, a Igreja concedia isenções e privilégios à Ordem, incrementando suas riquezas (a prática de captar recursos entre os reinos cristãos do Ocidente já era levada com habilidade pelos cavaleiros em toda a Europa). Em breve, a Ordem se tornou muito rica e conseguiu expandir suas atividades por todo o continente, criando uma rede de representações diplomáticas (chamadas de Comendas), que também administravam bens e posses. Entretanto, em 1291, a epopeia cruzada terminou. A última resistência cristã na Terra Santa foi em São João de Acre, onde os Cavaleiros Hospitalários, juntos dos Templários e dos Teutônicos, lutaram pela última vez lado a lado contra os muçulmanos. Perdendo a batalha. O Ocidente recuava e um pequeno grupo de “diabos negros” se refugiou na Ilha de Chipre. Tal mudança gerou a primeira tormenta na instituição: sem a Terra Santa para defender, as ordens cavalheirescas entraram em crise de identidade, e os monges-guerreiros Hospitalários tiveram de se reinventar. Com tantas riquezas acumuladas, mas nenhum objetivo para justificá-las, o risco mais provável era de que a Ordem fosse suprimida. Justamente o que aconteceu, de forma sangrenta, com os Tem-

DEDICAR-SE À CARIDADE NÃO IMPEDIU A ORDEM DE PEGAR EM ARMAS

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plários, a mais rica entre todas as ordens religiosas de cavalaria. “Mas, diferentemente dos Hospitalários (que ajudavam os peregrinos), os Templários tinham apenas uma missão: lutar contra os islâmicos. Quando os cristãos foram embora da Terra Santa, eles se encontraram sem um objetivo e com muitas riquezas”, afirma Dalli. Um alvo fácil para reis com as contas públicas quebradas, como Filipe IV, da França (veja mais no boxe da última página).

ROTA PARA RODES A nova ocasião para aventuras chegou em 1306, quando o genovês Vignolo de' Vignoli propôs à Ordem conquistar o arquipélago Dodecaneso, ocupado pelos turcos. Os Hospitalários aceitaram e atacaram a ilha de Rodes. O sucesso da operação gerou um novo objetivo para os cavaleiros: a defesa da cristandade no mar. Em dois séculos na ilha, a Ordem se tornou uma potência naval contra os turcos e um grande alívio para a Igreja Católica. “Os cavaleiros se estruturaram na ilha como uma nação soberana governada pelo grão-mestre, príncipe de Rodes, e pelo Conselho, que cunhavam moedas, reorganizaram suas próprias Forças Armadas e mantiveram relações diplomáticas com outras nações. Algo que continuará ao longo dos séculos seguintes”, diz Buttigieg. “E, para manter a tradição, construíram um hospital na ilha. Além disso, voltaram a ter uma missão: lutar contra os turcos. De força militar terrestre, os cavaleiros, então, criaram uma grande frota naval, muito bem treinada. E devastaram todo o litoral sul da Turquia, atrasando muito o avanço islâmico no Mediterrâneo. Isso ajudou os reinos cristãos da Europa Ocidental.” A mudança também se deu em termos de imagem: muitos filhos menores de nobres famílias europeias, que, por tradição, teriam sido forçados a seguir uma vida monástica para não arruinar o patrimônio familiar, se tornaram guerreiros sob as insígnias dos Hospitalários. Isso fez da Ordem uma confraria de nobres europeus, aumentando seu status social e

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reconhecimento internacional. Com todo esse “cosmopolitismo”, em 1319, a Ordem se organizou na base das regiões de proveniência e dos idiomas falados por seus cavaleiros. Surgiram assim as “línguas”, os oito grupos estruturados em: grão-priorados, baliados e comendas. Cada língua tinha como chefe um representante (Peleiro) com direito a um cargo no governo – mais um resultado inédito para os cavaleiros, que se tornaram, assim, a primeira organização internacional com bases europeias.

AVANÇO DOS TURCOS Eis que surge um desafio: a queda de Constantinopla, em 1453. Um choque para todo o mundo cristão. O Império Otomano estava pronto para invadir a Europa inteira e viu na ilha de Rodes uma entrada suculenta, iniciando um ataque sob a liderança do sultão Maomé II, em 1480, com dezenas de milhares de homens e centenas de navios, um dos maiores cercos jamais realizados. Porém, mesmo em forte desvantagem numérica, os Cavaleiros Hospitalários resistiram, forçando os turcos a se retirar. Parecia milagre. A Europa festejou, mas não enviou sequer um homem ou navio para ajudar os cavaleiros. Com isso, os otomanos tentaram nova investida em 1503. Mas fracassaram de novo. Já em 1522, sob a liderança de Solimão, o Magnífico, e após seis meses de confronto, a situação se tornou insustentável para a Ordem. Só que os cavaleiros, habilidosos na diplomacia, conseguiram negociar sua rendição com os turcos, mantendo a honra das armas e o compromisso de poupar a vida das populações de Rodes. Era o início do segundo exílio da Ordem. Seus membros, protegidos pelo papa Adriano VI, iniciaram a busca de uma nova sede,

abrindo uma difícil negociação com o imperador Carlos V. O soberano do Sagrado Império Romano e do Império Espanhol estava até disposto a conceder uma ilha aos cavaleiros. Entretanto, pretendia que o grão-mestre Philippe Villiers de l’Isle-Adam lhe jurasse fidelidade eterna. Um ato contrário à tradição de independência supranacional da Ordem. Parecia que a conversa estava destinada ao fracasso, no entanto, mais uma vez, a lendária diplomacia dos cavaleiros conseguiu um acordo. Em 1530, em troca do presente simbólico de um falcão, que representava a submissão da Ordem ao Império, foi concedida aos cavaleiros a ilha de Malta. Uma pequena rocha no meio do Mar Mediterrâneo, árida, pobre, mas estratégica. Foi lá que os nobres monges-guerreiros puderam recomeçar. E transformaram a ilha de Malta em sua fortaleza, aumentaram a potência de sua frota naval, se prepararam para lutar de novo contra os turcos e assumiram um novo nome: os Cavaleiros de Malta.

APENAS 7 MIL CAVALEIROS VENCERAM 40 MIL TURCOS E 500 NAVIOS

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BASTIÃO DA CRISTANDADE Enquanto isso, o sultão Solimão estava mobilizando seu grande império para atacar a Roma dos papas. E mais uma vez os cavaleiros Hospitalários se opuseram às miras dos otomanos. Liderados pelo 49° grão-mestre, Jean de La Vallette, em maio de 1565, a Ordem enfrentou o chamado “Grande Cerco de Malta”: era a chegada de 40 mil homens e de 500 navios turcos cercando a ilha para lutar contra apenas 7 mil cavaleiros e tropas auxiliares. A batalha durou até setembro e, contra qualquer previsão, os Cavaleiros de Malta tiveram uma grande vitória. “Os turcos ficaram tão irritados pela obstinação demonstrada pelos cavaleiros que


TESOURO DE MUITOS HERDEIROS Uma das lendas que circulam em torno da Ordem de Malta a aponta como detentora da riqueza dos Templários. De fato, com a bula papal Ad Providam, do dia 2 de maio de 1312, seguida pelo Concílio de Vienne, foi ordenado que todos os bens dos Templários fossem transferidos aos Hospitalários. Mas não foi bem isso o que aconteceu. Além da França, onde o rei obteve uma forte contrapartida econômica dos cavaleiros, outros reinados e ordens se beneficiaram. Em Portugal, por exemplo, as propriedades dos Templários acabaram nas mãos do rei Dinis I, que criou a Ordem de Cristo: a nova congregação de cavalaria que tinha como missão lutar contra os mouros, mas acabou ajudando no fortalecimento da frota naval, que nos dois séculos seguintes garantiu ao reino lusitano um papel de protagonista na epopeia dos Grandes Descobrimentos, como o do Brasil. O mesmo ocorreu na Espanha, onde a Ordem Militar de Nossa Senhora de Montesa, criada para conter a ameaça muçulmana, ficou com os bens dos Templários. Na Alemanha, as posses foram entregues à Ordem Teutônica. No Reino Unido, até passaram para a Ordem de Malta, porém, no século 16, os bens foram confiscados pelo rei Henrique VIII após ruptura com a Igreja de Roma e a criação da Igreja da Inglaterra. No fim das contas, o mítico tesouro dos Templários acabou disperso em vários lugares do mundo.

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decidiram pregar os prisioneiros em cruzes de madeira e deixá-las boiando no mar. O grão-mestre La Vallette respondeu mandando decapitar os prisioneiros turcos e atirar suas cabeças por canhões contra o acampamento inimigo”, conta Buttigieg. A defesa de Malta deu aos reinos cristãos do Ocidente o tempo de se preparar e, em 1571, ocorreu o confronto final com os turcos, em Lepanto, na batalha naval que decidiu o destino da Europa. A frota da Ordem de Malta participou do combate. Mas, antes de as frotas ocidentais chegarem à costa da Grécia para enfrentar os otomanos, La Vallete já havia dado sua contribuição à cristandade: o líder militar ordenou seus espiões infiltrados em Constantinopla a incendiar o arsenal turco, destruindo boa parte da frota inimiga – e garantindo a vitória dos cristãos. Graças a esse triunfo militar, o futuro parecia tranquilo e próspero para a Ordem. A gratidão para La Vallette foi tamanha que a nova capital de Malta foi chamada de Valletta. O local, além de se tornar uma poderosa fortaleza, atraiu os mais importantes arquitetos e artistas da época, que transformaram a cidade na pérola do Mediterrâneo.

mesmo sem a aprovação do papa. A decisão gerou estranheza, já que ele não era católico, mas ortodoxo, além de ser casado e ter filhos. O que explica é que o russo era obcecado pelos ideais românticos da cavalaria medieval – a ponto de mandar pintar em todos os seus retratos oficiais uma decoração no estilo maltês e criar um patriarcado ortodoxo da Ordem exclusivamente dedicado aos nobres russos. O período na Rússia foi o mais improvável para os Cavaleiros de Malta. O apoio do czar, entretanto, foi o que salvou a instituição. Quando, em 1801, Paulo I foi assassinado, seu filho Alexandre I renunciou a qualquer prerrogativa sobre a Ordem, que voltou a ser livre. Até que, em 1834, foi acolhida pelo Vaticano, que lhe concedeu a soberania sobre alguns edifícios no centro da cidade, como o Palácio Magistrale, em Via Condotti, e a Vila Magistrale, na colina do Aventino. Com isso, a Ordem manteve as vantagens de um Estado soberano, com ordenamento jurídico próprio e a permissão de imprimir selos e conceder passaportes, mesmo sem território e fronteira. “E então os cavaleiros voltaram para suas raízes: uma ordem religiosa, cujo objetivo é criar hospitais para peregrinos. Os privilégios concedidos pelo papa foram utilizados para criar uma nova e poderosa força humanitária internacional”, explica o professor Dalli. E novos desafios não faltaram para os trens-hospitais dos cavaleiros, que salvaram centenas de milhares de vítimas do grande terremoto de Messina, em 1908, das duas guerras mundiais e de tantos outros conflitos armados e desastres naturais. Hoje, a Ordem de Malta mantém cerca de 12.500 membros espalhados por todo o planeta, sempre operando em nome da caridade cristã.

NAPOLEÃO CONQUISTOU MALTA SEM RESISTÊNCIA – POR SER CRISTÃO

CHEGADA DE NAPOLEÃO Até que, em pouco mais de dois séculos, a calmaria na Ordem de Malta deu lugar a uma nova tormenta: Napoleão Bonaparte, que conquistou a ilha em junho de 1798, sem disparar um único tiro. Os cavaleiros tinham como regra não lutar contra os cristãos e não opuseram resistência, ficando mais uma vez sem pátria, sem exército e empobrecidos. Quem os acolheu desta vez foi um aliado tão inesperado quanto polêmico: o instável czar da Rússia, Paulo I, que conseguiu se eleger grão-mestre

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O TERRÍVEL FIM DOS TEMPLÁRIOS A ordem de cavaleiros mais poderosa da cristandade foi também uma das mais curtas: com dois séculos de existência, foi aniquilada pelo rei da França, Filipe IV, o Belo, que atacou os Templários para roubar seus bens. Rica e controladora da cobrança de impostos, a organização era obstáculo para a consolidação da França. O reinado estava quebrado e precisava de recursos. E, na lógica do rei, os cavaleiros, cuja função de protetores da Terra Santa tinha se esgotado, podiam ser sacrificados – ainda que, para isso, ele tivesse de forçar a maioria a confessar, sob tortura, crimes jamais cometidos. Acusados pelo rei de heresia e sodomia, os cavaleiros que viviam no país foram executados em 1307, enquanto o grão-mestre, Jacques de Molay, e seu vice, Geoffroy de Charny, foram presos, à espera de subir o cadafalso em 1313. Na ilha “dos Judeus”, no rio Sena de Paris, ambos enfrentaram uma massa furiosa de pessoas, que acreditaram nas acusações falsas do rei. De Molay, já resignado, apoiou-se na trave de madeira, onde seria queimado, e jogou a grande manta branca com a cruz vermelha, símbolo dos Templários, para longe do seu corpo. Com o gesto, o cavaleiro salientava que, naquele momento, o homem seria destruído, mas não a Ordem do Templo que ele representava. Apesar de todo o simbolismo e nobreza da atitude de seu líder, o fato é que terminava ali a aventura da mais influente de todas as Ordens de cavalaria.

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PARA ENTENDER POR MALU SAFATLE

BERLIM ORIENTAL

5 OBRAS PARA ENTENDER O LADO SOVIÉTICO DA CIDADE APÓS A DERROTA DA ALEMANHA NA SEGUNDA GUERRA

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Stasilândia, Anna Funder, 2008 Com tradução de Sergio Tellaroli, a obra traz uma análise investigativa, escrita à maneira de um romance, sobre um socialismo sustentado em boa parte pelo aparato policial da Stasi – a polícia secreta da ex-Alemanha Oriental. São relatos de vítimas e algozes que revelam as pequenas histórias de que é feita a História.

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1989: O Ano Que Mudou o Mundo – A Verdadeira História da Queda do Muro de Berlim, Michael Meyer, 2009 Para o autor, a imagem icônica de berlinenses orientais festejando no alto do Muro deve-se à casualidade e culminação de uma história. Seus argumentos estão neste livro, lançado para desconstruir os mitos que cercam o episódio e mostrar seus efeitos nos dias de hoje.

A Vida dos Outros, Florian Henckel von Donnersmarck, 2006 Filme retrata a paranoica vigilância exercida pela Stasi, abordando o tema da supressão das liberdades individuais. Para isso, conta a história de um dramaturgo que passa a ser vigiado. O oficial, por sua vez, fica fascinado pelas vidas que vigia e começa a questionar os métodos adotados pela própria Stasi.

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Adeus, Lênin!, Wolfgang Becker, 2003 Utilizando a sátira para retratar a abertura da Alemanha Oriental, o filme se passa em 1989, quando uma professora identificada com o regime socialista entra em coma na Berlim Oriental e só desperta em 1990, após a queda do Muro. Seu filho decide esconder as mudanças para evitar que o choque piore seu quadro clínico.

SITES QUE VALEM A VISITA: THE-BERLIN-WALL.COM STASIMUSEUM.DE

IMAGENS REPRODUÇÃO

Berlim: 1961, Frederick Kempe, 2013 Livro narra os bastidores da divisão do país pelo olhar do autor, um jornalista que trabalhou por mais de 25 anos no Wall Street Journal e foi correspondente internacional na Alemanha ocupada por potências bélicas do pós-guerra, período que se tornou necessário para compreender os desdobramentos da Guerra Fria.


COLUNA M.R. TERCI

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NO EPÍLOGO ERAM APENAS CRIANÇAS

costa Ñu, 16 de agosto de 1869” – respondem as crianças em uníssono quando inquiridas pela professora. São meninas e meninos que aprenderam desde cedo a refletir sobre o passado, alunos do ensino fundamental paraguaio que sabem de cor o nome das escaramuças mais encarniçadas. Dentre as datas oficiais celebradas no país, está o 16 de agosto – Dia das Crianças –, quando 3500 meninos, recrutados para lutar na Guerra do Paraguai, morreram na batalha de Acosta Ñu. De dezembro de 1864 a março de 1870, os exércitos da Tríplice Aliança – Brasil, Argentina e Uruguai – combateram as forças paraguaias. Após atacar o Brasil e invadir a província do Mato Grosso, o mariscal Solano López enfrentou uma enorme sucessão de batalhas em seu próprio território. Embora inferior às forças da Tríplice Aliança, o exército paraguaio obteve muitas vitór ias. Cont udo, após cinco anos de conflitos ininterruptos, a guerra já estava perdida para o Paraguai. A determinação insana do líder paraguaio transformou o Paraguai em ruínas e estima-se que 75% de sua população tenha perecido ao longo do conflito, nas frentes de batalha, no fogo cruzado ou devido à fome e pandemias que se espalhavam incontrolavelmente. Derrota e humilhação se tornaram a herança do aguerrido López. Mas incumbia ao ditador, que prometera “morrer lutando”, um último sacrifício aos sanguinários deuses da guerra. Posteriormente à tomada de Assunção, em janeiro de 1869, Caxias retornou ao Brasil, como também o fizeram os contingentes uruguaios e argentinos.

Assumia a liderança das tropas brasileiras, Gastão de Orléans, o Conde D’Eu, consorte da Princesa Isabel e um dos personagens mais contraditórios da Guerra do Paraguai. Entre muitos sucessos no front, o Conde D’Eu foi o responsável por escrever alguns dos mais vergonhosos capítulos da guerra. O mariscal Solano López já não dispunha de número suficiente de homens treinados para manter os combates, que se intensificavam em todas as linhas. Nesse período, idosos, mulheres e crianças estavam sendo recrutadas, porque a artilharia de coalizão já havia dizimado os contingentes formados por soldados adultos. Na Batalha de Acosta Ñu, López colocou adolescentes e também crianças de 6 a 8 anos, disfarçadas com barbas postiças, atrás das trincheiras. De longe, os soldados brasileiros viam soldados paraguaios adultos e atacaram brutalmente. O combate durou mais de seis horas. Mães auxiliavam no enfrentamento levando paus e pedras às crianças. No clímax da luta, durante a tomada das trincheiras, assustadas, as crianças menores se agarravam às pernas dos soldados brasileiros e imploravam chorando para que não as matassem. Não houve piedade. Cerca de 3500 infantes foram chacinados por 20 mil soldados profissionais. Finda a batalha, quase anoitecendo, as mães saíam das matas em derredor para resgatar os cadáveres de seus filhos e socorrer as crianças feridas. O Conde D’Eu ordenou, então, que fossem incendiadas todas as casas. A determinação era matar “até mesmo o feto no ventre da mãe”.

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

Na Batalha de Acosta Ñu, em 1869, mais de 3500 crianças foram chacinadas por soldados brasileiros

M.R. TERCI É ESCRITOR, FINALISTA NO PRÊMIO CUBO DE OURO, AUTOR DE IMPERIAIS DE GRAN ABUELO (2018), OBRA AMBIENTADA NO PÓS-GUERRA DO PARAGUAI, E BAIRRO DA CRIPTA (2019), NA BELLE ÉPOQUE BRASILEIRA

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COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

A Batalha de Argel Itália/Argélia, 1966 Direção: Gillo Pontecorvo

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ão há dúvida de quem são os heróis e os vilões neste filme político, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, a respeito da revolta dos argelinos contra a dominação francesa nos anos 1950. Os guerrilheiros da Frente de Libertação Nacional (FLN) lutavam por uma causa justa: a independência. O colonialismo na Argélia, ainda em meados do século 20, era marcado pela desigualdade. Enquanto indivíduos com descendência europeia eram considerados cidadãos franceses, a maioria da população muçulmana não era coberta pelas leis da França – e nem tinha direito a voto. Os europeus tomaram os melhores bairros das cidades e as terras dos agricultores nativos. Aos muçulmanos restavam duas opções: resignar-se a uma situação de oprimidos ou engendrar uma revolução. A Batalha de Argel faz uma reconstituição artística, em estilo de documentário, dessa segunda alternativa. O ponto de vista é o dos combatentes da FLN, que adotam táticas de guerrilha. Lutando pela organização estão líderes politizados, mas também mulheres de burca, crianças e homens do povo. Essa diversidade de perfis, comum em grupos terroristas, dificulta a repressão. Qualquer um pode carregar uma bomba caseira. E o diretor, Gillo Pontecorvo, não

esconde a crueldade dos guerrilheiros: civis morrem às centenas com as explosões em locais públicos. Os revolucionários apontam suas metralhadoras para a população europeia na rua. Não há uma ponta de romantismo heroico nesses ataques. Por isso mesmo, o filme hoje é referência para os americanos, exibido na CIA e no Pentágono, para a compreensão de estratégias terroristas. Mas, durante a Ditadura Militar, A Batalha de Argel foi proibido no Brasil, acusado de subversivo. Talvez nem fosse o protagonismo dos guerrilheiros que mais tenha desagradado aos militares daqui. Porque a primeira cena já escancara os métodos de interrogatório que os paraquedistas franceses empregam contra os argelinos, culpados ou inocentes: pau de arara, afogamento, eletrochoques... Tortura, enfim. Mais adiante, a imprensa questiona um coronel sobre a morte de um líder argelino, que, segundo os franceses, teria se enforcado na prisão – embora estivesse com as mãos e os pés amarrados. “Em tais circunstâncias, pode um homem rasgar a camisa, usá-la para fazer uma corda e se enforcar na janela?”. A mesma impossibilidade que fez com que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenasse o Estado brasileiro pelo “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog.

ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)

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AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

DOIS LADOS DO TERROR


ENTREVISTA

HISTÓRIA E HUMOR R

icardo Mioto é um jornalista treinado para enxergar o lado mais curioso, diferente e engraçado naquilo que, para muitos, é banal ou corriqueiro. E foi essa habilidade que ele usou para escrever seu livro Breve História Bem-humorada do Brasil (ed. Record), uma releitura anedótica da história e de personagens do Brasil. Mas, além de divertir, a obra também leva à reflexão ao relacionar fatos do passado com problemas atuais. Sempre de forma irreverente e sem os rigores da academia.

ENTREVISTA POR IZABEL DUVA RAPOPORT FOTO DIVULGAÇÃO

A história do Brasil é triste e violenta, mas você conta de forma engraçada. Por que usar o humor até nos temas mais pesados? Acho que a risada é uma grande aliada do aprendizado. Há até estudos que mostram que o humor faz a gente associar a disciplina que estamos estudando a um intenso prazer. E as piadas contadas são verdadeiras? Claro que sempre há um exagero, mas a maior parte é verdadeira. Eu conto, por exemplo, que a imagem que temos de Tiradentes meio barbudo, cabeludo, mezzo Jesus Cristo, mezzo surfista australiano, é falsa. E a piada, absolutamente justa, é que ele mais parecia um integrante da Companhia do Pagode: tinha bigodinho, barriguinha de chope e era meio careca. Quem

embelezou Tiradentes foram artistas do começo do século 20, que, após a proclamação da República, precisavam criar um herói para o novo regime. A obra também faz um paralelo entre o Brasil do passado e o atual. Qual sua intenção? É aquilo: povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la. O Brasil poderia ter dado certo. Em alguns pontos até deu, como no pioneirismo da vacinação universal para algumas doenças – a Europa deu ao mundo a Monalisa, mas a gente inventou o Zé Gotinha. Mas fracassamos em conseguir desenvolvimento econômico para todos. Não se trata de luxo, mas do mínimo: uma vida digna para toda a população. Entender por que não conseguimos isso,

interpretando nossa situação atual à luz do caminho que nos trouxe até aqui, é fundamental para que façamos diferente no futuro. Poderia nos contar um caso curioso? Quase não tinha esgoto no Brasil até o século 19 (em muitos lugares ainda não tem). E quando o penico enchia, o cocô era jogado pela janela. É claro que proliferavam ratos e, no começo do século 20, a peste bubônica transmitida por eles era um problema gravíssimo. Aí apareceu Oswaldo Cruz, um gênio da medicina preventiva que fez o governo pagar por cada rato morto que a população entregasse em postos devidamente preparados para incinerá-los. Não deu outra: tinha gente brigando por rato na rua. Era o Pokémon da época! Mas o melhor foi o malandro que começou a criar rato para matar e levar para o Oswaldo Cruz comprar. Quando isso se tornou público, foi uma confusão: um monte de gente presa, polícia fazendo batida em criatório de ratos e aquela bagunça que só acontece aqui e na Suécia.

“A risada é uma grande aliada do aprendizado”

RICARDO MIOTO JORNALISTA, TRABALHOU COMO EDITOR DE CIÊNCIA E DE ARTIGOS DE OPINIÃO NA FOLHA DE SÃO PAULO. ATUALMENTE É DIRETOR DA AGÊNCIA DE COMUNICAÇÃO FSB.

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MEMÓRIA

HÁ 50 ANOS, UM GRUPO DE JOVENS LIBERTOU PRESOS POLÍTICOS TROCANDO-OS POR UM REFÉM DE LUXO: O EMBAIXADOR DOS EUA POR ALEXANDRE CARVALHO

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FOTO REPRODUÇÃO

DITADURA FERIDA

om o rapto do embaixador, queremos mostrar que é possível vencer a ditadura e a exploração. Apareceremos onde o inimigo menos nos espera e desapareceremos em seguida, desgastando a ditadura.” Há exatos 50 anos, a carta escrita pelo jornalista Franklin Martins oficializava um vexame para a ditadura: um grupo de estudantes havia sequestrado o embaixador dos Estados Unidos. Ainda trazia as exigências dos sequestradores para não matar o americano Charles Elbrick: que a mensagem fosse divulgada na TV, no rádio e nos jornais, e que a ditadura libertasse 15 presos políticos (13 deles na foto), enviando-os para o México, de onde partiriam para o exílio. Entre eles, líderes estudantis, um sindicalista, militantes de grupos opositores ao regime e uma única mulher (do MR-8). Temendo uma tragédia diplomática com o país mais poderoso do mundo, os militares não quiseram arriscar: atenderam imediatamente às duas exigências.




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