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INSURGÊNCIA NECESSÁRIA: UM CINEMA

Apresentamos a segunda publicação voltada para o pensamento cinematográfico, qual seja, Cinema: afetos e territórios. Esta edição contém artigos que refletem uma seleção de escritos relativos ao período de 2018 a meados de 2020 e que visam contribuir para a consolidação da fortuna crítica do filme de cinema sob viés insurgente. Para tanto, utilizaremos o conceito de historicidade como categoria analítica fílmica.

A carestia, o desemprego, a exclusão social, os eventos climáticos extremos, a pandemia da Sars Covid-19, o preconceito, a violência, a intolerância, o desestímulo à pesquisa científica de viés sociocultural e a perda de direitos trabalhistas e previdenciários fazem parte dessa grande lista de demandas pautadas na arena política contemporânea que clamam por justiça social.

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Este contexto histórico realiza-se num período marcado pela retirada do Estado de sua participação em compromissos tradicionais firmados junto à sociedade. Desde a fundação da época moderna, o Estado caracterizou-se pela ideia republicana que associou o conceito de nação à universalização dos direitos sociais fundamentais (como a saúde, a educação, o trabalho, o ambiente, a segurança, o transporte e a habitação).

O paradoxo conjuntural das nações do século XXi está balizado entre as dependências crescentes da sociedade quanto a satisfação de suas necessidades vitais, que deveriam ser cumpridas pelas políticas públicas geridas pelo Estado, e o desejo neoliberal de que haja uma renúncia ou uma diminuição drástica do papel estatal provedor e regulador da sociedade.

Para consecução deste objetivo – a implementação concreta de práticas ultraliberais – nações como o Brasil, a Colômbia, a Hungria e a Turquia têm recorrido a experiências aventureiras pertencentes a regimes políticos fechados e militarizados. Um grande ressentimento quanto às práticas democráticas, as ações centralizadoras, o fortalecimento bélico e a recusa da participação ampliada dos cidadãos na vida civil é a marca destes grupos que chegaram ao comando do Estado recentemente.

A natureza, o exercício e a distribuição de poder em sociedade tornou-se restrita nos regimes políticos autoritários e contrariam a

ideia inspiradora de Clio quanto ao progresso da esfera política comportar-se como uma seta do tempo rumo ao estado de luzes. Ao contrário, as novas ditaduras latino-americanas e europeias são a prova viva da possibilidade de retrocesso histórico e a existência de uma linha do tempo cíclica pontuada por anacronismos, dentre eles, o desmanche das conquistas sociais e políticas dos respectivos povos.

À luz de um entendimento histórico-cultural, acredita-se que o renascimento moderno incorporou aos valores culturais ocidentais um determinado quesito estético: o Belo. As formas de expressão, as cores, as luzes e a sensualidade, associadas ao rigor estético e à elevação espiritual (transcendental) do ser humano imprimiram determinados padrões eurocêntricos de plasticidade artística voltados a uma contemplação divina do real. Este ideal renascentista contribuiu para a formação de atitudes preconceituosas e de exclusões, pois numa dinâmica de alteridade ocasionou a universalização de sua cultura a despeito da negação dos padrões culturais existentes fora do contexto eurocêntrico (África, Ásia e América Latina). O filme político busca atenuar a valorização desta estratégia estética. Tal fato inaugura o campo ideológico do período moderno ao propor a utilização da arte como ação política radical em benefício da aceitação social da burguesia emergente.

Como instrumento atual de mediação deste complexo contexto social, o filme de cinema tem se situado como uma das mais influentes ferramentas de arregimentação ideológica. Na luta por ação social libertadora e contrariando esta lógica, a título de exemplo mencionamos as seguintes obras: Surplus (Gandini, 2003); O Parasita (Bong Joon Ho, 2019); Bacurau (Kleber Mendonça Filho, 2019) e Nomad Land (Chloé Zao, 2019); que espelham luta social e crítica contundente a ordem social burguesa estabelecida. O filme insurgente enfrenta, através de ações sociais midiaticamente organizadas, em termos reivindicatórios, uma luta por representações sociais existentes no ciberespaço. Para tanto, é necessária a permanente construção de uma linguagem própria que se tematiza como cinema socioambiental, filme insurgente ou filme político. É uma ferramenta de luta. O filme insurgente atua na busca pela verdade num raro momento em que são disseminados no ambiente político cibernético estratégias de desconstrução da informação e manipulação da verdade como as fire hosing e fake news.

As políticas culturais responsáveis por irrigar recursos de fomento ao setor audiovisual (produção, distribuição e exibição) têm sido as mais afetadas pelas crescentes práticas liberais e destacam a ausência de afabilidade do regime ditatorial brasileiro quanto ao cinema. A indignação setorial é tamanha a ponto de o diretor Fernando Meirelles1 afirmar que o atual governo brasileiro, iniciado em 2019, está destruindo em pouco tempo todo o setor de audiovisual diante de sua insensibilidade e falta de compreensão do que pode ser o cinema realizado no território chamado nacional.

O horizonte líquido

Decorridos quarenta anos do lançamento do filme Liquid Sky (Tsukerman, 1982), indaga-se a possível concretização de seu principal argumento literário: a existência de um horizonte líquido devido ao alto teor de contingência social (pandemia, risco ambiental, violência) que hipoteticamente transformam o futuro em incerteza. Arcabouço teórico contundente de Zygmunt Bauman, a liquidade (do amor, do tempo e da modernidade), é utilizada pelo sociólogo polonês para fins de comparação entre a mutabilidade dos estados físicos da água (sólido, líquido e gasoso) e a mutabilidade das instituições (a empresa, a família e a cultura). Segundo a perspectiva de Bauman, a sobrevivência nesta realidade é marcada pela capacidade das instituições em se metamorfosear diante dos novos cenários socioeconômicos (expansão e retração). Diante do quadro de contingências estabelecidas, o papel dos grupos de mídia na tessitura da realidade tem sido a utilização do medo como expressão mais pura da mudança.

1 Disponível em https://www.hollywoodreporter.com/news/general-news/ two-popes-director-fernando-meirelles-director-roundtable-1264212/#!.

Acesso em 18 de nov. 2021.

O desafio do método na análise da obra cinematográfica

Ressalvamos o fato de observar que o lugar ocupado pela produção audiovisual sofreu demasiadamente com a pandemia da Sars Covid-19. É notável a ambivalência que traduz-se na queda de bilheteria provocada pelo impedimento da exibição nas salas de cinema e o correspondente incremento da vida virtual decorrente do isolamento social. Este fenômeno social não está contemplado nesta edição devido aos escritos terem sido efetivados anteriormente à pandemia.

Esta desafiadora tarefa teórico-metodológica constantemente renova-se para aqueles que se destinam à investigação de fenômenos pertinentes aos registros audiovisuais voltados para a realidade da vida.

Para produzir conhecimento crível, o pensador logo depara-se, ao interpretar a realidade, com as distorções promovidas pela estreita relação entre sujeito e objeto de estudo tais como: relativismo, interação e parcialidade. A existência destas condicionantes, consideradas inerentes à pesquisa social, requisitam a construção simultânea de recursos metodológicos à medida em que ocorre o progresso do trabalho investigativo e visa o desenvolvimento de um planejamento detalhado de ações que permitam capturar minimamente a dinâmica do real. Portanto, apresenta-se como problema permanente na pesquisa social estabelecer um arcabouço metodológico adequado e atual sobre como empreender a interpretação da vida em sociedade e suas mutações com a maior fidelidade possível.

O recurso à categoria de historicidade é justificada por contemplar uma possibilidade estruturada de abordagem científica da vida social: o conceito de processo histórico no filme de cinema insurgente. A esfera particular, marcada pela articulação entre conhecimento e potência histórica, com a finalidade de determinar critérios filosóficos para aferir a efetividade das políticas públicas. O princípio teórico que norteia a utilização da categoria de historicidade é a crença na existência de uma consciência histórica que se distingue por apreender a realidade como processo espaço-temporal. Este processo inicia-se com o embate entre a negação do já conhecido e a instauração do novo saber.

Para melhor compreender a realidade é necessário negar a visão fatalista do “pensar ingênuo” presa à correlação imediata de causalidade do real em função do passado. O “culto” ao passado alimenta a crença em sua essencialização, ou seja, na inalteração da realidade e de seus métodos de investigação. Ao contrário, a perspectiva de processo contida na categoria de historicidade permite ao pesquisador a predisposição à recepção do novo e a investigação dos níveis de mudança da esfera social pelo exame minucioso dos fenômenos da realidade como processo e por considerar o presente por sua dinâmica e pela interação-articulação entre consciência e processo.

A utilização da categoria de historicidade permite atribuir consistência e coerência à pesquisa social relativa ao filme de cinema. Ao admitir a plausibilidade da investigação da realidade por métodos em elaboração. Para a captura de fenômenos sociais em movimento deve evitar-se a utilização de métodos anacrônicos e inautênticos nas pesquisas de natureza social por não refletirem adequadamente a realidade.

Com essa reflexão, convidamos à tomada de conhecimento sobre os artigos que se enquadram efetivamente como possíveis elementos na construção da história do filme insurgente. Desejamos uma excelente leitura.

Os organizadores

AFETOS E TERRITÓRIOS

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