27 minute read

CINEMA NO HO CHI MINH A PRÁTICA FÍLMICA COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA DE ENGAJAMENTO TERRITORIAL

Next Article
SOBRE OS AUTORES

SOBRE OS AUTORES

CINEMA NO HO CHI MINH: A PRÁTICA FÍLMICA COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA DE ENGAJAMENTO TERRITORIAL1

Iara Pezzuti dos Santos Felipe Carnevalli De Brot

Advertisement

Introdução

Neste artigo, iremos discutir como o cinema pode servir como uma ferramenta de compreensão e engajamento territorial.2 Para tanto, tomaremos como base uma oficina de cinema desenvolvida com jovens e crianças do Assentamento Ho Chi Minh, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MsT) de Minas Gerais, que resultou na produção do curta A Procura (2019), realizado de forma coletiva e autogestionária. Desenvolvida pelos arquitetos Aline Franceschini, Felipe De Brot, Iara Pezzuti e Raul Lemos, essa oficina teve como principal objetivo responder à demanda, identificada pelos jovens, de fortalecer a mobilização dos moradores do assentamento, possibilitando a emergência de momentos colaborativos e revigorando, de certa forma, a memória coletiva acerca da constituição daquele território.

A oficina buscou experimentar a prática cinematográfica como resultado de um processo imprevisível, aberto ao inesperado e dependente das condicionantes físicas e sociais do contexto no qual os participantes estavam inseridos. Nesse sentido, refletimos acerca do cinema como uma ferramenta pedagógica para a liberdade

1 Este texto foi publicado originalmente na revista V!rUs, nº 20, da UsP. Para esta edição, foram realizadas algumas pequenas revisões e alterações no conteúdo.

O original está disponível em: sanTos, i. P.; BroT, F. C. Cinema no Ho Chi Minh: a prática fílmica como engajamento territorial. V!RUS, São Carlos, n. 20, 2020. [online]. http://www.nomads.usp.br/virus/virus20/?sec=5&item=110&lang=pt.

Acesso em: 30/10/2020. 2 As ideias contidas aqui foram influenciadas por outros trabalhos dos autores:

Os mundos entre nós: políticas do espaço no cinema documentário (de BroT, 2019) e Para além da cidade: experiências e apontamentos para a prática de assessoria técnica no Assentamento Ho Chi Minh (sanTos, 2019).

(Freire, 1987, p. 20), pedagogia esta que “[...] tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade”. Ferramenta pedagógica, portanto, que não almeja a transferência de conhecimentos, mas a construção conjunta de saberes a partir do diálogo e da prática.

Em um primeiro momento, apresentaremos alguns dados importantes sobre o Ho Chi Minh que guiaram os processos de trabalho no local e nos levaram a eleger o cinema como uma das principais ferramentas de atuação junto aos jovens e crianças. Posteriormente, com base nas discussões de diversos autores relativas aos campos do cinema e da antropologia, analisaremos como o método experimentado por nós operou no sentido de fortalecer a autonomia desses jovens na condução e realização das suas próprias narrativas sobre o lugar onde habitam. Por fim, traremos algumas reflexões sobre os modos possíveis de enxergar e experimentar o cinema como uma forma de redescoberta e engajamento territorial.

O assentamento Ho Chi Minh

Criado em 2005 e localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, na zona rural do município de Nova União, o Assentamento Ho Chi Minh pertence ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. As famílias assentadas nesse território já haviam passado por diversos assentamentos e acampamentos e, nesse sentido, carregavam consigo histórias e experiências de vida do campo e da cidade.

Unidas há 15 anos pelo objetivo comum de conquistar uma terra na qual pudessem produzir e garantir a sobrevivência do seu núcleo familiar, muitas famílias ainda vivem em habitações provisórias e, em função do escasso acesso às políticas públicas e às possibilidades de escoamento da produção, dificilmente sustentam-se com o trabalho na terra (sanTos, 2019). De modo geral, as contingências da vida no campo acabam por enfraquecer a coletividade construída nos anos iniciais de ocupação. Instaura-se, gradativamente, um processo de desmobilização social, em que cada família busca meios próprios de sobrevivência, quer seja por meio de vínculos de trabalho precarizado nas grandes cidades, quer seja mediante a prestação de serviço a fazendeiros vizinhos.

Nesse cenário, com poucas oportunidades de desenvolvimento da vida na roça, muitos jovens saem do assentamento para a capital em busca de novas perspectivas, guiados pelas promessas e anseios da vida urbana em contraposição às dificuldades vivenciadas no meio rural. Tal situação desencadeia um processo com efeito duplo. No campo, reforça-se o processo de êxodo rural, envelhecimento da população assentada e enfraquecimento dos vínculos territoriais por parte dos mais novos. Na cidade, cria-se o desafio da inserção dessa população vinda do campo em condições dignas de moradia e trabalho; muitas vezes, porém, essa população acaba se encontrando em situações precárias.

Tendo em vista esse contexto, foram propostas uma série de oficinas com jovens e crianças do assentamento a fim de investigar a relação dessas pessoas com o lugar onde vivem, bem como identificar interesses coletivos que possam suscitar atividades futuras e contribuir para o desenvolvimento territorial local que, segundo Saquet, é definido

Como o movimento contínuo de conquistas sociais (econômicas, políticas e culturais) e ambientais (ambiente recuperado e preservado; manejo adequado do solo, das plantas, das águas e dos animais) para a maioria da população, de valorização das identidades (patrimônio histórico-cultural), da participação, da solidariedade, da cooperação, da partilha [...]. O desenvolvimento assume, necessariamente, um conteúdo territorial multidimensional ou pluridimensional, em favor do direito à cidade, do direito ao campo e do lugar da boa convivência, sempre contrário à valorização do capital e à reprodução do estado burguês. (saQUeT, 2017, p. 20).

Nesse sentido, a partir do que chamamos de engajamento territorial, acreditamos que estimular a discussão acerca do território pode também significar uma oportunidade de rever práticas, analisar o passado e o presente e imaginar novas possibilidades de habitar as terras conquistadas no futuro. Entendemos “engajamento social” no mesmo sentido que Saquet (2017, p. 29) define “ancoragem

territorial”, em que “o território corresponde a um objeto de valorização por diversas formas de ação coletiva, ancoradas geograficamente. Engajar-se territorialmente significaria, assim, possibilitar a criação e o fortalecimento de vínculos com o lugar que se ocupa, viabilizando, consequentemente, a organização coletiva e a luta política a partir de um motivo comum: o território.

Durante um semestre, foram realizadas atividades de fotografia, teatro e mapeamento coletivo com cerca de 15 jovens do assentamento, com os quais formamos o Núcleo de Jovens Ho Chi Minh. A questão da desmobilização entre os mais velhos foi um tema que surgiu dos próprios jovens durante esse período de experimentação crítica. Nesse contexto, o cinema apareceu como uma estratégia de mobilização “de dentro para fora”: em uma dessas oficinas, os jovens tiveram a ideia de fazer um documentário sobre as histórias do assentamento, a fim de rememorar os tempos antigos e fortalecer a memória coletiva acerca da constituição daquele território.

Propusemos, a partir dessa ideia, a realização de uma oficina de cinema3 com duração de três dias. O objetivo era apresentar aos jovens alguns princípios e recursos básicos de filmagem, ampliar o repertório sobre as possibilidades do cinema como ferramenta de interlocução espacial e, por fim, produzir coletivamente o roteiro e o filme.

Se, a princípio, a ideia era a realização de um documentário sobre histórias locais, as estratégias utilizadas durante a oficina criaram oportunidades para que tal objetivo se modificasse espontaneamente. Apresentamos, na sequência, algumas escolhas realizadas por nós que, acreditamos, foram relevantes no sentido de fortalecer a autonomia desses jovens na condução e realização do filme.

Apresentar lugares através do cinema

Filmes contam histórias sobre pessoas, mas também sobre lugares. Desde as célebres cenas dos irmãos Lumière até os filmes atuais, é

3 A oficina foi realizada por Aline Franceschini, Felipe De Brot, Iara Pezzuti e Raul

Lemos, com recursos da Associação Arquitetas Sem Fronteiras (asF-Brasil).

Participaram cerca de 15 jovens e crianças, dispondo de três câmeras semi-profissionais, dois gravadores de som e uma claquete.

visível o fato de que cineastas do mundo todo fundamentaram suas obras na articulação de fragmentos de espaços dentro das temporalidades construídas pelos filmes, que, ao se constituírem na imagem, instigam sensações, lembranças, associações e afetos por parte do espectador.

A possibilidade de utilizar diferentes planos, ângulos, cortes, justaposições, enquadramentos e sequências na montagem cinematográfica [...] fez com que os espaços representados passassem da simples referência de localização dos personagens para um importante meio de criação de sentidos. (de BroT, 2019, p. 25).

Com base nessas premissas e antes mesmo de começarmos as filmagens ou discussões sobre um possível roteiro, propusemos aos jovens do Ho Chi Minh uma atividade fundamental para expandir a imaginação sobre as possibilidades expressivas do audiovisual: assistirmos juntos a alguns trechos de filmes selecionados previamente, nos quais os diretores utilizam diferentes recursos visuais com a finalidade de apresentar aos espectadores um determinado lugar. Exibimos trechos de quatro filmes,4 conforme mostra a Figura 1, que poderiam ser muitos mais, se não tivéssemos um tempo restrito para a realização da oficina.

Nos parecia importante, neste momento, explicitar o fato de que “imagens são superfícies que pretendem representar algo”, e, ao mesmo tempo, exercitar a imaginação, que é justamente “a capacidade de fazer e decifrar imagens” (FLUsser, 1985, p. 7):

Imagens não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: não são “denotativas”. Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos “conotativos”. [...] O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis. O caráter mágico das imagens é es-

4 Foram exibidos trechos dos filmes El vuelco del cangrejo (Oscar Ruíz Navia, 2010);

Rang-e khoda (Majid Majidi, 2017); Felicidade (Isabela Izidoro, 2017) e La Tierra y la Sombra (César Acevedo, 2015).

sencial para a compreensão das suas mensagens. Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. (FLUsser, 1985, p. 7).

Permitir aos jovens vaguear pelas diversas superfícies e camadas presentes nas cenas exibidas se constituiu como uma estratégia importante para ampliar o repertório imagético, expandir a imaginação sobre a infinidade de possibilidades e significados presentes nas imagens e atentá-los para as diversas possibilidades do cinema como forma de contar histórias sobre determinados lugares.

Em nossa seleção para a atividade, priorizamos aqueles trechos que possibilitavam diferentes questionamentos: o que o diretor quis mostrar nas cenas? Quais elementos nos permitem perceber suas intenções? Como a cena foi filmada? Onde a câmera estava posicionada? Quais sensações as escolhas de filmagem produziram? Tais perguntas, agora sistematizadas aqui, surgiam espontaneamente a

FigUra 1: Projeção do filme Rang-e khoda no galpão comunitário. FonTe: Autores, 2019.

partir das conversas despertadas pelas cenas escolhidas e pelo próprio exercício de buscar, nos entremeios das imagens, perguntas, significados e interpretações diversas. Além disso, o ato de provocar os jovens com perguntas, de estimular posicionamentos e opiniões acerca do que assistiam – e não simplesmente apresentar estratégias e ideias prontas sobre como filmar –, materializou o nosso esforço em estimular o papel ativo e crítico dos participantes em relação às imagens que viam na tela e aquelas que formulavam para si. Isso acabou criando um espaço horizontal e aberto à discussão no qual todos se sentiram à vontade para dar opiniões, criticarem e criarem novas ideias para o seu próprio filme.

Finalizada essa etapa, propusemos uma pergunta que guiaria a construção do roteiro, a ser respondida pelos jovens através do uso da câmera: como apresentar o Ho Chi Minh para alguém que não o conhece? Através dessa pergunta, que trazia as discussões dos filmes assistidos para um território comum aos jovens e abria espaço para que eles mostrassem o lugar onde vivem da maneira que achassem mais conveniente, nos esforçamos em ampliar a liberdade e a capacidade inventiva de falar sobre si mesmo, como escreveu Paulo Freire, buscamos possibilitar a cada jovem não ser “simples espectador, a quem não fosse lícito interferir sobre a realidade para modificá-la”. (Freire, 1967, p. 41). Entender a construção do filme como um desafio abria, ainda, espaço para que os jovens e crianças buscassem as suas próprias respostas enquanto seres no mundo:

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada. (Freire, 1987, p. 45).

Dado o desafio de responder à pergunta por meio do cinema, partimos para a etapa de familiarização com os equipamentos e

construção coletiva do roteiro do filme, que se iniciou naquela tarde e prosseguiu pelos dias seguintes.

Construir um filme coletivamente

Desde a organização prévia da oficina, nos recusamos a dar protagonismo para a etapa das técnicas de filmagem, que se restringiu à transmissão dos princípios básicos de utilização do equipamento de som e vídeo: como ligar e desligar, dar zoom, gravar e observar os registros. Se, à primeira vista, esse gesto de recusa poderia ser interpretado como um ato de privação de conhecimento técnico para aqueles que nunca utilizaram uma câmera, o entendemos, pelo contrário, e novamente em consonância com Paulo Freire, como o pressuposto de que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (Freire, 2003, p. 47). Queríamos, nesse sentido, que o olhar dos jovens sobre o seu próprio território fosse o mais genuíno possível, resultado não de uma relação hierárquica, mas de um “arriscado” embate de forças, em que aqueles que supostamente seriam ensinados apoderam-se da imagem, desenvolvem formas de olhar e inventam novos modos de narrar o mundo ao redor.

Após uma breve explicação sobre o funcionamento básico dos equipamentos, e tendo em mente a tarefa de mostrar o território para alguém que não o conhece, apresentamos aos jovens alguns papéis ligados à prática cinematográfica, de forma que cada um pudesse escolher, a partir das suas aptidões e interesses, qual função assumiria no decorrer do projeto: ator, diretor, câmera, captador de som, equipe de produção. Tais papéis, a partir de acordos e trocas, poderiam ser modificados ao longo das gravações. Cada participante recebeu, então, um crachá indicando a sua função – recurso que se mostrou muito importante, pois gerou maior comprometimento dos jovens em desempenhar a sua função durante a gravação das cenas. Com os papéis da equipe definidos, partimos para a produção propriamente dita, como mostra a Figura 2, que se baseou, principalmente, na abertura para o inesperado, ou seja, nas possibilidades constantes de criações e alterações do roteiro e na gestão coletiva do filme.

FigUra 2: Orientações básicas sobre o uso da câmera. FonTe: Autores, 2019.

Juntos, os jovens decidiram onde seriam realizadas as primeiras cenas e, orientados pelas diretoras escolhidas, improvisavam falas no mesmo momento em que estavam sendo filmados. As gravações começaram nas ruínas do alambique da antiga fazenda, onde hoje se encontra o assentamento, desativado quando o latifúndio foi à falência, antes mesmo da ocupação dos atuais moradores. Na cena inventada por eles, alguns jovens e crianças do Ho Chi Minh encontravam-se perdidos entre as ruínas, à procura de algo que eles ainda não sabiam o que era. À medida que as cenas eram gravadas – e aprovadas por toda a equipe –, novos lugares e situações iam sendo sugeridos para dar continuidade à narrativa criada; assim, o roteiro era construído aos poucos, de forma espontânea, seguindo o engajamento coletivo da equipe. A cada cena filmada, lugar sugerido e situação improvisada, desenhava-se diante de nós a potência do cinema em se comprometer com os desafios da experiência colaborativa. Experiência que se constituía pouco a pouco por meio de discussões e negociações constantes, do acolhimento das diferenças de cada participante e do minucioso trabalho de escuta e de partilha, como mostra a Figura 3.

FigUra 3: Negociações e acordos eram parte da execução de cada cena. FonTe: Autores, 2019.

Não se tratava apenas de dar voz aos jovens, mas, sobretudo, de deixar-se desestabilizar pela realidade narrada a fim de desconstruir as relações de poder implicadas no ato de filmar, como reivindicou o crítico Jean-Louis Comolli:

Temo, por exemplo, que os cineastas que se dizem e se colocam em posição de “dar” – e isso vale sobretudo para os documentaristas, especialmente aqueles que, por caridade, se propõem a “dar a palavra àqueles que dela são privados” – não façam mais do que ocupar novamente o lugar do mestre, reproduzir o gesto do poder. Pois não se trata de “dar”, mas de tomar e de ser tomado, trata-se sempre de violência: não de restituir a algum despossuído o que eu teria e decidiria que lhe faz falta, mas de constituir com ele uma relação de forças em que, seguramente, arrisco ser tão despossuído quanto ele. (CoMoLLi, 2008, p. 74).

Ao atuarmos apenas como mediadores nos trabalhos de roteirização, filmagem, produção e atuação, deixando que os próprios jovens tomassem as decisões sobre os rumos do filme, não buscamos articular uma relação de controle, em que nós, os supostos especialistas, poderíamos simplesmente filmar a realidade do assentamento. Na verdade, nos engajamos em uma relação desestabilizadora de encontro e de confronto condicionada pelas incertezas do real; nesse sentido, a produção do filme torna-se “uma conjugação, uma relação na qual se trata de se entrelaçar ao outro – até na forma”. (CoMoLLi, 2008, p. 85).

Fabular o cotidiano e redescobrir o território

Se, em um primeiro momento, pretendíamos elaborar com os jovens do assentamento um documentário sobre o local, as dinâmicas coletivas e as formas de compartilhamento da escritura fílmica experimentados por nós acabaram criando, em um segundo momento, um terreno propício para que os participantes pudessem representar a si mesmos e as suas experiências cotidianas por meio da ficção.

Logo no início, as situações inventadas e improvisadas pelos jovens diante da câmera evidenciaram, como propõe a antropóloga Ilana Feldman (2012), a passagem de um regime representativo (no qual quem filma mantém um certo controle sobre a situação filmada) para um regime performativo (caracterizado pela coexistência de múltiplos pontos de vista sobre aquilo que se filma). Ora complementares, ora divergentes, esses vários pontos de vista que compõem o regime performativo acionam a “função fabuladora dos pobres” (deLeUze apud gonÇaLVes, 2007, p. 137), que ficcionam “para se afirmar tanto mais como real” (gonÇaLVes, Head, 2009, p. 23). De fato, quando esses jovens criam histórias e personagens muito próximos de quem eles realmente são, vemos a ausência de uma “divisão clara e distinta entre a própria representação e o que ela representa”. (gonÇaLVes, Head, 2009, p. 21). Dessa forma, não sabemos o que existia antes da produção do filme e o que foi criado durante as filmagens, o que é fabulado para a câmera e o que faz parte da vida real desses jovens, quem é o personagem inventado e quem é um indivíduo real.

“A vida ordinária produz ficção – produz imagens – e, em via inversa, se produz nas imagens, é produzida na e pela ficção”, como propõe o pesquisador André Brasil (2011, p. 3). A imagem se torna o lugar “onde se performam formas de vida” (BrasiL, 2011, p. 5) que estão associadas, a um só tempo, ao mundo real e ao cinema:

A performance expõe a continuidade existente entre um domínio e outro – o vivido e o imaginado: ela é a natureza do gesto desde já artificializada e o artifício da mise-en-scène deslocado – “naturalizado” – pela espontaneidade e imprevisibilidade do gesto. Em contrapartida, ela nos mostra que entre o vivido e o imaginado há também descontinuidade: o artifício da imagem permite ao gesto defasar de si mesmo – encenar-se, montar-se – ou seja, ser, no interior do filme, outro gesto; e, por outro lado, a irredutibilidade do gesto persiste e resiste, escapa, em alguma medida, ao ordenamento da imagem. (BrasiL, 2011, p. 7).

Na fronteira entre a vida cotidiana e a cena filmada, a ficcionalização surge não como uma forma de simples encenação, mas como um processo de subjetivação no qual quem performa a própria vida diante da câmera articula outra imagem de si mesmo. Trata-se, portanto, de produzir, de reinventar um corpo (BrasiL, 2011, p. 10) – e, consequentemente, reinventar o mundo ao redor.

Esse mundo, materializado no território do assentamento, também se torna passível de redescoberta por meio da ficção. Ao representarem a si mesmos – ou a personagens muito próximos da vida cotidiana – e ao construírem o filme a partir dos lugares escolhidos coletivamente, os jovens do Ho Chi Minh nos revelam, e revelam uns aos outros, uma infinidade de relações com o lugar onde vivem. Por trás da vida comum, percebemos, através da performance dos personagens-moradores, um espaço de afeto permeado por práticas compartilhadas e modos outros de lidar com o território. Este espaço é representado, por exemplo, pelo cultivo nos quintais, pelas trilhas nas matas até as cachoeiras, pelas singelas redes de vizinhança e pelos almoços em grupo na casa dos mais velhos.

Na medida em que fomos guiados por esses percursos, construímos uma imagem do Ho Chi Minh a partir das formas de vida performadas pelos jovens nas cenas, como se estivéssemos montando um quebra-cabeça com os olhares dos próprios personagens, como mostra a Figura 4. Como bem disse a cineasta francesa Agnès Varda, “é compreendendo as pessoas que melhor compreendemos os lugares, é compreendendo os lugares que compreendemos melhor as pessoas”. (Varda, 1998).

FigUra 4: Em uma das cenas, os jovens apresentavam uns aos outros o assentamento. FonTe: Autores, 2019.

Articular a vizinhança em torno da tela

No último dia, após o final das gravações do curta A Procura – que nesse ponto já tinha nome e narrativa muito bem definidos –, realizamos uma pequena reunião na qual decidiu-se que os proponentes da oficina ficariam responsáveis pela montagem do filme.5 Além disso, ficou estabelecido que os jovens organizariam uma sessão de estreia duas semanas depois, destinada às suas famílias, amigos e

5 Devido ao tempo restrito, tomamos frente da montagem do filme, levando sempre em conta os desejos dos jovens em relação aos elementos da narrativa, explicitados durante a produção.

vizinhos. Novamente, o coletivo decidiu quem ficaria responsável por cada uma das funções: distribuir cartazes, ajudar na divulgação, produzir um lanche, organizar o espaço no dia do evento. Todas as funções eram de extrema importância para que a estreia ocorresse com sucesso, de modo que todos se sentiriam responsáveis pela organização do evento, quebrando mais uma vez com as relações unilaterais geralmente presentes em oficinas.

E assim, às vésperas da exibição, um pequeno cartaz foi impresso e distribuído no assentamento, nas linhas de ônibus e na escola em Carmo da União, onde estudam a maioria das crianças do Ho Chi Minh. No dia combinado, alguns moradores se juntaram para preparar pipoca, cachorro-quente e refrigerante para os espectadores, que se uniram no galpão onde a oficina fora realizada para prestigiar a estreia do trabalho dos jovens. Entre sorrisos e expressões de surpresa, uma boa parte da comunidade viu os seus conhecidos sobre a tela improvisada, enquanto os jovens se lembravam da experiência vivida a partir da introdução da câmera e reconheciam, nas imagens, os laços constitutivos de sua vida cotidiana.

Nos afastamos aqui da tradicional sala escura, silenciosa, repleta de cadeiras acolchoadas (características que definem a experiência tradicional do espectador de cinema) e nos deslocamos para outro espaço, testemunhando outros modos de tratar o cinema, que se abria para o mundo dos jovens do assentamento da mesma forma que o Ho Chi Minh outrora se abriu para os seus olhares. Quando submetemos o produto da nossa oficina às pessoas que dela participaram (direta ou indiretamente), constatamos a continuidade do poder do cinema em articular experiências coletivas: além de ser um momento de conclusão de um processo, a projeção do filme reúne a comunidade em torno da sua própria aparição. “Frente às imagens, a comunidade assume certa distância e, ao mesmo tempo, se implica com aquilo que lhe aparece no presente de sua experiência”. (BrasiL, 2016, p. 80). Aqui, o gesto de “ver juntos”6 é apenas o início de outras experiências compartilhadas, importantíssimas para o fortalecimento dos laços do assentamento, já que ver-se a si mesmo e aos seus vizinhos em uma grande tela significa, para além de uma importante valorização dos

6 Em textos recentes, André Brasil aborda o “ver juntos” como um importante momento de reunião de uma dada comunidade que, ao se ver na tela, toma certa distância crítica sobre si mesma (BrasiL, 2016, p. 79).

sujeitos implicados, a constatação da existência de uma comunidade regida por redes de afeto e solidariedade – realidade nem sempre fácil de assimilar e que, aqui, o cinema ajudou a evidenciar.

Reconhecendo que a autonomia dos assentamentos pode sempre pôr em risco o sentido coletivo dessas organizações, o pesquisador Joviano Mayer escreve que são inúmeros os desafios para manter firme o projeto comum de grupos tão plurais e autossuficientes. Além das pressões externas, como ameaças da polícia e de proprietários de terra, a vida comunitária nos assentamentos é constantemente ameaçada pelo individualismo, pela competição e pela tendência à reprodução de práticas sociais ligadas à propriedade privada (MaYer, 2015, p. 227). Para manter forte o vínculo coletivo, fundamental para a sobrevivência dessas organizações, Mayer aponta para a importância do fortalecimento das alianças e dos espaços comuns:

A ocupação é tanto mais forte (no sentido de agenciar apoios e criar uma rede de solidariedade capaz de obstar a ação do Estado-capital ante o ônus político que o desalojamento implica) quanto maior for sua capacidade de constituir espaços comuns (equipamentos coletivos, assembleias, atividades produtivas, culturais, formação política, lutas, ações diretas etc.) e envolver as pessoas na persecução deste objetivo, moradores(as) ou não. (MaYer, 2015, p. 225).

Ao lançar luz sobre os vínculos coletivos presentes no Ho Chi Minh, o cinema, protagonizado pelos jovens, funciona como uma forma de relembrar os laços de solidariedade e luta enfraquecidos pela dureza do dia a dia dos mais velhos, mas exercitados e reinventados cotidianamente pelos mais novos. Para além do simples registro, o cinema ganha aqui a dimensão de produtor de sentidos, uma forma de “potencializar as relações, de colaborar para a manutenção de um sentido comum entre os coabitantes de um território cuja unidade se mantém com muito custo em meio aos desafios de uma formação autônoma”. (resende, 2016, p. 115). A exibição pública e o ato de reunir a comunidade para se ver na tela reafirma, por fim, a possibilidade de se pensar o cinema como um processo no qual o fortalecimento da coletividade e dos vínculos territoriais ali presentes

acompanham o próprio desenvolvimento do filme e da produção até o momento da estreia.

Considerações finais

O cinema tem se tornado, cada vez mais, um lugar importante de enunciação de grupos historicamente excluídos das narrativas oficiais. Através das imagens, esses sujeitos, cuja visibilidade e existência necessitam ser constantemente reafirmadas, explicitam formas de vida e visões de mundo, que persistem apesar das disputas de poder em múltiplas escalas, e questionam as desigualdades, os conflitos e os processos de segregação e apagamento da sua própria memória.

Pensando sobre o contexto de instabilidade denunciado por essa produção cinematográfica emergente, o geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2006) apontou a importância do desenvolvimento de uma consciência de direitos por parte dos indivíduos e de um estímulo à sua participação na tomada de decisões sobre os seus territórios. Estes aspectos poderiam ser elaborados, segundo o pesquisador, através de uma ideia de autonomia fundamentada na autogestão e autoinstrução. Se a lógica das forças que atuam no espaço muitas vezes é concentrada nas mãos de especialistas e afastada da esfera do cotidiano, a prática política só pode ser efetivada, segundo Souza, se são dadas as devidas possibilidades para as pessoas se instruírem: “um exercício político e estratégico que resulte em práticas participativas realmente democráticas e inclusivas”. (de BroT, 2019, p. 18).

Se hoje muitos arquitetos buscam desenvolver ferramentas e práticas que despertem nos indivíduos um posicionamento crítico a respeito de como os processos que se reproduzem na cidade e no campo interferem na esfera do cotidiano, não seria então a prática fílmica uma ferramenta pedagógica de engajamento e de aprendizado mútuo sobre tais processos? Não seria o cinema um lugar de acolhimento de saberes outros sobre o espaço e de práticas participativas realmente inclusivas?

No contexto do Ho Chi Minh, buscamos expandir a prática canônica dos arquitetos e urbanistas em direção a um experimento coletivo que pensa o “cinema como práxis” (CoMoLLi, 2008, p. 175). Nesse sentido, o cinema - como um laboratório de saberes outros sobre

o mundo - tem “a chance de se ocupar apenas das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído”. (CoMoLLi, 2008, p. 172). E isso só pôde ser realizado porque apostamos em um método aberto ao inesperado e adaptado constantemente às condicionantes de tempo, espaço, técnica e interesse dos participantes.

Se, por um lado, esse gesto metodológico de “quase-guerrilha”, baseado principalmente na capacidade de adaptação, resultou em um desconforto maior da nossa parte – acostumados a trabalhar sobre regras e normas que criam um terreno muito mais previsível e calculável; por outro lado, esse mesmo método suscitou maior autonomia e interesse nos jovens. Ao construírem as suas próprias narrativas sobre o mundo, sem definições externas sobre o que é supostamente legítimo ou não, os participantes produziram coletivamente um conhecimento específico sobre o espaço onde vivem, teceram e fortaleceram laços de afeto e articularam um importante engajamento com o seu território a partir do processo de produção do filme.

Se o cinema tem lições importantes a ensinar aos arquitetos e urbanistas, o descontrole é certamente uma delas. Atravessado pelas incertezas do real que, mesmo ficcionalizado, permeia a imagem, o cinema realizado diretamente no campo, resultado de encontros, trocas e conflitos, depende das relações que estabelece com aquilo que está ao redor da câmera, sendo incapaz de se situar fora do mundo (posição preferida pelos planejadores quando se põem a projetar a partir de uma visão externa, supostamente privilegiada). Longe de representar um ponto fraco, reconhecer a impossibilidade de domesticar a complexidade do mundo é a premissa básica da invenção: uma invenção não só de formas fílmicas, mas também de novos modos de fazer junto.

Referências

BrasiL, a. A performance: entre o vivido e o imaginado. In: XX enConTro anUaL da CoMPÓs, 2011, Porto Alegre. Anais do XX

Encontro Anual da Compós, 2011. BrasiL, a. Rever, retroceder, reverter e retomar as imagens: comunidades de cinema e cosmopolítica. Galaxia [online], n.33, p. 77-93, 2016.

Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542016226054.

Acesso 25 de jul. de 2019. CoMoLLi, J. Ver e poder, a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMg, 2008. de BroT, F. C. Os mundos entre nós: políticas do espaço no cinema documentário. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) –

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. FeLdMan, i. “Um filme de”: dinâmicas de inclusão do olhar do outro na cena documental. Devires – Cinema e Humanidades, v.9, n.1, p. 50-65, 2012. FLUsser, V. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985. Freire, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Freire, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003. Freire, P. Pedagogia do oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1987. gonÇaLVes, M. a. O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em

Jean Rouch. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2007. gonÇaLVes, M. a.; Head, s. Confabulações da alteridade: Imagens dos outros (e) de si mesmos. In: gonÇaLVes, M. a.; Head, s. (orgs.).

Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. MaYer, J. g. M. O comum no horizonte da metrópole biopolítica. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade

Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. resende, d. O espaço comum na prática do filme documentário: memórias de uma comunidade de cinema. Tese (Doutorado em Belas Artes) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.

sanTos, i. P. Para além da cidade: experiência e apontamentos para a prática de assessoria técnica no assentamento Ho Chi Minh. Trabalho de conclusão de curso – Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. saQUeT, M. a. Consciência de classe e de lugar, práxis e desenvolvimento territorial. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017. soUza, M. L. A prisão e a ágora: reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2006. Varda, a. Cinema 61 60. In: sMiTH, a. (org.). Agnès Varda. New York:

Manchester University Press, 1998.

This article is from: