Contos e outros contos - Fê Oliveira

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Edição e montagem Carine Araújo

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Contos e Outras coisas x Muitos dos livros de contos tem o nome do conto mais aclamado somado à estrutura “e outros contos “ como título, geralmente atribuído a autores famosos, e coleções dos clássicos. “Contos e outros contos” além da brincadeira com esse clichê, é também uma de pensar a organização desse material todo. A Maior parte das produções do Fê não possuem uma relação muito direta em forma ou estilo, principalmente por boa parte serem experimentações com a linguagem literária. Então conectar esse material eclético requer muito jogo de cintura, e apesar das minhas articulações serem rígidas, optei por dividir em duas partes: Na primeira parte o material mais abstrato, próximo da poesia, a história se apresenta como envolta por uma espessa neblina. Na segunda parte, um material mais literal, narrativas lineares e uma literalidade maior das expressões utilizadas, como uma rua vista num meio dia de sol. O material aqui compilado data de 2016 ao início de 2019, mesmo os que não haviam sido publicados na página do Fê nas redes sociais, não sendo nenhum deles feito exclusivamente para essa publicação. Ou seja, leia na ordem que desejar ;). Editorial: Carine Araújo – 2019

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Sumário Parte 1.......................................................................................................... 5 Três Encontros ........................................................................................... 6 Conversas na varanda............................................................................... 7 Outro sonho ............................................................................................. 10 Fernando ................................................................................................... 10 Mármore ................................................................................................... 11 O Fim está próximo ................................................................................. 11 Mente insana, corpo vão ........................................................................ 12 Profundidade, até onde os olhos podem ver....................................... 13 Tragédias .................................................................................................. 14 Quando é com a gente é diferente ........................................................ 14 A última carta .......................................................................................... 15 Vinagre ..................................................................................................... 16 Apenas um sonho talvez metafórico .................................................... 17 Parte 2........................................................................................................ 19 Saudades Verdejantes ............................................................................ 20 Já se passaram quase 3 anos mas ainda não consegui te digerir ...... 21 A Rosa Hospedeira ................................................................................. 22 A cartomante de Salvador ...................................................................... 27 S17- 8 ......................................................................................................... 29 Meu verdadeiro crush é a ansiedade .................................................... 36 Zé Francisco ............................................................................................. 37

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Parte 1 Apenas mais um pseudo-pós-moderno

O segredo? Para ser um escritor, é preciso ter algo que não possa contar a ninguém, para então contar a todos.

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Três Encontros Nesse calor parece que tudo azeda mais rápido. Tudo tem esse gosto estranho. Meu corpo cheira a fermento caseiro. Me pergunto se teria essa função... — Acho que na outra vida eu morri perto do pôr do sol… — Por que? — Sei lá, no fim da tarde sempre me dá essa sensação estranha, de finitude. — hmm… — Acho que morri de bala. Me viro para frente. Meu estômago vira terra e gira em torno de si mesmo. Te vi de costas no ônibus parado diante de mim. Foi melhor que não tenha virado pra cá, não sei como iria reagir se visse o novo óculos que comprou. Lembrei de alguns momentos e esperei que olhasse pra comentar com os olhos, mas até o fim você continuou de costas. Talvez fosse uma miragem. — Também vai pra aula dela hoje? —Sim, espero que não tenha bronca hoje. —… —… —… —… Trocamos silêncios pelas passadas seguintes. Todas elas.

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Interromper aquele silêncio seria criminoso. Arrisquei a perguntar as horas, com arrependimento. Teria sido melhor sair em silêncio e fingir que nunca existi, enquanto derreto. Sou quase invisível a olho nú. XXXX Conversas na varanda — Parece que a vida inteira é uma mesma merda. — De novo isso? — Sei lá, todo dia parece que termina e eu fico com esse nó na garganta. — Virei mais um gole do café quente na esperança do bolo espesso que pressionava minha garganta diminuir. — Hmm. — Meio que tenho pensado sobre coisas da vida, objetivos. Aquele lance de felicidade, encontrar o amor, ter filhinhos, tudo isso me parece um porre. — Pra gente provavelmente deve ser mesmo. — Damasceno riu tomando também mais um gole do café. — Você também tem esse nó na garganta quando pensa essas coisas? Olhei um pouco a sacada do apartamento, dava para ver outros prédios e um esgoto a céu aberto, mas adoraria fingir que estava vendo o mar e os carros passarem no calçadão em Boa Viagem, como na vista do prédio que morei, no andar que nunca estive. — Até que não. Meio que não costumo pensar muito nisso, muito coisa de homem branco pro meu gosto. Olhei um coqueiro imaginário balançar enquanto eu ria.

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— Mas sério, pra mim é besteira pensar nisso. Meu deus como essa cidade é quente… — E diferente de Recife aqui não chove quase nunca. — Como tu aguenta? Acho que essa nóia toda pode ser isso. — Pensa tão pouco nisso que mudou de assunto — Comentei rindo enquanto ele prendia o longo cabelo liso, imagino o tanto de shampoo que ele usa, ou se ele é adepto das técnicas de lavagem natural. — Foi sem querer, mas meio que eu não tenho mais o que dizer. Além de perguntar por que a gente ta tomando café nesse calor ao invés de uma cajuína bem geladinha… — Mania que eu tenho… — Mas enfim, meio que você tem que fazer as coisas e pronto, tentar fazer o que te faz bem e essas coisas clichês que já leu por aí. — E o que é felicidade pra tu? — Meio que felicidade e amor pra mim são bem próximos. — Meio que um levando pro outro? — Não… tipo Ele parou um tempo e ficou olhando o céu. — Meio que, pra você eu imagino que você imagina… nossa...enfim, que você imagina felicidade com um estado de alegria, e amor com um estado de paixão né? — Ééé mais ou menos. Pra mim ta mais um misto de alegria com satisfação. —Eu tiraria a alegria da equação, visse? — Por que? — Meio que alegria é momentânea. Eu acho que dá pra você estar triste mesmo sendo feliz. 8


— Meio complicado…. — Meio que, eu associo o amor e a felicidade ao momento em que seu coração está calmo. Algumas pessoas se sentem felizes em casar e ter filhos mas não por ter feito essas coisas. A gente é egoísta pra caralho Fernando, mesmo quando nos sentimos alegres com a conquista de alguém, é porque nos traz algo de positivo. É tudo sobre si mesmo, e essa jornada solitária… — O tal do eterno monólogo… — Isso, a vida como um eterno monólogo que vez ou outra surge alguém pra interferir, mas o monólogo continua. A solidão é uma constante. Quando você se encaixa como uma engrenagem em alguma comunidade, você se sente menos só, mas meio que não dá pra fugir disso não. E por favor Fernando, querido, você vai pagar uma cajuína pra mim que eu não quero esse troço quente mais não. — Ele afastou a xícara com desdém. — Revoltou-se mesmo. — Shhh, vamos descer daqui e rodar os próximos quilômetros atrás de uma padaria que tenha cajuína, já que tu mora meio caminho pro fim do mundo. Ele entrou rápido no apartamento e calçou os sapatos para descer, não tive escolha. — Será que eles aceitam cartão? — Biicha deixa de ser canguinha! Deixa pra lá, eu pago, só larga essa xícara da minha frente, pelo amor de qualquer ser que mande nesta terra. XXXX

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Outro sonho Noite passada sonhei que passava em frente à sua casa. Sua rua, deserta, parecia ter aumentado de tamanho, meu corpo era minúsculo. As casas cresciam como quem me olhavam com espanto, um retorno inesperado. Sua rua parecia uma boca imensa que queria me engolir. Parei um tempo. Olhei os paralelepípedos do chão. O ar pesava, e era gelado, estava nublado também. Quase sempre está nublado nos meus sonhos. Hesitei um pouco mas segui rua a baixo, casa por casa. Olhei ligeiramente cada uma delas e aquela que eu sabia que você estava, mas segui reto. Senti as lágrimas querendo fugir enquanto lembrei de alguns momentos, quando retornei ao início, minha cabeça inteira pesava. Não, eu não vou correndo para o telefone, nem vou pedir que me desbloqueie das redes sociais. Essa vai ser pra sempre uma ferida que carregarei comigo, não importa quanto tempo passe. Tem rasgos que não dá para costurar. XXXX Fernando Ah Fernando, querido, queria poder dizer algo pra te despertar desse sono profundo que impera, mas sinceramente, preciso acordar primeiro. Preciso que você volte, mas preciso também estar de volta. Te amo muito Fernando e peço que não se vá pra sempre...

XXXX

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Mármore Poderia passar a vida tentando entender esse mundo, mas nada faz sentido, Apolo. Os dias são cheios de vazio e as noites solitárias e gélidas como a morte. Apenas a luz do sol faz com que me levante, e em dias nublados não sei o que fazer, Apolo. Meu corpo se move quase como um autômato e o sono que sinto parece eterno, o frio profundo que atinge meu peito por nada pode ser aquecido, Apolo. O mármore gélido dos dias nublados e da ausência de resposta me impedem de seguir em frente Apolo... Somente o tic-tac do relógio me empurra para frente. Nada faz sentido, Apolo. Aquele que julgava ter esquecido jamais será, tampouco os que vieram antes, Apolo. O aperto no peito e a acidez do estômago são as mesmas de dois e dez anos atrás, a alegria esfria na geladeira da alma e cada encontro faz com que eu me perca mais. Apolo, Apolo, tu que é deus da sabedoria e da cura, diga-me o que faço Apolo? O que faço? Quero ver e ser a luz mas tudo que faço parece apagar um pouco mais aquilo que me ilumina… Sigo nessas ruas escuras, como se soubesse o caminho... Mas a verdade é que não sei Apolo, eu não sei... XXXX O Fim está próximo Como lidar com quem acha que será pra sempre, se mesmo eu que era pra ser eu não sou mais o mesmo? Minha cor favorita não é a mesma de alguns anos atrás, meu corpo antes esguio e marcado da doença, hoje possui volume e cicatrizes, apesar das eternas marcas mentais , ainda que mais fracas.

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Como pode achar que é pra sempre se você mesmo mudou, depois de tudo que passou em sua vida. Você não acha que vai achar alguém melhor? Que vai se apaixonar de novo? Não sabe que nossa sintonia não será eterna e que fatalmente iremos discutir, e talvez quebrar. As vezes é impossível ressintonizar aquilo que se desarmonizou. Talvez eu mude tão completamente que não me reconheça, talvez eu deixe tudo pra trás por não me sentir livre suficiente. Talvez você se torne aquilo que detesto, ou aquilo que detesta, e seus olhos não brilhem mais quando me vê. Talvez meu corpo não mais encaixe com o seu e tudo se vá. E talvez um de nós deixe ser e se torne só um corpo. Espero que não aconteça antes da hora, mas estamos destinados, é o ponto final que um dia iremos encontrar. O fato é que irá acabar. Irá. Não dependa de mim, querido. Vai acabar um dia, é melhor que esteja pronto para isso. XXXX Mente insana, corpo vão Você se torna o que tem medo de se tornar e teme por saber que é o seu destino, Meu deus, quantas vezes jurei que nunca faria isso, que não ia fugir Mas eu só sei fugir caramba, não sei fazer mais nada, eu queria abraçar o mundo inteiro, mas não consigo nem te abraçar... Meu organismo desorganizado se corrói por dentro. É esse o meu destino? É esse o caminho? Isso é tudo que tenho pra ver? Quem restringiu minhas possibilidades, quem me ensinou a me reprimir todas as vezes que eu fosse falar o que pensei?

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Quem me impede de amar as pessoas que amo, e de saber as coisas que sei? Apolo me diga, Apolo... por que tem que ser assim? Minha indiferença forçada me faz pensar que sou quando não sou.. A única coisa que consigo pensar é se eu morresse amanhã o que eu gostaria de fazer. XXXX Profundidade, até onde os olhos podem ver. Água gelada em minhas pernas. Arrepio. Um passo, lento. A resistência do líquido me faz hesitar. Lama entre os dedos. A canela riscada pelas plantas rígidas que brotaram ali dentro. As pedras duras sob o peito do pé machucam, arranham a pele fina e frágil que encontram. Meus joelhos entortam enquanto a água os cobre. Tropeço. Me sujo de lama. Sigo caminhando. Devagar. Aumento a profundidade. A respiração pesa a cada passo. Meu peito se torna invisível. sigo. A rocha uniforme sob meus pés permite que os passos sejam leves. Pescoço. Boca. Nariz. Olhos. Sinto o cabelo voar para trás, enquanto ando em frente... Cada vez mais fundo…

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XXXX Tragédias Quando acontece conosco é um fato, mas quando é com os outros são só números. Só faz sentido quando é com a gente, com os outros são só números. mulher ao telefone repetidas vezes: alguma noticia? Alguma noticia? Alguma noticia? Não tem o que dizer.

Quando é com a gente é diferente O irmão do meu primo que me ensinou a comer de garfo e faca foi assassinado. Ele era inocente. Meu primo que vi poucas vezes, e nunca mais verei.

Morava longe. A mãe deve estar inconsolável, uma

senhorinha tão pequena e tão bondosa. Perdas cruéis, perdas cruéis. Uma fazenda de manga, um agiota atrás do dono e não importava quem estivesse no caminho. Ele era inocente. As mortes violentas enfiam silêncios em nossa boca. O desespero e o medo, o fim trágico e desnecessário de um ciclo que mal havia começado. Despedaçados. Cacos impossíveis de se juntar. Qual caminho andar quando o chão é arrancado dos seus pés? Onde pisar? XXXX

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A última carta “Sinto que ainda tem algo que eu preciso te dizer antes de você ir embora e eu nunca mais te ver em minha frente. Sabe, eu me meti sem querer em sua vida, e tem algo em você que me fascina até hoje, mesmo agora que não sinto mais nada daquilo que já senti. Aquele dia que te xinguei do nada ainda faz com que eu me sinta mal, ainda mais depois de você ter dito que merecia… Não, não faz o menor sentido! Ainda te devo desculpas por aquele dia. Meio que eu nem te conheço ,sabe? Você é só um desconhecido pra mim, e sei que sou o mesmo pra você, mas sempre tive a sensação que de alguma forma você fazia sentido nas minhas redes de contatos. A maior parte dos nossos bons momentos foram mera projeção minha de idealizações em você, mas muitas vezes suas palavras, por mais cotidianas que fossem as conversas, salvaram alguns dos meus dias. Ainda te acho ingênuo, e um tanto bobo, mas talvez seja apenas outra projeção por você ser mais novo que eu e com menos carga emocional exposta. Talvez seja até algum mecanismo de defesa seu, mas, bom, não tenho como saber. O fato é que sua visão de mundo é incompreensível pra mim. Em compensação acredito que você vai conseguir trilhar o caminho que escolheu e superar todas as dificuldades. É, apesar de tudo não deixo de sentir uma certa simpatia por você, e desejar o seu sucesso. Nunca compreendi o que achava de mim, nem acho que irei … Mas acho que conseguiria entender o que tenho a dizer mesmo se eu tivesse coragem de entregar essa carta.

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Seu sorriso ao me ver era verdadeiro? Você considera que tínhamos, de alguma forma, algo próximo da amizade? São muitas coisas que eu gostaria de perguntar, mas não vou. Nem teria coragem… Bom, espero que seja aonde for, você se torne uma pessoa melhor, para si e para os outros. E que seja um bom profissional, humano, capaz de ver o outro como um igual. Abraços, e ganhe o mundo! Ganhe o mundo!”

XXXX Vinagre Perdido em um mar de confusão, profusão de sentimentos, um vulcão de vinagre e só vinagre é o que sai de mim. O gosto ácido e a sensação de pressa na boca do estômago me definem os dias, no meu planeta quadrado e sua extensão disforme-matinal. Nem mesmo seus

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abraços calorosos podem aquecer meu coração. E eu sinto falta de estar só… O único desejo que achei que nunca iria ter, o de ter de volta aquele aperto no peito e a sensação de infinidade, onde as paredes do meu quarto, meu planeta, se estendem como as bordas do universo em constante expansão. E meu corpo se afasta cada vez mais de mim mesmo.... Mas só sinto a força da gravidade, o preço a se pagar pela atração dos corpos, a união e a proximidade como um peso, até que chegue ao ponto de um novo big bang. XXXX Apenas um sonho talvez metafórico

O ônibus passava tremendo pela estrada seca e deserta de areia batida. As pedras batiam sob o pneu e meus dentes batiam, mesmo com a boca fechada. O ônibus era tão velho que já mostrava sinais de ferrugem e diversos buracos nas laterais, abaixei a cabeça e pude observar que a parte da frente do chão estava descolando. O motorista não parecia se importar. Haviam diversas cadeiras vagas subindo alguns degraus do mesmo material do chão que deixavam as cadeiras atrás mais altas. Ainda assim estávamos em pé. Ao meu lado um amigo que eu não via há algum tempo, e duas amigas que passei tempos sem ver também. Meu namorado olhava concentrado a porta. Estávamos os cinco amontoados na frente, e aquele rangido metálico já me irritava profundamente, quando eu os observei no canto da estrada: Cactos. Mandacarus não tão altos, mas de caule grosso e galhos espalhados e sobre eles diversos crânios humanos, a maioria tão antiga que possuía uma tonalidade acinzentada, quase preta.

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Vários deles se passaram diante dos meus olhos, e um certo temor se apossou de mim. O ônibus fez uma curva um tanto brusca e seguiu, aos poucos se inclinado para frente. A estrada era um pouco inclinada e não parecia levar a lugar nenhum. Um cheiro estranho incomodava meu nariz, abaixei a cabeça novamente e notei que pela fresta na frente do ônibus um líquido gosmento e esbranquiçado entrava e encharcava meus pés. Aquela lama podre fedia de forma inacreditável para algo tão sem cor, um fedor que lembrava vômito e carniça. Esperei baixar, mas ela só subia mais e mais e já atingia metade de minha panturrilha quando comecei a subir a escadinha. Meus amigos e meu namorado não pareciam se importar com aquilo. As duas meninas olhavam a janela e jogavam conversa fora. Os meninos distantes, em seus celulares. O motorista então, não estaria mais tranquilo em uma boa rodovia. A lama atingiu meus joelhos, o esqueleto de um peixe morto se destacava naquele meio nojento. O fedor me enfraquecia. Nas cadeiras de trás pude ver minhas tias conversarem e minha mãe, que, mesmo incomodada com o fedor, fingia que nada acontecia. Subi um pouco mais, cada passo era um peso maior nas minhas pernas, mas eu me livrava da lama, que continuava a subir incessantemente. Então quando olhei nas últimas cadeiras, um homem me olhava. Ele tinha barba, mas estava meio careca no centro da cabeça e virou o rosto para me olhar. A ansiedade me consumia. Gelei. Ele me olhava com desprezo. Seus olhos me mandavam descer, me mandavam aceitar, me diziam que eu merecia aquilo e que assim devia ficar. Atolado na lama. Seus olhos diziam, mas ele não disse nada. Olhei ao redor, a lama começara a descer lentamente, assim como entrara, e aos poucos pude voltar até onde estava. Quando olhei pra trás, o homem olhava a janela. Ainda com cara de nojo, mas não mais de mim. XXXX

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Parte 2 Direto ao ponto – Aquilo que se vê

Não acredito mais em milagres. Clamo por uma coincidência!!!

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Saudades Verdejantes Ela apareceu, assim, como quem não quer nada. Aquela coisinha verde e enxerida em cima da moto do meu irmão, olhando curiosa para todos os lados. — Será que fugiu de algum lugar? — Minha mãe pergunta, se aproximando devagar. Ela lança um grito agudo. — Acho que não quer conversa. — Eu disse, num suspiro. Mas ela continuou olhando para a porta da casa, curiosa, então, de repente, com seus passos esquisitos de passarinho caminhou saltitante para dentro. Sem saber o que fazer minha mãe deu de ombros e entrou também. Foi aí que aquela priquitinha curiosa passou a fazer parte de nossa vida. Dei-lo o nome de Lolipop, mas acabou virando Loly. Loly era uma jandaia que não conseguia voar, provavelmente teve a ponta das asas cortadas, então ela ficava andando pela casa. A gente colocava água e comida, geralmente arroz, ela amava arroz. É estranho pensar em como aquela coisinha mudou nossa vida. Chegar em casa e encontrar aquela coisinha verde saltitante em cima da mesa dava um ar mais vivo aquela casa vazia. Tirar os tênis enquanto ela brigava animadamente com o cadarço dava um ânimo novo a minha vida. As vezes minha mãe perguntava se era de alguém daqui de perto, mas ninguém nunca apareceu procurando. Às vezes eu me perguntava se era ilegal tê-la em casa, mesmo que ela não tenha sido convidada. Ah Loly, dizem que amores assim são chave de cadeia, não é? Mas a polícia também nunca apareceu. Lembro dos voos rasantes que ela dava quando suas asas começaram a crescer e as vezes que ela...bem, depositava seus dejetos nos meus trabalhos escolares. Seus voos ficaram mais altos. Acredito que suas

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penas estavam crescendo, ela estava mais arisca também. Já beliscava meus dedos com mais força e não queria mais saber dos meus cadarços, mas vê-la saltitante e voando pela casa me faziam querer levantar da cama. Lembro da vez que quando fiz o prato do almoço, ela avançou sobre o arroz, e mesmo comigo tentando afastá-la porque a comida estava quente, ela insistiu até que eu colocasse uma parte para ela. Agora, olho a mesa vazia, com tristeza. Ela foi embora assim como chegou, de repente. Quando voltei da escola, ela havia sumido. A janela estava aberta, sempre esteve, e ela deve ter ido embora. Ela nunca me pertenceu. Ela nunca pertenceu a esse lugar. Ela nunca esteve presa, e eu nunca quis prendê-la. Confesso, olhar a casa vazia sem aquela criatura alegre e verdejante me causam uma sensação cinzenta de saudades, mas é assim mesmo que são as melhores coisas, apenas uma aparição rápida, como quem não quer nada e de repente um pedaço de seu coração foi ocupado. Um pedaço da sua alma é ocupado. E nada, nem ninguém irá tomar aquele espacinho pra si. XXXX Já se passaram quase 3 anos mas ainda não consegui te digerir

Ainda sinto um arrepio de raiva quando me lembro dele comendo.

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É estranho começar a sentir raiva de alguém pelo jeito que ele come? Sei que não. Talvez não fosse o jeito que ele comia em si, porque no começo eu achava até sexy, mas com o tempo… Não sei. Talvez fosse o jeito como ele sempre me desdenhava enquanto comia, não verbalmente, ele sempre inclinava a cabeça e parecia me olhar com cara de nojo. E nunca falava. Nem responder direito me respondia… Só se o assunto o interessasse, senão nem falar que não tava afim de conversar ele se dava o trabalho. Aquele olhar que me lançava ainda me dá um arrepio de raiva tão forte que tenho vontade de voltar no tempo só pra dar na cara dele. Mas passou. Agora lancho sozinho. Ele que lanche pra lá pra, me sinto só mas pelo menos não passo mais indigestão por causa de ninguém. XXXX A Rosa Hospedeira Uma rosa vermelha. Ela usava uma rosa vermelha no cabelo. E também uma bandana preta com estampa de caveiras. Já ouvi alguns dizendo que achavam cafona, outros algo feminino (não que fizesse sentido com aqueles piecings, e a roupa preta, rasgada e cheia de spikes) Pessoalmente, estou assustado. Por mais que insistam comigo que é um enfeite qualquer, um adereço avulso, aleatório, comum, que ela deve ter perdido uma aposta pra algum de seus amigos. Eu tenho certeza que é uma rosa de verdade. Estava decidido a não dar atenção a isso, mas nem sempre as coisas saem como o planejado. Quando tive que pagar cálculo três (de novo) ela estava lá. Na cadeira da frente.

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A rosa estava maior que da última vez que tinha visto, e exalava um cheiro forte e adocicado. Num momento de estupidez me atrevi a erguer a mão para tentar tocá-la, mas mal encostei numa das pétalas e a garota se virou em minha direção. Senti um arrepio percorrer meu corpo. Ela se voltou para frente e não falou nada sobre isso. Engoli em seco. Cara...aquilo sim era estar nervoso. Comecei a observá-la de longe. Ela sorri bastante, tem alguns amigos de vários cursos da faculdade não se prende ao pessoal de arquitetura ou engenharia que nem eu. Apesar de tudo, parece esconder algo. Talvez fosse até coisa de minha cabeça, mas as vezes faz algum sentido, sabe? Tipo, quando a gente voltou do recesso eu tenho certeza que a rosa tinha uma camada a mais de pétalas e possuía um vermelho mais vivo. Você pode dizer que era outra, mas não, eu observei e fiz até alguns desenhos de como as pétalas se organizavam. Não acredita? Tudo bem. Se eu achar eu te mostro. Acho que coloquei numa dessas gavetas..., mas enfim. Aquilo me deixava... excitado. É, soa estranho, mas era isso mesmo. Eu precisava saber mais. Foi mais ou menos quando chamei ela pra sair. Talvez eu tenha errado em ter feito isso, mas não consegui entender meus sentimentos de outra forma. Além do mais, ela aceitou. E não fiquei nem um pouco triste por isso. Fomos para a sorveteria, aquela, atrás do prédio lá, da UNIVASF. Ah, não existe mais? Anos atrás era maior sucesso. Ela meio que tinha um jeito estranho com plantas. Pediu pra ficar na cadeira mais perto do jardim, quando o sorvete chegou ela parecia tentar seduzir uma hortelã no canteiro. Quando falei que era fã de uma banda que ela também gostava ela prestou mais atenção em mim do que no sorvete. Foi muito melhor que eu esperava, nem pensei tanto assim da rosa. Por que você se importa tanto com os detalhes românticos? Ah, ta bom, ta bom... Foi atrás do bloco de ciências sociais. Não vou dizer os detalhes, mas foi um dos melhores beijos da minha vida. Foi mais

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ou menos uma semana depois. E a rosa? Bom, a rosa continuava lá. Cada dia mais vermelha. Uma vez ela desmaiou. Não a flor, a Sinnan. Ela me falou que tinha anemia, e só, mas não acreditei. Posso jurar que vi aquela rosa brilhando aquele dia. Fora esse incidente, vivemos com certa paz por uns seis meses. Ela desmaiou outras vezes nesse meio tempo, mas nunca nada demais. Foi nessa época que me desentendi com meus pais e resolvi sair de casa. Quando falei com ela sobre isso, sugeriu que fossemos morar juntos. Ela tava sem saco pros pais dela também, e um aluguel dividido ia sair bem mais barato. Nessa época eu já estava gostando dela. Além do mais, como dizer não aquele sorriso... *** — Cara, não tem plantas demais aqui não? — Não acho. — Sinnan olhou em volta da sala cheia de samambaias e outras plantas em vasos pendurados pelo teto e parede. Apesar de implicar, até que eu gostava. Era bonito. A casa era pequena, um cômodo grande era sala, quarto e cozinha, tudo meio com uns tons amarronzados e amadeirados, e as plantas deixavam um cheiro agradável no ar. Dois anos. Ela terminou a faculdade e foi trabalhar, e eu ainda tinha umas físicas e o estágio para concluir, mas meus bicos de Dj davam pra ajudar na renda. — Só me mandaram cortar o cabelo duas vezes hoje — Eu disse tomando a xícara de café quentinho que tinha acabo de fazer. — E hoje mandaram eu deixar o meu crescer umas cinco. E também tirar... — Ela tocou na flor em sua cabeça e se encolheu. — Aconteceu algo querida? — Não foi nada... Enfim, acertou no açúcar hoje... Aquela flor... eu tinha conseguido ignorar. Mas quando ela falou isso, notei que definitivamente parecia maior. Engoli resto do jantar em silêncio.

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— Você nunca me deixa tocar nessa rosa... tem algum problema? Estávamos na cama. Ela fazia carinho no meu cabelo e brincava com meus cachos. — Eu... Não quero falar disso. — Suas mãos foram até minhas costas. Beijei seus lábios. Ela me beijou de volta. Quando nos beijamos mais profundamente pude jurar que senti gosto de sangue em sua boca. Dois anos pode ser muito tempo ou não tanto tempo assim. Mas é o suficiente pra destruir algumas coisas. Principalmente quando o stress começa a ficar acumulado. Você sabe, adultos... Ela começou a trabalhar um período inteiro e eu, estudava, fazia meus bicos e ainda arranjava tempo para o estágio. Aí já sabe não é? Tudo vira uma aporrinhação danada. Aquelas plantas que não paravam de se multiplicar já estavam enchendo o saco, então todo dia eu reclamava. E toda vez que eu falava daquela rosa, ela se encolhia e dizia que não queria falar disso. Isso me fazia calar a boca. Até aquele dia. Cheguei excepcionalmente tarde aquela noite e encontrei-a de braços cruzados na porta, soltando fumaça pelas narinas. — Seu imbecil. Já falei pra deixar a merda da chave embaixo do vaso? — E eu falei pra andar com a sua chave, que você nãos fez cópia de enfeite não. Sem falar que deixei essa porcaria aí— Ela torceu o nariz e levantou o vaso de peônias roxas e não tinha nada. Ergui o vaso do lado de violetas e lá estava. — Você mudou o vaso de lugar! — Eu estava apressado! E não custava um real olhar o outro vaso. — A esta altura eu já estava gritando. Abri a porta com violência. Ela entrou esbarrando em meu ombro. — Já falei que prefiro não andar com a chave tendo a reserva. E tu faz uma merda dessa!

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— E você enche essa casa de planta, meu deus até embaixo da cama eu acho planta nessa merda. E enche a cozinha de abelha. — E você nunca enche as garrafas que esvazia. Fica achando que vou passar a vida toda dando aguinha na sua boca vai! Cabeça quente. A vista ardia. Furioso peguei ela pelo pulso. — E essa porcaria de flor que você nunca tira da cabeça? Hein? Ela se encolheu. — Já disse que não quero falar disso. Geralmente essa fragilização momentânea me enfraquecia. Mas não sei o que aconteceu aquele dia. O sangue subiu a cabeça e quando dei por mim, já estava com as mãos na cabeça dela. — Tira essa porcaria! — E então eu puxei. Ela gritava de dor, mas tudo que eu pensava era em me livrar daquela rosa vermelha maldita, eu puxava com toda força, e nada dela sair. Foi quando ela parou de gritar. E minhas mãos, junto com a rosa, um caule, e uma massa pegajosa avermelhada e acinzentada. Apertei os olhos. Aquilo machucava. Aquela lembrança, machucava. Eu agora, olho nossas fotos juntos e sinto vontade chorar. Se eu não tivesse sido tão idiota, se eu tivesse tido paciência... Mas não. Eu não tive. Por mais que agora eu esteja com a Marcela, eu não consigo esquecer aquela garota que, sem saber, eu matei. — Querido, vamos, pegou tudo? — Ah,sim,sim... — Guardei os álbuns na estante. Ela brincou com meus cachos, como sempre fazia. Às vezes falava de um caroço estranho em minha cabeça. — Sério querido, isso ta crescendo. —Revirei os olhos e caminhei até o espelho.

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Dali, de minha cabeça, um pequeno broto verde, com a ponta macia e avermelhada, surgia.

XXXX A cartomante de Salvador Ela tomou minha mão sem que eu percebesse. Em um momento, caminhava tranquilo pela praça, em outro, algo gélido e áspero estava sobre a palma de minha mão e uma mão áspera, mas quente, segurava a minha. — Meu jovem! Meu jovem… — sua voz era profunda e misteriosa — Me permita ler sua mão… ver os caminhos que o trouxeram até aqui, e para onde esses caminhos o levarão! Em minha mão ela havia colocado a ponta de seus colares, ambos de contas e ainda pressionava minha mão contra aquelas bolinhas rígidas de plástico. A senhora deveria ter pouco menos de cinquenta anos, sua expressão era distante e compenetrada, tanto ao ponto de ser invasiva. Suas vestes vermelhas e longas me faziam questionar se ela não sentia calor naquele sol de meio-dia. Me voltei para ela rapidamente. — Não tenho dinheiro. — Ora, se você gostar é só me pagar um cafezinho. — É sério, não tenho… — Pra um cafezinho? um jovem como você? — Pois é. Efetivamente eu não tinha nem um tostão em meus bolsos. Uma moeda que fosse. Andava liso, zerado e qualquer outro termo que queira assertar ao meu respeito. — Deixa de ser sovina. Eu sei que você só não quer me dar.

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— Moça, eu não tenho… — Rapaz, nem um trocadinho? Não tem? — É, tenho não. — Então vá! — Ela finalmente soltou minha mão e deu um empurrão em minhas costas. Segui, atravessei a rua e esperei o ônibus normalmente. Mas confesso que tudo isso deixou uma dúvida cruel impregnada em mim. Quem em sã consciência quer um cafezinho na hora do almoço num calor desses?

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S17- 8 Zumbis! Por toda cidade! Mal pude acreditar quando o Jeremiah puxou minha mão e me colocou no banco de uma hilux 2017 que nem sei onde arranjou. Seu cabelo longo balançava enquanto tudo que eu ouvia era o som de corpos sendo esmagados pelo pneu. Na parte de trás, um estoque de alimentos suficiente para encher um mercadinho pequeno. — Há quanto tempo você não saia da frente daquele computador?! — Umas...duas semanas? — Sem internet? — Ele parecia furioso. Uma ferida em seu pescoço sangrava muito. — Eu desliguei… pra fazer o TCC. Ele girou o carro em 360º graus, segurei com força no banco. Entranhas sujaram a janela. Eu chorava. — O que houve enquanto estive… — “Isso” houve. Aquele com certeza era meu professor de nanobiologia. Aquele que Jeremiah passou por cima sem pensar duas vezes. Encarei seu rosto com cautela. Ele estava sujo de sangue e outras coisas que tinha medo de descobrir. O nariz afilado parecia meio torto ,e olheiras profundas marcavam seu belo rosto, e revelavam um lado que parece ter chorado muito e dormido pouco. Os cabelos longos e castanhos estavam embaraçados e opacos. — Ariel, sei de um lugar seguro, mas não podia ir até lá sem saber onde você estava.

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Ele arrombou o portão da escola. Amassando não somente o aço rígido das grades, mas também a frente do carro. Mas ele não se importou. Alunos-zumbi caminhavam a passos pesarosos pelo corredor. Alguns atacavam uns aos outros, outros apenas pareciam os sonolentos estudantes do ensino médio de sempre, porém com alguns ossos expostos. Senti um aperto no peito. — Não dá tempo para se lamentar. — Ele parou o carro no meio do corredor em frente a uma escada. Puxou uma pistola do banco de trás e colocou na calça. Me entregou uma arma imensa que não faço ideia de qual seja o nome. Me passou duas pistolas e umas facas esquisitas cheia de buracos e ponta serrilhada. E me passou o pente, de cada uma dessas armas. Depois se armou devidamente e olhou em volta. Em um salto, ele desceu do carro e atirou em cinco zumbis que desciam as escadas em nossa direção. — Rápido! Eles sentiam nosso cheiro. Reconheci muito daqueles corpos putrefatos ambulantes, e quando tive que atirar na cabeça da Gisele que fazia biologia comigo e estagiava lá um grito seco ecoou pelo corredor. Minha cabeça parecia cheia de fumaça. Tudo parecia embaçado. E a porta, ah, apesar de todas as chaves, nenhuma abriu a porta. — Ah que merda! — Jeremiah chutou a porta com violência. — D-Deve ter outras portas que… Ele puxou meu braço com violência e me empurrou na sala ao lado. Depois de alguns tiros, entrou, com dificuldade e trancou. Ele caiu com a mão no pescoço. — Ai merda… — Je…

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— Estou bem. — Ele respirou fundo. Só então pudemos dar uma olhada na sala. — Uma tv, umas cadeiras, Ah! Graças aos céus, um frigobar. — Aqui era a sala dos professores… Um grunhido soou dos banheiros. Em um movimento rápido dele, a tia da limpeza… ou o que um dia já fora a tia da limpeza estava destruída.

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Abracei-o com força. — Como isso foi acontecer… — Apoiei minha cabeça em seu peito. — Ariel… eu… você precisa descansar um pouco. Olha, ainda tem internet. A gente pode assistir algo, se você quiser. Acenei que sim. No segundo dia, ele saiu para buscar alguns suprimentos, mas tive tanto medo que fiquei sem me mover, ao lado do refrigerador. — A gente precisa das chaves daquela sala. — Ele disse, quando trouxe o que pôde carregar. Observei a ferida em seu pescoço. — Acho… acho que isso tá aumentando… — Não se preocupe com isso. — Ele sorriu segurando minha mão antes que eu tocasse o ferimento. Depois ele entrelaçou seus dedos aos meus e beijou minha mão. — Não precisa ter medo. Eu vou abrir aquela sala, e você ficará em segurança. — você também, né? Ele sorriu e me puxou para perto. No terceiro, quarto e quinto dia a rotina se repetiu. O confinamento não era tão angustiante quanto o tédio. Quando a internet começou a ficar cada dia mais lenta, até ter parar de funcionar senti que estávamos perdidos. A ferida de Jeremiah parecia maior. — É melhor fazer um curativo… — Vai abafar e vai ser pior. Ele disse se erguendo para olhar pela janela. Ele torceu o rosto. — Jê… — Me aproximei devagar. — Você está me escondendo algo?

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Ele riu. Então se aproximou e me beijou. Senti um formigamento em todo meu corpo. — Você é rápido em captar sentimentos, Ariel. Então agarrei sua cintura e o beijei novamente. Ele pôs a mão atrás da minha cabeça e me beijou como se fosse o último dia do mundo, e, sinceramente, para gente talvez fosse. No sexto dia decidi sair com ele, mas ele não aceitou. — Tudo bem… eu consigo. Senti que era mentira. Odiava aquilo tudo, aquelas criaturas estão cada dia mais famintas, eu não posso, eu não posso arriscar perdê-lo…, mas o que posso fazer? A ferida no pescoço dele aumentou. Definitivamente. Ele cobriu com umas ataduras de um dos armários, mas não aguentou por muito. Quando estávamos dormindo, tive quase certeza que ele me pediu desculpas. No fim da semana, a ferida provocava tanta dor nele que me senti mal de estar com a cabeça em seu colo, mas quando fiz menção de levantar ele me segurou. — A gente precisa...da chave… da sala. — Ele disse segurando seu pescoço com uma mão e meu braço com o outro. — O que tem nessa sala? — É uma história longa… Mas você ouviu dos testes nucleares que fizeram aqui ao redor, não é? — Claro, estudei isso semestre passado, o S17-8. Tiveram protestos e eles encerraram as atividades… ou…

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— É. Não encerraram. E além disso, os testes deram tão errado que liberaram uma onda de vírus modificados que transformaram boa parte da população em zumbi. Me levantei e peguei um dos últimos refrigerantes do frigobar e o entreguei. — Sim, mas...e a sala? — Eles queriam um lugar seguro. Um lugar que ficasse imune a todos os efeitos colaterais da fissão do urânio. Mas não podia revelar a continuidade dos testes, então, fizeram uma sala, aparentemente comum, mas que na verdade é capaz de suportar qualquer radiação. — Por isso… por isso quer que fiquemos lá? — Tenho que te por lá dentro… eu… — ele torceu o rosto. — Por hora, acho melhor a gente dormir… e durma mesmo dessa vez. Não faz bem pra você ficar acordado assim. Ele ignorou meu comentário. — Ariel, eu amo você. Não importa o que aconteça. Engoli em seco. No outro dia, ele resolveu que iria conseguir essa chave. — Vou te cobrir. — De jeito nenhum. Fique aqui. — Não, eu vou te cobrir. — Ariel… — Essa missão é nossa Jeremiah. Ele caiu de joelhos e levou a mão sobre o olho esquerdo. — Fique aqui! — Não, eu vou!

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Ele levantou com dificuldade. — Eu vou dar uma olhada em volta antes. Não saia daqui. Acenei que sim. Ele demorou mais de meia hora. Eu suava frio. Quando ele entrou na sala senti um alívio. — Ta tudo tranquilo nas redondezas. Ele dizia,mas seu pescoço sangrava muito. — Vamos, vamos pegar a chave — ele sorriu animado. Peguei a arma e dei um passo a frente. Não, não estava nada tranquilo. Então senti um golpe forte atrás da cabeça. — Desculpa. Então, minha visão escureceu. *** Quando tudo começou, mal tive tempo de me despedir de minha vida. Levei uma mordida no pescoço, vinda de minha mãe, minha própria mãe, que nada mais era agora que um corpo sem vida andante e faminto. Depois de matar minha família, tomar todos os antibióticos e retrovirais que vi no caminho e tentar arrancar a pele em volta da ferida, saí sem rumo pelo mundo. Roubei o carro de um vizinho e saqueei o mercado. Odiei cada segundo, mas não havia nada que eu pudesse ter feito, não havia nada… Achei que ele estivesse como zumbi também, mas estava isolado. Claro, ele tinha sorte em tudo, óbvio que nisso também. Aquele cara que sempre vi na fila da padaria, colega de curso, que sempre segui quando o via no parque, que jogava comigo… aquele… Sinto muito. Não foi por mal.

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Nunca menti pra mim mesmo, já sabia que gostava dele. E se for pra sobreviver apenas um ser humano dessa cidade, que seja ele. Com certeza eles virão ver aquela sala, quando tudo acabar, então eu preciso... *** O som visceral vindo de fora parecia mais alto agora. Ao meu redor, um estoque invejável de alimento e água. A o lugar em que recebi o golpe ainda latejava. Olhei em volta. A sala era grande. E vazia. Muito vazia. — J-jeremiah? Chamei. Lágrimas escorreram pelo meu rosto. O gosto amargo se espalhou pelo meu corpo. Olhei, pelo pedaço de vidro blindado da porta, mas mal pude ver o exterior. A ideia de ver Jeremiah como um deles me fez recuar. Me sentei num canto e encolhi o corpo. Fechei os olhos. E fiquei ali. E acolá. Em qualquer lugar. Tentando acordar daquilo, que sequer era um sonho. XXXX Meu verdadeiro crush é a ansiedade É só um mundo imaginário e insosso, mas meu organismo insiste em agir contra mim.. A gente nem conversou ontem, e meu mau humor me fez sentir que estávamos brigados, mas isso não faria sentido.! Eu não fiz ou disse nada, ele muito menos, mas até quando nos cumprimentamos eu senti o peso. Foi horrível. Eu me senti um lixo, mas, estranhamente era o que eu precisava. O calor no meu peito brilhava entre tristeza e raiva e paixão pela vida. Mandei mensagem, senti vontade de dançar, mas era hora da aula. Não dava pra fugir, meu corpo tremia e o pé sacudia. Uma onda de energia que há meses eu não sentia invadiu meu corpo. Foram duas horas naquela sala,

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confesso que não pensei em nada. Saímos. O clima pesado voltou na hora de irmos embora. Todos da sala juntos, conversando alto, mas nunca fui parte daquilo. Nunca fui parte de lugar nenhum e acho que nunca farei. Senti um aperto no peito. Era horrível. Uma ideia que me destrói e um desejo menos palpável que uma nuvem. Eu abaixei a cabeça. E andava, enquanto as vozes se misturavam, quando próximo ao meu ouvido ele cantarolava uma canção. Não levantei a cabeça mas prestei muita atenção em cada nota emitida, tentando identificar. — Reconheceu? — Sua voz de eterno resfriado soou em meu ouvido como outra melodia. Meu celular pesou no bolso. O anel queimou em meus olhos. — Estava tentando. — Levantei o rosto. O sorriso meio de lado me animou, mas mesmo sabendo que não sinto nada demais além de uma amizade e uma leve quedinha que não me faria largar tudo, senti uma certa culpa. — Inventei agora. Acho. Talvez exista e eu não lembre… — Nossa isso já aconteceu comigo — eu ri. — É, é bem comum quando se toca um instrumento… lembro da vez que descobri uma música de um cantor aí sem querer. Achando que tinha feito… — Haha, mas tenho certeza que daria pra aproveitar algo. XXXX Zé Francisco Sempre que a gente via o Zé Francisco no bar a gente tentava descobrir um pouco mais sobre aquele homem misterioso. Ele se vestia meio maltrapilho, as roupas cinzentas, os olhos vermelhos, nunca de outro jeito, cabelo preto, nariz e bochechas rosadas, ele parecia um espantalho pintado a mão para alguma festa 37


junina. Além disso, sua cabeça ficava num ângulo realmente desconfortável, parecendo sempre muito próxima ao lado direito, deixando um enorme espaço considerável para o ombro esquerdo. Geralmente eu o via quando ia limpar o balcão do bar, ele sempre tomava a mesma coisa: Uma garrafa inteira da pinga mais barata. Bebia até começar a virar um mamulengo, depois cambaleava para a escuridão. Comecei a vê-lo com mais frequência quando deixei de limpar os fundos do bar do meu pai e passei a servir no balcão, então eu o servia. Sempre a mesma coisa. No geral, bebia calado. Às vezes falava sozinho, como quem resmunga algo, as vezes parecia brigar consigo mesmo, eu via pelos olhos. Havia uma dualidade inimiga dentro daquele coração. Era tudo que eu pensava enquanto lavava os copos, após o bar fechar. Certa vez uma mulher veio procurar por ele depois de ter ido embora. — Zé Francisco esteve aqui hoje? Expliquei que ele havia saído há poucos minutos. — Aquele porco safado… — Ela falou com a voz irritada e um bafo de cachaça. — Ele é seu marido? — minha boca moveu sem que eu notasse. — Sou viúva. Sou viúva! — Ela bradou batendo orgulhosa no peito e saiu cambaleando. Então ele passou uma semana sem vir. Quando voltou, parecia ainda mais miserável. Parecia estar arrancando com a mão os cabelos na lateral da cabeça. — Ei garoto. — Ele falou com a voz já alterada — você não sente mal vendendo a desgraça dos homens? — A desgraça do homem é vir aqui comprar o que eu vendo, seu Zé.

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Ele lançou o pescoço torto pra trás. Seus olhos ficaram totalmente brancos por alguns segundos. Ele riu. — Eu ouço a voz dele, aqui ó, aqui… — Ele batia o dedo com força na cabeça — Ele nunca parou de falar. Aqui. Fiquei calado observando, voltou a falar sozinho. — Ê, que o Zé Francisco fica cada dia mais ó, lelé da cuca. — Falou o cara velho que parecia o Francisco Cuoco de óculos escuro que ficava na outra ponta do balcão. Ele gesticulava em tom de provocação, mas o Zé Francisco não parecia mais estar presente ali. A única vez que o vi fora do bar foi quando eu estava voltando da faculdade numa quinta-feira. Ele estava sentado na praça, sentado no banco de concreto, olhando os pombos sem ver. Sua cabeça e seu corpo pareciam cada vez mais desconectados. Resolvi trocar uma palavrinha. — E Aí seu Zé! — Falei. Ele pareceu não ouvir. Fiquei parado alguns instantes. Seu olhar pareceu me atravessar. Ele parecia sóbrio, mas ele falava sozinho de novo. Resolvi não interromper a conversa e segui caminho. Observei que ele já chegava bêbado no bar, e quando saia, duvido que fosse pra casa. Me perguntei se ele tinha casa, se era casado ou se tinha família. Quando uma semana depois ele começou a chorar, me senti triste por ele. Ele me olhou nos olhos e murmurou algo como “me ajuda”. Quando olhei no fundo dos olhos senti sua tristeza, mas em alguns segundos, como se mudasse a alma, os olhos voltaram ao normal. Ele pagou a bebida, se levantou e foi embora. Cabisbaixo, mas não mais no choro copioso de antes. Mas tal foi o meu choque quando, pouco tempo depois, tive que chegar atrasado, e cheguei já naquele momento bestial inesperado, tentavam separar uma briga dele com ele mesmo, mas a força

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descomunal dele parecia de vários homens. Ele gritava, xingava, esperneava, parecia possuído. Tentamos impedir, mas pela primeira vez que se teve registro aqui em minha cidade, um homem usou as duas mãos para se esganar, até a morte. Aquele corpo sendo levado pro hospital me causou um arrepio.

Então, a mulher do outro dia apareceu e foi com ele no carro de ambulância. Com o tempo pude ouvir parte da história do Zé Francisco. Ele não era daqui, era de alguma cidade distante e quando nasceu era tido como aberração. Ele e o irmão viviam no circo, mas resolveram sair e tentar a vida na cidade. Por mais que fossem amigos, o outro, Zé Eduardo, e ele tinham seus desentendimentos.

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Francisco gostava muito de beber, e Eduardo, ele detestava, o que provocava diversas brigas, afinal eles tinham um único corpo. Haviam nascido siameses, um caso raríssimo onde possuíam duas cabeças. Cada um controlava um lado do corpo, mas por vezes o outro tomava o controle, foi o que aconteceu quando ele e o irmão tiveram uma briga feia, e, num momento de raiva, o Zé Fancisco tomou o controle do corpo e bateu a cabeça do irmão contra a parede até ele morrer. Então, o procedimento cirúrgico responsável pela aposentadoria por insanidade do Dr. Percival aconteceu. Depois da morte do irmão, Zé Francisco achou que estava sozinho, mas descobriu que não era só o corpo que era compartilhado. Enquanto olho o enterro sinto outro calafrio. Mas não posso pensar muito nisso. É dia de receber o estoque do mês no bar e a pneumonia do meu pai pode voltar a qualquer instante. XXXX

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