Um pouco antes do seminário
Fê Oliveira, Carine Araújo
Coloquei a bolsa naquela mesinha de centro pela vexatória terceira vez no mês. Sentei no sofá arranhado, com uma cor parecida com mostarda ou vômito. A tv com o lado esquerdo danificado e com cores psicodélicas estava ligada com o volume baixo, o jornal local anunciava algum evento esportivo chato quando ele finalmente voltou do quarto. O cabelo recém cortado e a barba recém feita me causaram estranhamento. Ele sentou do lado oposto do sofá. A roupa que ele usava também era diferente. O perfume que usava, o creme, o corte de cabelo, o brinco na orelha… — Então… — Ele começou a falar sem olhar diretamente em meus olhos. Até a voz soava um pouco diferente. Era como se fosse outra pessoa. Instintivamente virei o rosto para a tv quebrada. Uma foto estranha no portaretrato. Depois de dois anos era a primeira vez que via aquelas pessoas da foto. — Gostaria que você fosse rápido. Tenho que voltar a tempo para a aula hoje à noite. — Sim, sim. Desculpe. É que eu não sei como dizer isso… Senti vontade de revirar os olhos. Da última vez, quando pediu para eu me retirar onze horas da noite do apartamento porque não entendia o que estava acontecendo, sentindo, etc não houve nenhum constrangimento. — Olha, eu tenho seminário de fonologia hoje. Realmente não é o melhor momento. Levei a mão às têmporas. Eu não devia ter ido.
— Eu... olha, realmente não foi uma escolha minha… eu… eu não sou… —Eu sei, você não é mais a pessoa que me conheceu, se apaixonou por mim… — Não é isso! Apesar de também ser… ai Jesus. — Ele contorceu o rosto. Entortou ainda mais sua coluna no sofá, coçou os cabelos cor de palha. — Olha, sou eu! — Eu to vendo que é você, seu covarde! — Respondi chutando a mesa de centro sem querer. — Olha Irene, sou eu. o Professor Henrique. — Que? Isso não faz sentido Guilherme. Tome vergonha! — Não, eu… — Ele levantou e foi até a janela. Soltou um longo suspiro. — Guilherme, pare com isso! Você não é meu professor de Sociolinguística. — Eu sou, e é isso que eu estou tentando dizer. Peguei minha bolsa na mesa de centro. — Pelo amor de deus, se nem para conversar como um adulto você consegue, admitir seus erros, fico feliz que tenha me dado um fora e me poupado o trabalho. — Não é isso que está em questão! — Ele encostou a testa sobre a parede. Eu já começava a ver semelhanças entre ele e o professor Henrique, e isso me irritava mais ainda. — Olha, eu sei que isso é estranho, desconfortável, esquisito, mas já tem algum tempo que eu tenho me tornado… eu, Henrique, nesse corpo. Coloquei minha bolsa sobre a mesa e cruzei os braços. — Ahã. — E … E obviamente eu não ia ficar saindo com você sendo minha estudante. Realmente, o professor Henrique tinha um jeito específico, um tom de voz de chamar os estudantes, não alunos, estudantes, que só ele fazia.
— E...bom você sabe o outro motivo de eu, professor Henrique, não querer nada com você. Ergui a sobrancelha. — Guilherme, não precisa esse teatro todo, basta me dizer, que não queria mais, mudou de ideia e depois desistiu, que é um covarde! É mais fácil eu acreditar, é menos feio para você… Sei lá, me fala até que tem outra! Seu merda. Peguei a bolsa, pus em meu ombro e andei em direção à porta. — Aquele dia na sala de vídeo. Quando você chegou e… Parei. Eu nunca contei daquele dia para ninguém. Nem mesmo pro Guilherme. — E o que eu te disse na hora? — Você fechou a porta com a mão na boca, e quando eu lhe segui você repetia em voz baixa “A faculdade não é lugar pra isso, a faculdade não é lugar pra isso” e eu com nariz todo branco… Apertei os olhos. Olhei novamente a fotografia perto da tv defeituosa. O homem mais velho tinha as feições parecidas com a do meu professor. Era careca, mas de barba ruiva. E a senhora baixinha, mas de olhar altivo era idêntica as descrições dadas por ele de sua mãe em sala de aula quando estava afim de enrolar. — Mas isso é impossível. — A transição para esse estado foi confusa, lenta, e muito muito desconfortável. Comecei a pensar em como o professor sempre colocava a palavra desconfortável nas frases, mas isso não fazia sentido. Ergui o rosto. Engoli em seco e olhei nos olhos castanho claro do sujeito. — Olha, isso é impossível. Eu tive aula com o professor Henrique hoje pela manhã. Basicamente, não tem como ele ser você e você ser ele.
— Esse é o problema! — Ele abriu os braços e eu notei que a camisa que ele usava era de uma banda polonesa que somente o Henrique ouvia, provavelmente no país inteiro. — Não parece ter sido uma via de mão dupla, eu tive uma conversa muito desconfortável comigo mesmo, e aparentemente somente eu senti os efeitos dessa troca… se é que se pode chamar assim. É como se houvessem dois Henriques e nenhum Guilherme… sacas? O mundo começou a girar. Ou somente minha cabeça. Senti os pés gelados. — Olha, eu vou… precisar... digerir ...isso. Já vi que o seminário tinha ido por água abaixo. — Eu… sei que é difícil pra você, mas vai dar tudo certo eu acho. Se o Guilherme voltar… — Eu não quero saber dele mais, de qualquer jeito. — Abaixei a cabeça. — Além do que ele tava tendo um caso com a vizinha mesmo. sinto muito. Taquei minha bolsa com toda força nas costas do Guilherme. Ou Henrique que fosse. — Arrombado. — Mas…. ai… Ele abriu a porta e eu saí com passos lentos. Os pés pareciam dos picolés enfiados no meu salto. Olhei para trás. Arrombado. Mas vamos, não é momento para isso. Fonologia, linguagem fonética, isso é tudo que eu tenho que pensar pelas próximas horas.