EDIÇÃO 197 | OUTUBRO/2019
COMO VIVIAM OS GUERREIROS DAS GRANDES ESTEPES JACK KEROUAC: O HERÓI TRÁGICO DA GERAÇÃO BEAT OS VERDADEIROS PAIS DE INVENÇÕES CIENTÍFICAS
A PRIMEIRA SANTA IRMÃ DULCE, A FREIRA BAIANA QUE ENTROU PARA A HISTÓRIA OFICIAL DO VATICANO
SUMÁRIO
CAPA: IRMÃ DULCE ENTRA PARA A HISTÓRIA DO VATICANO COMO A PRIMEIRA MULHER NASCIDA NO BRASIL A SER CANONIZADA
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GALERIA A vida e a obra surrealista do artista Salvador Dalí
NA 12 HOJE HISTÓRIA
18 LINHA DO TEMPO Os idiomas usados entre os povos
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DITO E FEITO
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COMO FAZÍAMOS SEM
Aconteceu em outubro
14 ILUSTRADA
A estátua de Zeus, em Olímpia
De onde vem o termo popular “as paredes têm ovidos”?
A cor azul
16 MITOS E LENDAS 22 ARTE
A Batalha de Alexandre em Isso
Deus Osíris e sua nova representação
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À MESA A disputa pela origem do crème brûlée
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MEMÓRIA O início da República Popular da China
24 LITERATURA
Jack Kerouac, o papa da Geração Beat que influenciou a contracultura nos EUA
40 CIVILIZAÇÕES
Como viviam os guerreiros nômades das Grandes Estepes ao longo de três milênios
48 CIÊNCIA
Os verdadeiros pais de descobertas universais com quem a História não foi justa
54 PARA ENTENDER DEMOCRACIA
55 COLUNA M.R.TERCI
56 COLUNA ALEXANDRE CARVALHO
57 COLUNA CRISTIANA BOAVENTURA
EDITORIAL
A SANTA DOS POBRES
DIRETOR-SUPERINTENDENTE Luis Fernando Maluf
M
eu partido é a pobreza”, costumava dizer a freira baiana Irmã Dulce (19141992) enquanto saía pelas ruas de Salvador, na Bahia, com uma Kombi, acolhendo pobres e doentes. De postura apartidária, ela enfrentava qualquer comitiva para cumprir sua missão em nome da bondade e da solidariedade. E não se intimidava: com uma mão batia na porta de políticos e de grandes empresários; com a outra, confortava os necessitados e os desfavorecidos. Muito religiosa, a católica acaba de entrar para a História oficial do Vaticano, transformando-se na primeira mulher nascida no Brasil a ser canonizada. Porém, a reportagem de capa desta edição, escrita com olhar apurado e sensibilidade pela jornalista Raphaela de Campos Mello, vai além da santidade e das tradições milenares que permeiam a religião majoritária em mais de 150 nações. A matéria traz a história real e heroica de Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes e a sua importância para um país e um planeta tão desigual quanto o nosso. Boa leitura!
DIRETORES CORPORATIVOS Editorial: Pablo de la Fuente Comercial: Márcio Maffei Finanças e Controle: Filipe Medeiros Internet: Alan Fontevecchia Jurídico e RH: Wardi Awada Digital: Guilherme Ravache DIRETORIA E GERÊNCIAS Publicidade: Thaís Haddad (Diretora) Circulação: Luciana Romano (Assinaturas) Tecnologia Digital: Nicholas Serrano Arte, Prepress e Coordenação Gráfica: André Luiz P. da Silva
(Lançada em 2003) Editora: Izabel Duva Rapoport; Arte: Marília Filgueiras; Revisão: Bianca Albert; Colaborou nesta edição: Hellen Ribeiro (revisão) REDAÇÃO E CORRESPONDÊNCIA SÃO PAULO: Av. Eusébio Matoso, 1.375, 5º andar, Pinheiros, CEP 05423-180, SP, Brasil. Publicidade: Tel. 2197-2104/2122
Izabel Duva Rapoport Editora
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AVENTURAS NA HISTÓRIA 197 ISSN (18062415), ano 16, nº 9, é uma publicação mensal da Editora Caras. Edições anteriores: Solicite ao seu jornaleiro pelo preço da última edição em bancas, mais despesa de remessa; sujeito a disponibilidade de estoque. Distribuída em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. AVENTURAS NA HISTÓRIA não admite publicidade redacional A Editora CARAS informa que não realiza cobrança telefônica de débitos pendentes e não aplica qualquer tipo de multa em virtude de cancelamento de assinatura. Todos os nossos boletos são emitidos através do banco Santander, com cedente Editora CARAS SA. Em caso de dúvida, ligue para nós. PARA ASSINAR OU RESOLVER OS ASSUNTOS RELATIVOS À SUA ASSINATURA, ACESSE: www.assineclube.com.br/faleconosco SE PREFERIR LIGUE: São Paulo: (11) 3512-9479 Rio de Janeiro: (21) 4063-6989 Belo Horizonte: (31) 4063-8156 Segunda a sexta-feira das 9h às 18h IMPRESSA NA COAN INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA. Avenida Tancredo Neves, 300 Tubarão - SC - Brasil
EDITOR RESPONSÁVEL Wardi Awada
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GALERIA
EU SOU O 6
AVENTURAS NA HISTÓRIA
POR TRÁS DO ARTISTA QUE OUSOU SONHAR NA TELA DOS QUADROS, EXISTIU UM HOMEM TÃO INCOMUM QUANTO SUA OBRA POR ALEXANDRE CARVALHO
AVENTURAS NA HISTÓRIA
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GALERIA
GÊNIO IMODESTO “Salvador Dalí seduziu muitas damas. Mas essas seduções consistiam em deixá-las nuas, e então fritar dois ovos, colocá-los em cada um dos ombros das mulheres, e aí, sem nenhuma palavra, botá-las para fora do apartamento.” A inconfidência é do cineasta Luis Buñuel, um de seus amigos de juventude, com quem Dalí fez o filme surrealista Um Cão Andaluz (1929). Desde o início da vida adulta, o mestre do bigode pomposo já tinha um comportamento excêntrico. Mas que talvez fosse a incorporação do movimento artístico de que foi a maior estrela: o surrealismo era uma expressão do pensamento no qual o inconsciente e a incoerência do sonho prevaleciam. A extravagância de sua arte se estendia ao look: cabelo comprido, grandes casacos, às vezes um laço ao pescoço... Era um dândi, e foi expulso da faculdade, declarando que nenhum professor era competente para avaliá-lo. Era tão genial quanto arrogante. Em relação aos colegas do movimento, disse que “a diferença entre mim e os surrealistas é que eu próprio sou o surrealismo”. Ainda assim, não desprezava oportunidade de aparecer como ícone dessa geração: numa Exposição Internacional de Surrealismo, em 1936, surgiu vestindo um escafandro – e quase sufocou. 8
AVENTURAS NA HISTÓRIA
FOTOS LIES WIEGMAN, THE LIFE IMAGES COLLECTION, SCOTTISH NATIONAL GALLERY OF MODERN ART, BETTMANN, CHARLES HEWITT, KAMMERMAN, ETIENNE MONTES / GETTY IMAGES
GALERIA
AMOR SURREAL As imagens à esquerda revelam cenas (evidentemente – e artisticamente – montadas, claro) de Salvador Dalí em casa. A primeira e a última com sua musa e companheira da vida inteira, Gala (nascida Elena Ivanovna Diakonova), com quem se casaria em 1934. A russa foi a grande inspiração de boa parte de seus quadros, como A Madona de Port Lligat, com seus elementos místicos flutuando na tela. Aliás, Dalí manteve com Gala um relacionamento tão anticonvencional quanto sua arte. A partir dos anos 1950, a esposa manteve uma série de relacionamentos extraconjugais. Quando, em 1969, ele comprou para a mulher um castelo catalão, ela exigiu que Salvador Dalí só aparecesse na residência se fosse convidado por escrito. Ainda assim, a devoção do artista por ela foi incondicional. Quando Gala morreu, em 1982, Dalí se trancou em casa, fechou as cortinas e se negou a se alimentar e mesmo a beber água. Ficou desnutrido e perdeu a vontade de pintar – e de viver. Foi fiel até o final à afirmação que fizera no começo do romance: “É principalmente com o seu sangue, Gala, que eu pinto minhas imagens”. Sem ela, faltou-lhe matéria-prima. AVENTURAS NA HISTÓRIA
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HOJE NA HISTÓRIA
ACONTECEU EM OUTUBRO Mary Tudor assume como 1553 rainha da Inglaterra. Filha de Henrique VIII, ela tentou restaurar o catolicismo violentamente. O que rendeu a ela a alcunha de Bloody Mary, “Maria Sanguinolenta”.
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Promulgada a nova constitui1988 ção no Brasil. Ainda hoje em vigor, previa eleições diretas para presidente, governadores, senadores, deputados, prefeitos e vereadores.
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O revolucionário socialista Che 1967 Guevara é morto aos 39 anos pelo exército boliviano em colaboração com a CIA. Pela morte precoce, converteu-se em herói do anti-imperialismo e da revolução.
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O imperador romano Cláudio 54 é envenenado possivelmente com cogumelos pela esposa e sobrinha Agripina, a Jovem. Antes de morrer, nomeou o enteado Nero como sucessor. 12
AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Nasce Mohandas Karamchand 1869 Gandhi. Mais conhecido como Mahatma Gandhi, é considerado o pai da Índia por ter liderado um movimento nacionalista contra o controle britânico.
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A rinoceronte Cacareco recebe 1959 cerca de 100 mil votos nas eleições para o cargo de vereador em São Paulo. Foi a figura mais votada entre os 540 candidatos para as 45 vagas na Câmara.
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Ao explorar a costa brasileira, 1501 o navegador florentino Américo Vespúcio descobre o rio chamado pelos índios de Opará (“rio-mar” em tupi-guarani) e o batiza de São Francisco.
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O imperador chinês Wang 23 Mang, da dinastia Xin, é morto e decapitado por rebeldes dois dias depois que a cidade de Changan foi invadida e saqueada, durante rebelião de camponeses.
Uma frota hispano-veneziana 1571 de 208 navios vence a esquadra turca na Batalha de Lepanto, ao longo do Peloponeso oriental. Um ano antes, os otomanos haviam invadido Chipre e tomado Veneza.
Licínio, imperador romano 314 no Oriente, é derrotado por Constantino, imperador do Ocidente, na Batalha de Cíbalas. A rixa entre eles terminaria com a execução de Licínio, em 325.
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Acontece o Grande Furacão 1780 do Caribe, também nomeado de São Calisto II. A tragédia matou mais de 27.500 pessoas, tornando-se o furacão atlântico mais mortífero já registrado.
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Recebe o Prêmio Nobel da Paz 1964 Martin Luther King, pelo combate sem violência à desigualdade racial. O ativista foi assassinado em 1968 em Memphis, no Tennessee, Estados Unidos.
Lançada a primeira revista 1905 em quadrinhos dedicada ao público infantil do país, O Tico-Tico. Ela durou 56 anos, fazendo uma feliz mistura de educação, humor e entretenimento.
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Uma pandemia de gripe espanhola 1918 assola o mundo, que ficou em pânico. No Brasil, nesta data, é constatado que a doença atingiu o auge de sua contaminação e é declarado estado epidêmico.
Dom Pedro I é proclamado 1822 Imperador do Brasil – dia em que também completava 24 anos. A coroação se daria em dezembro do mesmo ano. E abdicaria em 1931 para voltar a Portugal.
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O juíz espanhol Baltazar Garzón 1998 emite um pedido de prisão a Augusto Pinochet. Acusado de atrocidades, o ex-ditador foi detido em Londres, onde se recuperava de uma cirurgia na coluna.
IMAGEM REPRODUÇÃO CHATEAU DE VERSAILLES
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Após receber uma mensagem divina 539 a.C. segundo a Bíblia, Ciro, O Grande, marcha até a Babilônia e, depois de conquistá-la, liberta os judeus de quase 70 anos de exílio, pondo fim ao Cativeiro Babilônico.
O Alasca é transferido 1867 da Rússia para os Estados Unidos por um valor de 7,2 milhões de doláres. E, só nos primeiros 50 anos, foram tiradas de lá riquezas cem vezes superiores a isso.
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Fernando, rei da Sicília e herdeiro 1469 do reino de Aragão, e Isabel, de Castela, se casam, o que marca o início da unificação política dos reinos ibéricos que dariam origem à Espanha.
Maria Teresa assume como 1740 rainha da Áustria. Ela foi a única mulher a governar durante o domínio da Casa de Habsburgo. Após sua morte, em 1780, uma guerra foi feita para decidir a sucessão.
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Durante a Primeira Cruzada, a cidade 1097 muçulmana de Antioquia é cercada pelo exército de cristãos liderados por Godofredo de Bulhão, Boemundo de Taranto e Raimundo IV de Toulouse.
O francês André-Jacques 1797 Garnerin realiza o primeiro salto de paraquedas com sucesso. Com 28 anos de idade, ele saltou de um balão em movimento, a mil metros de altura, em Paris.
Luís XIV da França revoga o 1685 Édito de Nantes com o Édito de Fontainebleau, no qual ordenava a destruição de igrejas huguenotes e o fechamento de escolas protestantes.
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Com a deposição do então presi1930 dente Washington Luís, tem sucesso a Revolução de 1930 e termina a República Velha. O poder iria para Getúlio Vargas, que não sairia da cadeira até 1945.
Carlos Martel, rei dos francos, 732 vence os muçulmanos na Batalha de Poitiers. A vitória freia a expansão do islamismo na Europa medieval, possibilitando a consolidação do cristianismo.
O Brasil entra na Primeira 1917 Guerra Mundial do lado da Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia). Nenhum brasileiro veria combate. O país se limitou a enviar patrulhas marinhas e ajuda médica.
O médico, teólogo e filósofo 1553 espanhol Miguel Servet, pioneiro na descoberta da circulação pulmonar do sangue, é queimado vivo por contestar dogmas da Igreja em suas publicações.
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Ocorre a Marcha sobre Roma, 1922 pelo Partido Nacional Fascista. Militantes exigiam a entrega do poder – e seriam atendidos. Benito Mussolini se tornaria primeiro-ministro.
A Biblioteca Nacional é criada 1810 com a transferência da Real Biblioteca Portuguesa para o Brasil, em 1808. Ela foi instalada no hospital da Ordem Terceira do Carmo, no Rio de Janeiro.
Emílio Garrastazu Médici 1969 assume a presidência. O governo seria marcado pelo “milagre econômico”, com alta taxa de aumento do PIB, e “anos de chumbo”, ápice da repressão.
Rômulo Augusto assume como 475 o último césar do Império Romano do Ocidente. Sua deposição pelo bárbaro Odoacro, menos de um ano depois, marca o fim do império e o fim da Antiguidade. AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Zeus era o deus mais poderoso da Grécia antiga. É provável que Fídias o tenha esculpido com a testa franzida por conta de uma lenda. Segundo ela, quando Zeus franzia a testa, fazia tremer o Olimpo (a morada dos deuses). Com isso, os gregos queriam dizer que estava sempre alerta.
e havia uma cidade na Antiguidade que girava em torno do esporte, esse lugar era Olímpia. O local onde tiveram origem os jogos olímpicos até ganhou um monumento que se transformou numa das sete maravilhas do mundo. A estátua de Zeus começou a ser feita em 440 a.C. por ordem do governante Péricles (495-429 a.C.), para incrementar o recém-construído templo dedicado ao deus. Afinal,
S
POR MARIA DOLORES DUARTE
Olímpia ganhava importância entre as cidades-estados gregas por conta dos jogos e merecia um templo melhor. A tarefa foi conferida ao escultor Fídias, amigo pessoal de Péricles. “A maior parte do que se sabe sobre a estátua se deve a Pausânias, viajante que registrou dados pitorescos sobre as regiões pelas quais passava”, informou Rafael Fragata, historiador e professor de História da Universidade de São Paulo.
UM DEUS GREGO PARA A CIDADE QUE INVENTOU A OLIMPÍADA
Os olhos da estátua eram de turquesa, e havia outras pedras preciosas incrustadas em seu trono. A coroa de louro que ele trazia na cabeça era banhada de ouro, assim como suas sandálias e manto. Os materiais foram levados da Ásia e da África pelo Mediterrâneo.
Fídias esculpiu uma imagem da deusa Nicéia, da vitória, na mão direita de Zeus. Na esquerda, um bastão com uma águia, símbolo de poder. Só que o escultor calculou mal o tamanho do monumento, que tem 15 metros de altura. Quando ele foi montado, quase bateu no teto do templo.
A ESTÁTUA DE ZEUS
ILUSTRADA
INFOGRÁFICO SATTU, CLÁUDIA DE CASTRO LIMA, DÉBORA BIANCHI, BERNARDO BORGES E LUIZ IRIA (CONSULTOR)
O templo do Olimpo ficava em uma praça na planície do Peloponeso. Ali aconteceu a guerra homônima. Os soldados, no entanto, não atacavam o templo, que era sagrado para ambos os lados envolvidos na peleja. O local tinha a parte da frente toda aberta. Assim, Zeus podia ser visto de qualquer lugar da praça.
As pessoas iam de todas as partes da Grécia e de regiões vizinhas venerar Zeus. Algumas levavam presentes para o todo-poderoso do Olimpo. O mais famoso foi uma cortina de lã com tramas assírias, ofertada pelo rei selêucida Antiochus IV.
Quando Fídias foi chamado para esculpir Zeus, acabara de criar uma técnica para fazer grandes estátuas: a base era uma moldura de ébano, depois encapada com folhas de ouro e marfim. Fídias chegou a transferir sua oficina de Atenas para Olímpia para fazer a obra, que durou cerca de oito anos.
MITOS E LENDAS
UMA NOVA REPRESENTAÇÃO DO DEUS OSÍRIS FOI ENCONTRADA EM TEMPLO DE KARNAK POR ROGER MARZOCHI
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AVENTURAS NA HISTÓRIA
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FOTO VCG WILSON/CORBIS / GETTY IMAGES
O SOL NOTURNO DO EGITO
escendente direto de Rá, o deus da criação, Osíris é o filho mais velho do casal Geb e Nut, e reinou sobre a Terra como o primeiro faraó do Egito. Isso até ser assassinado por seu irmão Set, motivado pelo ciúme e pela inveja. A partir daí, Osíris virou o deus supremo do mundo subterrâneo: o juiz do mundo dos mortos. Sua representação sempre foi associada a um homem mumificado de coroa branca e plumas de avestruz, braços cruzados sobre o corpo e, nas mãos, um cajado e um açoite. Dificilmente foi representado como animal, mas, quando isso ocorria, tomava a forma de um touro, crocodilo ou peixe. A revolução de Akenathon (“a glória de Aton”), porém, proibiu o culto a Osíris e a um panteão de outros 2 mil deuses do Antigo Egito – para que fosse venerado apenas Aton, o disco solar. O faraó deixou Tebas, a sede do poderoso Templo de Amon (Karnak), para criar uma cidade em Amarna, que se chamaria Akhetaton (“horizonte de Aton”). Pela primeira vez na História, o Egito se via cultuando um deus único. Mas a novidade só foi até a sua morte, em 1336 a.C. Um estudo recente (e em andamento), liderado por pesquisadores argentinos com egiptólogos do Museu Nacional, traz à tona uma possível nova representação do deus Osíris: um sol noturno, encontrado na tumba de Neferhotep, o escriba do Templo de Karnak que viveu há 3,3 mil anos no Antigo Egito. “A restauração do universo osiriano após Amarna é o que queremos conhecer melhor”, afirma a arqueóloga argentina Violeta Pereyra, líder do projeto que teve início em 1999. Segundo ela, a nova representação do deus do mundo subterrâneo configura uma transição entre o tipo de “monoteísmo” criado pelo faraó Akenathon para o retorno dos antigos deuses, após sua morte. É que, de acordo com as inscrições na tumba de Neferhotep, o escriba chegou à velhice no reinado de Ay, vizir de Tutancâmon que liderou o Egito por quatro anos após a morte do jovem faraó, até dar lugar a Horemheb. Ou seja: uma representação que apareceu justamente no período de transição.
À MESA
CRÈME BRÛLÉE
DESDE O SÉCULO 17 EXISTE UMA DISPUTA ENTRE FRANÇA, ESPANHA E INGLATERRA PELA ORIGEM DO DOCE POR ROGER MARZOCHI
IMAGENS GETTY IMAGES
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os espanhóis aos ingleses, passando pelos franceses. Há pelo menos 400 anos, vários povos reivindicam a autoria deste creme feito com leite, ovos, baunilha e açúcar. Mas há poucas evidências de teoria a respeito. Heloisa Bacellar, chef do restaurante paulistano Lá da Venda, explica que desde os tempos do Império Romano até a Idade Média há registros de receitas de pratos feitos com cremes engrossados, sejam eles doces ou salgados. No caso dos doces, os ingleses desenvolveram o chamado custard cream, um creme cozido em método banho-maria, enquanto os espanhóis, por volta de 1324, criaram o famoso creme catalão, que, além dos ingredientes acima, leva farinha, é assado e polvilhado com canela ou cítricos. Segundo Heloisa, a casquinha sobre a sobremesa foi criada como uma forma de conservar o doce, pre-
parado com antecedência para servir nos grandes banquetes da nobreza. Já a França só entrou na disputa em 1691, quando o chef francês François Massialot experimentou o creme catalão na divisa do seu país com a Espanha e registrou o prato no livro Le Cuisinier Royal et Bourgeois. No entanto, o registro veio com uma pitada diferente: sem farinha. E essa virou a versão mais conhecida e consumida no mundo até os dias de hoje. “Ao longo da história, os franceses pegaram várias ideias das cozinhas europeias e sistematizaram de forma inteligente”, conta a chef. Na França, batizado de brûlée, cuja tradução é “queimado”, o doce se popularizou no filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, em 2001, no qual a protagonista descobre que romper a fina camada caramelizada estava entre os pequenos prazeres da vida. AVENTURAS NA HISTÓRIA
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LINHA DO TEMPO
SÉCULO 15
PORTUGUÊS E ESPANHOL
LÍNGUA GERAL
Depois que clássicos como Os Lusíadas, de Camões, tornaram cultas as línguas das colônias romanas, o avanço marítimo tratou de difundi-las na Ásia, África e América. No século 16, foram usadas não só pelos governos coloniais, mas entre oficiais locais e europeus de várias origens.
No Brasil, o resultado da mistura do tupi, “a língua brasílica”, com traços portugueses originou a língua geral, falada entre as tribos paulistas, jesuítas, bandeirantes e escravos africanos. A língua geral foi a principal no país por mais de dois séculos. Em 1758, quando o Marquês de Pombal proibiu o uso de tupi na colônia, apenas uma em cada três pessoas falava português além da língua geral.
SÉCULO 14
IDIOMAS
ÁRABE
Durante o auge do Império Otomano e do comércio realizado pelas cidades de Gênova e Veneza com o Oriente, o árabe foi o idioma mais usado entre os intermediários para combinar preços e entregas de mercadorias. Para expressar-se intelectualmente, no entanto, o europeu do Renascimento continuou usando o latim.
INTERNA
200 A.C.
330 A.C.
Teve origem na região do Lácio, atual Itália, e espalhou-se com a dominação do Império Romano sobre a Europa. Por conta da influência da Igreja Católica, o latim permaneceu mesmo após a queda de Roma, em 476, originando as línguas latinas: italiano, espanhol, português e romeno. Nas igrejas e nas universidades, foi falado até o começo do século 20, pois era referência da cultura sacra e clássica.
Já era falado em todo o leste do Mar Mediterrâneo por causa do intenso comércio marítimo promovido pelas cidades gregas. Com Alexandre, a língua se espalhou para o Oriente e para o norte, em territórios como o Afeganistão. O grego continuou sendo amplamente falado até 1453, com a queda do Império Bizantino, influenciando línguas atuais como o português.
LATIM
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SÉCULO 16
AVENTURAS NA HISTÓRIA
GREGO
SÉCULO 16
SÉCULO 20
O idioma espalhou-se pela Europa não porque a França era um país economicamente dominante – e sim por sua força cultural. O francês era falado pela corte, pela diplomacia e pelos artistas de diversos reinos. A moda durou até a Segunda Guerra Mundial.
Com o fim da Guerra, os Estados Unidos surgiram como a nação mais poderosa do planeta, transmitindo sua cultura, hábitos e idioma aos países derrotados, como o Japão, e às nações periféricas. O inglês virou a língua franca no turismo, negócios e até nos estudos científicos e obras culturais, áreas anteriormente ocupadas pelo francês e pelo latim.
FRANCÊS
A HISTÓRIA DOS IDIOMAS USADOS ENTRE OS POVOS PARA SE COMUNICAR E A INFLUÊNCIA DOS GRANDES IMPÉRIOS DA HUMANIDADE POR CLAUDIA DE CASTRO LIMA
CIONAIS 550 A.C.
INGLÊS
3500 A.C.
SUMÉRIO E ACADIANO A primeira língua franca do mundo foi a dos sumérios, os pioneiros da escrita. Entre 3500 e 3000 a.C., foi falada do Norte da África à Ásia Menor. Durante a dinastia Acádia, fundada em 2470 a.C. o acadiano espalhou-se por toda a Mesopotâmia.
730 A.C.
PERSA
ARAMAICO
Nesta época, o príncipe Ciro, o Grande, deu início ao expansionismo persa, que se apoderou de uma área gigantesca – que incluía Babilônia, Egito e Macedônia. As derrotas contra os gregos enfraqueceram o império, que acabou conquistado por Alexandre, o Grande.
Durante os impérios da Assíria e da Babilônia, a língua aramaica, originada na Síria, tornou-se o idioma internacional. Sua utilização foi amplamente difundida desde o Egito até a Índia. Na região hoje equivalente à Palestina, chegou a suplantar o hebraico, entre 721 e 500 a.C. O aramaico foi provavelmente a língua falada por Jesus e seus discípulos séculos depois.
AVENTURAS NA HISTÓRIA
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DITO E FEITO
AS PAREDES TÊM OUVIDOS EXPRESSÃO VEM DE UM DITADO PERSA E DE UM SISTEMA DE ESPIONAGEM POR IZABEL DUVA RAPOPORT
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AVENTURAS NA HISTÓRIA
FOTO GETTY IMAGES
O
termo que exprime um alerta para os perigos de sermos escutados sem saber tem origem quase literal: vem justamente de um sistema de espionagem. Mas não desses atuais, com microfones embutidos nas paredes ou grampos nos celulares. O dito popular remonta à França do século 16, mais especificamente aos conflitos políticos e religiosos que culminaram no massacre de milhares de protestantes no dia 24 de agosto de 1572, na chamada Noite de São Bartolomeu, em Paris. A ordem da matança veio da realeza e do clero francês, católicos fervorosos. Segundo o Dicionário de Expressões Correntes, de Orlando Neves, o evento teve como responsável a rainha consorte, Catarina de Médici (15191589), esposa do rei Henrique II. Por ser mãe de três reis da França: Francisco II, Carlos IX e Henrique III, ela influenciou a vida no país durante mais de 30 anos. “No uso do poder, esta mulher renascentista se servia de muitas artimanhas”, afirmou o autor, que aponta a mais célebre entre elas: a nobre teria mandado ligar por tubos acústicos secretos as salas do palácio real, o Louvre, para possibilitar a audição em outras salas de encontros políticos a portas fechadas. Outra versão atribuída à origem do dito popular vem do Oriente, de um antigo provérbio persa que dizia: “As paredes têm ratos, e ratos têm ouvidos”. Ao se espalhar pelo mundo, a expressão foi ganhando novas roupagens e idiomas. Um dos primeiros registros de provérbio semelhante, aliás, aparece no clássico medieval The Canterbury Tales, escrito pelo inglês Geoffrey Chaucer entre 1387 e 1400. Em um dos contos da obra, ele descreve algo como “aquele campo tinha olhos, e a madeira tinha ouvidos”.
COMO FAZÍAMOS SEM
A COR AZUL
PIGMENTO QUE SURGIU DA MISTURA COM PEDRA SEMIPRECIOSA JÁ FOI EXTRAÍDO DE PLANTA FERMENTADA COM XIXI POR LÍVIA LOMBARDO
IMAGENS REPRODUÇÃO
C
laro que o azul existe desde que o mundo é mundo. Mas nem sempre conseguimos produzir artificialmente essa cor. Até o início da Idade Média, as cores que dominavam a maioria das representações artísticas eram vermelho, preto e branco. E a explicação é simples: a facilidade com que essas tintas podiam ser fabricadas. Já o azul era difícil de ser obtido. É certo que os egípcios conheciam um pigmento dessa cor há mais de 5 mil anos, mas ele era misturado ao pigmento de uma pedra semipreciosa: o lápis-lazúli. A dificuldade para se chegar a esse tom, aliás, fez com que os romanos durante a Antiguidade o associassem aos bárbaros – até ter os olhos claros já foi sinônimo de barbárie. No começo da Idade Média, o vermelho era a cor da nobreza, enquanto o azul era a dos servos. Os tecidos eram tingidos de azul com o pigmento extraído de uma planta chamada ísatis ou pastel-de-tintureiro. Para conseguir a tinta, era necessário deixar a planta fermentando em... xixi humano. Com o tempo, perceberam que o álcool acelerava o processo – por isso, t i nt u rei ros i nger ia m bebidas alcoólicas com a desculpa de que o xixi já sairia rico em álcool. A expressão em alemão blau werden, literalmente traduzida como “ficar azul”, significa na Alemanha “ficar bêbado”. No século 6, a técnica para obter o pigmento chamado azul-ultramar, feita com o lápis-lazúli, ganhou a Europa – a pedra, no entanto, chegou a custar mais que ouro. A descoberta do caminho marítimo para as Índias, no fim do século 15, levou à Europa o pigmento conhecido como índigo indiano, obtido com uma planta oriental. A utilização foi proibida – uma tentativa de preservar o tom produzido na região com ísatis – e dava até pena de morte. Já o pigmento azul-da-prússia foi descober-
to acidentalmente na Alemanha, numa experiência sobre oxidação do ferro, em 1704. Custava um décimo do preço da tinta feita a partir do lápis-lazúli e fez sucesso entre os pintores da época. De lá para cá, a indústria química evoluiu e possibilitou a obtenção de centenas de pigmentos mais baratos. Isso foi um fator crucial para o surgimento, no século 19, do impressionismo de artistas como Monet, que davam grande valor à cor. Mas, como muitos dos pigmentos desse período não possuíam uma boa permanência, vários quadros da época sofreram uma prematura descoloração.
DUELO ÉPICO POR IZABEL DUVA RAPOPORT
PINTURA DE 1529 RETRATA A GRANDE BATALHA DE ISSO, OCORRIDA EM 333 A.C.
ARTE
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ois tempos históricos se misturam nesta obra de arte: a heroica vitória de Alexandre, o Grande, contra Dario III na grande Batalha de Isso, em 333 a.C., e o conflito europeu vivido na época em que o quadro foi pintado, em 1529, pelo Sacro Império Romano-Germânico contra o Império Turco-Otomano. Por encomenda do duque da Baviera, Guilherme IV, o pintor alemão Albrecht Altdorfer (1480-1538), fundador da Escola do Danúbio e um dos pioneiros da pintura de paisagem, retratou o conflito do passado, mas usou elementos típicos do seu tempo (ver no item 1). Hoje, A Batalha de Alexandre em Isso está na Antiga Pinacoteca de Munique, ao lado de outras obras da coleção inicial do duque, todas com temáticas históricas.
Nesta obra, Altdorfer representou os persas comandados por Dario III em 333 a.C. como típicos turcos, desde as armas até os trajes. “A maioria dos persas assemelha-se, dos pés ao turbante, aos turcos, que, no mesmo ano de composição do quadro sitiaram Viena, sem resultado”, descreveu o historiador Reinhart Koselleck.
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Para reproduzir a lendária vitória de Alexandre, o Grande, o artista mostra os soldados do herói deslocando-se da direita para a esquerda, enquanto os soldados persas fazem o movimento contrário. Na parte de cima, há a figura do Sol iluminando as tropas de Alexandre. Já no lado de Dario III, estão presentes a Lua e a atmosfera sombria.
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A força da natureza parece participar da agitação do choque bélico, passando-o para uma escala cósmica – e o artista consegue este efeito num quadro que só mede 158 x 120 cm. Sua execução dos minúsculos soldados é tão paciente e detalhada, que o conjunto da obra anula os episódios individuais e amplifica toda a grandeza do combate.
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LITERATURA
A ESTRADA DE
JACK KEROUAC KEROUA UAC UA AC HÁ 50 ANOS MORRIA O PAPA DA GERAÇÃO BEAT, QUE INFLUENCIOU A CONTRACULTURA E O MOVIMENTO HIPPIE POR ALEXANDRE CARVALHO
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u sou católico, então não posso cometer suicídio, mas eu planejo beber até morrer.” Jean-Louis Lebris de Kerouac, americano de ascendência franco-canadense, conseguiu cumprir sua promessa 50 anos atrás – em outubro de 1969. A esposa, Stella Sampas, acostumada a testemunhar seus mal-estares provocados pela bebedeira, ouviu-o vomitando sangue no banheiro, na casa em que moravam na Flórida. Chamou a ambulância e os médicos logo viram que o caso era de cirurgia. Mas era tarde. O escritor que influenciou toda a contracultura e o nascimento do movimento hippie – e que o mundo conheceria como Jack Kerouac, papa da Geração Beat – morria jovem, aos 47 anos. Uma hemorragia abdominal associada à cirrose hepática – alimentada em anos de consumo pesado de vinho licoroso, uísque e o que aparecesse pela frente – confirmou a profecia do artista. O cansaço de si mesmo – ou da figura que ele projetou após a publicação de On the Road, um dos
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maiores clássicos literários americanos – foi o combustível dessa autodestruição, que levou ao fim precoce de um dos mais importantes escritores do século 20. Mas a fama que Kerouac repudiou em seu crepúsculo foi a justa identificação entre o autor e seu livro mais importante. A obra-prima que o levou ao estrelato é profundamente autobiográfica, conta em detalhes os primeiros encontros dos escritores que fundariam a Beat Generation, suas viagens de carona ou ao lado do camarada Neal Cassady através dos EUA, entre o fim dos anos 1940 e o começo dos 1950, e também a identificação desses homens de letras com a liberdade criativa do jazz bebop – estilo musical que teria influência na forma como Kerouac construiu seu registro. À velocidade das notas nos solos de saxofone, o escritor respondeu com um método de prosa espontânea, rápida, baseado na certeza de que o primeiro pensamento é sempre o melhor. “Gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e me con-
fundo inteiro e fico todo enrolado correndo de um destino falido para outro até desistir. Assim é a noite, e é isso o que ela faz com você. Eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser minha própria confusão.” Em 1951, Jack concluiu o manuscrito original de On the Road em apenas 20 dias. Para não ter de ficar trocando de folha enquanto datilografava freneticamente, enfiou na máquina de escrever um rolo de 36 metros de papel de telex. Foi com essa avalanche de palavras – com pouca pontuação e muito sexo, bebida, entorpecentes, jazz e quilômetros de estrada – que o autor bateu na porta de editoras durante anos. Até que a Viking Press aceitasse o material, cortasse centenas de páginas, acrescentasse umas tantas vírgulas, quebrasse parágrafos e limasse um pouco do que outros editores associaram com pornografia e apologia às drogas. Ainda assim, editado para o mercado, o livro era Kerouac puro, um míssil que atingiu em cheio o conservadorismo americano, atraiu
milhares de seguidores e abriu os olhos dos Estados Unidos para um público que o país ignorava até então: o jovem.
LIBERTÁRIOS NO PÓS-GUERRA Nos anos 1950, nos EUA, e em muitas outras partes do mundo, só havia dois tipos de pessoas: crianças e adultos. Um moleque se vestia como menino até que, em dado momento de sua adolescência, já lhe empurravam paletó e gravata, e responsabilidades de homem feito. A menina, de criança logo passava a copiar as práticas de dona de casa da mãe. Não é estranho, portanto, que muitos se casassem tão cedo. Os textos – e os hábitos – dos Beats mostravam uma alternativa surpreendente (para a época): que jovens de 20 anos podiam ter outros interesses. Eles queriam viajar sem programação ou dinheiro contado, queriam passar suas noites em festas intermináveis ou em longas conversas em apartamentos divagando sobre a arte, o amor AVENTURAS NA HISTÓRIA
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LITERATURA
A NOVA GERAÇÃO DE ESCRITORES ROMPEU COM AS AMARRAS DA LITERATURA NORTE-AMERICANA ou a guerra. Queriam experimentar de tudo e testar os limites de sua sexualidade e independência. Hoje você diria que isso é coisa de universitário. Sim! Coisa de jovem. Algo inimaginável numa perspectiva que só entendia a infância ou a formalidade anacrônica. Expoentes Beats como Kerouac, o poeta Allen Ginsberg e o amigo marginal Neal Cassady – a grande inspiração de On the Road – surgem em retratos dos anos 1950 em jeans e camiseta, sendo que mesmo dez anos depois os Beatles e os Rolling Stones – que abriram de vez a porta para a cultura jovem – ainda passariam um bom tempo fazendo shows de rock vestindo terno. Kerouac se encontrou pela primeira vez com
NEAL, ALLEN E BILL Além de Jack Kerouac, outros três heróis Beats foram protagonistas do movimento que mudou para sempre a juventude americana:
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AVENTURAS NA HISTÓRIA
os dois outros grandes escritores dessa geração – Ginsberg e o junkie William Burroughs – em 1944. No ano seguinte, os EUA atirariam duas bombas atômicas no Japão, dando fim à Segunda Guerra e saindo do conflito como os líderes de uma nova ordem internacional. Esse período foi, assim, de exaltação do American Dream, da busca de prosperidade pelas vias do capitalismo, de estímulo ao consumo e a glorificação de uma estrutura familiar em que a mulher adulta buscava ser a gerente doméstica perfeita (cercada dos melhores eletrodomésticos), enquanto o homem saía para o escritório em busca do sustento. Os Beats deram voz a um inconformismo contra esse status quo, rejeitando uma sociedade movida pelo capital e pelos valores conservadores. Embora cada escritor tivesse suas idiossincrasias, havia um sentimento geral de que o capitalismo destruía o humanismo, era antiético e ia contra a ideia de igualdade social. Os livros dessa turma mostravam uma América menos
NEAL CASSADY
dourada, com seus vagabundos, outsiders, seus imigrantes misturando-se aos universitários e poetas, que por sua vez idolatravam os músicos negros do jazz. Uma América menos pudica também: Kerouac e companhia acreditavam que a arte deveria se sobrepor à moralidade convencional. E isso – como ocorre até hoje – obviamente lhes trouxe problemas. Em seu livro Uivo, o poeta Allen Ginsberg expôs abertamente sua homossexualidade e o consumo de drogas de seus pares, numa linguagem que rompia com a estrutura da poesia formal – sem esconder falos, orifícios e os palavrões que a arte até então varria para debaixo do tapete. Falando sobre si e os outros Beats, Ginsberg apresentava aos leitores um grupo de iconoclastas... “que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York (...) com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos e intermináveis orgias”. Isso em 1956.
(1926 – 1968)
Não foi surpresa, então, que Uivo acabasse apreendido pela polícia de São Francisco sob acusação de obscenidade. Depois de um julgamento que chamou atenção na mídia, no qual discutiu-se a liberdade de expressão, a obra foi liberada – e vendeu milhões de exemplares, a exemplo do sucesso tsunâmico de On the Road.
CÂNONE OUTSIDER O êxito comercial da Geração Beat foi um furacão que arrastou a juventude americana, praticamente parindo a contracultura e dando legitimidade a comportamentos vistos como alternativos. Sua influência foi determinante para a revolução sexual que tirou muitos gays do armário e deu uma autonomia nunca vista às mulheres. Também foi ponto de partida para militâncias de minorias que, pela primeira vez, estavam ganhando protagonismo em obras de alcance popular. On the Road comparava os negros jazzistas com semideuses gregos ou orá-
QUEM FOI: Embora só tenha publicado um livro obscuro (e póstumo), foi uma figura central do movimento. Carismático, verdadeiro aventureiro das estradas da América, Cassady foi melhor amigo, personagem e grande inspiração de Kerouac em On the Road. Morreu aos 42, deitado sobre trilhos de trem no México, depois de misturar bebida com calmantes numa festa de casamento. COMO É CHAMADO EM ON THE ROAD: Dean Moriarty OBRA MAIS IMPORTANTE: O Primeiro Terço (1971) ESCREVEU: “Dentre aqueles homens sombrios que haviam se dedicado, cada um por sua própria e boa razão, à tarefa de terminar seus dias como bêbados sem vintém, eu, sozinho, ao compartilhar de seu modo de vida, lhes apresentava uma réplica da infância para a qual eles podiam voltar seu olhar desamparado”.
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LITERATURA
culos, porta-vozes da liberdade existencial que a TV censurava. Em outro livro de Kerouac, Os Subterrâneos, seu alter ego apaixona-se por Mardou Fox, uma mulher independente e arrebatadora, meio negra, meio índia – distante dos padrões das heroínas americanas. A concentração dos Beats, durante um tempo, em São Francisco, porto onde chegavam navios da Ásia, fez com que os escritores adotassem elementos da cultura oriental. Assim acabaram disseminando budismo e meditação antes que os roqueiros da segunda metade dos anos 1960 – Beatles à frente – se interessassem pela filosofia indiana. Obras dos Beats inspiraram ainda a consciência ecológica, a luta contra a censura e a desmistificação de drogas leves, como a maconha. Não é à toa que são considerados os precursores do movimento hippie, que levou sua contestação e desapego material a novos patamares – até acabarem absorvidos pelo sistema. Depois de On the Road, milhares de jovens americanos
IMAGENS GETTY IMAGES
WILLIAM BURROUGHS (1914 – 1997)
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confrontaram os sonhos de grandeza de seus pais e saíram de casa com a mochila nas costas, determinados a cruzar o país de carona. Não é que todos desprezassem um futuro profissional, ter casa, carro e filhos. É que, pela primeira vez, entendiam que, antes de abraçar ou não a tradição, precisavam encarar uma estrada – tão real quanto metafórica – rumo ao autoconhecimento. Deram-se o direito de ser jovens – por seis meses ou pela vida inteira. Os roqueiros, claro, beberam dessa fonte. Jim Morrison, líder dos The Doors, disse que On the Road mudou sua vida, enquanto Ginsberg foi adotado por Bob Dylan, tornando-se amigo íntimo e confidente do músico. Já o maluco-beleza Neal Cassady se tornaria motorista de um “ônibus alucinógeno”, que levava Jerry Garcia, do grupo psicodélico Grateful Dead, e outros artistas que viajavam movidos a LSD. Nessa toada, o alcance da Geração Beat ganhou tal proporção que ser outsider virou, de
QUEM FOI: O mais velho do grupo foi também o que mais experimentou na vida. Foi bissexual, alternou entre a literatura e as artes plásticas, viajou o mundo e tentou todas as drogas possíveis. Seus livros, autobiográficos, falam do vício em drogas que permeou sua vida adulta. Mas um dos fatos mais marcantes de sua história nada teve a ver com literatura: brincando bêbado de tentar acertar, com um tiro, um copo sobre a cabeça da esposa, acertou a própria mulher, que morreu na hora. COMO É CHAMADO EM ON THE ROAD: Old Bull Lee OBRA MAIS IMPORTANTE: Almoço Nu (1959) ESCREVEU: “Cocaína é como eletricidade correndo pelo cérebro, sua fissura é puramente cerebral, desprovida de corpo e emoção. O cérebro ativado pela cocaína é uma máquina de pinball enlouquecida, piscando luzes azuis e cor-de-rosa no auge de seu orgasmo elétrico”.
repente, mainstream. Nos EUA, o mundo do entretenimento viu a abertura de “bares beatniks”, com programações de saraus poéticos e o mesmo jazz que seus ídolos exaltavam. A TV passou a produzir esquetes cômicos baseados em estereótipos criados pela mídia: homens de óculos escuros, cavanhaque e boina, recitando poesia acompanhados por um bongô. Enquanto Allen Ginsberg lidou bem com o novo status de popstar, aproveitando sua figura pública para dar peso a movimentos de contestação, Jack Kerouac detestou a superexposição e a súbita metamorfose de sua literatura em bem de consumo. Nos últimos anos de vida, o autor de On the Road tornou-se um recluso, rejeitando pedidos de entrevista e chutando da sua varanda os hippies curiosos, que não paravam de chegar à sua porta na esperança de trocar uma ideia com o herói da contracultura. Quem o viu depois dos 40 anos encontrou um homem deprimido, que morava com a terceira esposa e a mãe inválida,
O ÊXITO COMERCIAL DOS BEATS FOI O PONTO DE PARTIDA PARA A MILITÂNCIA DE MINORIAS NOS EUA – inchado pela bebida, brigado com os antigos companheiros de aventuras, e que só saía de casa para ir ao bar do seu cunhado, onde podia beber tanto vinho barato quanto aguentasse. Tinham ficado para trás os dias em que Jack, morto há exatos 50 anos, escreveu, pela voz de seu alter ego, Sal Paradise, os versículos de uma bíblia do jovem de alma poética e fora do sistema: “Para mim, as pessoas que importam mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e jamais dizem coisas banais, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício”.
ALLEN GINSBERG (1926 – 1997)
QUEM FOI: O grande poeta do grupo, esse judeu-budista se tornaria um militante pela liberdade de expressão e contra a repressão sexual, o militarismo e o materialismo. Foi um agregador do grupo Beat, incentivando os outros a escrever. Mais tarde, viraria amigo de artistas do rock, como Bob Dylan. COMO É CHAMADO EM ON THE ROAD: Carlo Marx OBRA MAIS IMPORTANTE: Uivo (1956) ESCREVEU: “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus / arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa / hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite”.
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PRIMEIRA MULHER NASCIDA NO BRASIL A SER CANONIZADA, IRMÃ DULCE ENTRA PARA A HISTÓRIA OFICIAL DO VATICANO POR RAPHAELA DE CAMPOS MELLO
comitiva do presidente Eurico Gaspar Dutra cumpria o roteiro pré-determinado em direção à Igreja do Bonfim, na capital baiana. Visita de praxe ao santuário. Ponto turístico. Fotografias para os jornais. Tudo dentro do previsto. Até uma aglomeração se formar, impedindo a passagem da carreata. Surpresa. Uma freira franzina, acompanhada de 300 crianças, solicitava ser ouvida pelo dirigente da Nação. Com voz suave e olhar compassivo, rogou ao militar que fosse, simbolicamente, seu avô. Fora atendida. Sem demora, recursos federais aportavam nas obras assistenciais de Irmã
Dulce (1914-1992). A assertividade, traço de personalidade predominante na religiosa nascida em Salvador, destoava de sua aparência miúda, fragilizada pelos problemas respiratórios, que despontaram na juventude e se agravaram com o passar dos anos. Não tinha constrangimento algum em pedir pelos pobres e doentes. Com uma mão, batia na porta de políticos, empresários e bem-nascidos; com a outra, acolhia e confortava os necessitados. Certa vez, conta o jornalista Jorge Gauthier, no livro-reportagem Irmã Dulce: Os Milagres pela Fé (Editora Autografia), a freira viu uma de suas palmas ser preenchida com o cuspe AVENTURAS NA HISTÓRIA
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de um comerciante, que se recusava a contribuir. Sem se abalar, o “Anjo Bom da Bahia”, como ficou conhecida, estendeu a mão limpa, explicando que a grosseria tinha sido a ela endereçada, mas que a outra palma continuava livre para receber a doação aos desvalidos. “Firmeza de propósito”. “Vocação inabalável”. “Força sobre-humana”. Todas as expressões explicam a obstinação da religiosa em auxiliar a humanidade. Mesmo abatida, ela conseguia realizar o impossível. “A vida é breve. Por que não aproveitamos o tempo e buscamos uma vida de amor a Deus?”, a então noviça indagou à irmã Dulcinha numa carta datada de 1933. No instante em que riscava o papel, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, filha de um dentista e de uma dona de casa, irmã de quatro, não imaginava que sua devoção e futura obra caridosa – além de dois reconhecidos milagres (leia no boxe da página 38 as características dessa benesse divina) – seriam responsáveis por cravar seu nome no álbum dos santos católicos. A cerimônia de canonização da religiosa, prevista para acontecer no dia 13 de outubro, no Vaticano, será presidida pelo papa Francisco. E passará a se chamar Santa Dulce dos Pobres, a primeira mulher nascida no Brasil a receber tal honraria.
depois, tornava-se oficialmente freira e assumia a alcunha Irmã Dulce, em homenagem à mãe, falecida quando a garota tinha 7 anos de idade, após dar à luz sua irmã Regina, que veio a morrer pouco depois. Um ano mais tarde, estava liberada para seguir sua missão humanitária em outras localidades. Por sorte, foi encaminhada para sua terra natal, onde iniciou um duradouro e gigantesco trabalho social.
LEGADO HUMANITÁRIO Quem conviveu com Irmã Dulce diz que ela conjugava três papéis: mãe carinhosa, mas que sabia a hora de ser firme; administradora visionária; e religiosa disciplinada. Rezava dois terços todos os dias – um às 6 da manhã; outro às 3 da tarde –, além de sempre recorrer ao seu santo querido, Antônio, padroeiro dos pobres. Fincada nesse tripé, ela fundou, em 1936, a União Operária São Francisco, primeiro movimento cristão operário da Bahia. No ano seguinte, a entidade se converteu no Círculo Operário do Estado, centro de cultura, recreação e proteção social das famílias da classe trabalhadora. A manutenção da iniciativa era possível graças à arrecadação de três cinemas construídos com doações: Plataforma, São Caetano e, mais tarde, o Roma. Em 1939, inaugurou ainda o Colégio Santo Antônio, escola pública voltada para operários e seus filhos. Irmã Dulce não sossegava. Saía pelas ruas acudindo doentes e famintos. Não esperava que eles chegassem até ela. Cada vez mais aflita, sem ter onde abrigar os miseráveis, fez história num ato de ousadia. Em 1949, ocupou o galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio, adaptado para acomodar 70 enfermos. Era o começo de um legado vigoroso em prol da saúde das classes desfavorecidas. Sua intervenção cresceu e, em 1959, recebeu o estatuto de Obras Sociais Irmã Dulce (OSID). No ano seguinte, ela inaugurou o Albergue Santo Antônio, com 150 leitos. Atualmente, a
HÁ 70 ANOS, A FREIRA OCUPOU O GALINHEIRO DO CONVENTO PARA ACOMODAR 70 DOENTES DAS RUAS
PREDESTINADA AO SERVIÇO A vocação religiosa se mostrou aos 12 anos, quando a menina visitou uma favela acompanhada da tia. Não suportou testemunhar a miséria. Tinha de fazer algo. Decidiu, então, alimentar os pobres e cuidar dos enfermos na porta de casa. Por isso, passou a ser chamada carinhosamente de Mariinha. Estava certa de que vestiria o hábito de freira, mas seu pai quis que se tornasse professora. Concluiu o curso. Bateu o pé. E, no dia 9 de fevereiro de 1933, ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, localizada no interior de Sergipe. Seis meses 32
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LINHA DO TEMPO A tradição atravessa os milênios e remonta às origens do cristianismo:
PRIMÓRDIOS DA IGREJA O reconhecimento da santidade advinha da aclamação do povo. Os mártires eram venerados pelas pessoas sem prévias investigações nem atestado oficial
993 O primeiro santo proclamado foi Santo Ulrico, bispo de Augsburgo, na Baviera. Tal gesto só foi designado como canonização no século 12 numa carta do Bispo de Constança ao papa Calixto II (1119-1124)
COMEÇO DO SÉCULO 12 Inocêncio IV definiu os termos da canonização e ordenou que só o papa poderia emitir esse aval. A Cúria Romana começou, então, a exigir uma investigação mais crítica e ampla
1228 Antes de proceder à canonização de Francisco de Assis (dois anos após sua morte – tempo recorde), o papa Gregório IX fez questão de abrir um processo, apesar de Francisco ter sido seu amigo AVENTURAS NA HISTÓRIA
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1588 O papa Sisto V fundou a Sagrada Congregação dos Ritos, que passou a regular o culto divino e estudar as causas dos santos. Com isso, o processo ficou mais demorado e as exigências mais rigorosas 34
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1634 O papa Urbano VIII proibiu qualquer manifestação popular de culto e veneração de candidatos a santo sem a prévia beatificação
1969 Por determinação do papa Paulo VI, a Congregação dos Ritos foi dividida em duas: a Congregação para o Culto Divino e a Congregação para as Causas dos Santos. A reforma agilizou o curso das causas
1983 João Paulo II revisou o processo de canonização. Nos 27 anos em que presidiu o Vaticano, o polonês proclamou 482 santos e 1338 beatos
2016 Papa Francisco aprovou novas normas para o financiamento de beatificação e canonização. Seu objetivo era garantir mais transparência, após escândalos envolvendo os recursos para este fim
entidade filantrópica abriga um dos maiores complexos de saúde 100% SUS do país, com 21 núcleos e cerca de 3,5 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados por ano na Bahia.
CRÍTICAS E HONRARIAS A dedicação ilimitada ao trabalho social, contudo, lhe custou caro. Suas irmãs na congregação entenderam que a freira estava distante das rotinas da clausura e, por isso, ela passou, de 1965 a 1975, por um período de exclaustração, espécie de suspensão das atividades religiosas. No entanto, Irmã Dulce continuou usando o hábito. Por outro lado, em 1988, seu nome entrou na disputa pelo Prêmio Nobel da Paz, por indicação do então presidente José Sarney. Seus esforços teriam sido reconhecidos à altura, não tivesse o russo Mikhail Gorbachev tomado a frente e angariado a láurea pela contribuição para o fim da Guerra Fria. Outra nobre demonstração de reconhecimento foi a visita do papa João Paulo II ao seu leito, cinco meses antes da sua morte. Era a segunda vez que eles se encontravam em terras brasileiras. Na primeira, em 1980, o Sumo Pontífice tinha incentivado a freira a seguir com suas obras, mas com uma ressalva: que ela cuidasse melhor da sua saúde. No final da vida, bastante debilitada por um enfisema pulmonar, Irmã Dulce não se conformava em permanecer na cama, longe daqueles que careciam da sua ajuda e aconselhamentos. Não parava durante o dia e, à noite, ainda encontrava fôlego para rodar a cidade numa Kombi recolhendo doentes e levando-os ao hospital. O “Anjo Bom da Bahia” finalmente descansou no dia 13 de março de 1992, aos 77 anos, no Convento Santo Antônio. Seu túmulo definitivo, a Capela das Relíquias, localizada no Santuário de Irmã Dulce, no bairro do Bonfim, em Salvador, para onde seus restos mortais foram transferidos, vive coberto de agradecimentos pelas dádivas alcançadas ao longo da sua vida.
DOS MÁRTIRES AOS SANTOS Irmã Dulce se juntará a outros santos com história no Brasil, previamente reconhecidos pelo Vaticano: Madre Paulina, nascida na Itália (canonizada em 2002), Frei Galvão (2007), padre José de Anchieta, nascido na Espanha (2014), além dos mártires Roque Gonzalez, Afonso Rodrigues e João de Castilho, mortos no Rio Grande do Sul no século 17 (1983) e os 30 mártires assassinados também no século 17, mas no Rio Grande do Norte (2017). A canonização da baiana será uma das mais rápidas da história (27 anos após seu falecimento), atrás somente da santificação de Madre Teresa de Calcutá (que ocorreu 19 anos após o falecimento da religiosa) e do papa João Paulo II (nove anos após sua morte) – para se ter ideia, Joana d’Arc foi canonizada 489 anos após seu fim trágico na fogueira. O processo da freira brasileira se iniciou no ano 2000 e o primeiro milagre associado à intercessão dela – a cura de uma hemorragia gravíssima após um parto seguido de complicações – foi atestado pelo papa João Paulo II em 2003. Seis anos depois, o papa Bento 16 lhe concedeu o título de Venerável (confira a sequência de honrarias no boxe da página 37) e, em 2011, ela foi beatificada. O anúncio da canonização se deu em maio deste ano, após a confirmação de um segundo milagre. De acordo com o comunicado oficial, um cidadão baiano teria se curado de uma cegueira por intercessão da religiosa. O evento histórico para os brasileiros, especialmente para o povo da Bahia, representa uma tradição que atravessa os milênios e remonta aos primórdios do cristianismo (veja a linha do tempo desta matéria). “Durante os três primeiros séculos, ante a perseguição dos cristãos, aqueles que morriam para não renegar Cristo e a fé, os mártires, eram venerados como santos. Com o tempo, se exigiu uma investigação prévia do fato do martírio, da vida e dos milagres do confessor, investigação que se fez cada vez
SEU NOME ENTROU NA DISPUTA PELO PRÊMIO NOBEL DA PAZ, MAS PERDEU PARA O RUSSO GORBACHEV
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mais rígida e jurídica, até se adotar, na Idade Média, a forma de um verdadeiro processo”, explica o padre Rogério Neves, doutor em Direito Canônico e professor no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). São Jorge, por exemplo, é um caso emblemático do nascedouro da adoração cristã. O soldado romano (275-303) não realizou milagre algum. Sua saga é que foi digna de culto, sendo um dos nomes mais venerados tanto na Igreja Católica Romana e na Igreja Ortodoxa, como também na tradição Anglicana. Além de partilhar sua riqueza com os pobres, o militar declarou sua conversão ao cristianismo diante do imperador Diocleciano, grande algoz dos seguidores de Cristo. Morreu degolado. Um aspecto fundamental, contudo, se mantém intacto desde o princípio até os dias atuais: a fama de santo nasce da fé dos fiéis. É o clamor popular que move as primeiras engrenagens e deflagra as subsequentes investigações eclesiásticas. Por isso, há que se ter cautela e rigor – olhos afiados para detectar possíveis enganos e enganadores; e visões sobrenaturais onde só existe a normalidade cotidiana. Como há muita paixão envolvida, o Vaticano precisa se certificar de que a santidade de um religioso é fato concreto e verificável. “Por isso, sempre haverá muito mais casos de fama de santidade na opinião popular do que nas declarações de santidade da Igreja. Porque nem tudo que reluz é ouro”, observa o padre e professor, em São Paulo. É impossível predeterminar a duração de um processo de canonização, pois uma série de variáveis são analisadas caso a caso. De toda maneira, o trajeto é longo. Atualmente, esclarece Neves, as seguintes etapas são contempladas: um bispo local deve pedir à Santa Sé a declaração de não se opor ao processo; depois há a constituição do tribunal, com os vários interventores e a oitiva de testemunha; a pesquisa histórica encabeçada por uma comissão própria
de especialistas, a clausura do processo e o envio para a fase romana, na qual se deve confirmar a validade de tudo o que foi feito e estabelecer novo procedimento, com novos interventores. Em seguida, chega-se à elaboração da chamada Positio, relatório detalhado, posteriormente encaminhado à Plenária da Congregação para as Causas dos Santos. Só então acontece o reconhecimento das virtudes do Servo de Deus ou do martírio. Com esse aval, o Servo de Deus passa a ser chamado de Venerável. Mas, para que seja beatificado, fica faltando a constatação de um verdadeiro milagre (salvo para o martírio). “O milagre é um processo à parte, com uma fase diocesana ou local e outra romana, assessorada por profissionais de várias especialidades, inclusive ateus, para se chegar à constatação de que o fato é inexplicável e, além disso, tem um nexo causal com a oração de alguém, pedindo a intercessão daquele Venerável”, destaca o padre. Atestado este primeiro milagre, espera-se, então, por um segundo, ocorrido após a beatificação. Se comprovado, a figura pode, enfim, se tornar santa.
HOJE, O HOSPITAL INAUGURADO POR IRMÃ DULCE É UM DOS MAIORES COMPLEXOS 100% SUS DO PAÍS
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INCENTIVADOR DA SANTIDADE A “contabilidade” canônica registra o número de beatos e santos oficialmente reconhecidos em cada pontificado. Alguns foram modestos, como o de João XXIII (1958-1963), responsável por cinco beatificações, dez canonizações e uma confirmação de culto (proclamação de santidade que não passou por processo canônico); outros, medianos, como o de Pio XII (1939-1958), com 170 beatificações, 33 canonizações e nenhuma confirmação de culto. Ninguém até hoje superou a marca do pontificado de João Paulo II (1978-2005), promotor de 1338 beatificações, 482 canonizações e duas confirmações de culto. Entusiasta dessa temática, o polonês passou ele mesmo a presidir as beatificações e canonizações, sempre em Roma. Bento XVI, depois dele, voltou à prática de
RUMO À CANONIZAÇÃO A escalada até a santidade é composta de quatro etapas:
SERVO DE DEUS Para que o processo de canonização se inicie, é preciso que o religioso tenha devotado sua vida a Deus
VENERÁVEL Após investigação, a Igreja reconhece as virtudes cristãs do candidato (conhecimento e práticas do bem), heroicamente vividas. Ou, então, pelo martírio
BEATO O título é concedido após a comprovação de um milagre do religioso, depois de sua morte. Com a beatificação, é permitido o culto público em louvor do beato, mas limitado a uma instituição eclesiástica
SANTO Se comprovado um segundo milagre, ocorrido após a beatificação, o religioso se torna santo. A canonização valida a santidade e instaura o culto público do santo em toda a Igreja Católica
CAPA
Até hoje, mais de 10 mil relatos de graças a Irmã Dulce já chegaram às instituições da religiosa. São agradecimentos daqueles que creem e que se sentem atendidos em suas súplicas. Mas um milagre é mais do que uma dádiva. “Para a Igreja, não se trata de uma violação das leis da natureza, mas de um fato excepcional determinado por uma força divina, que supera o ritmo normal das 38
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coisas”, define o cardeal José Saraiva Martins, que, ao longo de uma década, analisou mais de 200 eventos considerados inexplicáveis pela ciência. Para serem catalogados como milagrosos, esses episódios precisam do aval científico de peritos médicos, da análise de teólogos e da aprovação do Colégio de Cardeais. Essas três instâncias avaliam se o caso atende aos quatro requisitos:
INSTANTÂNEO: tem que ser alcançado logo após o apelo. PERFEITO: precisa contemplar a totalidade do que foi pedido. DEFINITIVO: o problema solucionado não poderá voltar a acontecer. SOBRENATURAL: a ciência não pode ser capaz de explicá-lo.
IMAGENS REPRODUÇÃO
GRAÇA NÃO É MILAGRE
realizar, em Roma, apenas as canonizações, deixando a beatificação para celebração local, em geral, para o prefeito da Congregação das Causas dos Santos. “João Paulo II incrementou grandemente tal atividade para evidenciar que existiram e existem santos apesar de todos os obstáculos que a história possa opor a uma vida fiel a Cristo”, analisa Rogério Neves. Segundo ele, o que pode parecer irreal para muitas pessoas, uma vida marcada por virtudes e sacrifícios de elevado valor moral e espiritual, para a Igreja Católica é algo ao alcance de qualquer mortal. “Todo cristão é, desde o seu Batismo, chamado à santidade; embora esta vocação pareça utópica em muitos casos, é de crer que Deus não chama criatura alguma à mediocridade e, consequentemente, tem a graça necessária para levar a fragilidade de cada ser humano aos cumes da perfeição”, pontua o professor no Centro Universitário Salesiano. O polonês enxergou a graça da santidade em muitos cristãos, como atestam os números. Alguns casos são basta nte curiosos, como a canonização, em 10 de outubro de 1982, do padre Maximiliano Maria Kolbe. Franciscano nascido na Polônia, que, em 1941, foi prisioneiro no Campo de Concentração de Auschwitz e se ofereceu para morrer no lugar de um leigo, pai de família, que tinha sido condenado em represália pela fuga de outro prisioneiro. “Na época, chamou a atenção o fato de que o papa o tivesse canonizado como mártir (isto é, quem morre em nome da fé), quando tinha morrido por amor ao próximo”, lembra. Em 31 de julho de 2002, João Paulo II canonizou o índio mexicano Juan Diego Cuauhtlatoatzin (1474-1548), vidente de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina. Ele também honrou os italianos Luigi (1880-1951) e Maria Beltrame Quattrocchi (1884-1965), primeiro casal beatificado na história da Igreja, em 21 de outubro de 2001, por sua história conjunta de caridade e alinhamento ao Evangelho.
Acontecimento inédito no Vaticano. Chama também a atenção o fato de que os quatro filhos desse matrimônio, ao crescerem, sentiram o chamado de Deus à vida religiosa: Filippo (don Tarcisio) é padre diocesano; Stefania (irmã Maria Cecilia) é freira beneditina; Cesare (padre Paolino) é monge trapista, e Enrichetta, a caçula do quarteto, é leiga consagrada. O próprio Pontífice passou para o outro lado da tribuna. Em 2011, João Paulo II foi beatificado por seu sucessor, o papa Bento XVI (quando ficou comprovado que a freira francesa Marie Simon-Pierre foi curada da doença de Parkinson por intercessão do polonês). Três anos mais tarde, o segundo milagre foi atribuído a ele (a cura de um aneurisma cerebral) e, então, João Paulo II foi declarado Santo pelo papa Francisco.
ANDAR COM FÉ Em pleno século 21, o reconhecimento da santidade segue como uma prática cercada de fervor de um lado e de apuro técnico do outro. Como evidenciam as procissões e romarias que congregam multidões de pessoas, a fé é um fenômeno atemporal. Em cada morada católica, ainda há espaço para um ou mais santos. “Parece ser da natureza do ser humano a busca por modelos que sejam capazes de manter viva a certeza de que os ideais são possíveis”, opina Neves. É por isso que o Código de Direito Canônico é claro em relação ao papel dos santos na vida dos fiéis. Eles são intercessores das súplicas e também servem de exemplo para uma vida edificante. Mas as virtudes de uma Irmã Dulce, por exemplo, não estariam muito além das nossas capacidades humanas? O padre está seguro de que não devemos nos apequenar com esse tipo de comparação. “Seria um absurdo e uma injustiça propor a santidade como meta para as pessoas se fosse impossível. A canonização é o reconhecimento de que ela não é estranha ao ser humano, antes, é sua vocação primeira”.
“A CANONIZAÇÃO É O RECONHECIMENTO DE QUE A SANTIDADE É A PRIMEIRA VOCAÇÃO DO SER HUMANO”
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Guerreiros A CAVALO
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E
POR MAIS DE 3 MIL ANOS, OS NÔMADES DAS GRANDES ESTEPES ATORMENTARAM AS MAIORES CIVILIZAÇÕES, DAS GREGAS ÀS CHINESAS POR TIAGO CORDEIRO
xiste um imenso corredor ligando a Europa ao Extremo Oriente. É uma linha reta com cerca de 8 mil quilômetros de extensão, que vai da Hungria à Manchúria. Seus moradores fundaram a Rota da Seda, forçaram os chineses a construir sua grande muralha e ameaçaram, ao longo de três milênios, as maiores civilizações da Europa, da Ásia e do Oriente Médio. O longo caminho é formado pelas chamadas Grandes Estepes, um território inóspito para a agricultura e inadequado para o desenvolvimento de grandes centros urbanos, mas perfeito para a formação de vastas redes de rotas comerciais e militares. E foi nestas terras que se desenvolveu a maior máquina militar conhecida pela humanidade dos séculos 16 a.C. até 16 d.C.: a carruagem transportada por cavalos e habitada por arqueiros, que não só permitiu destruir civilizações inteiras como também ajudou a transportar bens, invenções e idiomas entre elas. Foi lá também que surgiram alguns dos maiores conquistadores da história, de Átila, o Huno, a Gengis Khan. De acordo com o arqueólogo britânico Barry Cunliffe, autor do livro By Steppe, Desert, and Ocean: The Birth of Eurasia, as estepes formaram a avenida que possibilitou o desenvolvimento da Eurásia. “E também a ascensão e a queda de dezenas de civilizações”, resume.
GRAMA E ESPAÇO Uma característica forte das estepes definiu o tipo de ocupação humana que ali habita até hoje. O fato de serem terras planas, cobertas por grama, mas sem capacidade de suportar florestas ou plantações vastas, favoreceu o estabelecimento de tribos nômades. E vivendo em acampamentos, sempre em locomoção, mantendo pequenas cidades apenas como entrepostos comerciais, os habitantes viram no cavalo um parceiro fundamental. Não se sabe ao certo quem domesticou o animal primeiro. Mas é fato que foi nas estepes que os cavalos se desenvolveram – há 4 mil anos, eles tinham o tamanho de pôneis e eram utilizados para transportar cargas pequenas. No entanto, a AVENTURAS NA HISTÓRIA
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seleção humana favoreceu a disseminação de animais muito maiores e mais robustos. Na Índia de 1.500 a.C., por exemplo, já havia invasão de tropas sobre carroças e, no século seguinte, os chineses, inspirados pelos povos que os atacavam pelo norte, já investiam em carruagens leves. Por volta do século 2 a.C., os povos das estepes já suportavam correr usando armaduras e carruagens com dois ou três homens – protegidos com peças metálicas. Os cavalos também eram utilizados como montaria para um único guerreiro. Neste caso, a sinergia entre homem e animal impressionava suas vítimas. Os hunos, por exemplo, costumavam até mesmo dormir sobre os lombos de suas montarias. Civilizações urbanizadas, principalmente no norte da África e no Oriente Médio, também utilizavam cavalos. Mas criá-los era muito mais difícil: na falta de pasto, era preciso plantar para alimentá-los e, em épocas de crises de abastecimento, tinham de escolher entre dar comida aos animais ou às pessoas.
MUROS DE PROTEÇÃO Nas grandes estepes não surgiram grandes metrópoles nem centros de difusão artística ou de produção arquitetônica. Com raras exceções, não era um espaço de inovação nem de desenvolvimento industrial. Organizadas em tribos, as comunidades se aproximavam e se afastavam entre si, na medida em que surgiam líderes capazes de agregar diferentes grupos. Porém, embora não tenham produzido grandes invenções (a não ser as carruagens armadas movidas por cavalos bem adaptados), os moradores dessa região foram respeitados – e temidos. Os gregos antigos conheciam os citas, que, segundo a descrição do historiador Heródoto, eram os povos bárbaros (ou seja, os não gregos) que, derrotados ao norte da China, migraram na direção da Europa e dominavam a estepe pôntico-cáspia, cuja região corresponde à faixa de terra que vai do Mar Negro até a Ucrânia e o Cazaquistão. Aliás, há dois anos, uma pesquisa americana, conduzida pela Escola Médica da Universidade Harvard, tendo como base o DNA de ossadas encontradas na Grécia con42
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tinental, em Creta e na atual Turquia, sugeriu que os gregos compartilham código genético com os povos das estepes. Sinal de que os chamados bárbaros invadiram as ilhas gregas e influenciaram a formação do povo. Também vale ressaltar que os citas foram um dos primeiros agrupamentos humanos a lutar sobre os lombos dos cavalos com maestria, no século 9 a.C. E, assim, dispensavam a necessidade das carruagens, que podiam ser menos úteis em trechos muito úmidos ou irregulares. Até serem derrotados e substituídos pelos sármatas, no século 3, os citas ficaram conhecidos por suas incursões rápidas e destruidoras ao Oriente Médio e às atuais Índia e China. Seus hábitos eram tão ligados à montaria que a pecuária na região se aproveitava de poucas vacas e porcos – era principalmente dos cavalos que vinha, além do transporte, o leite e a carne que compunham a base da alimentação. No extremo leste das estepes, na mesma época, o grupo nômade mais conhecido pela eficácia dos ataques ficou conhecido como xiongnu. Trata-se de um agrupamento de tribos, que ocupou toda a atual Mongólia e parte dos territórios vizinhos. Os mais incomodados eram
Para barrar os cavalos, os chineses construíam muros de terra, que deram origem à Muralha da China os chineses, ao sul, que, depois de quatro séculos de conflitos, encontraram uma forma de barrar o avanço dos cavalos e das carruagens: construir muros de terra, que dariam origem, posteriormente, à Grande Muralha da China.
ESTRATÉGIAS DE OCUPAÇÃO Se as condições de vida das estepes favoreciam o estilo nômade e os saques rápidos, por outro lado, os povos nativos dessas regiões encontravam dificuldades em se fixar nos locais que atacavam, onde seria necessário adaptar o modo de vida para uma rotina sedentária, com maior estratificação social e maneiras de plantar e fabricar totalmente diferentes do que já estavam acostumados. Esse ajuste se mostrou impossível. Alguns povos se tornaram sedentários e abandonaram as características ori-
NÔMADES PODEROSOS Conheça os dez principais povos que habitaram a região: CIMÉRIOS: Entre os séculos 14 a.C. e 8 a.C., viveram na região do Cáucaso. Mas perderam espaço para os citas, uma das maiores civilizações. CITAS: Os gregos antigos, os assírios e os chineses os temiam. Este povo, que ocupou a Ásia Central por 1300 anos, até o século 2, foi pioneiro no uso de cavalos como montaria.
SÁRMATAS: Sucessores dos citas na faixa ocidental das estepes, formavam uma vasta confederação, que chegou a controlar mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados e pressionou os romanos. NÔMADES XIONGNU: Essa federação de tribos da Ásia Central deu tanto trabalho aos vizinhos ao sul que levou a China a
iniciar a construção que depois formaria a Grande Muralha da China. Viveram na atual Mongólia, entre os séculos 3 a.C. e 5. CUCHANOS: Pressionados pelos vizinhos xiongnu, seguiram para o Afeganistão e o norte da Índia, onde ocuparam vastas terras. Experimentaram o auge do poder no início da era comum.
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Hunos e mongóis mantinham as cidades derrotadas como Estados vassalos, pagando tributos ginais. Outros simplesmente tratavam de saquear e destruir tudo o que podiam para, depois, voltar para casa – foi assim no ano 612 a.C., quando Nínive (até então, a poderosa capital da civilização assíria) foi devastada por um agrupamento de guerreiros citas, que depois foram embora e deixaram egípcios, medos e babilônios disputando o espólio. Os persas também sofreram nas mãos dos guerreiros nômades: Ciro, o Grande, o fundador do império, morreu em 530 a.C. durante uma expedição que tinha por objetivo punir os masságetas, habitantes da região do Mar Cáspio que, com frequência, atacavam a Pérsia. Havia ainda alguns poucos grupos que encontraram uma terceira alternativa: manter as terras derrotadas como Estados vassalos, pagando impostos e devendo obediência. Foi essa
HUNOS: Para os moradores da Europa no século 4, sua chegada foi uma grande surpresa. Surgidos da Ásia Central, os hunos pressionaram o Império Romano e ocuparam boa parte do leste europeu e da Alemanha. PROTOBÚLGAROS: Como o nome indica, esse povo nômade se desenvolveu na região da atual Bulgária. Têm origem na Ásia Central e migraram para a Europa em paralelo
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a estratégia adotada pelos hunos do século 5 e dos mongóis do século 13. Em geral, as cidades que se comprometiam a pagar tributos e descumpriam a promessa ou se rebelavam quando as forças de ocupação eram reduzidas ou acabavam sendo massacradas. Que o digam, por exemplo, as vítimas de Tamerlão (ou Timur), o imperador mongol que fundou o último grande território das Grandes Estepes (imagem ao lado). Nascido no século 14, ele ficou conhecido como “o manco” ou “o coxo” porque, na juventude, enquanto roubava ovelhas, foi atingido por duas flechas, perdendo os movimentos do braço e da perna direitos. Seu império começou depois que ele matou o cunhado e antigo aliado, Amir Husayn – com quem havia derrotado o governador de uma região da Ásia Central conhecida como Transoxiana. Tamerlão ocupou a Pérsia, o atual Iraque, e a velha cidade de Déli, na Índia, onde roubou para si dezenas de elefantes. Para os povos que não se rendiam, o líder mongol dedicava castigos cruéis, desde a crucificação até a prática de cimentar os derrotados em paredes, pela cintura, ainda vivos. Quem não morria virava escravo.
com os hunos. Com o tempo, parte deles adotou a vida sedentária. GOTURCOS: Essa coalisão de tribos cresceu no século 6, quando enriqueceu controlando a Rota da Seda. Mas, no século 8, se desfez em consequência de desentendimentos entre os sucessores do líder Bumin Qaghan. MONGÓIS: O maior império contínuo da história, com população de mais de 100
milhões (um quarto da população do planeta na época), foi fundado por Gengis Khan, membro de uma tribo de pouca expressão. TIMÚRIDAS: O último grande império das estepes durou de 1370 a 1506 e alcançou desde a Mesopotâmia e o Cáucaso até a fronteira com a China, passando pelos atuais Índia e Afeganistão. A decadência começou em 1467, quando os timúridas perderam o controle sobre a Pérsia.
ÁTILA E GENGIS Tamerlão é um dos mais importantes conquistadores vindo das Grandes Estepes, assim como Bumin Qaghan, 800 anos antes dele. Mas a região ficou mesmo conhecida é por ter sido o berço de Átila, o Huno, e Gengis Khan. E a fama dos dois é fácil justificar. Como acontece com muita frequência entre os povos das grandes estepes, é difícil diferenciar os hunos de outras etnias que habitavam a região na mesma época. Os nomes dados para as tribos faziam mais referência ao agrupamento político do que ao pertencimento a um grupo original comum. Os hunos surgiram na Ásia Central e tinham feições orientais e baixa estatura, o que facilitava a relação com os cavalos. Como outros grupos, os hunos migraram para a Europa no século 5. Mas poucos chegaram ao lugar onde Átila os levou: para a Gália (atual região francesa). No caminho, derrotaram diferentes povos bárbaros, como os góticos e sármatas, cujas etnias foram incorporadas às forças militares, em condições de igualdade. Os arqueiros montados sobre cavalos promoviam massacres tão assustadores que Átila ficou conhecido, entre os romanos cristianizados, como o “flagelo de Deus”. Na verdade, o líder assumiu o poder já durante o esforço de ocupação da Europa, mas foi sob seu comando que os hunos realizaram suas ações mais ousadas. “Átila era arrogante, destemido e brilhante. Um chefe tribal analfabeto e predatório que não tinha interesse em administração, mas era um político hábil que, a partir de sua base na Hungria, usou secretários e embaixadores para trazer informações sobre seus inimigos”, conta o historiador britânico John Man, no livro Átila, o Huno, o Rei Bárbaro Que Desafiou Roma. Depois que os romanos deixaram de pagar os impostos anuais combinados para evitar invasões, Átila tentou atacar Constantinopla e tomou territórios na França, até ser derrotado pelo general romano Flávio Aécio. Em retirada, seus homens avançaram sobre o norte da Itália, mas precisavam recuar mais uma vez. Átila morreu em 453, talvez por hemorragia interna, talvez vítima de assassinato por sua esposa, AVENTURAS NA HISTÓRIA
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O QUARTETO MAIS TEMIDO Grandes conquistadores que surgiram das estepes: ÁTILA, O HUNO (?-453) Quando chegou ao poder, depois de assassinar seu irmão mais velho, Bleda, ele tentou negociar com os romanos, que prometeram pagar uma taxa anual de 300 kg de ouro. Como o acordo não foi cumprido, ele atacou a atual Bulgária, além da França e da Itália. BUMIN QAGHAN (?-552) Sua trajetória pessoal é pouco conhecida. Mas é certo que, sob seu comando, os goturcos experimentaram uma expansão acelerada, comparável à alcançada pelos mongóis seis séculos depois. Seus filhos, Istemi e Issik, ampliaram ainda mais o território. GENGIS KHAN (1162-1227) Um dos maiores líderes políticos e militares da história, ele uniu dezenas de tribos e manteve a coesão sobre o império ao estabelecer critérios meritocráticos: bons militares ascendiam na hierarquia, mesmo que não pertencessem ao grupo mais próximo ao líder.
IMAGENS GETTY IMAGES
TAMERLÃO (1336-1405) Nascido no atual Uzbequistão, ele reivindicou a descendência moral de Gengis Khan ao iniciar, pelo atual Afeganistão, uma série de conquistas militares. Ficou conhecido por arrasar as cidades que se rebelassem e por erguer torres com os crânios dos soldados e civis inimigos.
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Íldico. Após sua morte, os germânicos tomaram o espaço dos hunos e acabaram se diluindo entre os povos da região central da Europa. Já o grande Gengis Khan nasceu muito depois, em 1162, dentro de uma tribo mongol de pouca expressão. Para chegar ao poder, precisou encarar dez anos de exílio na China, antes de retornar e atacar o chefe do conglomerado de tribos, Jamuka. Alguns anos depois, os mongóis controlavam um território que partia da Ucrânia e seguia até a Manchúria, passando por parte expressiva do atual território da Rússia, além de receber impostos de países vizinhos que não queriam ser incomodados. Assim como Átila, o grande mérito de Gengis Khan foi unificar tribos e estabelecer uma hierarquia baseada no desempenho militar, sem fazer questão nem mesmo de que os novos aliados mudassem de religião – entre os generais de Khan havia budistas, muçulmanos e cristãos, sem discriminação. Já para os inimigos, o massacre era impiedoso. A cidade chinesa de Zhongdu, por exemplo, que tinha 1 milhão de habitantes e que posteriormente ficaria conhecida como Pequim, era fortemente murada, mas foi derrubada até o chão em 1215. Tudo porque seus moradores, que no ano anterior haviam sido cercados e concordado a pagar tributos em troca de paz, decidiram reagir. Os muros não foram suficientes para resistir aos homens extremamente disciplinados, organizados em grupos de cem, que formavam unidades de mil e que, por sua vez, compunham massas compactas de dez unidades. Usando armaduras feitas de couro de cavalo curtido, os mongóis pareciam ter uma energia inesgotável – e muito maior que a de outros guerreiros, como compara o antropólogo americano Jack Weatherford, autor do livro Gengis Khan e a Formação do Mundo Moderno. "O império mongol subjugou mais terras e povos em 25 anos do que os romanos em 400”, diz.
DECADÊNCIA MILITAR Khan morreu em 1227. E seus filhos deram continuidade ao império mongol por mais algumas décadas, chegando a tomar partes do
Khan unia as tribos com base no desempenho militar, sem exigir que elas mudassem de religião Japão, da Coreia e da Ilha de Java. Os desentendimentos entre os descendentes posteriores, porém, provocaram o colapso do grande império. E depois de um último esforço de retomada, lançado por Tamerlão, os mongóis nunca mais recuperariam o antigo poder. No século 16, enquanto a Europa descobria as Américas e novas técnicas militares, em especial a pólvora, reduziam a importância estratégica dos cavalos – maiores do que homens, eles eram alvos fáceis para os tiros. E após 3.200 anos aterrorizando as maiores civilizações construídas nas bordas das estepes, os povos da Europa e da Ásia Central perderam fôlego militar. Enfraquecidos, assistiram ao desenvolvimento de nações fortes e extensas, como a Rússia e a China. A Mongólia atual, por exemplo, tem apenas 3 milhões de habitantes, o equivalente à população de Brasília, para uma área 1,5 milhão de quilômetros quadrados, semelhante ao estado do Amazonas. Contudo, as Grandes Estepes ainda são estratégicas. Em seu esforço de reconstruir a Rota da Seda, a China vem investindo em ferrovias, rodovias e estações de transmissão de gás e energia elétrica que, para chegar à Europa, passam pela região. As novas conexões de infraestrutura entre os chineses e os russos também dependem de acordos com os proprietários das terras planas, cobertas por gramas e conhecidas pelo tempo seco e temperaturas agressivas. Em outras palavras, para dialogar, a Europa e a Ásia ainda dependem das Grandes Estepes. A pouca influência política e militar dessa região, no entanto, persiste. Restando apenas as lendas sobre os grandes e cruéis conquistadores, montados nos lombos de cavalos bem adestrados e numa época em que não havia sequer um rival à altura. AVENTURAS NA HISTÓRIA
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PITÁGORAS NÃO FOI O PRIMEIRO A PERCEBER A RELAÇÃO ENTRE OS LADOS DO TRIÂNGULO RETO. NEM FOI GUTENBERG QUEM INVENTOU A TIPOGRAFIA. CONHEÇA ALGUNS DOS VERDADEIROS PAIS DE DESCOBERTAS UNIVERSAIS COM QUEM A HISTÓRIA NÃO FOI JUSTA POR TATIANA BONUMÁ
ideia de que as invenções e descobertas científicas podem alterar o rumo da história é apenas uma parte da verdade. De fato, os instrumentos, materiais e técnicas que o homem descobriu e dominou lhe deram condições para superar limites, impor-se diante da natureza e dos outros homens. Porém, uma olhada mais atenta revela que o que muda tudo é o uso que determinado povo emprega à sua descoberta. Muito do que hoje é creditado aos vitoriosos gregos e romanos já havia sido experimentado pelos extintos babilônicos e algumas das descobertas comemoradas pelos europeus eram velhas conhecidas dos chineses. Afinal, o que é mais importante: a invenção ou seu uso? O que é mais revolucionário? O que muda, de fato, a história? “A utilização do conhecimento está ligada com o momento histórico e com aspectos culturais do povo que a absorve. Exprime a maneira como ele vê o mundo, o entende e o interpreta”, diz Ana Maria Alfonso-Goldfarb, autora do livro Da Alquimia à Química: um Estudo sobre a Passagem do Pen-
samento Mágico-vitalista ao Mecanicismo. Por isso, para ela não faz sentido dizer quem inventou o quê, e sim acompanhar o processo pelo qual o conhecimento gerou invenções e descobertas diferentes em cada local, em cada época.
OS TRIÂNGULOS DA BABILÔNIA Recupere seus cadernos do ensino fundamental e consulte os livros de geometria. Em todos eles vai encontrar o Teorema de Pitágoras, que de tão importante mais parece um mantra da trigonometria. Ele emana a seguinte verdade: em um triângulo com ângulo de 90 graus, o quadrado do lado maior é sempre igual à soma dos quadrados dos outros dois lados. Porém, antes mesmo de entender a equação, você saberá responder quem a desenvolveu. Como o próprio nome diz, Pitágoras, um filósofo e matemático grego, fez o teorema por volta de 550 a.C. “Pitágoras e seus discípulos formavam uma fraternidade esotérica, que se dedicava não só ao estudo da matemática, mas também ao ascetismo, que buscava a harmonia do cosmos baseada nas premissas de que tudo existe em conformidade AVENTURAS NA HISTÓRIA
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com os números, sendo que a matemática é o princípio de todas as coisas”, explica Walter Carnielli, professor de lógica na Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo. Assim, a equação vai além do triângulo e, na época, era mais um exemplo de harmonia entre os elementos. Tudo muito coerente, explicado e comprovado. Segundo Walter, essa é a afirmação matemática que mais recebeu demonstrações: foram feitas 370 provas. Porém, justamente o que parece mais óbvio – que o teorema de Pitágoras é de Pitágoras – é o X da equação. “O filósofo grego não foi o primeiro a perceber a relação. Indianos, egípcios e babilônios já usavam essas triplas de números (que formam um triângulo retângulo) há pelo menos mil anos”, afirma o historiador americano Dick Teresi em seu livro Descobertas Perdidas: as Raízes Antigas da Ciência Moderna, dos Babilônios aos Maias. Os hindus, por exemplo, os utilizavam entre 800 e 600 a.C., para desenhar triângulos e trapézios, considerados figuras nobres, nos altares de cemitérios, em reverência aos deuses. Mas a prova definitiva de que o teorema era conhecido antes de Pitágoras vem dos babilônios e data de 1800 a.C. É um pedaço de barro conhecido por Plimpton 322, mantido na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Ali, estão gravados centenas de números alinhados três a três. “Para entender a relação entre os números, basta aplicar o teorema do triângulo reto. Um deles é sempre o quadrado da soma dos quadrados dos outros dois”, explica o especialista de Campinas.
OS SEGREDOS DA TERRA PLANA Poucas descobertas deram ao homem tanta sensação de domínio do planeta como o mapa-múndi. Porém, para chegar a um resultado eficaz, estudiosos tiveram que desvendar um
OS CHINESES PROJETARAM A ESFERA TERRESTRE NUMA SUPERFÍCIE, USANDO UM CILINDRO, 629 ANOS ANTES DE MERCATOR 50
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enigma: como representar num plano a Terra, que é esférica? Gerhard Kremer Mercator (15121594), matemático e geógrafo flamengo, ofereceu uma boa resposta, com o método de representação cilíndrica, em 1569. Para entender como ele fez isso, imagine uma luz que parte do centro de um globo colocado dentro de um canudo de papel. A imagem projetada do globo (Terra) no cilindro (mapa) permitiu, pela primeira vez, representar continentes, oceanos e meridianos numa superfície. Foi uma festa para a indústria da navegação. O método, como não poderia deixar de ser, ganhou o sobrenome de seu inventor e ficou conhecido nos quatro cantos do mundo como Projeção de Mercator. Procure nas enciclopédias, sites de busca e livros didáticos. Mercator será sempre indicado como um importante nome na cartografia (o que realmente ele é!), aquele que deu um passo indispensável para se chegar ao mapa moderno (verdade!) e o primeiro a trabalhar com a projeção cilíndrica (aí o bicho pega!). Os chineses, ótimos navegadores e acostumados a vencer longas distâncias, já haviam elaborado e aplicado o mesmo conceito há exatos 629 anos. A prova está arquivada na Biblioteca Britânica, em Londres. Um documento chinês de 940 d.C. mostra a esfera terrestre projetada sobre uma superfície, conseguida por meio da mesma técnica de projeção cilíndrica. Quanto ao impulso de desenhar mapas, pode-se afirmar que ela é quase tão antiga quanto o homem. Babilônios, egípcios, gregos e árabes esboçaram o mundo, cada um à sua maneira. O mapa mais antigo que se tem conhecimento é o Mapa de Ga-Sur, de 2500 a.C., encontrado na Mesopotâmia, que representa o Rio Eufrates e os acidentes geográficos ao redor, numa pequena placa de barro que cabe na palma da mão.
AS MISTERIOSAS ÁGUAS PENETRANTES Atualmente, os ácidos preparados a partir de minerais, como o nítrico, o clorídrico e o sulfúrico, são de extrema importância. Esse último, por exemplo, é normalmente usado como índice para avaliar o grau de industrialização de um país. Eles são vastamente utilizados nas produ-
ções de plástico, borracha e fertilizantes, entre outras coisas. “Grande parte dos historiadores da química atribui a descoberta dos ácidos minerais a Geber, um lendário alquimista que teria vivido no século 13”, afirma Maria Helena Roxo Beltran, professora de história da ciência na Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. Mas a referência mais antiga dos tais ácidos foi escrita por Vanoccio Biringucci (14801539), um artesão de Siena (na atual Itália). Em 1540, ele publicou o livro De La Pirotechia, em que fornece uma descrição detalhada de como obter o que chamou de “águas penetrantes”, utilizadas na época para corroer metais. No entanto, hoje se sabe que os árabes já utilizavam os ácidos minerais no século 9 e, antes ainda, eles já eram conhecidos na Mesopotâmia, em 1700 a.C. “Antigas gravações em pedra mostram que os assírios fabricavam um tipo especial de vidro vermelho que só é possível com a utilização de pequenas quantidades de ouro dissolvido em água-régia, uma mistura dos ácidos minerais nítrico e clorídrico”, descreveu a historiadora Ana Maria Afonso-Goldfarb.
ONDE OS RAIOS VÃO PARAR? As pesquisas arqueólogicas em Pueblo, no deserto no Novo México, EUA, já revelou muita coisa importante e polêmica sobre os antigos moradores daquela região, os anasazi. Em 1997, pinturas rupestres do século 7 indicaram que podem ter sido eles os primeiros inventores do para-raios. Uma técnica extremamente simples, utilizada pelos antepassados dos índios americanos atraía as descargas elétricas, preservando suas cidades de prejuízos. “Eles não colocavam objetos pontiagudos, como altas lanças de madeira, em locais elevados e de grande incidência de raios, como forma de impedir sua propagação”, conta o meteorólogo Amaury Caruzzo. Se não fossem os anasazi, ainda assim os americanos ficariam com o crédito por livrar casas e prédios dos raios. Na Filadélfia, no fim do século 18 – um período fértil nos debates sobre fenômenos atmosféricos – o físico e inventor Benjamin Franklin, ficou famoso por comprovar a natureza elétrica dos raios com uma experiência tão conhecida como perigosa, realizada em 1752. Franklin saiu no meio de AVENTURAS NA HISTÓRIA
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CIÊNCIA
uma tempestade para empinar uma pipa, com uma chave presa em sua ponta e conseguiu atrair uma descarga elétrica. Com menos sorte, poderia ter sido carbonizado. Afortunado, acabou inventando – e patenteando – o para-raios. O instrumento é constituído de um ou mais captores (lanças) de quatro pontas, montado sobre um mastro de metal. Este modelo é utilizado até hoje e chama-se captor Franklin.
OS BASTIDORES DA IMPRENSA Quando se fala em técnicas de impressão, uma associação é imediata: o nome de Johannes Gutenberg (1399-1468). Seu invento consiste em um trabalhoso e elaborado método que ficou conhecido como tipografia. Ele juntava peças de metal esculpidas com letras em relevo, que eram organizadas para formar palavras. As folhas de papel eram colocadas diretamente sobre elas e comprimidas contra o metal sujo de tinta. Depois de secar, a página estava pronta. Aí, para fazer páginas diferentes, bastava trocar as letras e as palavras, é claro. O negócio dava trabalho, mas muito menos que escrever tudo à mão. “A 52
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técnica dos caracteres móveis e o livro impresso trouxeram novas possibilidades para a difusão de conhecimento numa proporção até então inédita”, afirmou Maria Helena, da PUC. Mas sem desmerecer tanto suor, paciência e dedicação, Johannes Gutenberg não foi o inventor da impressão. Mais uma vez, os chineses largaram na frente. Eles dominavam várias técnicas para imprimir textos e imagens e, desde o século 7, eram impressores compulsivos de calendários, livros sagrados e poesias. O tipo móvel foi desenvolvido pelo chinês Pi Sheng, entre 1041 e 1048, e transformou-se no método mais tradicional pela facilidade em lidar com o material. A destreza chinesa para a tipografia era impressionante, mas invento nenhum seria o bastante para o desafio que tinham pela frente: lidar com a quantidade necessária de tipos móveis para dar conta do idioma chinês. Para um texto escrito no século 12, por exemplo, foram necessários cerca de 400 mil caracteres diferentes. Comparada com a missão dos chineses, nesse aspecto braçal, a missão do alemão Gutenberg parece fichinha.
OS CAMINHOS DO SANGUE Contestar o conhecimento aceito como verdadeiro pela maioria é sempre perigoso. Durante o Renascimento, então, era um ato de muita coragem e certa dose de insanidade. A época foi marcada justamente pela veneração das doutrinas clássicas e negá-las poderia colocar qualquer um em maus lençóis. A não ser que ele fosse amigo do rei. Esse era o caso de William Harvey (1578-1657), médico inglês casado com a filha do fisiologista da corte, que dedicou sua vida aos estudos do sistema vascular. Em 1628, publicou O Estudo Anatômico do Movimento do Coração e do Sangue nos Animais, uma descrição precisa do fluxo sanguíneo dos seres humanos e da real função do coração no corpo. Segundo especialistas, a publicação iniciou o método experimental na fisiologia e inaugurou o conceito de corpo humano como uma máquina mecânica e hidráulica, concepção que teria seu auge no século 18. Suas explicações são aceitas até hoje, mas foram agressivamente rejeitadas na época. William incomodou porque desbancou as teorias de Galeno de Pérgamo (129-217), fisiologista e cirurgião dos gladiadores, que acreditava que o sangue era formado no fígado e que se movia em fluxos e refluxos. Porém, se na Europa Ocidental as ideias de William Harvey eram chocantes, na China, elas eram antigas conhecidas: dois mil anos antes da civilização ocidental, os chineses já haviam descrito corretamente o f luxo sanguíneo em O Livro Clássico de Medicina do Imperador Amarelo. Foram, portanto, os primeiros a executar dissecações do corpo humano. E, ao contrário do que se pensa, essas teorias não se perderam ao longo da história. Os europeus provavelmente já haviam tomado conhecimento das experiências chinesas no século 13. Contudo, sob a forte inf luência religiosa da época, a sociedade europeia não parecia estar aberta para novos conceitos. Por isso, apesar da descrição do fluxo sanguíneo não ser propriamente uma novidade, William Harvey teve o mérito de incorporar uma experiência alheia para criar uma teoria absolutamente relacionada ao pensamento de seus pares.
MADE IN CHINA Uma sociedade pragmática e avançada, a China foi um importante polo de novas ideias e descobertas do mundo antigo. Há mais de 110 inventos que partiram de lá para ganhar o mundo. A seguir, confira alguns exemplos. SISMÓGRAFO O equipamento do ano 132 indicava até a direção da qual viria o tremor. Aparelho similar na Europa, só em 1855. DINHEIRO Eles criaram o papel-moeda no século 7. Na Europa, a Suécia foi a primeira a adotá-lo, em 1661. BÚSSOLA Na China do século 4 a.C. ela era usada para equilibrar as energias dos indivíduos. Na Europa, chegou em 1232 e virou um importante instrumento de navegação. UÍSQUE Chang Hua descobriu o álcool destilado em 654. Na Europa, ele surgiu na Itália no século 12. PORCELANA No século 3, ela já era feita na China. Os europeus a conheceram em 1500, mas só 200 anos depois aprenderam como fabricá-la.
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PARA ENTENDER POR MALU SAFATLE
DEMOCRACIA
CINCO OBRAS PARA ENTENDER A ORIGEM E REFLETIR SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA NAS SOCIEDADES
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Democracia em Risco?, vários autores – 2019 A pergunta que dá título a esta coletânea de artigos procura reagir a uma constatação: as eleições de 2018 são um marco no curso da história do atual regime democrático no Brasil, iniciado com a Constituição de 1988. A obra pretende ajudar na compreensão do período que, tudo indica, virá a ser crucial nos rumos do país.
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O Futuro da Democracia, Norberto Bobbio – 1984 Um estudo que ajuda a entender melhor os conceitos de liberdade, justiça social e o dinamismo inerente aos estados democráticos. São sete ensaios publicados originalmente entre 1978 e 1984 e que reavivam o debate sobre as diversas mudanças pelas quais passou a democracia.
Militares da Democracia, Silvio Tendler –
2014 Documentário resgata, por meio de depoimentos e registros de arquivos, as memórias repudiadas, sufocadas e despercebidas dos militares perseguidos por lutarem pela Constituição, pela legalidade e contra o golpe de 1964 – e que, no entanto, a sociedade brasileira pouco ou nada sabe a respeito.
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O Senhor das Moscas, Harry Hook – 1990 Baseado em um romance publicado em 1954 por William Golding, o filme mostra a forma como um grupo de crianças se organiza após o avião em que estavam cair numa ilha isolada. É possível ver que cada personagem tem uma forte representação simbólica, em que a barbárie se opõe ao estado democrático.
IMAGENS REPRODUÇÃO
Como as Democracias Morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt – 2018 Democracias tradicionais entram em colapso? Essa é a questão que dois professores de Harvard respondem ao discutir o modo como a eleição de Donald Trump se tornou possível. Uma análise crua e perturbadora do fim das democracias em todo o mundo.
COLUNA M.R. TERCI
UM ALEMÃO ENTRE OS SELVAGENS CANIBAIS N
o ano de 1547, partia de Lisboa para sua primeira viagem ao Brasil, o alemão e arcabuzeiro Hans Staden, natural da Província de Hesse. A essa altura, Staden era apenas mais um outro jovem da região procurando meios de ganhar seu sustento e com desejo de viver grandes aventuras. Ora, quem nunca? Naquele tempo, contudo, deixar a Europa e atravessar o Oceano Atlântico representava um enorme desafio. Os mapas ainda mostravam o oceano povoado por criaturas míticas, colossais. E muitos navegadores ainda imaginavam que, em um ponto qualquer do percurso, a terra despencaria pela borda de um abismo. De modo que não se tratava apenas de uma viagem, era o teste máximo de coragem em uma época em que os homens eram medidos pelas léguas marítimas que percorriam. Mas se esse era o sonho do jovem alemão Hans Staden, ele logo seria atendido, numa medida que homem algum poderia ter previsto. Por duas vezes, Hans Staden aportou nas costas do recém-descoberto Brasil. Na segunda, o jovem aventureiro viria a descobrir o real significado da expressão “pular da panela e cair no fogo”. Após um naufrágio, Staden nadou até a praia, rumou para São Vicente e foi contratado pelos colonos portugueses como artilheiro para defender o Forte de São Filipe da Bertioga. Nesse mister, ele foi capturado pelos índios tupinambás e mantido cativo por cerca de nove meses, sob a constante ameaça de ser morto, cozido e devorado, como ele próprio viu acontecer com outros prisioneiros. Poupado, por sobrestarem dúvidas quanto à sua
nacionalidade – os tupinambás não tinham desavenças com os franceses, de quem os alemães eram simpatizantes –, o jovem chegou a lutar ao lado dos tupinambás contra os tupiniquins, aliados dos portugueses. Pouco tempo depois, o jovem viria a ser entregue a um corsário francês. De volta à Europa, em 1557, Staden compilaria a narrativa de sua captura, com xilogravuras que retratavam canibalismo, pajelanças e outros hábitos da tribo tupinambá. O grande triunfo de Hans Staden não foi apenas sobreviver. O jovem aventureiro estava predestinado a se tornar o primeiro dos viajantes cronistas e seu relato, fruto de parto extremamente pessoal, é o mais acurado panorama sobre a paisagem, natureza e hábitos dos nativos brasileiros, sobretudo, a mais perfeita descrição do banquete antropofágico praticado pelos povos Tupi. Encantado e temeroso pela própria vida, Staden conheceu renomados guerreiros, heróis que viriam a unificar as tribos na luta contra o colonizador português e registrou a coragem apaixonada com que os índios se lançavam às batalhas, admirando-se, vezes sem conta, com a intimidade daquele povo com a natureza. Nenhum europeu havia até então pisado nos territórios que percorreu, nenhum outro homem branco sobreviveu para descrever os rituais culinários e costumes exóticos que testemunhara no seio da tribo. Seu relato, sobre um europeu azarado, conquanto engenhoso, encalhado entre selvagens canibais, rapidamente, se tornou uma sensação em toda a Europa, best-seller, por assim dizer, 162 anos antes de o inglês Daniel Defoe escrever Robinson Crusoé.
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA
Relato descreve com perfeição a paisagem, os hábitos nativos e o banquete antropofágico praticado pelos povos Tupi
M.R. TERCI É ESCRITOR, FINALISTA NO PRÊMIO CUBO DE OURO, AUTOR DE IMPERIAIS DE GRAN ABUELO (2018), OBRA AMBIENTADA NO PÓS-GUERRA DO PARAGUAI, E BAIRRO DA CRIPTA (2019), NA BELLE ÉPOQUE BRASILEIRA
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COLUNA ALEXANDRE CARVALHO
Tartarugas Podem Voar Irã/Iraque/França, 2004 Direção: Bahman Ghobadi
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magine esta determinação da ONU: alguns filmes de guerra deveriam ser obrigatoriamente exibidos a qualquer governante, de qualquer país, assim que chegasse ao poder. Para que servissem como advertência a respeito do que implica iniciar uma guerra. Pois quem não consegue se sensibilizar com o sofrimento mais vasto, o desamparo mais completo, não deveria jamais decidir sobre uma violência dessa dimensão. Principalmente quando as vítimas são meninos e meninas, esses campeões de empatia. Revelar a destruição e a morte pelos olhos de crianças não é novidade no cinema. Vêm fácil à memória produções como Império do Sol (1987), de Steven Spielberg, e o mórbido Brinquedo Proibido (1952), de René Clément. Mas este Tartarugas Podem Voar é mais próximo dos nossos tempos. E também o que mostra essa realidade da maneira mais difícil de ver sem um embrulho no estômago. O cenário é um acampamento de refugiados curdos, na fronteira entre o Iraque e a Turquia, semanas antes da invasão americana, em 2003, que deflagraria a queda de Saddam Hussein. A paisagem é apocalíptica, com tendas montadas próximas de cemitérios de veículos militares. Tudo é carcaça e decomposição, incluindo os protagonistas: grupos
de dezenas de crianças, que, lideradas pelo esperto Satélite, ganham a vida coletando minas desativadas para vender (o título é uma referência ao risco de explosão dessas minas, que têm o formato de uma carapaça de tartaruga). A atividade insalubre provoca o que mais se vê na tela: crianças sem braços, sem uma perna, mutilados que não perdem a alegria infantil por conta de suas tragédias pessoais. Uma superação que só não contagia a pré-adolescente Agrin. Resistente a toda tentativa de afeto, ela tem a obsessão de abandonar – em algum lugar ermo – o que parece, a princípio, seu irmãozinho caçula, uma criança cega de pouco mais de 1 ano. Com o tempo descobriremos (spoiler da metade do filme) que o menino é seu filho, fruto de um estupro coletivo de soldados, na mesma noite em que seus pais foram mortos. A criança, para Agrin, é o retrato da lembrança mais dolorosa de sua vida – tão insuportável que ela não consegue manter consigo. É até óbvio, mas em tempos de ouvidos surdos à obviedade vale lembrar: não há expansão territorial, petróleo, vantagem comercial ou mera implicância que valha cenas com essas. Um mosaico de dor que o cinema tem a grandeza de mostrar como alerta – antes que seja tarde de novo.
ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)
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AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA
HORROR ANTES DA QUEDA
COLUNA CRISTIANA BOAVENTURA
OS SERTÕES E A GUERRA DE NARRATIVAS P
assados mais de um século depois do lançamento de Os Sertões, imperecível e fundamental nesses últimos dias, a obra voltou à pauta na maior festa literária brasileira, a Flip: Euclides da Cunha foi o homenageado deste ano. Falar sobre Os Sertões, entretanto, é entrar em terreno perigoso já que a fortuna crítica do livro é uma das maiores do repertório da crítica literária do país. Nesse sentido, seria possível encontrar campo aberto para introduzir um discurso? Escolhi, então, um pequeno recorte para levantar uma questão. O nosso imaginário nacional sobre a Guerra de Canudos deve-se em muito à existência dessa potência literária. Será que se Euclides não tivesse se lançado a essa empreitada teríamos hoje como pensar o horror que foi a Guerra de Canudos? Disso d e s d o br a m- s e out r a s questões: quem detém (ou quem retém?) a narrativa oficial da História? Como se constrói um sentido para a História? E como cada indivíduo reage à brutalidade e ao horror impingido ao próprio corpo? Na Nota Preliminar, datada de 1901, Euclides da Cunha afirma: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”. A ideia pressuposta em denunciar é a de declarar algo, incriminar, deixar que se conheça, e Euclides se empenhou nessa campanha pessoal pela lente de quem experienciou parte do que foi narrado in loco. Muitos correspondentes foram enviados à região, muitos vieses foram veiculados pela imprensa da época. Fatos, distorções dos fatos, uma
guerra de narrativas estampada na imprensa do eixo Rio-São Paulo principalmente com o filtro do governo que, divulgando telegramas e cartas trocados com os combatentes, por muitas vezes notícias falsas, insistentemente tentava amalgamar o imaginário da guerra. Mas Euclides tinha um propósito: “Fui convidado em S. Paulo para estudar a região de Canudos (...) considereis que tínheis um nobre papel em tudo isso e almejo defini-lo bem perante o futuro. Consegui-lo-ei? Anima-me a intenção de ser o mais justo possível”. Entretanto, Euclides esbarra na fragilidade da linguagem frente ao horror. Isso se revela na impossibilidade de descrever algumas imagens. Ele opta por uma narrativa ausente, um não narrar, justamente pela inenarrabilidade do horror. A interpretação é construída no silêncio do não dito. Os momentos finais de Canudos nos chegam por meio de uma narrativa ausente. “Fechemos este livro. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.” Em alguns momentos da obra, Euclides vacila sobre a própria narrativa, interroga-se se o futuro dará autenticidade à sua História, tamanha a desumanidade dos acontecimentos: atos tão bárbaros poderiam ser entendidos no livro como ficção, uma elaboração literária, e não uma descrição da guerra? Para nossa sorte o registro épico nos chega como testemunho de um tempo que não deve ser esquecido, que não deve ser apagado.
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA
Euclides da Cunha esbarra na fragilidade da linguagem frente ao horror da guerra e opta pelo silêncio do não dito
CRISTIANA TIRADENTES BOAVENTURA É PSICANALISTA COM MESTRADO E DOUTORADO EM LITERATURA BRASILEIRA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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MEMÓRIA
“VÁ PARA A CHINA, Ô COMUNISTA!”. ELES FORAM. E NÃO SAEM DO PODER HÁ 70 ANOS POR ALEXANDRE CARVALHO
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novo governo queria marcar sua chegada ao comando com uma parada inesquecível: 500 mil participantes. Um número superlativo que só seria imaginável mesmo num gigante populacional como a China. Mas fortes chuvas no período atrapalharam os planos. Ainda assim, foi decretado um feriado de três dias para celebrar a vitória da revolução que mudaria para sempre o equilíbrio geopolítico do mundo. Há sete décadas, em 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-tung fundava oficialmente a República Popular da China. Com a vitória dos comunistas na Guerra Civil Chinesa, começava então uma série de reformas, que inclu-
íam o controle estatal da economia, a nacionalização dos grandes meios de produção e a reforma agrária – uma reorganização estrutural que contou, nos primeiros anos, com apoio soviético. Tinha início também uma implacável perseguição aos opositores do novo regime: em apenas dois anos, 5 milhões foram mortos. Um terror absoluto que contrastava com a alegria e o entusiasmo nas ruas naquele feriado comemorativo. Na foto, o banner ostentado pelos estudantes de Xangai, em cima de um caminhão, mostra os novos ídolos do povo: além de Mao (à direita), Zhu De, líder do Exército. Faces de uma nova ordem. De um novo país.
IMAGENS GETTY IMAGES
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