Revista tríade

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edição n˚ 01, junho de 2013 Universidade de Sorocaba Programa de Pós- Graduação em Comunicação e Cultura

equipe editorial Editores Prof. Dra Luciana Coutinho Pagliarini Souza (UNISO) Prof. Dra Miriam Cristina Carlos da Silva (UNISO) Prof. Dr. Wilton Garcia (UNISO) Conselho Editorial Profa. Dra. Lucia Santaella (PUCSP) Profa. Dra. Clotilde Perez (ECA-USP) Profa. Dra. Beatriz Alcaraz Marocco (UNISINOS) Profa. Dra. Denise Cogo (UNISINOS) Profa. Dra. Cicilia Peruzzo (UMESP) Profa. Dra. Nizia Villaça (ECO/UFRJ) Prof. Dr. Winfried Nöth (PUCSP) Prof. Dr. Julio Pinto (PUCMINAS) Prof. Dr. Dimas Künsch (FACASPER) Prof. Dr. Sergio Bairon (ECA-USP) Prof. Dr. Sergi Martinez Rigol – (Universitat de Barcelona) Prof. Dr. Mauro de Souza Ventura (UNESP) Prof. Dr. Laan Mendes de Barros (METODISTA) Prof. Dr. José Eugênio de Oliveira Menezes (FACASPER) Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho (USP) Prof. Dr. Liv Sovik (UFRJ) Prof. Dr. Gustavo de Castro (UNB) Prof. Dr. Dennis de Oliveira (ECA/USP) Conselho Científico Prof. Dr. Antônio Roberto Chiachiri Filho (FACASPER) Prof. Dr. Walter de Luca (UNISO) Profa. Dra. Mirian dos Santos (UNIVAS) Profa. Dra. Katy Nassar (UNISO) Prof. Dr. Arquimedes Pessoni (Metodista) Profa. Dra. Luisa Paraguai (Anhembi Morumbi) Prof. Dr Marcelo Santos (PUCSP) Prof. Dr Milton Pellegrini (PUCSP) Profa. Dra Roberta Iahn (FACASPER) Profa. Dra Tarcyanie Cajueiro Santos (UNISO) Profa. Dra Maria Ogécia Drigo (UNISO) Profa. Dra Monica Martinez (UNISO) Prof. Dr. Paulo Celso da Silva (UNISO) Prof. Dr. Mauricio R. Gonçalves (UNISO) Prof. Dr. Rick Santos (SUNY/NCC) Profa. Dra Ana Maria Guimarães Jorge (Universidade São Judas Tadeu-SP) Profa. Dra Maria de Lourdes Bacha (Mackenzie) Prof. Dr. Edson do Prado Pfützenreuter (Unicamp) Profa. Dra Heloisa Leão (PUCSP) Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO) Profa. Dra. Élide Garcia Silva Vivan (FATEC) Prof. Dr. Roberto Abdelnur Camargo (UNISO) Prof. Dr. Paulo Edson Alves (UNISO) Coordenação do Programa Prof. Dr. Paulo Celso da Silva, Universidade de Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil Design de Capa Prof. Ms. Carla Bonfim de Moraes Salles, Universidade de Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil Editoração e Diagramação Prof. Ms. Carla Bonfim de Moraes Salles, Universidade de Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil


editorial Começar. Start. Abrir caminhos. Inaugurar. Ter a iniciativa de promover uma publicação científica na internet – rede mundial de computadores – cujo debate intelectual deve destacar temas que tangem a área da comunicação em consonância com a cultura, de modo inter/trans/multidisciplinar, é procurar sistematizar estudos, investigações e pesquisas acadêmicas do Brasil e do mundo. A dinâmica de processos e mediações comunicacionais equaciona, de forma estratégica, aspectos culturais e midiáticos. Da complexidade que envolve esse ambiente, surge a Tríade: Revista de Comunicação, Cultura e Mídia. Tratase de um periódico semestral do programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso). Nosso escopo constitui a lógica contemporânea de atualização e inovação do pensamento na expectativa de compreender as variantes da produção do conhecimento acerca de comunicação, cultura e mídia. Nesse caso, oferecemos mais um espaço reflexivo para tornar público o conhecimento produzido pela área da comunicação e afins. Com a publicação, esperamos romper a barreira do isolamento, promover a discussão e a colaboração entre pares, além de possibilitar o confronto entre antagonismos. Isso permite a crítica e a abertura tão necessárias à produção científica. Nesta primeira edição, realizamos uma chamada de artigos por listas de e-mails e fóruns on line de pesquisa em comunicação e adjacentes, bem como efetivamos convites para alguns autores/as. A participação desses/as colaboradores/as são algumas parcerias que demonstram os desafios de propor nossa abordagem editorial acerca do campo da comunicação atual. O resultado inscreve uma série de artigos científicos, um Dossiê sobre Cinema e Audiovisual, além de duas resenhas, organizados pela seleção desenvolvida pelos editores. Convidamos ao leitor (usuário-interator) para que desfrutem da oportunidade! Luciana, Miriam e Wilton.


sumário ABERTURA Temas, Eixos Investigativos e Considerações Sobre as Linhas De Pesquisa: Análise de Processos e Produtos Midiáticos e Mídias e Práticas Socioculturais Paulo Celso Da Silva Semiótica Visual Winfried Nöth


DOSSIÊ CINEMA E AUDIOVISUAL A Comunicação Poética do Humor no Seriado “Chaves”: As Estratégias Do Cômico Durante A “Trupe Clássica” (1973-1980) Luis Mauro Sá Martino A Linguagem Audiovisual E As Praticas Interacionais Na Videoarte – Ver E Ser Visto Em Narciso De Danillo Barata Regilene Sarzi Ribeiro A Produção De Sentido No Cinema: Entre Tramas E Dramas Do Sensível Saulo Magalhães Resende/ Regina Andrade/ Cibele Vaz Macêdo Mídia, Comunicação E Cidadania: Um Estudo De Discursos Veiculados Na Televisão Rosália Maria Netto Prados O Cinema De Michelangelo Antonioni, Ou: Paisagens Para Pensamentos Mônica Toledo Da Silva ARTIGOS 1. Mass Culture And The (Re)Presentation Of Queer Subjectivities During The Dictatorship Years In Brazil Rick J. Santos 2. O Sagrado e a Comunicação Contemporânea Nizia Villaça 3. Complexidade e Fotografia Matheus Mazini Ramos / Silvia Laurentiz 4 . Visualização, Semiótica e Teoria da Percepção Ana Maria Guimarães Jorge/ Daisy De Brito Rezende/ Edson José Wartha 5. Arquitetura de Museus nas Cidades Contemporâneas Cecília C. B. Cavalcanti 6. Um Gênero Jornalístico Tornado Literário em “A Entrevista”, de Samir Yazbek Luís Cláudio Machado RESENHAS Les Sciences De L’information Et De La Communication. Éric Dacheux (Coord.), Paris, Cnrs Éditions, 2009. Marcelo Santos Um Diálogo Entre Psicologia Social E Comunicação. Resenha Do Livro: Homens Invisíveis: Relatos De Uma Humilhação Social Fernando Braga Da Costa. São Paulo: Editora Globo, 2004. Suzana Rozendo Bortoli/ Adriano Da Silva Rozendo


TEMAS, EIXOS INVESTIGATIVOS E CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LINHAS DE PESQUISA: ANÁLISE DE PROCESSOS E PRODUTOS MIDIÁTICOS E MÍDIAS E PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS Themes, axles research and considerations for research lines: Process Analysis and media products and Media and Sociocultural practices

Paulo Celso da Silva Pós-Doutor pela Universitat de Barcelona. Pós-Doutor em Geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor e Coordenador do programa de mestrado da Universidade de Sorocaba. Sorocaba, SP, Brasil. E-mail: paulo.silva@prof.uniso.br

Resumo: Este texto aborda as duas linhas de Pesquisa do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Uniso e a gama de possibilidades para as produções intelectuais que elas abrangem. Nos dois casos verificamos que se faz presente a Mídia, enquanto materialidade entre o acontecido e o ser na sociedade contemporânea. Dessa forma, compreender e atuar na sociedade passa por agenciamentos entre meios de comunicação e homens, necessariamente.

abertura

Palavras-chave: Mídia. Processo e Produtos Midiáticos. Práticas Socioculturais. Sociedade Contemporânea. Abstract: This text discusses, in general terms, the two lines of research in the Masters Program in Communication and Culture at the University of Sorocaba - Uniso and range of intellectual production possibilities covering. In both cases present the media in terms of materiality between the event and being in contemporary society. Therefore, understand and act in society implies agency-makers/empowerments between means and men, necessarily. Keywords: Media. Processes and products by the media. Cultural practices. Contemporary society.


INTRODUÇÃO O Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba iniciou suas atividades em 2007 e, desde então, o tema da mídia e seus desdobramentos sempre estiveram

presentes. Isso é o que podemos atestar

lendo e analisando as dissertações defendidas até o presente, assim como as diversas atividades desenvolvidas pelos professores do mestrado. As duas linhas de pesquisa, que o Programa agora desenvolve, foram frutos de análises e debates, buscando atender, de maneira coerente, as questões que a materialidade da vida contemporânea apresenta cotidianamente.

Entendendo que as linhas de pesquisa são, antes de tudo,

linhas de ação, temos:

Linha de pesquisa 1: Análise de Processos e Produtos Midiáticos A linha incorpora pesquisas sobre processos e produtos comunicacionais nas mídias impressas, visuais, audiovisuais e hipermidiáticas. Os estudos ocupamse da produção de sentidos, dos modos de organização e estruturação dos textos, das estratégias narrativas e enunciativas envolvidas na configuração de gêneros e formatos, dos regimes de interação, visibilidade, subjetividade, identidade e sociabilidade instituídos por tais objetos, que podem abarcar interfaces com outras áreas do conhecimento.

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Linha de pesquisa 2: Mídias e Práticas Socioculturais A linha incorpora pesquisas que desenvolvam metodologias e leituras das práticas socioculturais. Ocupa-se dos produtos midiáticos enquanto norteadores de socialização; de formas de sociabilidade advindas das práticas comunicativas no espaço urbano e em instituições, bem como de características, mudanças históricas e estruturais dos meios de comunicação. Também, estuda as relações entre as produções da arte e os meios de comunicação, como expressão e mediação entre grupos e culturas. Inclui, ainda, estudos advindos das tecnologias comunicacionais contemporâneas e seus respectivos suportes discursivos. Também cabe dizer que, apesar da indicação das linhas um e dois, não existe uma hierarquia de importância entre elas. E, mais importante ainda, ambas, mantendo suas particularidades e especificidades, dialogam em um imbricado processo comunicacional; seja em defesas de dissertações, quando os pesquisadores podem apresentar suas leituras no intuito de contribuir com o processo de formação dos alunos; seja em parcerias para projetos e artigos, momento e lugar privilegiado de trocas teóricas e exercício de subjetividade. Isso compõe um trilhar que o leitor segue e com o qual se identifica. Propõe e reescreve o seu trajeto.

Análise de Processos e Produtos Midiáticos Falar em processos implica reconhecer, imediatamente, um constructo e não um produto finalizado. Assim entendido, quando a ideia é desenvolver a análise desses processos, o ponto de partida é a imprecisão com que o objeto se mostra ao pesquisador. Este, por sua vez, ao observar a sua concretude imediata, é impelido a questioná-la, sente o incomodo da coisa inacabada, da infinitude

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em que mergulha na busca de respostas, provisórias, sem dúvida, mas que atendam o sentido que a contemporaneidade solicita. Tais sentidos ampliam mais quando falamos de produtos midiáticos, ao considerar que eles alteram a percepção quando envolvidos em plataformas multi, hiper, teramidiátias de expansão da sensibilidade e de uma nova organização dos sentidos físicos, aqueles com os quais nossa espécie é reconhecida, uma vez que ciborgs, híbridos e outras possibilidades convivem. E são incorporadas ao humano, reconfigurando, tanto os textos quanto seus mecanismos de apropriação, interação, visibilidade, subjetividade, identidade e sociabilidade. As narrativas ganham expansão conceitual e o narrador é o que conta o contemporâneo. Presente-passado-futuro, como escalas espaço-temporais motivadas e movidas por aparatos técnicos, solicitam interfaces de sentido. Reafirmando: hibridizações e ciborgização cotidianas.

Desconfortável, o

pesquisador, em mutação, torna-se narrador analista. Científico, poético, ensaísta são momentos da mesma pesquisa, são interfaces estilísticas do texto vivido.

A Comunicação, enquanto área do conhecimento, não quer fazer a

síntese das demais áreas, das quais se apropria para sua tarefa de compreensão do mundo. Tentar fazer síntese é banalizar o conhecimento acumulado das áreas afins e prever um conhecimento apenas panorâmico para a comunicação. Dessa forma, a Análise de processos e produtos midiáticos, enquanto linha de pesquisa, com suas possibilidades de interfaces inter e intra-áreas, abre espaço em um universo de interesses para atender profissionais atentos aos textos que o mundo oferece.

Mídias e Práticas Socioculturais Outra linha de ação do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Uniso, Mídias e Práticas socioculturais, busca analisar e compreender o papel Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura TEMAS, EIXOS INVESTIGATIVOS E CONSIDERAÇÕES | Paulo Celso da Silva

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das mídias em uma sociedade marcada também pelo inter, trans, hipercultural, e como suas práticas, encaminham novas proposições para o viver cotidiano. Este por sua vez, como reino das repetições e dos atos mecânicos, indica uma relação dialética entre as mídias e as práticas. Ou seja, as proposições midiáticas são assumidas, mas não sem antes serem transformadas pelas experiências de cada um em novas ou outras práticas cotidianas. Com isso, o espaço urbano, a cidade, configura-se como espaço privilegiado para o desenvolvimento, acumulação, distribuição e consumo midiáticos. Entre os agentes envolvidos, a linha de pesquisa e ação do programa, debruça sobre a comunicação – interna/externa – das empresas privadas e públicas, reconfiguradas em um mercado internacional, globalizado, mas que guarda particularidades e especificidades que,

nos lugares, são importantes

como instâncias de identificação. Tal identidade construída e alterada pela flutuação do modo de produção capitalista, antes fordista, agora mais flexível, é apoiado em uma comunicação que cria, educa, reflete os novos modelos que devem ser apropriados pelos trabalhadores e consumidores na tarefa de viver quotidianamente. Outra possibilidade de análise da sociedade atual, local-global, ao mesmo tempo, glocal, para unir as duas escalas, é através da arte. Comunicação e arte, mídia e arte possuem interfaces apresentadas em diversos suportes, em produções e linguagens que se atualizam e convergem constantemente. O que instiga reflexões e indica, através dos meios, caminhos para a cultura híbrida nas duas escalas citadas. Nesse sentido, a segunda década do século XXI traz, em seu bojo, culturas que se potencializavam nas décadas anteriores. Exemplo disso são os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), um grupo com grande diversidade sócio-econômico-cultural e que tem causado interesse e curiosidade de muitos países. Assim, também, com sua produção artística.

Os artistas da China, por

exemplo, estão entre os mais valorizados e visitados do mundo. Essas novas configurações socioculturais destacam a necessidade de compreender, não Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura TEMAS, EIXOS INVESTIGATIVOS E CONSIDERAÇÕES | Paulo Celso da Silva

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somente o papel das mídias em todo esse processo, mas quais as implicações que as relações efetivas da mídia ressaltam nos territórios e com os territórios.

Conclusão As linhas de pesquisa são linhas de ação para analisar, ampliar, intervir na realidade imediata de cada pesquisador, baseado em teorias, métodos e metodologias que possam dar conta da complexidade que se apresenta como desconforto intelectual. Desconforto que faz o pesquisador da comunicação buscar caminhos para compreender o presente, ao possibilitar novas interpretações e/ou significados, a fim de que possa seguir buscando seu objeto de estudo para aborda-lo em um mundo que se transforma mais rápido do que a capacidade dos pesquisadores de trabalhar seus temas. Para finalizar, não poderíamos deixar de expressar nossa discordância com as políticas e ideologias da doutrina TINA, sigla em inglês para There is no Alternative, que comanda o processo de globalização, ao instaurar uma única via, um só trilhar, um só mundo. Ao contrário, toda pesquisa tem algo novo para expor aos seus leitores. No final de cada investigação, o objeto e o pesquisador já não são mais o mesmo, assim também, como o mundo. Separamos os participantes da pesquisa – pesquisador, objeto e mundo – apenas didaticamente, pois quando se vive uma pesquisa todos são partes do Todo: o conhecimento.

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SEMIÓTICA VISUAL VISUAL SEMIOTICS

Winfried Nöth Livre Docente pela Ruhr Universitat de Bochum, Alemanha, Professor Emérito e Conferencista de linguística e semiótica da Universiadade de Kasel, Alemanha e Professor na Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: noeth@uni-kassel.de

Resumo: A semiótica visual estuda as imagens como signos. Este artigo proporciona um levantamento das abordagens semióticas para o estudo das imagens. Define os conceitos básicos da semiótica visual, como signo, semiótica, semiologia, ícone, índice e iconicidade, distingue entre sintaxe visual, semântica visual e pragmática visual, e caracteriza as principais escolas e atuais tendências nesse campo de pesquisa. Uma atenção especial é dada para a semiótica de Charles S. Peirce, para a semiótica de pinturas abstratas e para o estudo das imagens em anúncios impressos. Dois estudos de caso exemplificam as diferentes abordagens para o estudo das mensagens verbal e visual de anúncios impressos

abertura

Palavras-chave: Imagem. Semiótica visual. Imagem. Autorreferência. Metarreferência.

Peirce. Palavra e

Abstract: Visual semiotics studies images as signs. The paper gives a survey of semiotic approaches to the study pictures. It defines basic concepts of visual semiotics, such as sign, semiotics, semiology, icon, index, and iconicity, distinguishes between visual syntax, visual semantics, and visual pragmatics, and characterizes the major schools and current trends in this field of research. Special attention is given Charles S. Peirce’s semiotics, to the semiotics of abstract paintings and to the study of images in print advertisements. Two case studies exemplify different approaches to the study of the verbal and visual messages of print advertising. Keywords: Image. Visual semiotics. Peirce. Word and Image. Self-reference. Metareference.


Semiótica e semiótica visual Semiótica (do grego, sēmeīon, ‘signo’) é o estudo dos signos. Principalmente em sua tradição francesa, a semiologia pode ser estabelecida como um sinônimo. O estudo dos signos tem uma tradição iniciada na Grécia Antiga. Atualmente, a semiótica é uma área transdisciplinar de pesquisa com relevância para um amplo espectro de disciplinas como a biologia (comunicação animal e celular), os estudos da cultura (cultura como sistema de signos), os estudos das mídias (comunicações verbal e visual), as pesquisas de consumidor (bens como signos), a linguística, a lógica, a estética, a musicologia (signos da/na música), a teoria da arquitetura (construções e design urbano como signos), a cartografia (os signos dos/nos mapas), a religião (ritos e mitos religiosos como signos) e a psicologia social (comunicação não verbal). Comumente, a semiótica é o estudo dos signos, dos sistemas sígnicos e dos processos comunicativos em geral, enquanto que a semiótica aplicada estuda especificamente os contextos do uso dos signos. Alguns ramos da semiótica aplicada se estabeleceram como subdisciplinas da semiótica sob nomes próprios, como por exemplo, semiótica médica, musical ou fílmica. Semiótica visual é um dos domínios da semiótica aplicada. A International Association for Visual Semiotics (http://aisviavs.wordpress.com/) organiza estudos nessa área. O termo “semiótica visual” não é sinônimo do “estudo dos signos comunicados visualmente”. Imagens (Santaella & Nöth, 1998), desenhos, pinturas, fotografias, cores (Thürlemann, 1984, Eco, 1985), anúncios impressos (Santaella & Nöth, 2010), pôsteres, design (Ashwin, 1984, Nadin, 1990), filmes (cf. Nöth, 2000), diagramas (Stjernfelt, 2007), logogramas, sinais de trânsito (Krampen, 1987) e mapas (Nöth, 2007b) são tópicos da semiótica visual, mas outros signos comunicados visualmente não são geralmente considerados subdomínios da semiótica visual, por exemplo, geometria, escrita ou comunicação não verbal (gestos, contato com os olhos, “linguagem corporal”). Sem pretender definir a área da semiótica visual, o presente artigo é

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predominantemente restringido à semiótica de imagens fixas, como pinturas, fotografias e imagens da mídia impressa.

Tendências, escolas e temas da semiótica visual Estudos gerais podem ser encontrados em Calabrese (1980), Sonesson (1989, 1993), Sebeok & Umiker-Sebeok (Eds., 1996) e Nöth (2000, 2005b, 2009a). A semiótica visual foi fundada nos anos 60 por linguistas estruturais que se esforçavam para estender seus escopos de análise dos estudos da linguagem e da literatura para contextos visuais da linguagem na mídia. Roland Barthes (1964) foi o primeiro a falar da “retórica da imagem” e a postular a semiótica visual baseado na semiologia de Ferdinand de Saussure (1857-1913) e de Louis Hjelmslev (1899-1965). Os livros de Barthes sobre semiótica da moda, da fotografia e da imagem da mídia impressa são marcos na história da semiótica visual (Barthes, 1967, 1977, 1980). Existem várias escolas e tendências da pesquisa em semiótica visual, entre elas estão as da retórica visual e a Escola de Paris. A retórica visual, delineada pelo Liège Group μ em Treatise of the Visual Sign (Edeline et al., 1992), postula que as pinturas e outras imagens podem ser estudadas em analogia à linguagem figurativa como derivações de imagens “normais”, que constituem um “grau zero” genérico da comunicação visual. A semiótica visual da Escola de Paris foi fundada na suposição de analogias essenciais entre a imagem e a linguagem verbal. Como a linguagem, imagens são estudadas nos níveis da expressão (cor, forma, etc.) e do conteúdo (coisas, plantas, animais, homens e mulheres, etc.). Imagens são segmentadas em unidades mínimas, que são estruturadas em oposição, como colorida/incolor, preta/branca, circular/angular, viva/não viva, cultural/natural. Mais complexos significados temáticos e figurativos aparecem em níveis mais elevados de análise. Estudos exemplares da pintura da imagem da mídia impressa são encontrados em Floch (1985, 1990), Thürlemann (1990) e Fontanille (1995).

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Outras abordagens para a semiótica de imagens podem ser encontradas nos enquadramentos da sociossemiótica de M.A.K. Halliday e da semiótica de Charles S. Peirce (Deledalle, 1979, p. 115-129, Iversen, 1986, Santaella & Nöth, 1998, 2010, Nöth & Santaella, 2000, Halawa, 2008 e Jappy, 2013). Alguns autores adotaram implicitamente as abordagens semióticas à análise pictórica. Embora, baseando-se nas premissas da semiótica, esses autores não utilizam nenhuma terminologia semiótica específica. A tese de Arnheim de que padrões visuais são “formas associadas a conteúdos” e “toda forma é a forma de algum conteúdo” (1954, p.65) é implicitamente semiótica, uma vez que equivale dizer que imagens são signos. A abordagem mais elaborada da semiótica para a arte, implicitamente, está em Languages of Art (1968) de Nelson Goodman. O potencial semiótico das imagens Imagens e palavras se diferenciam em seus potenciais semióticos e em suas eficiências comunicativas. As primeiras exigem um espaço visual bidimensional, enquanto as outras (como a música) são produzidas e percebidas em uma sequência linear. A linguagem escrita é um meio híbrido: ao passo que a escrita requer espaço, o processamento da linguagem em escrita e leitura é ainda largamente linear. Não obstante, a comunicação verbal é raramente restrita à linearidade do tempo, como conversas telefônicas e programas de rádio são. Na comunicação face-a-face, a linguagem é transmitida em um espaço acústico e incorporada no contexto visual da comunicação não verbal. Imagens também não são restringidas ao seu espaço visual. Raramente elas podem ser encontradas sem qualquer contexto verbal. Pinturas têm nomes (títulos) ou ao menos o nome do pintor é associado a elas. Uma foto de passaporte precisa de um nome também; ele não apenas documenta como o dono do passaporte se parece, mas ainda identifica seu nome. O potencial de linguagem da semiótica é superior quando as relações temporais, bem como as causais, têm de ser representadas. Histórias se desenvolvem no tempo e são melhor contadas em linguagem. Imagens, ao Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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contrário, são superiores à comunicação verbal quando configurações espaciais têm de ser representadas. Um projeto arquitetônico, por exemplo, não pode ser bem traduzido em palavras e é difícil de transmitir a aparência de uma pessoa desconhecida pelo significado das palavras somente. A diferença entre a linearidade da linguagem verbal e a bidimensionalidade das imagens também envolve a diferença do processamento de informação. Em um dado período de tempo, nós podemos processar mais dados visuais do que dados verbais. O provérbio que diz que “a imagem diz mais que mil palavras”, ainda que não possa ser verdadeiro em todos os aspectos, transmite essa ideia. Porém, em alguns aspectos, a linguagem não é meramente linear e as imagens não são também apenas meios espaciais. Diagramas arbóreos sintáticos mostram que a linguagem também é estruturada hierarquicamente, sendo que as palavras também evocam imagens mentais, que por sua vez tratam de configurações espaciais. A percepção visual, por sua vez, não é apenas um processo holístico; ver e entender uma imagem também leva tempo.

Complementaridade da comunicação pictórica e verbal A linguagem e as imagens são complementares em seus potenciais semióticos; ambas são necessárias em uma eficiente comunicação da mídia (Nöth, 2004). A superioridade das imagens como um meio para a representação do mundo visível e imaginário é contrabalanceada pela superioridade da linguagem em representar o mundo invisível dos sons, aromas, sabores, temperatura ou relações lógicas. Contudo, como mostrado por Peirce, até mesmo a lógica abstrata e as relações matemáticas não são inteligíveis sem o auxílio do verbal, geométrico ou diagramas gráficos, que são ícones e não símbolos. Tem sido argumentado que o significado da imagem depende de seus comentários verbais, uma vez que as palavras não precisam da imagem para

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serem entendidas. Roland Barthes, por exemplo, argumenta que nossa leitura de uma foto impressa depende da legenda: Imagens (...) podem significar (...), mas nunca autonomamente; todo sistema semiológico tem sua mistura verbal. Onde existe uma substância visual, por exemplo, o significado é confirmado ao ser duplicado em uma mensagem linguística (...) de modo que, pelo menos, uma extensão da imagem icônica é (...) redundante ou absorvida pelo sistema linguístico (BARTHES, 1964, p.10).

Embora seja verdade que as palavras contribuem para a interpretação das imagens e, assim, fazem os seus significados mais específicos, o argumento de Barthes é muito logocêntrico. Ignora que as palavras na comunicação face-a-face também têm um contexto visual que contribui para o significado da expressão verbal. Além disso, imagens como pinturas e fotos muitas vezes não têm qualquer contexto verbal e, ainda quando têm, isso tende a ser trivial ou mesmo redundante em seu significado. Afinal, também deve-se reconhecer que os textos verbais em meios estritamente ou principalmente verbais, como conversas, livros, cartas, telegramas ou e-mails, evocam imagens mentais pelo significado das palavras.

Imagens como signos A semiótica pictórica pressupõe que imagens são signos (Nöth, 2005a). Independentemente de serem ou não, é tanto uma questão de terminologia que depende de como os signos são definidos. Imagens (imagines) e pinturas (picturae) foram primeiramente definidas como signos no tratado de Roger Bacon, De signis, de 1267 (cf. Meier-Oeser, 1997, p. 54). De acordo com Bacon, as imagens funcionam como signos “pela sua própria natureza”, devido a uma “correspondência natural” com aquilo que elas descrevem. Não apenas imagens naturais como os reflexos de um espelho, mas também imagens feitas pelas mãos são signos naturais em acordo com essa definição. Não é a intenção do pintor que faz da pintura um signo, mas sua similaridade natural com os objetos Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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que representa: “Queira o artista ou não, a imagem sempre representa o que representa, pois é semelhante a isso” (De signis I, 15; cf. Meier-Oeser, 1997, pp. 58-59). Atualmente, embora a iconicidade das imagens ainda seja um tema, geralmente as pinturas não são definidas como signos naturais. O conceito de signo tem sido definido de modos que excluem a pintura. Alguns autores fazem distinção entre signos e símbolos, restringindo o conceito de signo para signo natural (ou sinais), enquanto definem todos os produtos da cultura, incluindo imagens e palavras, como símbolos (Nöth, 2000, pp. 40-41). Essa não é a terminologia da semiótica visual. As imagens não são apenas signos quando descrevem a realidade visível das coisas. Assumir o contrário caracteriza a concepção ingênua da imagem como uma representação, criticada por Boehm (1994, p. 327), como a seguir: “É a ideia de que imagens espelham uma pressuposta realidade (em qualquer distorção estilística). O que sabemos e aquilo com que estamos familiarizados reaparece mais uma vez sob as circunstâncias visuais exoneradas. De qualquer modo a natureza da descrição consiste em uma duplicação.” Mas nenhum signo é um mero duplo da realidade e nenhum sistema sígnico é restringido a representar somente objetos singulares. Em linguagem, por exemplo, somente nomes próprios representam um objeto singular. Nem mesmo as palavras que representam coisas realmente existentes retratam objetos singulares. Substantivos, como “maçã”, “casa” ou “peixe”, representam classes de coisas em geral e essa generalização os torna vagos. Embora a noção de que as imagens representam objetos de uma forma espelhada seja ingênua, existem imagens que tipicamente fazem isso, isto é, imagens do espelho (Eco, 1984) e fotografias. Outras imagens, por exemplo, pictogramas intencionais, são bastante semelhantes aos signos verbais em que elas podem ser traduzidas (veja abaixo em Imagens icônicas, indiciais e simbólicas).

O modelo triádico do signo pictórico Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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De acordo com uma definição medieval, um signo é algo (aliquid) que representa (stat pro) alguma coisa (aliquo): aliquid stat pro aliquo. Essa fórmula transmite a visão útil de que o signo não é o objeto a que se refere; a imagem não deve ser confundida com o que ela representa. No entanto, na medida em que sugere que o signo pode ser essencialmente reduzido a uma relação diádica do veículo do signo e seu objeto de referência, ou um significante e um significado, a formula é enganosa. Três correlatos devem ser considerados, o signo (veículo), seu objeto referencial e seu significado. Em muitas variantes terminológicas, os três correlatos – signo, objeto e significado – constituem o modelo triádico do signo, muitas vezes representado na forma de um triângulo (Nöth, 1920, 2000). Um clássico da semiótica que deu conta da natureza triádica do signo é Charles Sanders Peirce (1839-1914). Uma de suas definições de signo é a seguinte: Um signo, ou representamen, é algo, que representa para alguém, alguma coisa em algum aspecto ou capacidade. Ele aborda alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou possivelmente um signo mais desenvolvido. Aquele signo que é criado eu chamo de interpretante do primeiro signo. O signo representa algo, seu objeto. Ele representa o objeto, não em todos os aspectos, mas em referência a um tipo de ideia. (CP 2.228, c. 1897)

No contexto da semiótica visual, aquilo que “representa para alguém, alguma coisa em algum aspecto”, é a imagem. Não é necessário que o signo tenha uma forma material. Um signo, de acordo com Peirce, pode também ser uma ideia, um mero pensamento. Consequentemente, uma imagem mental também pode ser um signo. O signo visual remete ao que foi dado anteriormente pela percepção visual (seu objeto) e causa uma interpretação, uma reação, um novo pensamento ou imagem mental como seu interpretante. Assim definido, os signos ocorrem em processos semióticos. O signo (palavra, imagem ou imagem mental) é um “primeiro” semiótico. Ele está associado a alguma coisa (um “segundo”), que é o objeto representado pelo signo. O objeto do signo visual é algo uma vez visto, experienciado ou imaginado. Um signo

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associado ao seu objeto leva a um “terceiro”, seu interpretante, que é a interpretação mental ou comportamental do signo. O objeto que o signo pictórico representa pode ser uma coisa retratada por uma imagem, mas também pode ser a memória de algo uma vez visto e até mesmo algo puramente imaginário, uma imagem mental (Nöth 2007d). O modelo triádico do signo não postula a existência do objeto. Peirce vai ainda mais longe, como ao especular que “talvez o Objeto seja totalmente fictício” (CP 8.314, 1909). A imagem de um unicórnio não é um signo sem um objeto pelo fato de unicórnios não existirem na realidade. O objeto dessa imagem provém de imagens, esculturas e histórias que uma vez formaram nossa imagem mental do que é um unicórnio. O interpretante de um signo pictórico é a imagem mental, a ideia, o pensamento, a ação ou reação evocada por isso. Tendo em vista que ideias são signos (mentais), o interpretante de um signo, que seja uma imagem mental, é ele mesmo um signo. Na semiótica de Peirce, a distinção entre o objeto e o interpretante não se dá entre algo material e algo mental. Todos os três correlatos do signo pictórico podem ser tanto mental quanto material. Um exemplo de interpretante material de uma pintura famosa é a cópia dela feita por um amador ou por outro artista. A diferença entre uma imagem mental como um signo, um objeto e um interpretante é uma questão de sequência no processo semiótico. Quando a imagem mental é o objeto de um signo, ela precede o signo como algo que é evocado pelo signo. Quando ela é o interpretante, ela é o efeito que o signo criou em uma mente. Quando o signo, ele mesmo, é uma imagem mental, nós estamos considerando o ponto de partida de um processo semiótico, por exemplo, um processo no qual uma imagem mental presente (signo) evoca memórias do passado (seu objeto), que são assim interpretadas a uma nova luz (como seu interpretante). Enquanto o objeto do signo relaciona-se com o passado, e o signo é uma questão do que vem primeiro na percepção, o interpretante como sua interpretação segue o signo.

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Imagens icônicas, indiciais e simbólicas As imagens são tipicamente signos icônicos. De acordo com Peirce, um ícone é um signo que é similar ao seu objeto; ele compartilha qualidades com o objeto e é, ao mesmo tempo, um signo por causa de uma convenção, não porque é o efeito natural de um objeto que é sua causa. Uma imagem de uma banana amarela é amarela como o objeto que representa; a imagem de um triângulo é, ela própria, triangular. As palavras para esses objetos não evidenciam nenhuma similaridade com o que representam. Baseadas em convenções, o que é diferente de idioma para idioma, palavras são símbolos. A associação entre um símbolo e seu objeto é arbitrária, convencional, e precisa ser aprendida. O termo “icônico” não é um sinônimo do termo “visual”. Embora a maioria das imagens sejam signos icônicos, também existem ícones acústicos, por exemplo, o som em uma peça de rádio ou em um filme. Palavras podem ser ícones também. Palavras simbólicas sonoras são ícones verbais. O grau no qual um ícone é similar ao seu objeto é chamado iconicidade. Os conceitos de similaridade e iconicidade vêm sendo criticados por sua imprecisão, em particular por Eco (1968, 1976). Eco e outros críticos argumentam que tudo é, de alguma forma, similar a tudo, mas, embora uma banana e a lua sejam similares nas cores, por exemplo, isso não faz com que a banana seja um signo da lua. A similaridade não é de fato uma qualidade objetivamente mensurável, mas não poderia mesmo ser assim, desde que o objeto de um signo pode também ser uma imagem mental e imagens mentais não podem ser facilmente comparadas com imagens visuais. Não obstante, a similaridade é uma realidade cognitiva. Nós fazemos julgamentos de similaridade na vida cotidiana e esses julgamentos podem ser descritos e avaliados, e testes podem revelar a que grau as pessoas acham as coisas similares. Uma imagem é um índice além de ser um ícone quando ela se refere a – e pode servir para identificar – um objeto singular. Fotos de passaporte são signos Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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indiciais; elas servem para indicar seus donos. De fato, todas as fotos são índices, porque uma das caraterísticas de alguns índices é que eles são conectados com seus objetos por uma causa natural ou uma contiguidade espacial ou temporal. Fotografias, apesar de suas semelhanças com seus objetos, são signos indiciais por duas razões. Primeiro, elas são produzidas pela causa física da projeção de um raio de luz em um filme; segundo, elas servem para identificar o objeto que elas descrevem. A indicialidade da foto não exclui ou contradiz sua iconicidade; a iconicidade está incluída na indicialidade. Pinturas também evidenciam elementos da indicialidade. O estilo de uma pintura é um índice de seu pintor e da época em que foi pintada. A perspectiva em que uma imagem é desenhada é um índice que nos permite inferir de qual ponto no espaço o desenhista produziu o desenho, e um retrato a óleo que nos permite identificar a pessoa retratada como um indivíduo é tanto um índice da pessoa como a foto do passaporte. De acordo com Peirce, o objeto de um signo não pode ser identificado como tal a partir da sua representação icônica, apesar da similaridade entre eles. Um ícone é um signo “em virtude de um caráter que possui em si mesmo e que possuiria da mesma forma se seu objeto não existisse”, explica Peirce, dando o exemplo da estátua icônica de um centauro, que representa um centauro “pela virtude de suas formas” que “terá, tanto quanto, exista um centauro ou não” (CP 5.73, 1903). Ícones não referem necessariamente a objetos reais. Quando, e na medida em que o fazem, eles são índices. O objeto de um ícone pode ser uma mera possibilidade; é por isso que as imagens podem descrever objetos que não existem. Uma das características de signos indiciais é “que eles direcionam a atenção para seus objetos através de uma compulsão cega” (CP 2.306, 1902). Uma criança que chora para chamar a atenção de sua mãe se comunica pelo meio de um índice genuíno. Em algum grau, a atração cegamente compulsiva mencionada por Peirce como a característica de alguns índices é também uma característica da imagem, especialmente na mídia. É bem conhecido que as imagens atraem mais atenção que as palavras. O tabloide impresso faz uso desse Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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efeito ao ceder espaço para fotos em sua primeira página. Ao grau que as imagens têm tal poder apelativo (ou “conotativo”, como chamado por Roman Jakobson), elas são signos indiciais. Algumas imagens são mais indiciais que outras nesse aspecto. Imagens com cores gritantes ou fotos de pin-ups atraem mais atenção. Pôsteres e anúncios em outdoors fazem uso dessa indicialidade para atrair a atenção das massas. Imagens também podem ser símbolos. As palavras são típicos símbolos. O sinal de trânsito logográfico para ciclistas – uma imagem abstrata de uma bicicleta – é um símbolo, mas, por causa da similaridade com bicicletas reais, é ao mesmo tempo um ícone. Logogramas são símbolos ao passo que têm um significado generalizado, exatamente como as palavras pelas quais eles podem ser traduzidos. Quando isso é usado para orientar ciclistas no trânsito, serve como um índice que informa os usuários das vias que “este caminho (aqui)” é apenas para ciclistas. Portanto, a tricotomia peirceana do ícone, do índice e do símbolo é um sistema de inclusão. Símbolos incluem signos indiciais, uma vez que nenhuma ideia pode ser formada sem “instâncias existentes do que o Símbolo denota”, isto é, sem índices do símbolo (CP 2.249, 1903). Índices incluem ícones, pois “na medida em que o Índice é afetado pelo Objeto, ele necessariamente tem alguma Qualidade em comum com o Objeto” (CP 2.248, 1903). A palavra “bicicleta” evoca a imagem mental (e portanto um ícone) do veículo que designa, mas isso também direciona nossa mente aos veículos específicos que conhecemos na realidade (índices). Índices incluem ícones, como o exemplo da foto. Somente o ícone não inclui qualquer outro tipo de signo. Tendo em vista que os ícones evidenciam as qualidades de seus objetos, Peirce conclui que “uma grande propriedade diferencial do ícone é que, pela observação direta deste, outras verdades sobre o seu objeto podem ser descobertas, além daquelas que são suficientes para determinar sua construção” (CP 2.279). Os ícones são, portanto, o único tipo de signo a partir do qual podemos derivar novas ideias sobre a natureza de seus objetos. Isso é particularmente verdadeiro para o diagrama, o que Peirce define como um ícone que, sem qualquer “semelhança sensível” com Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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seu objeto, mostra uma “analogia entre as relações de suas partes” com a estrutura de seu objeto (CP 2.279, c. 1895). Um mapa de uma cidade, que é um ícone diagramático, não representa apenas as ruas da cidade, mas permite que os usuários do mapa descubram como ir de um endereço a outro. A iconicidade das imagens explica sua eficiência e utilidade global na mídia. O que as imagens se referem pode ser reconhecido a partir de suas formas e cores; a informação veiculada por uma foto impressa não precisa de tradutor. Isso não evita que as imagens também não sejam determinadas por culturas e estilos, e precisam ser contextualizadas. Além disso, o que as imagens retratam muitas vezes já é um signo simbólico cuja interpretação requer um conhecimento cultural. A imagem de um totem só pode ser devidamente compreendida por uma pessoa que tenha algum conhecimento colateral sobre as culturas que produzem totens como símbolos de clãs. O grau no qual os ícones de misturam com índices e símbolos permite a distinção entre estilos pictóricos. Pinturas realistas, por exemplo, são mais indiciais que icônicas. Pinturas que para a interpretação é requerido um conhecimento de um código iconográfico, por outro lado, são símbolos na medida em que o conhecimento cultural de convenções é necessário para interpretá-los.

Por que imagens não figurativas (abstratas) são signos? O signo natural de imagens figurativas está, na sua maior parte, fora de questão, uma vez que é reconhecido que esses são signos de tudo que eles representam. Todavia, com o argumento de que nada pode ser um signo que não representa ou refere a objetos do “real” ou, ao menos, a mundos possíveis, imagens não representacionais são descritas como obras de arte que não são signos (Nöth, 2005a), mas a semiótica visual enxerga isso de uma forma diferente e, portanto, pinturas abstratas não são excluídas desse campo de pesquisa. As escolas de semiótica visual de Paris e Liège distinguem entre signos figurativos (ou icônicos) e abstratos (ou plásticos) nas imagens. Signos figurativos Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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são aqueles que podem ser reconhecidos como representantes das coisas do nosso mundo visual, como o sol, uma árvore, uma mesa, um gato, um menino ou uma menina. Esses são, evidentemente, os signos que encontramos nas pinturas representacionais. Signos abstratos consistem em padrões de cores e formas, como cores, triângulos, círculos etc., podem ser encontrados tanto em imagens figurativas como em imagens não figurativas. Estruturados em unidades mínimas, chamadas elementos abstratos, esses signos são descritos em pares de oposições binários. No nível abstrato, padrões cromáticos (de cor) são distinguidos de padrões eidéticos (de forma). Padrões cromáticos são estruturados em contraste de cores, como ‘vermelho vs. verde’ ou ‘saturado vs. insaturado’. Padrões eidéticos são estruturados em chamadas categorias, consistindo de opostos binários da forma, como ‘angular vs. circular’ ou ‘convexa vs. côncava’. Em uma próxima etapa da análise de pinturas abstratas, as configurações encontradas na análise de padrões cromáticos e eidéticos são interpretadas em termos de categorias semânticas, como ‘natural vs, cultural’, ‘vivo vs. morto’ (Thürlemann, 1990, pp. 25-31, Edeline et al., 1992). Essa etapa final de análise dessa abordagem semiótica para a pintura abstrata, portanto, consiste na interpretação de estruturas não figurativas da imagem abstrata como figurativamente significativa. Uma forma diferente de contabilizar o signo natural de imagens abstratas é postular a categoria de signo estético autorreferencial, um signo que não se refere a nada além de si mesmo (Nöth, 2003b, 2007a, c, Nöth, & Santaella 2000). Um termo chave dessa abordagem é o conceito de Peirce de ícone puro. Ícones puros “apenas representam Formas e Sentimentos” (CP 4.544, 1905). Não sendo apenas similar (e, por conseguinte, de certo modo, também diferente) ao seu objeto, o ícone puro é um signo apenas pela virtude de suas próprias qualidades. Sem desenhar “qualquer distinção entre ele mesmo e seu objeto, representa qualquer coisa que possa representar e qualquer coisa que seja tal (...). É apenas um caso de talidade” (CP 5.74, 1903). No contexto em que Peirce desenvolve a teoria de iconicidade pura, ele desenha uma distinção entre ícones (puros) e hipoícones. Um ícone puro, como descrito acima, funciona como um signo pelas Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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suas próprias qualidades, independentemente de qualquer outro objeto de referência, enquanto o hipoícone funciona como um signo por sua similaridade com seu objeto (CP 2.276, 1903). Em outro lugar (e também no parágrafo anterior desse artigo), o termo ícone é simplesmente um sinônimo de hipoícone. Ícones puros “são completamente substituídos por seus objetos como dificilmente podem ser distinguidos deles. (...). A distinção do real e da cópia desaparece e é o momento de puro sonho – nenhuma existência particular e nem mesmo geral” (CP 3.362, 1885). Uma vez que uma imagem é contemplada em total desconsideração de qualquer referente, ela não é mais um signo por similaridade ao seu objeto. Sendo indistinguível de seu objeto, o ícone puro é um signo autorreferencial de suas formas puras. Esse modo de olhar para uma imagem como uma forma pura é a forma que a estética clássica descreveu como definir características da percepção estética. A obra de arte é percebida “para seu próprio bem”, de acordo com a doutrina da estética clássica (Nöth, 2000, pp. 426-27). Quando o ícone não se refere mais a um objeto diferindo de si mesmo, representando nada além de pura forma e sentimentos, é uma mera constelação de cores e formas. O recurso distintivo clássico da percepção estética, nomeado autorreferencialidade, o fato de que imagens estéticas começam a ser percebidas em sua talidade, apenas com relação às suas qualidades icônicas, foi somente radicalizado pela revolução estética que tomou lugar na arte abstrata. Uma vez que a obra de arte foi liberada de suas obrigações com seus objetos de referência, seus espectadores não precisavam mais abstrair de seus signos figurativos para perceber a obra de arte como um signo estético autônomo representando cores e formas puras. As vanguardas do século 20 adotaram várias estratégias semióticas para liberar suas obras de arte de suas obrigações com seus objetos de referência. Todas elas podem ser descritas como diferentes estratégias de aproximar-se do ideal de autorreferência estética. A iconicidade pura é, de fato, apenas um ideal, um caso limite de iconicidade, alcançável apenas por uma aproximação assintótica. Nenhuma imagem real pode ser um ícone puro absoluto já que cada Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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imagem é um objeto singular e, nesse sentido, não uma forma “ideal”. A obra de arte é sempre um produto de um artista individual e, nesse respeito, um índice do estilo do artista. Além disso, na medida em que participa e exemplifica uma tendência estética específica (como a “arte abstrata”), ela é o resultado de convenções estéticas e, nesse respeito, um símbolo. Nenhuma obra de arte pode incorporar completamente o ideal de forma pura, mas há estágios de aproximação à iconicidade pura. Três desses estágios de aproximação à iconicidade pura podem ser derivados da classificação dos signos de Peirce: qualissignos, sinsignos e legissignos, destacados de sua teoria das dez classes de signos (CP 2.254-264, 1903). Como um ícone por suas próprias qualidades, o qualissigno icônico é aquele que chega mais próximo do ideal de ícone puro. Em segundo vem o sinsigno icônico, que é caracterizado por sua singularidade e, em terceiro, vem o legissigno icônico, que é um ícone que incorpora “uma lei geral de tipo” (CP 2.258). Qualissignos icônicos. O protótipo da pintura abstrata mais próximo de um qualissigno icônico é a pintura monocromática. Proposition monochromes, de Yves Klein, de 1956, consiste em uma série de imagens em laranja, amarelo, vermelho, rosa e azul puros. Essas imagens minimalistas provavelmente negam o objeto referencial do signo pictórico da forma mais radical. Qualquer referência ao mundo dos objetos é eliminada em uma imagem reduzida à pura cor, referindo somente a si mesma. E ainda, apesar de sua aproximação à categoria do qualissigno, essas monocromias não podem ser qualissignos puros, “já que qualidade é uma mera possibilidade lógica” (CP 2.255), enquanto que uma pintura é um objeto real da experiência. Com tal, as pinturas de Klein são também sinsignos, signos dos quais a singularidade é importante, embora isso não seja o que as distingue de outras obras de arte. Além disso, como obra de arte, elas também pertencem à categoria do legissigno icônico, já que são instâncias da classe de obras de arte, que são signos culturais determinados por convenções estéticas. Apesar de sua tentativa de romper com as tradições da história da arte, até mesmo a obra de arte mais revolucionária, ainda quer pertencer à classe das obras de artes, isto é, à categoria de signos determinados Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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por convenção cultural. O caráter legissígnico de Propositions monochromes de Klein é ainda evidente em seu título. Se essas monocromias são proposições, elas são imagens que propõem uma ideia geral sobre a natureza da pintura, isto é, são metapinturas. Sinsignos icônicos. Entre as obras vanguardistas do século 20, em que o aspecto da singularidade é predominante e em que, portanto, funcionam primariamente como sinsignos icônicos, estão aqueles que demonstraram a irrepetibilidade, singularidade absoluta, e, nesse sentido, total singularidade de experiênciá-los. A irrepetibilidade absoluta da experiência estética da obra de arte foi o ideal das performances, happenings, eventos e instalações na arte do final dos anos 60 e começo dos anos 70 (Nöth, 1972). Nenhuma obra de arte pode ser mais singular que um happening irrepetível, a performance que é programaticamente única. Um tipo diferente de radicalização do ideal de singularidade estética é exemplificado por obras da tradição dos “objetos achados” dadaístas. A singularidade de um objet trouvé não é aquela da experiência estética, que é de fato repetível; é a singularidade da seleção dos objetos como um objeto de arte. Certamente, obras de arte, como criações de artistas individuais, sempre foram produtos de seleções únicas. Contudo, ao contrário do tipo tradicional de singularidade criativa, os “objetos achados” não são materialmente criados; são somente selecionados pelo artista a partir de um repertório facilmente disponível de produtos de massa e feitos singulares pelo mero ato de suas apresentações em exposições de arte. Entre as coisas selecionadas por Marcel Duchamp como objetos de arte estão: um pente, uma prateleira de garrafas e um urinol. Foi o gesto seletivo único do artista que transformou esses objetos comuns do cotidiano em obras de arte singulares, um sinsigno estético. Os objetos que Duchamp “encontrou”, e selecionou, no repertório de objetos cotidianos foram signos antes de serem selecionados, mas signos de um tipo diferente. Como membros de uma classe de objetos que servem a um propósito prático, eles eram réplicas de legissignos, os produtos de massa que servem a propósitos da vida cotidiana que os tornam culturalmente significativos (Nöth, Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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1998). A seleção de Duchamp desses produtos de massa privou-os de sua referência de utilidade prática e modo de uso e os transformou em obra de arte singular, sinsignos icônicos autorreferenciais. Legissignos icônicos são a terceira classe de signos icônicos de relevância para a semiótica da arte não representacional. Legissignos são signos devido a uma lei geral que os faz signos. Na pintura, essas leis podem ser estilos ou convenções, mas também simetria, balanço, polaridade, tensão, contraste, oposição, invariância, forma geométrica ou complementariedade cromática. Prototipicamente, leis desse último tipo determinam os princípios de composição do Construtivismo e do Suprematismo. Composition in Red, Black, Yellow and Gray (1920) de Piet Mondrian, por exemplo, é composta de acordo com as leis geométricas pelas quais formas retangulares são construídas; é radicalmente reduzida a quadrados e retângulos coloridos e dividida por linhas pretas. Um quadrado forma o centro visual em torno do qual retângulos são exibidos em arranjos quase simétricos e as cores são escolhidas para criar um balanço harmônico. As formas e as cores não são apresentadas como formas puras nem como a intuição espontânea e singular do artista, mas sim por morfologia e sintaxe cromática e geométrica que fazem da pintura um legissigno icônico.

Sintaxe visual e a questão da dupla articulação Um dos principais tópicos da semiótica da imagem dos anos 60 e 70 foi o questionamento sobre a metáfora da “linguagem das imagens” poder ser tomada literalmente, isto é, se as imagens são estruturadas em analogia com os níveis do fenômeno, da palavra e da sentença da linguagem verbal. Entre os semioticistas que participaram da pesquisa pelas analogias entre a gramática da linguagem e a estrutura das imagens estão Zemsz (1967), Metz (1968), Eco (1968, 1976), Schefer (1969), Marin (1971), Paris (1975), Lindekens (1976), Carter (1972, 1976) e Saint-Martin (1990). Um tópico muito discutido nesse período de semiótica visual foi se as imagens não signos com uma chamada dupla articulação, isto é, com um nível que consiste em elementos com significado Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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(análogo ao das palavras de linguagem) e um nível que consiste de elementos sem significado (como os fonemas ou letras da linguagem). Sem dúvidas, imagens visuais têm significados, mas, ao contrário das palavras, imagens não são compostas de um conjunto finito de elementos mínimos recorrentes que são, eles mesmos, sem significado, (Benveniste, 1969, pp. 237, 242). Embora haja, atualmente, um consenso geral de que as imagens são sistemas sígnicos sem uma segunda articulação similar à da língua, as tradições francesa e belga da semiótica visual postulam uma dupla articulação das imagens de um tipo diferente. Os dois níveis de estrutura de uma imagem visual são aqueles dos signos figurativos e abstratos das imagens (veja acima em imagens não figurativas (abstratas) e abaixo (último subcapítulo) em imagens como sistemas semi-simbólicos). Embora não haja uma gramática para compor sintaticamente imagens bem formadas por significados ou um número finito de elementos e regras, ainda é possível reconhecer uma sintaxe pictórica em um sentido diferente. As imagens são certamente compostas por figuras cujo arranjo espacial obedece a certos princípios de ordem. Diferente da sintaxe da linguagem, que consiste de regras amplamente arbitrárias que variam de idioma para idioma, imagens figurativas têm uma sintaxe icônica na qual as regras são determinadas pela ordem em que as coisas no mundo representadas por elas são estruturadas. Por exemplo, o sol está ao alto, o solo está abaixo e uma borboleta tem asas para a direita e a esquerda de seu corpo etc.. É por meio de significados desta ordem icônica de representação correspondente à ordem das coisas do mundo visual, como o conhecemos, que as imagens podem ser lidas como representantes das coisas que elas representam. A gramática de imagens figurativas é icônica da ordem das coisas. Imagens abstratas não possuem gramática, já que elas negam qualquer referência a elas. Na medida em que cada pintura abstrata tem sua própria ordem cromática e formal de cores e formas, pode-se concluir que cada pintura abstrata tem sua própria sintaxe ou que pinturas não figurativas são imagens sem uma estrutura sintática. Os princípios tradicionais de ordem estética Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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(harmonia, balanço, simetria, cores que combinam ou não) são exemplos da sintaxe pictórica não figurativa pela qual uma grande classe de imagens tem sido e continua a ser gerada. Ao contrário da sintaxe da linguagem verbal de estruturas de superfície linear com estruturas profundas hierárquicas, a gramática das imagens gera estruturas de superfície bidimensional mais complexas. Porém, também existem estruturas abaixo da superfície de uma imagem que testemunham uma espécie de estrutura profunda visual, por exemplo, configurações de primeiro plano e plano de fundo ou de centro e periferia da imagem que marcam a maior ou menor importância de elementos pictóricos. As saliências visuais de uma figura, seu primeiro plano ou sua posição no centro correspondem à importância no significado pictórico. A sintaxe icônica das imagens é, portanto, uma sintaxe icônica de reconhecimento que reflete os padrões de cognição visual. Uma das ordens sintáticas subjacentes à nossa cognição, tanto de imagens quanto do mundo visual que não tem contraponto na sintaxe verbal, é a ordem metonímica. Uma metonímia descreve a parte pelo todo das coisas. Um exemplo é o corpo humano: suas partes são o tronco, os braços, as pernas e a cabeça, cada uma dessas partes está estruturada em partes ulteriores, por exemplo, o braço se divide em parte superior, antebraço, mão e etc., cada uma dessas partes tendo a ordem de suas representações bidimensionais, direita, esquerda, superior ou inferior, na configuração visual. O conhecimento de tais relações da parte pelo todo é um dos elementos da sintaxe pictórica. Uma imagem sintaticamente bem formada de uma cabeça humana deve mostrar cabelo, olhos, nariz, boca, queixo, etc., cada uma sintaticamente, ou metonimicamente, em seus lugares corretos. As regras da projeção do espaço tridimensional no plano bidimensional da superfície da imagem são subdomínios da sintaxe pictórica. Semântica visual A semântica da imagens figurativas é igualmente derivada do nosso conhecimento de objetos do mundo visual. Não importa o significado que Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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associamos a um objeto (uma pedra, um cachorro, o céu etc.), a uma figura ou a uma cor, o mesmo significado será reconhecido como um significado de sua representação pictórica. Na medida em que as imagens representam o mundo visual com mais precisão que a linguagem verbal, a semântica das imagens é mais diferenciada do que a semântica da linguagem. O pequeno número de palavras para cores em contraste com o grande número de cores disponíveis para um artista gráfico pode ser suficiente como um exemplo da superioridade da semântica visual para a semântica verbal. Alguns dos aspectos em que as imagens não podem expressar significados que as palavras podem expressar são: negação e disjunções exclusivas, causalidade, modalização, metarreferência, autorreferência e dêixis. Negação e disjunção exclusiva: As imagens não podem dizer ‘não’, nem podem explicar relações de ‘nem-ou-mas-não-tanto’. ‘Bicicleta’ é certamente um significado que pode ser representado em uma imagem, mas o significado de ‘nenhuma bicicleta’ não pode. Significados negativos podem inferencialmente ser derivados de imagens ou expressados por significados simbólicos. O conceito de ‘nenhuma bicicleta’ pode ser inferido de uma imagem sem bicicletas, desde que o número de julgamentos sobre o invisível derivável do visível seja sempre ilimitado (o número de coisas que ‘não’ estão na imagem é incontável), é incerto se a imagem vai levar a esse julgamento ou não. A imagem de uma bicicleta com uma linha que a cruza se utiliza de um dispositivo simbólico para negar o conceito de ‘bicicleta’. Uma imagem não pode expressar o conceito do exclusivo ‘ou’. Por exemplo, a imagem não pode representar o significado de ‘ou um ciclista ou um pedestre’. Causalidade: As imagens podem visualizar as causas dos efeitos que representam? Uma foto de um fogo e a fumaça causada por ele representa uma relação de causa-efeito, mas a causalidade deve ser inferida pelo espectador da foto, não há dispositivo pictórico que expresse isso. Uma imagem de raio-x parece visualizar a causa de uma doença, mas é somente a representação icônica (e indicial) de uma má formação que é o sintoma da doença que é causada. Uma foto mostra um homem atirando em uma mulher, mas ela realmente morreu ou Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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eles eram apenas atores de um filme? Na medida em que as imagens não podem afirmar o que ela mostram, elas não podem representar a causalidade. Sequências de imagens e filmes são mais propensas a representar relações de causa-efeito. Um filme de um homem acendendo um fósforo e ateando fogo a um celeiro mostra uma sequência de causa-efeito. Modalização: As imagens não podem modalizar o que elas mostram. Elas não podem expressar as ideias de possibilidade, necessidade, obrigação ou vontade. A imagem de uma garota correndo não nos diz se ela quer, deve ou pode correr, ou se está apenas fingindo correr. Metarreferência e autorreferência: Imagens e linguagem também diferem em relação aos seus potenciais metarreferenciais e autorreferenciais. (Nöth, 2007c, 2009b). Elas não possuem metassignos correspondentes às palavras referentes a palavras, seus elementos e funções, como vogal, consoante, palavra ou sentença. Somente signos verbais podem autorreferencialmente ser usados para descrever palavras. Por exemplo, no idioma inglês é possível dizer eye (olho) e exemplificar isso através das letras e, y, e para diferenciar da palavra I (eu), um pronome pessoal que possui uma sonoridade similar. Além disso, palavras também podem ser usadas para descrever imagens, mas imagens dificilmente descrevem a linguagem verbal, embora possam ser utilizadas para ilustrar textos. Nenhuma forma pictórica pode expressar a ideia de uma forma, nenhum triângulo expressa a ideia de um triângulo e nenhuma cor expressa a ideia de ‘cor’ sem que seja a própria cor em questão. Imagens apenas podem mostrar suas próprias características, não podem “falar” explicitamente sobre elas, nem podem generalizar. Uma imagem apenas pode mostrar um triângulo ou uma cor, mas não pode mostrar sem ser, ela mesma, um triângulo ou tendo a cor que representa. Embora as imagens não tenham signos para referir imagens e seus elementos, metaimagens se tornam possíveis pelos caminhos da inferência. Uma imagem acerca de outra imagem é interpretada como uma metaimagem pela inferência de um intérprete o qual, em sua mente, a presente imagem evoca a outra imagem (que cita ou comenta nela) como uma imagem mental. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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Dêixis e indicialidade: As imagens não podem apontar de ‘lá’ para ‘cá’. Não existem meios internos de reenvio a partir de local no interior da imagem para outra; não há nada que possa expressar o significado de aqui, lá, este ou aquele (mas para a maneira pela qual as imagens podem ser índices do que elas representam, veja acima). Pragmática visual Como todos os signos, as imagens também têm uma dimensão pragmática, na qual são estudadas em relações aos seus modos e efeitos de uso. A pragmática visual entra em acordo com o modo como as imagens são usadas e os efeitos que causam em seus espectadores. Tais imagens atraem mais atenção imediata que palavras, como discutido acima, pertencendo, assim, à sua dimensão pragmática. Outros tópicos da pragmática visual são: de quais formas as imagens exercem seus efeitos em seus expectadores e a quais efeitos elas servem? Uma forma semiótica de examinar essa questão é comparar a pragmática da linguagem com o uso e o efeito da comunicação por meio de imagens. Um método importante da pragmática linguística é a teoria dos atos do discurso (Nöth, 2010). Essa teoria estuda os modos de uso da linguagem diversificada como atos de “fazer as coisas” por meio da linguagem (Austin, 1962). Exemplos de atos do discurso são prometer, ameaçar, pedir, ordenar, felicitar, prestar um juramento, etc. Uma importante distinção é a que se faz entre atos do discurso diretos e indiretos. Atos do discurso direto são marcados pelos atos do verbo do discurso (chamados verbos performativos) ou formas sintáticas que caracterizam o enunciado como o ato do discurso para o qual é usado. Por exemplo, o ato do discurso ou ordenação é direto, se o orador diz: “Eu ordeno que você fique quieto”, ou usa a forma imperativa (Fique quieto!). Atos do discurso indireto omitem verbos performativos ou formas sintáticas que sinalizam o ato do discurso. Um orador pode dar uma ordem em forma de questão (mais educado) ou como uma mera afirmação.

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As imagens também são utilizadas para diversos propósitos, por exemplo, na publicidade, para fazer consumidores comprar produtos ou orientar massas em lugares públicos. É possível uma teoria de atos pictóricos em analogia com atos do discurso? Verbos performativos são metassignos verbais. Se eu digo “Eu te pergunto a seguinte questão...” ou “Eu te digo...”, essas afirmações são comentários metalinguísticos sobre as seguintes questões ou ordens. Na medida em que as imagens não têm metassignos explícitos, como mostrado acima, devese concluir que não se pode haver atos pictóricos diretos análogos aos atos do discurso direto. Uma imagem não pode se expressar explicitamente se ela é usada para fazer uma pergunta, dar uma ordem, para ameaçar, fazer uma promessa ou para felicitar. Por isso, uma teoria de atos pictóricos apenas pode ser uma teoria de atos pictóricos indiretos. Se uma imagem se destina a seus leitores com o objetivo de fazer uma pergunta ou advertir contra um perigo, a questão ou advertência pictórica apenas podem ser indiretas. Certamente, a proposta a qual a imagem serve pode ser expressada diretamente por meio de atos do discurso verbal. As imagens não podem afirmar o que mostram porque afirmar requer um metassigno da verdade do que é afirmado (Nöth, 2009b). Um porta-voz que afirma que sua companhia demitiu seu presidente alega implicitamente que a proposição “nós demitimos nosso presidente” é verdadeira; dizer que algo é verdadeiro é fazer uma meta-afirmação. As imagens, ao contrário, não têm metassignos. Elas apenas podem mostrar o que representam, mas, na medida em que elas não têm metassignos icônicos, elas não podem afirmar o que elas representam e nem mentir sobre isso. Não obstante, as imagens podem dar evidências indiciais de fatos, especialmente como as fotografias. Como signos indiciais, fotos chegam perto de serem imagens que expressam a verdade e é nesse sentido que fotos são aceitáveis como documentos de fatos; elas podem ser tidas como afirmadoras do que representam. Entretanto, a foto não pode afirmar o que mostra nem pode dizer se isso foi manipulado ou não. Nós precisamos de evidências adicionais sobre as circunstâncias em que a foto foi feita, revelada ou processada digitalmente. Essa é a razão pela qual as fotos não Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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podem afirmar ou mentir explicitamente, mas apenas só podem ser usadas para mentir. As circunstâncias nas quais as imagens são usadas para certos propósitos são expressas verbalmente ou por meios indiretos de atos pictóricos. O fotógrafo que vende uma foto manipulada como uma representação de uma cena real ou faz isso por meio do ato do discurso de uma mentira ou por esconder a verdade de uma forma não verbal, por exemplo, por lucrar com sua credibilidade profissional. A forma não verbal de enganar os clientes é um ato pictórico indireto. Em sua dimensão pragmática, as imagens são essencialmente mensagens abertas, mais do que em sua dimensão semântica. Uma imagem de um violino dificilmente pode ser interpretada significando qualquer coisa além de um violino, mas pode ser usada para muitas propostas, por exemplo, informar sobre o tipo de instrumento que é um violino, para ensinar como ele é construído, para ilustrar um convite de um concerto, para anunciar, para exemplificar a ideia de simetria, etc. Este é outro paralelismo entre imagens e a linguagem verbal: apenas como uma imagem pode ser usada para muitos propósitos, um e o mesmo enunciado verbal pode ser usado em diferentes maneiras diretas e indiretas para executar os atos do discurso mais diversos.

A semiótica de imagens visuais em anúncios impressos: dois estudos de caso Duas abordagens semióticas para o estudo de imagens visuais serão apresentadas a seguir com encurtamentos devidos, algumas adições e modificações necessárias. Ambos são estudos de anúncios impressos de revistas de notícias. O primeiro exemplifica a abordagem da Escola de Paris e o segundo a abordagem baseada na semiótica de Peirce. O método de semiótica visual da Escola de Paris é exemplificado por meio de um resumo das ideias principais de um estudo realizado por J.-M. Floch (1985: 139-169, 1989, 1990: 85-89) sobre alguns anúncios impressos de uma campanha publicitária de 1980 lançada para apresentar a marca de cigarros “News” na França (Figura 1).

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Figuras 1 (l.) e 2 (r.).

Anúncio de cigarro francês de 1980 (Floch 1989: 56)

Anúncio de gin de 1974 (Santaella &

Nöth 2010: 148).

Na tradição do estruturalismo semiótico, Floch caracteriza o texto verbovisual da Figura 1 como um sistema de opostos em vários níveis, dos quais a dicotomia da expressão vs. conteúdo é o mais fundamental. No plano da expressão, que é o nível das formas gráficas e tipográficas, bem como nuances cromáticas e acromáticas e contrastes, a oposição ‘reto’ vs. ‘oblíquo’ é a mais notável. As zonas tipográficas superiores e inferiores são dispostas em campos (ou faixas) horizontais e paralelos, enquanto que o campo tipográfico do meio contém formas retangulares dispostas obliquamente dentro de um enquadramento retangular, cujas margens estão paralelas às de toda a página. A disposição implica oposições como simetria (nas faixas superior e inferior) vs. assimetria (no campo do meio), ou regularidade vs. irregularidade. Esse conjunto de opostos fundamentais é paralelo (está “acoplado”) com outras oposições no Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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plano da expressão: linguagem (nas faixas superior e inferior) vs. fotografia (no campo do meio), colorido (acima e abaixo) vs. preto e branco (as fotos no meio); ‘amplo’ com várias linhas vs. ‘estreito’ com apenas uma linha (faixas superior e inferior). Opostos que estruturam o campo do meio são: primeiro plano (o pacote de cigarros) com cores vs. plano de fundo em preto e branco (as fotos), sobreposição (disposição das fotos) vs. superposição (o pacote de cigarros em cima das fotos), ‘enquadrante’ (as faixas superior e inferior enquadram o campo do meio) vs. ‘enquadrado’ (o pacote de cigarros é enquadrado pelas fotos a sua volta) e, por fim, ‘oblíquo com linhas paralelas descendentes’ vs. ‘oblíquo com linhas paralelas ascendentes’ da esquerda para a direita (das fotos no plano de fundo vs. o pacote de cigarros no primeiro plano). Dentre as cores, há oposição entre ‘cromático’ (acima, abaixo e no pacote de cigarros) vs. ‘acromático’ (as fotos) e entre ‘cores primárias’ (na larga barra vermelha abaixo da faixa superior e no pacote de cigarros) vs. ‘cores secundárias’ (a cor das pontas dos filtros é ocre). No plano do conteúdo, os elementos visuais encontrados no plano da expressão são agora interpretados como significativos. São considerados significantes (expressões) associados a significados (conteúdos). A semantização resultante do plano da expressão de uma imagem, de acordo com esse método, pode ser ilustrada pela oposição de ‘primeiro plano’ vs. ‘plano de fundo’: em geral, o significado do que está em primeiro plano é mais importante do que aquele que está no plano de fundo e, de fato, é o pacote de cigarros, para o qual a campanha foi lançada, que está em primeiro plano nesse anúncio. Uma semantização adicional desse tipo: linhas descendentes têm conotações negativas e linhas ascendentes têm conotações positivas. De fato, é apenas a imagem do pacote de cigarros que possui arestas em linhas ascendentes em sua representação oblíqua, enquanto as fotos da vida ‘agitada’ de jornalistas têm uma orientação oblíqua descendente da esquerda para a direita. Após reduzir os vários pares de oposições no plano da expressão para o denominador comum fundamental da ‘descontinuidade’ vs. ‘continuidade’, Floch chega à conclusão de que essa oposição característica do layout do Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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anúncio é acoplada à oposição semântica fundamental de ‘identidade’ vs. ‘alteridade’. Identidade é o denominador comum da continuidade e da regularidade com as quais os jornais diários são publicados, o “pleno sabor” dos cigarros permanece disponível para sempre e, também, a liberdade dos consumidores fazerem uma pausa, enquanto os outros continuam em seu estilo de vida profissional agitado. Esse último simboliza a ‘alteridade’ de todos aqueles que não participam do fato de fazer uma pausa (e não consomem essa marca de produto). A distinção fundamental entre ‘identidade’ e ‘alteridade’ é acoplada com outras oposições: ‘permanência’ (e continuidade na publicação de um jornal diário) vs. ‘mudança’ (dos problemas relatados no dia a dia), ‘fotos’ (o material cru e diário de qualquer fotógrafo de imprensa) vs. os (sempre mutáveis) ‘eventos’ que retratam. Em suma: “O que o anúncio de ‘Notícias’ propõe (...) é um estilo de vida (...) que exibe dois estados contrários: a participação na agitada vida da sociedade (...vs.) a realização de um estilo pessoal impresso sobre o primeiro” (Floch 1989:57). O sistema de correlações entre elementos de expressão e conteúdo, assim estabelecido, exemplifica que as imagens são linguagens semi-simbólicas e como elas são estruturadas em sistemas semi-simbólicos. Ao contrário das linguagens simbólicas, que evidenciam uma correspondência de 1:1 entre suas unidades de expressão e conteúdo (exemplo: o sistema de semáforos), as imagens são linguagens semi-simbólicas, porque os elementos de seu plano de expressão evidenciam apenas correspondências soltas para certas categorias de conteúdo, como ilustrado acima. Considerando que a abordagem da Escola de Paris visa revelar significados fundamentais, mas escondidos, inerentes na estrutura profunda de uma imagem, a abordagem baseada no princípios da semiótica de Peirce, adotada por Santaella & Nöth (2010), parte de diferentes premissas. A leitura das imagens é um processo semiótico (um processo de semiose). Imagens são signos que não apenas têm significados, mas também criam significados. Os significados que elas têm estão relacionados aos objetos do signo visual; o significado que elas criam está relacionado aos seus interpretantes. Considere a Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Abertura Semiótica Visual | Winfried Nöth

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Figura 2. O anúncio (imagem e texto) é um signo complexo que consiste de duas imagens em justaposição com alguns elementos de texto verbal que lhes estão associados. O objeto desse signo não apenas consiste das duas coisas que vemos e dos significados das palavras que lemos. O que precisamos saber para interpretar o signo (isto é, o objeto) compreende todo o conhecimento cultural necessário para interpretar o signo. Esse conhecimento não é restrito ao conhecimento visível. Por exemplo, nós sabemos que a coroa, ela mesma, é um signo, um símbolo da monarquia britânica. A garrafa, também, é um signo na medida em que representa uma marca e não apenas uma garrafa em particular. O conhecimento que temos dos objetos representados nesse anúncio pode ser vago, mas o texto verbal, que consiste de signos com objetos dele mesmo, informa sobre mais detalhes. O interpretante criado a partir desse signo complexo (o anúncio) não apenas consiste em significados no sentido de informação, ideias, conceitos ou imagens mentais, mas também no sentido de crenças, desejos e hábitos que o signo complexo cria em seus leitores. O interpretante final, que é o objetivo real de todos os anúncios, é o hábito do público-alvo em consumir o produto apresentado nesse anúncio. Tradução do inglês: Rodrigo Antunes Morais

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Dossiê Cinema e Audivoisual

A COMUNICAÇÃO POÉTICA DO HUMOR NO SERIADO “CHAVES”: AS ESTRATÉGIAS DO CÔMICO DURANTE A “TRUPE CLÁSSICA” (19731980) COMMUNICATION OF HUMOR IN POETRY SERIES “CHAVES”: STRATEGIES DURING THE COMIC “CLASSICAL TROUPE” (1973-1980)

Luis Mauro Sá Martino Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professor do PPG em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. São Paulo. SP. Brasil. Email: lmsamartino@gmail.com


Resumo: Este trabalho analisa algumas características da poética do humor no seriado “Chaves”, tal como ocorre na interação verbal entre as personagens a partir, especialmente, do conceito de “comunicação poética” formulado por Décio Pignatari. A partir de pesquisa exploratória feita com episódios com a “trupe clássica” (1973-1980), foram destacados três elementos: (a) a criação de palavras e trocadilhos derivada da incompreensão constante entre as personagens; (b) a materialização de elementos grotescos na fala das personagens; (c) um substrato negativo, baseado em uma sutil crítica social. Palavras-chave: Teoria da Comunicação. Humor. Televisão. Chaves.

Abstract: This papers analyses some characteristics of the television show “El Chavo Del Ocho” poetics of humor as it is displayed in the character’s interpersonal communication. Pignatari’s concept of ‘poetical communication’ is particularly adressed as a main analytical tool. The exploratory research of several episodes with the ‘classical troupe’ (1973-1980) has been developed in three main findings: (a) The invention of words, meanings and puns derived from a continuous misundestanding among the characters; (b) The use of grotesque elements in the character’s speech; (c) a substract of negative references grounded on a subtle social criticism. Keywords: Communication Theory. Humor. Television. El Chavo del Ocho.


INTRODUÇÃO No início de seu estudo clássico sobre o riso, Bergson (2001, p. 4-6) destaca duas de suas qualidades. Em primeiro lugar, dirige-se à inteligência, não à emoção ao afeto, na medida em que a capacidade de rir exige, de antemão, a capacidade de compreender os vários níveis, muitas vezes contraditórios e metalinguísticos, de uma frase ou uma ação. Além disso, o riso existe na medida em que há uma sociedade com referências comuns para compreender do que se ri; é o que o filósofo menciona como “significação social” do riso. A partir de um ponto de vista diverso, mas detendo-se igualmente na análise dos elementos humorísticos, Bakhtin (2006), em seu trabalho sobre a obra de Rabelais, mostra como o riso, a paródia e mesmo o escárnio inscrevem-se de maneira indelével no tecido social, ganhando importância não apenas como forma cultural, mas também, em certa medida, como parte de um ato político. A presença do seriado humorístico mexicano “Chaves” nas práticas culturais brasileiras dificilmente poderia ser negada. Articulando-se de várias maneiras, podendo ser definido como uma voz relevante na polifonia cultural do país, sua apropriação transborda os espaços da televisão, articulando-se em inúmeras dimensões, tanto nos meios urbanos quanto nos espaços virtuais. Adesivos em automóveis, camisetas com as personagens do programa e eventos organizados por fãs encontram, na Internet, a contrapartida em sites dedicados ao tema, discussões e com uma vasta circulação de imagens, originais ou adaptadas por fãs, nas redes sociais. Transmitido de maneira praticamente ininterrupta pelo SBT desde 1983, o programa não despertou a atenção dos estudos acadêmicos até o início dos anos 2000, quando passou a ser, ainda que de maneira tímida, tematizado em alguns

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artigos e mesmo em uma tese de doutorado. Essa presença pode encontrar, de saída, duas justificativas. De um lado, a longevidade da transmissão, a audiência permanente e sua inserção dentro das referências culturais e o novo fôlego obtido pelo programa dentro das redes sociais sugerem sua importância no sentido de contribuir para a compreensão das práticas de recepção midiática no contexto brasileiro. Por outro, se durante certo tempo, como recorda Edgar Morin (1998, p. 235), “o estudo dos fenômenos desacreditados é ele próprio desacreditado; o estudo dos fenômenos julgados frívolos é julgado frívolo”, por outro lado é possível encontrar atualmente uma consistente tradição de análise desse tipo de artefato cultural, boa parte dela derivada ou em diálogo, aliás, com textos dos Estudos Culturais ou da Teoria das Mediações ou mesmo com as análises pioneiras de Umberto Eco (1995). A longevidade do seriado no Brasil e as ramificações de sua presença em outras modalidades de apropriação cultural não comportam uma explicação simples, e, até certo ponto, desafiam interpretações redutoras dentro das teorias da Comunicação. Uma perspectiva, ainda que panorâmica, da compreensão de seu sucesso demandaria um conjunto de investigações envolvendo desde a busca genealógica por suas matrizes culturais, observando nelas a interlocução entre várias vozes específicas, desde os referenciais do humor, como Charles Chaplin e o também mexicano Mario Moreno, o “Cantinflas”, até suas ligações com o contexto sóciohistórico latino-americano, no qual se insere e com o qual dialoga. O fato de se tratar de um programa humorístico, e apropriado culturalmente de maneira igualmente satírico-jocosa, instiga a observação dos recursos usados para a criação do humor. Este texto identifica algumas das estratégias discursivas de construção do humor no seriado mexicano “El Chavo del Ocho”, transmitido no Brasil pelo SBT

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desde 1983, com o nome de “Chaves”, na tentativa de delinear algumas das propriedades que auxiliem a compreender algumas razões da longevidade de sua presença televisiva e sua apropriação criativa pelos telespectadores. A partir da observação sistemática dos episódios da série disponíveis em DVD comercial, procurou-se delinear os recursos empregados na construção de situações cômicas. Em termos metodológicos, buscou-se identificar os elementos recorrentes no humor. O marco teórico da análise do material empírico pauta-se, de um lado, na perspectiva comunicacional da produção de efeitos cômicos exposta sobretudo por Décio Pignatari. Secundando esse autor, procura-se, sem pretensão a exaustividade, dedicar algum espaço inicial à problemática do humor enquanto fenômeno cultural – e, portanto, comunicacional. O texto está organizado em três partes. Em primeiro lugar, em considerações a respeito do cômico e do riso, especialmente como forma de comunicação; em seguida, passa-se a uma breve contextualização do programa “Chaves” e suas apropriações nos espaços extra-televisivos. Finalmente, parte-se para a análise das estratégias de construção do humor a partir de exemplos representativos tomados de episódios diversos do seriado.

As dimensões críticas e sociais do humor Em um texto de divulgação filosófica, Cathcart e Klein (2008) propõem um paralelo entre certos tipos de humor e a filosofia no sentido de que ambos, em algum momento, surpreendem a audiência com uma conclusão bastante diferente da esperada a partir das premissas dadas. Em sua comparação, eles equiparam a “punchline” de uma piada ou anedota ao “insight” filosófico: nos dois casos, o

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efeito é de supresa na medida em que a linha de pensamento esperada é subitamente invertida, ou ao menos desviada, e levada para um caminho completamente inesperado – é o espaço no qual se provoca o riso, na piada, ou a reflexão, na elaboração filosófica. O espanto parece ser, nos dois casos, a chave de aproximação. É possível sublinhar o elemento cognitivo presente nos dois casos, necessário para a compreensão tanto de uma piada quanto de um raciocínio filosófico, na medida, sobretudo, em que ambos se valem de uma progressão de argumentos e enunciações para se chegar a um conclusão que, embora cause surpresa nos dois casos, o faz por razões diferentes – na piada, o absurdo ou o grotesco da conclusão aparenta ser exatamente o contrário da solução lógica de uma argumentação filosófica. A aproximação permite igualmente identificar, no humor, um potencial para a reflexão, algo demonstrado pelo senso comum no questionamento sobre a compreensão do giro discursivo presente quase sempre no final de uma piada ou anedota. A ausência da percepção da comicidade pelo interlocutor e da resposta esperada, o riso, implica no questionamento da apropriação cognitiva das linhas de raciocínio (“Entendeu a piada?”) e, diante de uma eventual negativa, na necessidade de explicá-la. Zilles (2003, p. 84) recorda que o humor pode “elevar-se aos domínios da compreensão filosófica da existência”, na medida em que, entre outras características, “dissimula o sério sob aparências lúdicas”. Evidentemente não se deve levar a comparação muito longe, na medida em que nem todo tipo de humor efetivamente busca o recurso de uma complexa elaboração cognitiva. As propriedades relativas ao riso variam conforme o contexto cultural, econômico e social – se o riso e o humor, de maneira geral, parecem ser uma característica comum a todos os seres humanos, as maneiras de provocá-lo, aponta Evans (2004, p. 10) divergem conforme a cultura na qual se está inserido.

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A surpresa, na construção do humor, caminha pari passu com a repetição. Uma ação repetida três vezes e frustrada em todas elas tende a provocar o riso por conta de seu elemento grotesco ou ridículo – a propriedade de rir de situações embaraçosas ou mesmo perceber o ridículo de uma situação simplesmente por sua existência parece ser uma das características humanas. Como recorda Evans (2004), há indícios de que a percepção das emoções seja uma constante universal humana, mas sua demonstração está ligada a aspectos culturais específicos, o que explicaria as diferentes reações diante de uma mesma manifestação de humor. Ainda do ponto de vista cultural, derivando uma argumentação exposta por Pierre Bourdieu (1980) em seu clássico trabalho “A distinção”, seria possível dizer que o consumo de cada tipo de humor, ao trazer em si a objetivação de um tipo de gosto relacionado à determinada classe é, em si, um elemento de distinção, isto é, do estabelecimento de fronteiras simbólicas entre os agentes sociais. Essa distinção revela-se no discurso do senso comum referente à classificação “intuitiva” – na medida em que, seguindo a percepção de Bourdieu, é fruto da ação não percebida nem calculada decorrente de um habitus – do que é um humor “inteligente” ou “sutil”, em um extremo da escala, e o humor “grotesco” ou “apelativo” no extremo oposto, incluindo, nesse discurso, a definição dos espaços simbólicos ocupados, por exemplo, pelo gosto por humor “pastelão”, com ênfase na gag corporal, e do humor intelectualizado, dependente de um repertório ou capital cultural específico para sua apreensão. A raridade da percepção do humor garante um elemento de distinção no gosto para determinados tipos de comicidade – opondo ao refinamento de um humor referente a um alto capital cultural o humor considerado grotesco/grosseiro de percepção imediata, no qual a surpresa cognitiva mencionada tende a se apresentar de maneira mais direta. Assim como em outras situações de apropriação cultural, o gosto por determinados tipos de humor vincula o indivíduo a espaços delimitados dentro de

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um mercado de bens simbólicos. Nesses espaços, o valor específico de uma determinada prática é construída e legitimada em termos relacionais conforme o espaço social no qual o indivíduo se movimenta. O ato de rir de uma piada no qual o objeto de comicidade fundamenta-se em uma questão étnica ou religiosa, será considerado correto ou incorreto de acordo com o campo no qual se está e do todo das práticas culturais desse espaço. A construção da comicidade, em termos culturais, dificilmente pode ser desligada de suas condições específicas de apropriação e consumo. Isso decorre dos vínculos sociais necessários para se produzir o efeito cômico, na medida em que o humor, enquanto discurso, está ligado aos espaços sociais de sua produção e ao prestígio social de seus alvos – não por acaso, em um conhecido livro de introdução à Sociologia, o pesquisador norte-americano Peter Berger (1997) toma a falta de piadas sobre sociólogos (em contraste com a profusão de piadas sobre advogados) como indício da falta de reconhecimento da disciplina no meio social. Essa perspectiva cultural insere-se na discussão a respeito da universalidade da mensagem cômica. Em que medida é possível ultrapassar distâncias temporais e culturais no ato de provocar o riso é uma das questões em aberto tanto na Comunicação quanto na filosofia, na medida em que, sendo altamente referencial e dependente de um contexto específico para funcionar, o humor pode, de um lado, estar indelevelmente vinculado aos espaços nos quais é produzido; no entanto, por outro lado, é possível encontrar uma miríade de situações parecidas em culturas diferentes o que, se não permite sugerir elementos universais – questão talvez mais próxima da Antropologia do que da Comunicação – ao menos possibilita entrever as condições de significação de uma mensagem em contextos afastados no espaço e no tempo. A poética do humor no seriado “Chaves” caracteriza-se pela pluralidade de recursos empregados e, ao mesmo tempo, pela economia de meios utilizados para a

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criação dos momentos cômicos. De um lado, nota-se o emprego constante de trocadilhos e mal-entendidos nas interações verbais entre as personagens, ao mesmo tempo em que o grotesco e o estereótipo, representados na forma de um humor corporal bastante acentuado, é uma das características principais. Ao lado, mas em menor proporção, há um elemento de crítica social presente no humor do seriado, tornando cômicas situações que, em outro tipo de representação, poderiam ser trabalhadas de maneira séria. Sem a pretensão de esgotar as variedades dessa poética, mas apenas sublinhar alguns dos recursos mais evidentes, este último item dedica-se a compreender algumas faces dessa poética, responsável pelo sucesso do seriado há pelo menos cinquenta anos. Note-se que um exame detalhado demandaria um entrecruzamento de perspectivas teóricas fora do escopo deste texto. As referências, aqui, procuram se situar em relação à perspectiva metodológica de análise.

O contexto ficcional da criação do humor No início de cada episódio de “Chaves” o telespectador é apresentado a uma situação relativamente estática. O cenário principal é o pátio de uma “vila” de baixo poder aquisitivo. Vê-se em geral as portas das casas que a compõe – ao longo dos episódios, o interior de alguns desses imóveis é revelado como espaço de ação dramática –, um tanque de lavar roupas, algumas plantas e um barril. No decorrer

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da trama fica-se sabendo que há um “outro pátio”, secundário, que será espaço de algumas ações. Nessa vila mora um garoto de oito anos chamado Chaves. Seu “esconderijo” é o barril – embora fique ambíguo se mora lá, uma vez que, aparentemente, não tem família. Insinua-se que ele more no apartamento nº 8, mas esse espaço nunca é exibido. Seus amigos são o menino Kiko, filho de Dona Florinda, e Chiquinha, filha de Seu Madruga. Dona Florinda, viúva de um oficial da Marinha, recebe pensão do governo, enquanto Madruga sobrevive como trabalhador informal – em certo episódio isso é definido como “trambiques” ou “bicos”. A esse núcleo de moradores soma-se uma solteirona, Dona Clotilde, chamada pelas crianças de “bruxa do 71” em referência ao número de seu apartamento; Senhor Barriga, senhorio das casas da vila, e o Professor Girafales, que ensina na escola pública local. Personagens secundárias, como Nhonho, filho de Seu Barriga; Popis, sobrinha de Dona Florinda ou a vizinha e sua sobrinha Paty tem participações episódicas. Cada uma dessas personagens tem características físicas e psicológicas bastante salientadas e, até certo ponto, esquemáticas, com pouquíssimos conflitos internos ou mudanças significativas. As roupas são exatamente as mesmas em todos os episódios, assim como os cenários. A interação entre as personagens é igualmente pautada em esquemas de repetição contínua: é possível esperar situações praticamente iguais em todos os episódios, às vezes dentro de um mesmo capítulo. As características das personagens são bastante nítidas e raramente há momentos de conflito ou hesitação. Chaves está disposto a brincar, é rude no trato e está sempre com fome; na falta de brinquedos, improvisa com vassouras, madeiras e outros materiais. Kiko é um menino mimado pela mãe – que o chama de “Tesouro” – e, com poder aquisitivo relativamente maior, eventualmente adota um comportamento esnobe. Chiquinha, a mais esperta das crianças, geralmente

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arquiteta as aventuras. Dona Florinda é rude e autoritária, exceto com o filho e com o Professor Girafales; busca aparentar um status que talvez já tenha tido; Seu Madruga, sempre desempregado, procura contornar a situação com bicos e eventuais trabalhos informais. Algumas personagens têm seus sintagmas específicos, responsáveis em vários momentos pelas interações cômicas entre elas. Esses sintagmas, geralmente utilizados até o limite da caricatura, servem também como referências para a compreensão de situações pelo espectador. Não por acaso, na visão de Bergson (2001, p. 88), a repetição é uma das características principais do processo de criação do cômico. Esses sintagmas servem-se às vezes de expressões completas, como no caso de Chaves, a expressão “Tá bom, mas não se irrite”, empregada quando alguém se indispõe com ele, até à beira da onomatopeia, como na expressão de indignação usada por Professor Girafales, “tá tá tá tá tá!”, no qual há um crescendo na ênfase dos fonemas. A presença de ações pautadas no caráter de cada um deles é um dos traços específicos do seriado. Algumas situações de interação entre as personagens são típicas, repetidas em uma boa parte dos episódios, independentemente do enredo específico. Por exemplo, em uma situação típica, Chaves está interagindo com Seu Madruga por um motivo qualquer, vinculado ou não ao enredo principal de cada episódio, e comete um erro. Seu Madruga, por conta disso ou ao tentar castigá-lo, atinge involuntariamente Kiko, que, chora ou chama sua mãe. Dona Florinda acode e, sem procurar saber o que houve, dá uma bofetada em Seu Madruga. Um episódio típico do seriado “Chaves” tende a seguir uma fórmula bastante esquemática, baseada na interação das personagens com base em suas características principais. Em geral há um eixo condutor do enredo, em cada episódio, garantindo o desenvolvimento da ação – pode ser desde uma personagem

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com gripe até a chegada inesperada de um ator famoso de televisão por conta de um problema em seu carro. No entanto, esse tende a ser o único fator de novidade em cada episódio, em torno do qual são repetidas as mesmas gags dos outros. Raramente o plot principal altera essas interações secundárias, e rupturas ou alterações nas condutas das personagens são ainda mais raras. As progressões de tempo raramente são expostas. Pode-se deduzir que a maior parte da ação ocorre durante o dia e próxima a alguma refeição. Essa única inferência temporal deriva do fato da personagem Dona Florinda aparecer, de tempos em tempos, com uma panela escaldante, como se estivesse preparando comida. Também não há eventos que pontuem essa passagem, como nascimentos ou casamentos. Ao contrário das séries norte-americanas contemporâneas, na qual as mudanças, progressões, entrada e saída de personagens na trama constituem um fator essencial, o tempo em “Chaves” é essencialmente cíclico – no sentido de uma espécie de atemporalidade que serve de pretexto para um eterno recomeçar das mesmas situações, conceito utilizado por Eco (1995) ao falar de uma “mitologia” nas histórias em quadrinhos: as situações se repetem à exaustão, com mínimas diferenças, na ilusão de um presente eterno. O passado das personagens é explorado em um único episódio, no qual se testemunha a chegada de Chaves à vila, o nascimento de Chiquinha e a partida do pai de Kiko, capitão da Marinha, para a viagem na qual seu navio naufraga. Dentro desse universo relativamente limitado, desenvolvem-se as tramas, baseadas, em boa parte, em situações cotidianas, trabalhando com a perspectiva de uma “comédia de erros” derivada de fatores diversos, conforme o episódio. Uma das estratégias de representação do cômico no seriado decorre das características das próprias personagens. Uma forma comum da interação entre as personagens, usada como espécie de premissa para a construção das situações de

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humor, é a dificuldade mútua de compreensão e, portanto, de comunicação. Parte significativa dos “erros” nos episódios decorre de dificuldades de comunicação – sobretudo por Chaves, mas também pelas outras personagens –, garantindo a dinâmica das tramas a partir da compreensão enviesada de significados. Como define Cardoso (2009, p. 65), destaca-se “o uso do pensamento concreto, em que não se confere sentido figurado aos discursos, sendo que o efeito cômico, nesse caso, se dá pelo jogo de palavras”. Pode-se inferir que, disso, decorre uma dificuldade caudatária das diferenças de repertório entre as personagens: enquanto o Professor Girafales e Seu Barriga têm certa escolaridade, as outras personagens não demonstram ter ido além das séries escolares iniciais. Um diálogo entre Seu Madruga e o Professor Girafales ilustra esse desnível, sempre retratado em chave de humor. Seu Madruga: “Pois é, é que essas crianças são uns verdadeiros poliglotas!” Professor Girafales: “São o quê?” Seu Madruga: “Poliglotas, esses das cavernas”. Professor Girafales: “Trogloditas! O senhor não sabe o significado do vocábulo ‘troglodita’?” Seu Madruga: “Eu não sei nem o significado do vocábulo ‘vocábulo’!”

Ao longo dos episódios, com exceção de Girafales, todas as outras personagens demonstram essa caraterística. Em um episódio, por exemplo, o mote, repetido no diálogo entre várias personagens, indica isso: Seu Barriga: “Você sabia que só os idiotas respondem uma pergunta com outra pergunta?” Dona Florinda: “É mesmo?”.

As limitações de comunicação entre as personagens parece ser uma dos componentes principais da poética do humor em “Chaves”. Os mal-entendidos e as

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situações deles decorrentes não poupam nenhuma personagem – exceção, como notado, a Girafales – e servem como uma espécie de denominador comum a todos os episódios. No entanto, o humor de “Chaves” não se pauta exclusivamente nesses elementos, mas em formas que transcendem os diversos enredos. É o tema do próximo ítem.

O humor como criação da/na linguagem Em estudo a respeito dos elementos poéticos da Comunicação, Décio Pignatari (1977. p. 14) indica de que maneira a composição de significados está relacionada, entre outros elementos, à intersecção entre dois eixos de produção da linguagem. Tendo como ponto de partida não apenas a linguística saussuriana, mas sobretudo a semiótica peirceana temperada por incursões na linguística de Jakobson, Pignatari observa, na formação da linguagem, a necessidade de uma lógica estabelecendo a relação entre as palavras. Essa lógica de organização da linguagem refere-se a uma organização, familiar sobretudo aos leitores de Sausssure, mas também de Barthes, nas escolhas lexicais entre dois eixos principais, o sintagmático e o paradigmático. O eixo sintagmático refere-se às combinações entre elementos diferentes feitas por contiguidade, isto é, por proximidade entre eles. O eixo paradigmático, por sua vez, constrói-se na associação por similaridade ou semelhança entre os elementos. A lógica da linguagem, sobretudo da linguagem cotidiana, apoia-se sobre as relações entre esses dois elementos. No entanto, como observa Pignatari, na comunicação poética a relação entre esses eixos não precisa necessariamente seguir as linhas de uma lógica cotidiana, no sentido comum esperado de frases e palavras; ao contrário, é característica da comunicação poética alterar as relações entre os eixos sintagmático e

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paradigmático na elaboração de formas inesperadas, criativas, de uso da linguagem. Nesse sentido, lembra Santaella (1996, p. 37), “a fonte do humor não está na harmonia e na concórdia”, e a surpresa responsável pelo humor, na poética discursiva do programa, nasce da ruptura com a harmonia lógica esperada do texto. O caso da comunicação poética do humor implica, nesse sentido, a abertura inclusive para a introdução do absurdo na elaboração das relações entre os eixos da linguagem, permitindo, na surpresa, o efeito cômico. A introdução do inesperado na poética do humor deriva da alteração das relações de similaridade e contiguidade, seja substituindo uma pela outra, seja na eliminação de uma delas ou mesmo no estabelecimento de uma relação ilógica – e, portanto, distante do uso comum da linguagem – entre os componentes. No exemplo a seguir, há um deslocamento do eixo paradigmático na substituição de uma categoria de substantivos por outro similar, mas de significado completamente diferente: Seu Madruga: “Quer tomar um gole?” Professor Girafales: “Não, obrigado. Sou abstêmio”. Seu Madruga: “E o que tem a ver a religião?”.

A poética da linguagem está também na elaboração de formas novas como modalidades de se compartilhar mensagens conhecidas. Nesse sentido, se a produção da linguagem poética é fruto de uma elaboração artística, por outro lado seria possível dizer que toda a produção de linguagem feita no sentido de dar conta de significados desconhecidos a um dos interlocutores refere-se também a um esforço de criação. A invenção de palavras pela criança, por exemplo, poderia ser encaixada nessa lógica poética de preencher eventuais vazios de sentido decorrentes de seu ainda incompleto domínio da linguagem para dar conta de interações cotidianas. Em vários momentos o efeito cômico é provocado por uma elaboração estranha ao esperado, como no diálogo entre Chaves e Seu Madruga:

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Seu Madruga: “Chaves, você não sabe o que é o pranto?” Chaves: “É o marido da ‘pranta’?”.

A associação por similaridade feita por Chaves no interior do eixo paradigmático, embora seja enquadrada, na trama, como um indício da falta de repertório da personagem, revela, no entanto, um processo de criação poética a partir da associação sonora entre “pranto” e “pranta”, o que resolve, na trama, seu problema de compreensão. Da mesma maneira, no eixo paradigmático, a tentativa de resolver um problema a partir do desvio semântico caraterizado pela criação resulta em um efeito cômico. A interação entre Kiko e o Professor Girafales é um dos exemplos: Professor Girafales: “Quais as tribos que habitavam o Vale do México?” Quico: “Os astecas”. Professor Girafales: “Muito bem, muito bem. Quais outras?” Quico: “Os caratecas? Os discotecas? Os bibliotecas? Os hipotecas! Os melecas? Não deu”.

A paranomásia é obtida pela aliteração paradigmática das expressões relacionadas ao fonema “ecas”. O riso é provocado, no entanto, por se tratar de uma escolha paradigmática baseada não na substituição de significado, mas meramente fonética – em termos semânticos, todas as expressões estão muito distantes de “astecas”, a resposta correta. Dentro do eixo sintagmático, um dos recursos mais utilizados na poética do humor no seriado é a elipse, geralmente usada para deixar em vazio uma referência a determinadas características das personagens. A omissão de um determinado trecho de fala remete a uma trama de significados que, sem ser explicitada, causa um efeito cômico exatamente por sua ausência, provocando o riso pela combinação

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inesperada, às vezes contraditória, entre o implícito e o explícito no sintagma. O diálogo entre Dona Florinda, Kiko e Seu Madruga utiliza esse recurso: Seu Madruga: “Velha grosseira!” Kico: “Ouviu isso, mamãe? Te chamou de velha e de grosseira!” Dona Florinda: “E você liga pra isso?” Kico: “Mas é que a senhora não é grosseira!”.

O efeito cômico deriva da assumpção omitida na fala de Kiko que, indiretamente, transforma sua indignação perante a ofensa de que a mãe foi vítima em cumplicidade implícita com um dos atributos, a velhice. A omissão inverte o sentido esperado, provocando, na surpresa, o efeito de humor. Algo semelhante acontece no deslocamento por elipse de uma referência ao significado construído no eixo sintagmático pela alteração no significado de uma expressão. Assim, em um diálogo entre Kiko e Dona Clotilde, o referente paradigmático “idade” é substituído bruscamente pela referência a um jogo de futebol, causando um efeito de surpresa: Dona Clotilde: “Eu não sou nenhuma velha, ouviu? Fique sabendo que eu acabo de passar dos quarenta e cinco”. Kiko: “Do segundo tempo!”.

A omissão da referência está vinculada à aproximação com o cômico na medida em que, enquanto uma das personagens procura estabelecer de maneira direta sua idade, o outro utiliza uma referência ao tempo de duração de uma partida de futebol, embora sem dizer diretamente isso, para indicar a idade avançada da outra – o término do jogo ou, em outra intepretação, ate uma sugestão de noventa anos de idade.

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Há dois outros elementos presentes na comunicação poética do humor no seriado “Chaves”. As distorções nos eixos paradigmático e sintagmático são orientadas, em termos estéticos, por duas categorias específicas que merecem uma breve pontuação. Trata-se das noções de “crítica” e “grotesco”. O espaço da crítica social no seriado é um substrato sutil e permanente. Embora raramente o problema seja explicitado (como, por exemplo, em uma cena na qual Dona Clotilde, Chiquinha e Dona Florinda discutem o problema da fome enquanto comem biscoitos; ao passo que Chaves, com fome, as observa sem ser convidado para compartilhar a comida), trata-se de uma situação potencial de crítica e conflito. Trata-se, afinal, de uma criança em situação de rua como protagonista, vivendo em um barril em uma vila relativamente pobre no subúrbio mexicano. Seu Madruga, desempregado, sobrevive de biscates eventuais. Dona Florinda, viúva, é a que tem o melhor padrão de vida, mas, ainda assim, bastante modesto. Como observa Binotti (2012), nenhum núcleo familiar é completo: Dona Florinda e Seu Madruga são viúvos, a esposa de Seu Barriga está sempre “viajando a negócios” e as outras personagens são solteiras e vivem sozinhas. Desse pano de fundo aparentemente pouco propício à criação de humor, Bolaños extrai situações cômicas que, entre outras coisas, se materializam parcialmente na linguagem verbal e visual das personagens. Nas palavras de Santaella (1996, p. 37), “aquilo que é mais fundamental ao cômico, entretanto, brota de sua conversão da discórdia em originalidade”. Ou, como recordam Marques e Oliveira (2012) em trabalho sobre charges, o potencial crítico do humor está presente em várias dimensões. O substrato de conflito e crítica do seriado materializa-se no discurso do programa apenas em alguns momentos, mas é uma espécie de substrato constante, tendo, inclusive, aspectos de referência contextual para a composição das situações cômicas.

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Esse jogo poético depende, até certo ponto, da familiaridade do telespectador com as características do programa no sentido de conseguir compreender a referência implícita na fala de uma personagem. A repetição, nesse sentido, tem a propriedade de permitir inferências rápidas dos telespectadores na direção da compreensão das elipses presentes. Assim, em qualquer diálogo, é necessário levar em consideração as características das personagens constantemente lembradas pelas outras: Chaves e Kiko são “tontos” ou “burros”, Chiquinha é “baixinha”, Seu Barriga está muito acima do peso, Dona Clotilde tem idade avançada, dentre outros elementos recorrentes na trama. O diálogo entre Chaves e Chiquinha exemplifica esse ponto: Chaves: “Sim, porque o que você tem de anã, eu tenho de tonto!” Chiquinha: “Quer dizer que eu sou um micróbio?”

O mesmo acontece quando, por conta da inferência permitida pela interação textual entre as personagens revela-se, nos subtextos, o que efetivamente um pensa do outro – algo sabido pelo espectador, mas explicitado apenas em situações de humor. Esse recurso é utilizado na comicidade por conta de um trabalho de linguagem no qual a intenção do discurso é contraditado no mesmo instante em que é proferido. O resultado é a surpresa por conta do descompasso entre a ação discursiva, da qual participam as personagens, e o contexto conhecido pelo espectador. Em alguns casos, como neste exemplo, esse procedimento fica explícito: Professor Girafales: “Esta representação teatral foi montada e dirigida pelo Seu Madruga. Mas, por favor, não caçoem dele. Talvez a vocês o trabalho dele pareça tolo, inútil, comum, vulgar. Sim, concordo. Mas devem levar em conta que se trata de um indivíduo sem nenhum preparo, de um pobre

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diabo que nem sequer concluiu o primário, de um infeliz que mal aprendeu a ler e escrever”. Seu Madruga: “Por favor, professor. É que não gosto de ser elogiado em público”.

O que seria uma defesa da personagem, ou ao menos uma justificativa, torna-se, pelo artifício da inversão de sentido do discurso em relação ao contexto, um ataque imprevisto e, portanto, cômico. O diálogo é permeado de ironias, recurso cômico por excelência, que, na visão de Mueke (1995), constitui-se uma forma não apenas de criar o cômico, mas também de ressaltar as eventuais contradições de uma situação.

Considerações finais As características do humor, em suas várias dimensões, parecem ser objeto de investigação desde o início da Filosofia, ramificando-se posteriormente em inúmeros outros campos do saber. A construção do humor no seriado “Chaves”, do ponto de vista comunicacional, pauta-se por uma constante reinvenção da linguagem dentro de situações, paradoxalmente construídas, a partir de constantes repetições. Essa poética do humor é secundada por elementos corporais de expressão que tendem, em muitos aspectos, ao grotesco como forma criadora da comicidade. Se, como recorda Bergson (2001), a linguagem, o grotesco/paródico e o social estão entre os componentes fundamentais do humor, a longevidade do seriado na televisão brasileira, bem como sua articulação com outras práticas culturais, poderia ser compreendida como resultado, entre outros fatores, da conjunção desses três elementos.

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Inserido em uma realidade social latino-americana dos anos 1970, o seriado dialoga com temas ainda contemporâneos a partir de uma linguagem que não demanda um repertório específico, mas, justamente por conta de sua simplicidade aparente, parece ter a capacidade de lidar com situações e problemáticas que, transpostas para um registro cômico (BERGSON, 2001, p. 72), são objeto tanto de riso quanto de crítica – ou, na tradição do ridendo castigat mores, um riso crítico de si mesmo.

REFERÊNCIAS

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Dossiê Cinema e Audivoisual

A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE – VER E SER VISTO EM NARCISO DE DANILLO BARATA

THE AUDIOVISUAL LANGUAGE AND INTERACTIONAL PRATICES IN VIDEOART – SEE AND BE SEEN IN NARCISO OF THE DANILLO BARATA

Regilene Sarzi Ribeiro Pós-Doutoranda em História e Artes do vídeo pela Unesp. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC. Artista plástica e Docente. Bauru, SP, Brasil. Email: sarziart@yahoo.com.br


Resumo: O artigo trata da linguagem audiovisual e das praticas interacionais na videoarte por meio da analise do vídeo Narciso, de Danillo Barata. A pesquisa objetivou um estudo dos regimes de visibilidade, interação e sentido, dos simulacros do corpo fragmentado e da atuação do corpo como um operador do sentido do sujeito, analisando a figuratividade e a plástica no discurso videográfico. Os resultados da pesquisa apontam para um conjunto de relações entre o corpo e os procedimentos sintáticos e semânticos da linguagem audiovisual que configuram o simulacro do corpo fragmentado. Estes procedimentos revelam que a mediação entre o corpo e o audiovisual incide na forma de praticas interacionais entre sujeitos que reiteram o funcionamento da percepção visual humana. A visão múltipla da realidade e o ver e ser visível por meio do vídeo configura o audiovisual como um meio expressivo e comunicacional capaz de construir múltiplos corpos em um todo de sentido. Palavras-Chave: Linguagem audiovisual. Práticas interacionais. Regimes de visibilidade. Videoarte. Narciso. Danillo Barata. Abstract: The article deals with the audiovisual language and interactional practices in video art through the analysis of video Narciso, Danillo Barata. The research aimed to study the regimes of visibility, interaction and sense of simulacra fragmented body and the body acting as an operator of the sense of the subject, analyzing figurative and plastic in speech videographer. The survey results point to a set of relationships between the body and the procedures syntactic and semantic audiovisual language that configure the simulacrum fragmented body. These procedures show that the mediation between the body and focuses on the visual form of interactional practices between subjects which reiterate the functioning of human visual perception. The multiple view of reality and see and be visible through the video sets the visual as a means of expression and communication can build multiple bodies in a whole way. Keywords: Audiovisual language. Interactional practices. Regimes of visibility. Video art. Narciso. Danillo Barata.


No princípio era a Imagem No principio era a imagem. O homem criou a câmera e ela era imagem, e a imagem era o homem. No principio era vídeo, e o corpo era imagem, o vídeo era o homem – videoarte. Em meados dos anos de 1960 surge um modo artístico de uso do vídeo filiado à arte conceitual e às linguagens do corpo: a videoarte. Esta irá se desenhar como experiência e descoberta de si mesmo e do outro, o homem à imagem e semelhança da câmera videográfica. Aspectos conceituais como a relação de proximidade entre enunciador e enunciatário foram sendo paulatinamente conhecidos e expostos, como a sensação de intimidade e ou exposição de detalhes causada pelos enquadramentos fechados e fragmentados promovidos pela linguagem do vídeo. Imediatamente percebeu-se que esta intimidade e ausência de privacidade eram dadas pela presença do corpo que tem a câmera voltada para o registro de si mesmo em situações privadas e reservadas. Estas ações são deflagradas pelo registro dos gestos do artista e permitem que a obra possa ser fruída durante a sua realização e a partir do momento em que se dá o próprio ato gestual de criação da obra. A partir da videoarte, corpo e vídeo experimentam a relação dialógica do ver e do mostrar-se um ao outro, uma vez que tanto o corpo quanto o vídeo (câmera) realizam o ato comunicativo de troca e mediação, tornando-se sujeitos aptos a ver e mostrar. O regime de visibilidade, uma das bases teóricas que se operacionalizou nesta pesquisa, descreve os papéis dos sujeitos operadores do discurso audiovisual como sujeito visível e sujeito do ver: aquele que se coloca em evidência para se tornar visível, aquele que capta as imagens e aquele que se Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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coloca a ver, respectivamente, os quais assumem estes papéis operacionais por convencimento e sensibilidade. O semioticista francês Eric Landowski assegura que “[...] o sujeito virtualmente observável irá fazer-se ver, organizando o dispositivo requerido para a captação do olhar de um observador potencial” (LANDOWSKI, 1992, p. 89), mediado pela câmera de vídeo que organiza a relação entre o corpo que se mostra e o corpo daquele que o vê. Essa organização do dispositivo videográfico pode ser depreendida pela analise dos procedimentos de interação que processam a construção dos regimes de sentido no audiovisual e como postula Landowski (2009) são quatro: programação, manipulação, ajustamento e acidente. Nas formas de interação por programação, os seres humanos interagem como seres sociais organizados como executantes programados em função das necessidades das máquinas de produção de sentido, máquinas a serem operadas por programações. O homem lança mão das mídias para se comunicar cuja constituição sintáxica e semântica perpassa mecanismos técnicos e maquínicos que organizam o uso de linguagem midiática e por meio do regime de programação, enunciador e enunciatário são programados para operarem sobre e com os procedimentos técnicos disponíveis no dispositivo videográfico. A segunda forma de interação, cujo procedimento operador do sentido se denomina manipulação, pressupõe relações entre os sujeitos que ultrapassam o tecnológico e a operação do maquínico, para lançar bases interacionais subjetivas da ordem da intencionalidade estratégica. Para que os sujeitos envolvidos no ato comunicativo acreditem que é preciso interagir com aquele sistema linguístico para comunicar-se e dar sentido à vida, são manipuladas suas competências modais que mediam interações volitivas entre um fazer fazer, por meio de um que faz o outro querer fazer. A persuasão e convencimento do si e do outro são operados por contratos estabelecidos entre os sujeitos em interação e podem ser fundados na fidúcia e veridicção baseadas na confiança e Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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na fé, autenticadas pela crença na certeza da veracidade de tais relações em processo. De outro lado, as interações discursivas podem explorar, no arranjo plástico e pela competência do enunciador, a instauração do sujeito que assiste a obra (enunciatário) como coparticipante da construção do sentido do discurso, por meio de um fazer sentir. Estamos diante do regime de interação por ajuste. O ajustamento se dá por procedimentos destinados a articulações e interferências de uns com os outros na prática das interações concretas. No ajuste o regime de interação se dá em função do que os sujeitos sentem e na maneira de atuar como coparticipantes ou adversários na construção de sentido. Os sujeitos descobrem, ao se ajustar uns aos outros, que na experiência sensível podem ocorrer fenômenos inesperados de dimensão corporal sentida por ambos e relatados como o acaso, o inusitado, denominado pelo semioticista como acidente. Nos discursos artísticos os sujeitos experimentam a descoberta de sentidos para além daqueles vividos cotidianamente e estes são definidos como acidentes. No acidente o procedimento de interação ocorre por meio de eventos estéticos marcados por sensações puras, efêmeras, pontuais, sublimes ou catastróficas e os ajustes entre os actantes perpassam efeitos de deslumbramento e encantamento, ou aflição e dor, frente ao inusitado e inesperado encontro consigo mesmo, mediado pela arte.

Ver e se tornar visível em Narciso de Danillo Barata No vídeo Narciso (2000), o artista Danillo Barata tematiza o mito de Narciso publicado no livro Metamorfoses, um dos textos mitológicos mais ilustres do ano 08, considerado a obra magna do poeta Ovídio. Com Narciso, Danillo participou da mostra coletiva Terrenos exibida em agosto de 2000 no Instituto Goethe da Bahia. Atualmente, o vídeo pode ser Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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encontrado no site do artista1 . O vídeo Narciso marcou a primeira participação de Danillo como protagonista de suas performances. Nele o artista trata da relação do espelhamento e do narcisismo como sintomas do homem e da sociedade contemporânea. Como relata Danillo: Acredito que esse trabalho trata não só da vaidade do autor, mas também do que é ser artista na contemporaneidade. A relação narcísica com a sociedade de consumo e a necessidade de espelhamento foram determinantes para o conceito da obra. O enfrentamento com o corpo e a relação com o espelho determinaram o olhar para o diálogo conceitual do trabalho. Narciso foi a minha primeira experiência formal em vídeo. O interesse por expressar o rompimento e a apropriação de minha própria imagem foi determinante para o início da pesquisa com o corpo. A despeito da fotografia e do filme, existem outras maneiras de capturar a imagem. O espelho é a principal forma de inspecionar o nosso corpo; quando a câmera e o vídeo substituem o espelho, temos a body art, a arte do corpo. A imagem no espelho era eu mesmo e mais alguém. Interessava-me, sobretudo, como experimentar minha vontade de tratar de um mito grego que trazia muito do universo contemporâneo, e que se amarrava a conceitos atuais como espelhamento e reflexão. É importante relatar que eu experimentei uma forte relação com o meu corpo por estar posando e misturei isso a uma tradição do autorretrato. (BARATA, 2009 s/p).

O que está em jogo é a intenção do artista, um conceito ou uma ideia que se desenvolve tendo como meio a linguagem do vídeo explorado como linguagem e registro visual de ações da arte conceitual como performances, happenings e intervenções. Por outro lado, estas ações se dão por meio da linguagem do corpo e uma vez registradas e gravadas pelo vídeo permitem o reconhecimento de traços enunciativos deste ou daquele uso da linguagem videográfica. Desde a sua origem o vídeo produzido por artistas resulta da exploração do audiovisual para além dos usos comuns do meio para documentários, notícias e outros campos da comunicação. Há de se destacar que a videoarte irá se

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delinear como um modo artístico de uso do vídeo, uma vez que técnicas artísticas e processos de criação podem ser ricos na construção de textos para televisão comercial, mas ainda assim serão produções diferentes da Arte por conta de sua intencionalidade. Neste contexto, a videoarte é arte e comunicação. A videoarte filiada à arte conceitual e às linguagens do corpo será, sobretudo, objeto comunicacional resultante da confluência das mídias audiovisuais. Outro aspecto proeminente das performances concebidas para o vídeo é o fato de serem realizadas quase sempre pelo próprio artista. Colocar o próprio corpo como matéria artística da obra lhe confere um status de locus da obra, despertando interesse por sua personalidade, biografia e ato criador. Esta questão da identidade do enunciador e suas relações com a autoreferencialidade é discutida por teóricos como Rosalind Krauss (1978) e Kátia Canton (2004). Krauss defende que a autoreferencialidade transforma a obra videográfica em autorretratos permeados pela “estética do narcisismo”, o que para Canton se define como “espelho do artista”. Para Canton (2004), o autorretrato desenvolve-se com a arte pelas diferentes épocas, embora o “autorretrato” na contemporaneidade esteja carregado de significados para além da ordem temática que revela uma presença cotidiana, encontrada em toda parte tanto na autorreferencialidade do sujeito como no constante diálogo com o mundo e com o outro, que aqui se destaca pela mediação da imagem eletrônica. Rosalind Krauss (1978), por sua vez, faz uma análise mais acentuada do comportamento psicológico e cultural da autoreferencialidade nas obras de vídeo que têm os próprios artistas como protagonistas. Krauss levanta algumas questões pertinentes à presença do artista e sua relação com os dispositivos eletrônicos e discute o porquê do vídeo ser considerado um “médio” potencialmente mais mediador entre o sujeito e o mundo do que as demais linguagens artísticas. Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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No texto Vídeo: the aesthetics of narcissism, publicado pela primeira vez em 1978, Krauss ressalta o espelhamento causado pela câmera de vídeo e pelo nível de mediação gerado pelo corpo, que se posiciona entre os dispositivos tecnológicos: câmera – corpo do artista – monitor. Agora, essas são as duas características do uso diário do "médio" que são sugestivos para uma discussão de vídeo: a recepção simultânea e a projeção de uma imagem, e a psique humana usada como um canal. Porque a maioria dos trabalhos produzidos ao longo de um período muito curto de existência da videoarte usou o corpo humano como seu instrumento central. No caso de trabalhos em fita isso tem sido na maioria das vezes o corpo do artista-praticante. No caso de instalações de vídeo, tem sido geralmente o corpo do espectador que responde. E não importa qual corpo foi selecionado para a ocasião, há outra condição que está sempre presente. Ao contrário das outras artes visuais, o vídeo é capaz de gravar e transmitir ao mesmo tempo, produzindo um feedback instantâneo. O corpo é, portanto, como se fosse centralizado entre duas máquinas que são a abertura e o fechamento de um parêntese. A primeira dessas aberturas é a câmera, a segunda é o monitor, que re-projeta a imagem do intérprete com o imediatismo de um espelho. (Tradução nossa). (KRAUSS, 1978, p.45).2

A produção videográfica de Danillo Barata discute temas recorrentes na arte contemporânea que conservam um caráter social e político à crítica artística por meio de obras que falam de africanismo, escravidão, identidade, questões sociais e políticas impostas ao corpo. No que diz respeito à singular relação de suas obras com as tecnologias contemporâneas de produção de imagens e sons, fica claro que o artista busca relacionar corpo e sociedade, corpo e coletividade como lugares simbólicos de atuação e transformação das relações humanas. A 2 Now

these are the two features of the everyday use of 'medium' that are suggestive for a discussion of video: the simultaneous reception and projection of an image; and the human psyche used as a conduit. Because most of the work produced over the very short span of video art's existence has used the human body as its central instrument. In the case of work on tape this has most often been the body of the artist-practitioner. In the case of video installations, it has usually been the body of the responding viewer. And no matter whose body has been selected for the occasion, there is a further condition which is always present. Unlike the other visual arts, video is capable of recording and transmitting at the same time producing instant feedback. The body is therefore as it were centered between two machines that are the opening and closing of a parenthesis. The first of these is the camera; the second is the monitor, which re-projects the performer's image with the immediacy of a mirror. (KRAUSS, 1978, p.45) Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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linguagem expressiva para essas discussões é o vídeo e as instalações que exploram o campo e a comunicação audiovisual na contemporaneidade. A vaidade e a autoimagem, o retrato de si mesmo e como tornar o vídeo um meio de expressão destas relações tem sido uma constante nas obras de Danillo Barata, que também demonstra preocupação com o corpo e os ideais de beleza impostos pelo universo da moda, da indústria da beleza e da publicidade. Isto justifica o fato de algumas de suas discussões envolverem o corpo modelado pelas mídias, que impõem padrões de beleza inatingíveis até tornar cada vez mais legítimas as representações de mitos televisivos e imagens efêmeras. Tal fenômeno caracteriza a obsolescência do corpo e o homem passa a sentir constantemente a necessidade de atualizar seu corpo segundo estes modelos, numa corrida desenfreada por padrões cada vez mais inalcançáveis e distantes, que geram um imenso vazio aproveitado pela Publicidade e pela Moda, para gerar desejo e consumo. Este vazio potencializa a eterna insatisfação do homem moderno e o leva ao consumismo e à busca de novos modelos. Neste sentido é que Danillo conduz suas proposições artísticas, explorando a linguagem audiovisual como meio de expressão e comunicação. Na análise do vídeo Narciso (2000) destacam-se as relações semissimbólicas e o sincretismo das linguagens. As primeiras descrições revelam peculiaridades da construção axiológica do vídeo, sobretudo, no que diz respeito à aproximação com a topologia visual e sonora e a figuratividade do corpo resultante dos enquadramentos da câmera. Logo nas primeiras imagens observa-se que os créditos são colocados sobre os closes do rosto do artista para que texto e imagem componham juntos os primeiros recortes do corpo. Estes closes do rosto, de meio corpo, ombros e pescoço se movem muito rapidamente da esquerda para a direita da tela do vídeo, e vice-versa como retalhos do artista, recortados pelo enquadramento da câmera, ora pela esquerda, ora pela direita. A imagem é colorizada por filtros transparentes e muito suaves que tingem a imagem e mudam de cor suavemente como se fossem véus coloridos Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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que velam o corpo mostrando-o, mas não claramente. Estes véus, ou melhor, filtros coloridos se alteram numa sequência constante que variam do rosa, lilás claro, azul, verde, amarelo e laranja ao cinza, preto e branco. O recurso técnico de edição de imagens pós-filmagem permite explorar as sobreposições de imagens. No vídeo Narciso essa edição é usada com maestria para gerar efeitos de figura e fundo, transparências e justaposições de figuras, como a imagem de um crânio projetada sobre o rosto do artista enquadrado em diferentes posições por closes da câmera e imagens pictóricas de texturas e cores variadas sobrepostas. Estes recursos acentuam o ensimesmar e o velar exibicionista e narcisista. O procedimento técnico de enquadramento tem papel determinante na figuratividade do corpo neste vídeo, como se observam nos closes fechados que cortam e retalham o rosto e o corpo masculino que aparece no vídeo. Do rosto aos ombros e do tórax ao rosto, as cenas se compõem num vai e vem da câmera que realiza um trajeto de descrição do corpo em pedaços expostos por close-up e enquadramentos fechados, que expõem o corpo por suas partes: olhos, nariz, boca, orelha, a face e o rosto, todos retalhados pelos closes fechados. Na descrição da topologia visual destacam-se as relações entre a figuratividade do corpo e os recursos audiovisuais de pós-produção como a edição que caracteriza a construção de sentido pelo editor, que reconstrói as sequências narrativas e o caminho a ser trilhado pelo destinatário rumo à interação com a obra videográfica. Nota-se que o rosto é figurativizado o tempo todo por grandes closes e primeiros planos bem fechados, que exibem detalhes. Isso demonstra a intenção da câmera em retratar o corpo aos pedaços tomando como recurso o enquadramento fechado. O enquadramento define uma primeira opção estilística do destinador, o qual se impõe no vídeo por meio da câmera como aquele que sabe seu papel de mostrar e exibir o ângulo pelo qual se verá este corpo: por detalhes, em partes. Esta opção plástica de construção das cenas, muito mais pelos enquadramentos fechados do que pelos enquadramentos Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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abertos, configura também uma primeira e importante característica estilística da linguagem do vídeo explorada pelo destinatário: a fragmentação. Na descrição das categorias eidéticas, cromáticas e matéricas (OLIVEIRA, 2004) observaram-se um conjunto de relações que atribuem tensão, estilo e diálogo intertextual do vídeo com outras linguagens, como a pintura. Na analise estas relações permitem a constatação de que o audiovisual se compõe a partir das demais linguagens plásticas, como o gráfico e o pictórico das artes visuais, para manipular códigos visuais comuns à topologia eidética de formas e cores que permitem a descrição dos regimes de visibilidade e construção de sentido no plano de expressão. Dessa forma, na topologia eidética tem se a descontinuidade das formas causadas pelos enquadramentos fechados da câmera em contraposição à continuidade da plástica suave e aquarelada gerada pelos filtros de colorização digital. Este cromatismo é elemento estrutural da linguagem audiovisual e assume um diálogo com a linguagem pictórica por meio do tratamento de aquarela dado às imagens. A colorização digital da imagem, por meio de filtros coloridos que alteram a cor do quadro videográfico durante o vídeo e a percepção de um modo geral da pele do rosto suavemente colorida, remete à tematização do corpo que se transforma suavemente como pinturas aquareladas que detalham sinais de expressão, manchas naturais da pele e cicatrizes do tempo. As imagens coloridas delicadamente não agridem o corpo e nem atrapalham a visualização e reconhecimento das partes que permanecem sendo alteradas pela colorização suave de rosas e verdes, azuis e cinzas, como um efeito que altera artificialmente um corpo já marcado naturalmente pelo tempo. As cores são usadas para destacar o corpo do actante que se exibe por meio de detalhes ou dos olhares que troca com a câmera e, também, velam a cor natural da pele humana tornando-a mais ou menos perceptível, como um tecido velado e parcialmente exibido. Os filtros em preto e branco são usados nas cenas em que o corpo do actante é mostrado pelo enunciador, por meio da sobreposição Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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de outras imagens, para ser objeto do voyeur como a figurativização de uma corrente sanguínea e a colorização esverdeada e escura que alteram a textura e a materialidade do corpo, que se reconhece alterado. O que se vê em cena é a cor natural, cor de pele alterada constantemente ao longo do vídeo por filtros coloridos, tonalidades alteradas que têm nas cores da arte, aquarelas e véus de cores, o elemento atuante na transformação de um sujeito que se torna objeto ao receber a ação do dispositivo audiovisual. Os efeitos de luz e sombra, que resultam dos focos de luz que incidem sobre o corpo do actante no vídeo, exibem um corpo contornado por formas musculosas que tematizam a força e a beleza do corpo masculino e reforçam a busca do narcisismo para ser objeto do voyeur. Os enquadramentos das cenas se dão por closes da câmera que entra pelas extremidades do quadro do vídeo, adentrando as cenas pelas laterais da tela do vídeo para se revezar: ora pela esquerda, ora pela direita, ora por debaixo da tela, ora entrando por cima do quadro. A câmera se posiciona frontalmente e enquadra o rosto por meio de um primeiro plano, ora figurativizando um enquadramento clássico como o fotográfico ¾, ora um enquadramento de perfil ou de lado como a pose feita por prisioneiros para reconhecimento em presídios. A câmera de frente enquadra o rosto, depois o corpo se vira e a câmera o enquadra agora de perfil. A câmera se move para enquadrar o rosto do nariz até a boca, depois volta e sobe até os olhos, e em movimentos rápidos registra em detalhes as partes do rosto caminhando por elas. Quando a câmera se aproxima do rosto os olhos do actante olham fixos para fora da tela do vídeo, depois quando a câmera se afasta o actante olha para cima e para baixo, relacionando o seu olhar com o exibir do seu corpo, ora mais próximo, ora afastado. Os zooms e as panorâmicas dialogam com o exibir velado e o voyeur. Isso ocorre quando o corpo é mostrado por meio de uma panorâmica e o actante reforça detalhes como músculos e tórax exibindo-os em posições de frente ou perfis sem encarar a câmera. Por outro lado, quando a câmera se aproxima por meio de zooms, para detalhar o contorno da boca e dos olhos ou mesmo de Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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partes como músculos dos braços ou das costas, o actante se exibe com mais parcimônia. Este comportamento revela a ação de um sujeito que se exibe encabulado e ensimesmado, querendo se mostrar e se esconder ao mesmo tempo. A velocidade com que a câmera caminha pelas partes do rosto, olhos, nariz, boca e orelhas, chama a atenção e marca o ritmo frenético em que cenas são sobrepostas às partes do rosto no espaço videográfico. Quando o corpo se movimenta e muda de posição de um lado a outro e também rapidamente, esta movimentação gera um efeito de projeção do contorno do corpo, que na realidade, é visto por inúmeros outros contornos gerados pela movimentação rápida do mesmo. O que se vê é um corpo ampliado por estes inúmeros contornos vistos como se fossem corpos desfocados, tal como ecos da imagem que se desdobra no tempo e no espaço do quadro videográfico. Esse movimento é também uma ação de mostrar-se velado, porque altera o contorno que se faz ver esfumaçado e deformado, na medida em que quer ser visto embora se mostre indefinido. As cenas figurativizam um corpo cuja irradiação de seus contornos o projeta para fora de si mesmo como se a vibração gerada pelos movimentos bruscos de seu próprio corpo o levassem a sair de si mesmo. Isso por conta da velocidade com que se move e como é filmado, somado aos movimentos suaves da câmera que se desloca da esquerda para a direita caminhando pelo corpo suavemente. Este contraste, entre os movimentos bruscos do corpo e os movimentos suaves da câmera, gera um descompasso entre as velocidades do corpo filmado e do dispositivo que o filma. Este descompasso parece tematizar um desacerto entre o corpo natural e o corpo cultural que imprimi um valor a esta relação. Em suma, o sistema axiológico do vídeo Narciso (2000) se constitui por meio das relações entre os procedimentos de exibir-se e mostrar-se, ver e esconder, se tornar visível e ao mesmo tempo velar ou não mostrar-se totalmente por meio de procedimentos audiovisuais de corte e continuidade das Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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cenas que operam estes sentidos. Os pares de oposição /totalidade/ versus / parcialidade/ e /continuidade/ versus /descontinuidade/ se fazem presentes pelo plano de expressão na homologação no plano de conteúdo da categoria semântica /exibir/ versus /velar/.

As práticas interacionais na videoarte: estesia e contagio No vídeo Narciso (2000), sujeitos compartilham um corpo narcisista modelado pela sociedade contemporânea na forma contraditória de um corpo liberto, mas, também, preso, corpo narciso que se constrói pelo olhar do outro sobre si mesmo, olhar este edificado pelo compartilhar de uma identidade narcisista que só se vê a si próprio. O corpo contemplador acompanha o sujeito exibicionista no seu deixar-se ver em detalhes, observa a textura da epiderme do corpo e os sinais de expressão da pele do rosto do homem jovem que se anuncia diante da câmera de vídeo. Quem se coloca na frente da tela do vídeo passa a olhar um rosto masculino cuja proximidade do enquadramento aproxima quem está olhando de quem está se exibindo. Esta proximidade faz tocar o corpo pelos olhos, pelo nariz, delineado e grande, e pelas formas curvas da boca que dirigem o olhar observador novamente para os olhos, círculos pequenos e sensuais, marcados por fortes sobrancelhas grossas de pelos escuros. Por meio destes detalhes o actante, sujeito do ver, é iniciado no ato ritualístico de voyeurismo, constatando que o enunciador lhe apresenta um rosto de homem visto de perto e de perfil em um grande close. Este enquadramento amplia seu contato tátil com o corpo de fora da tela pra dentro da tela. De igual modo, o voyeur se atenta para os detalhes físicos do rosto masculino que são bem desenhados por traços fortes marcantes da sensualidade e da juventude. Aquele que quer ver observa no corpo o cromatismo e este altera a cor da pele e dos detalhes do rosto por meio dos efeitos pós-filmagem de filtros Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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coloridos. Estes recursos tornam o corpo um corpo cromático visto através de suaves aquarelas transparentes, que contrastam com traços de masculinidade e atraem os olhares dos que estão de fora da cena. O corpo masculino se mostra ora de frente, ora de lado, ora de costas ou de meio corpo. Depois do pescoço para baixo até o peito, parte do tórax em detalhe e pelos músculos dos braços, ombros e pescoço. Dessa forma, é visto por aquele que se coloca frente ao dispositivo da tela videográfica dando início ao comportamento de ver e mostrar, onde ambos os sujeitos são movidos pela estesia de sentir-se no outro. Essa disposição para olhar o outro, quando na realidade o que se quer ver é a si mesmo, acompanha as mudanças corpóreas na materialidade sentidas um no corpo do outro. Isso ocorre pelo despertar visual das cores, entre outros recursos da sintaxe videografica, que se alteram com o tratamento pictórico de colorização explorado pelo enunciador. O corpo que analisa o outro se depara com as experimentações figurativas projetadas sobre as imagens do corpo masculino: sobreposições de crânio, corrente sanguínea, cores e texturas que lembram vegetação, superfícies terrosas e rochosas. Estas experimentações mantêm o entusiasmo de ver um corpo masculino em constante mutação. O sujeito em interação é manipulado e assediado escolhe permanecer saboreando a beleza natural das formas e a perfeição exuberante do corpo: sentidos despertados pela experiência estética e estésica que a tecnologia lhe proporciona. A suavidade das cores aquareladas dos filtros ou os efeitos de deslocamentos e esfumaçamentos ao redor de si mesmo geram efeitos estéticos que prendem o outro nos movimentos rápidos do corpo de um lado para outro. O indivíduo, que ali permanece escravo do olhar preso pelo desejo do corpo do outro, se depara com um corpo masculino, belo e viril que se desloca no espaço e no tempo movendo-se entre o exibir-se e o velar-se de forma brusca e acelerada, para representar a força e a coragem da sua espécie a ponto de se deformar ou tomar outra forma para velar o ato de mostrar-se. Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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O observador reescreve a sua trajetória como um corpo social ao acompanhar a narrativa descontínua do corpo do outro, o qual se constitui na continuidade e no movimento de se expor e se esconder diante do convívio social privado que constantemente o torna um corpo público. O sujeito do ver começa a experimentar esse deslocamento, que também é a causa do esfumaçamento do contorno de sua personalidade. O corpo em deslocamento ora quer se exibir socialmente, ora precisa velar sua presença nas relações com os outros e talvez fosse o caso de fazer como Narciso: ora se mostrar inteiro, para ser visto como é, ora veladamente. Esse mesmo deslocamento frenético do corpo, entre o exibir e o velar, é figurativizado no vídeo e experimentado pelo contemplador por meio das sombras projetadas na superfície branca por detrás da qual o corpo do homem permanece a se mostrar. O movimento brusco do corpo desfoca não só o contorno, mas, também, as sombras projetadas por ele. Uma massa sombreada de um corpo amorfo gera a sensação de ausência da forma e a percepção do corpo é alterada na medida em que o sujeito do ver observa manchas, borrões e fantasmas como uma presença de outro que não se via ou se sentia antes, mas que ali agora se revela, em decorrência da agitação e da intranquilidade do actante em cena. É como se este corpo se deixasse ver por diferentes ângulos e de diferentes formas porque assim se sente o corpo social, grupal: um corpo múltiplo e fragmentário, que se faz coletivamente por meio da singularidade dos sujeitos. O corpo implicado no ato de ver é conduzido ao despertar de suas competências estésicas por um corpo de cores suaves embora impactantes que realiza movimentos bruscos e arrebatadores presentificado por imagens que se definem por transformações visuais e por relações dissimuladas. O olhar do contemplador é conduzido a experimentar a agitação do corpo de um lado a outro e a passear por regiões indefinidas na tela do vídeo em busca de um encontro consigo mesmo, a fim de saborear o contato com a superfície e a tez de um corpo bem de perto. Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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Dessa maneira, será levado a deslocar seu corpo para cima e para baixo, a sentir o esfumaçar dos contornos de seus músculos e ainda vislumbrar o estranhamento de se tornar um corpo colorido, corpo aquarela que altera sua constituição biológica na imagem: simulacro de identidade corporal projetada para afetar-se com o reconhecimento mimético de detalhes do corpo filmado. Um corpo de costas se exibe para aquele que o vê com as mãos entrelaçadas sobre a nuca. Privado de movimentar-se, o corpo se apresenta como um sujeito inibido e desprovido de liberdade. Aquele que o sente experimenta a privação de liberdade em seu corpo ao ver e sentir a prisão do corpo do outro que de costas se exibe arqueado e com a coluna inclinada, deformada, coibido e martirizado pelo ato de penúria em que se encontra. O outro, que posso sentir em mim, é um corpo exuberante e sem roupas, provocador, que pelas costas faz despertar o desejo do outro. O outro, apreciador que tudo quer ver, se encontra com um corpo que se coloca em posição de luta, embora se apresente prisioneiro de si mesmo por sua condição narcisista. Essa imobilidade permite que o voyeur caminhe livremente pelo seu corpo, e ao sentir sua privação o voyeur se satisfaz não só com o ato de olhar e invadir a privacidade alheia, mas com o sofrimento e penúria do outro. O corpo que é apreciado entrelaça as mãos e as coloca sobre o pescoço em sintonia com o movimento realizado pelo exibicionista, em sinal de rendição. Este que olha ora se aproxima do corpo ou ora se afasta para ver mais ou para ver menos detalhes, mantendo contato junto com o corpo ou separado. Esses contatos despertam sua sensibilidade tátil e sua percepção estésica corporal que o levam a permanecer olhando e experimentando estesicamente um corpo aprisionado pelos enquadramentos da tela. O enunciador e o actante do fazer ser visível manipulam o sujeito que quer ver e este se reconhece por meio da plasticidade do corpo do outro no mesmo momento em que compartilha com o outro o sentir do seu corpo. Aquele que compartilha com o outro o seu próprio corpo divide esteticamente suas escolhas plásticas, acentuando a beleza e o dizer verdadeiro, mas também a Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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apatia e a condição de aprisionamento figurativizado por um corpo idealizado e transformado pelos papéis sociais a ele impostos. Este corpo narcisista se constitui no texto audiovisual por meio do espelhamento e reconhecimento de si mesmo encontrado no corpo masculino que, mesmo alterado, é submetido ao sentimento de beleza e solidão diante de outros corpos, coparticipantes da busca de sua condição narcisista. Quando o corpo exibicionista projeta no vídeo sua fala por meio da audição, além de mostrar-se fisicamente, o sujeito do ver é implicado na enunciação como sujeito do falar, do sonoro e experimenta o ato da linguagem sonora e verbal por meio do corpo do outro. Na linguagem falada se reconhece humano e se reconhece um ser de linguagem. Por outro lado, o corpo colorido é a presença identitária de um corpo alterado pelo contato com a mídia e, como corpo pintura é experimentado materializado por texturas pictóricas de rochas e superfícies minerais como mármore: corpo abstrato. Neste contexto, os olhos detêm um papel estésico fundamental no vídeo Narciso, uma vez que esta parte do corpo do homem é explorada em diferentes sequências do vídeo não apenas para figurativizar um órgão natural do corpo, mas, também, um órgão construído socialmente. O olho do contemplador leva o seu corpo a ver os olhos de Narciso inteiros ou retalhados pela tela, à esquerda ou pela direita, sendo sua presença interpretada como objeto do olhar, mediador do corpo visto e do corpo que vê: órgão socialmente reconhecido como instrumento voyeur, com o qual se experimenta a si próprio por meio do outro. O cinetismo e a metalinguagem do olhar em Narciso podem ser pontuados como categorias semânticas complementares do ver e ser visto na qual a experiência estésica, que leva o corpo ao sentido sentido, é vivida através de um corpo em constante devir, um corpo que se projeta no tempo e no espaço deslocando-se pelos olhares, porque sofre as alterações do ir e vir de diferentes posições e angulações do ver. Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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O corpo sentido é o simulacro da presença do homem no mundo que se constitui pela identificação com o sentir destes olhares e pontos de vista de diferentes ângulos usados para ver e se mostrar socialmente. Esses olhares múltiplos são gerados pelo cotidiano dos corpos no seu exibir social e estimulados culturalmente nas esferas sociais. Com isso, o contágio com o corpo narcísico será vivenciado estesicamente pelos corpos actantes na exuberância das formas sensuais e viris do corpo identificadas através do espelhamento de si mesmo e do outro, em contraste com a deformação e aprisionamento do mesmo e perante o exibicionismo do corpo e atração do voyeur. Como Narciso, o voyeur se contagiou e viveu o seu corpo no corpo do outro: um corpo inteiro sentido em um corpo em partes, um corpo detalhes em um corpo pintura. O voyeur é agora o olho que se reconhece em um corpo amorfo, desfocado, embaçado, deslocado, apático, cabisbaixo, languido, mas, acima de tudo, um corpo ensimesmado. Um corpo que sentiu o sentido de si mesmo na presença do outro e que no final, de tanto se exibir, acabou por se encontrar em si mesmo, ensimesmado, e como sujeito singular descobriu-se como essência coletiva e social.

No fim era a imagem Na relação entre o ver e o visível, entre o mostrar-se e o ser visto é que se define a identidade do sujeito. O que se vê (figuratividade do corpo) é o que se sente (materialidade do corpo). O corpo sentido fragmentado irá se expressar por partes e se constituíra enquanto sujeito por meio da parte/fragmento. Quanto mais o corpo se expõe e mais é figurativizado pelas mídias, mais se fragmenta e se multiplica em vários que só fazem sentido pelo discursivizar da parte reconstruída em um todo de significado. Neste contexto, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (2006) parte do principio de que ver um objeto é o mesmo que possuí-lo em dois momentos: inicialmente por suas partes e depois, no seu todo. Primeiro superficialmente é Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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observado o seu redor, o seu contorno, sua forma básica, para depois o olhar ancorar-se nele e num movimento mais profundo penetrar o seu interior sentindo a sua materialidade, textura e volume pela tatilidade. A tatilidade é um aspecto da percepção visual que coloca em ação o tato, seja pelo tocar ou tocarse por meio da visão. O corpo que se põe a olhar mesmo estando parado movimenta-se até o objeto e nele habita, residi e ocupa para instalar-se. A visão se dá em dois atos, duas fases: primeiro se olha a paisagem e o todo ao redor do objeto e na sequencia se olha apenas para o objeto e para a sua essência. “Olhar o objeto é entrar-se nele, um não pode se mostrar sem esconder outros” (MERLEAUPONTY, 2006, p.104). A percepção do mundo se dá por meio de um ajustamento entre o tato e o cinético (movimento) que instalam o corpo permitindo que o mesmo entre em interações com o mundo através do visível, que se dá a ver por consonâncias entre o tátil e o cinético. Na concepção de Merleau-Ponty, o corpo é um todo de sentido e que como tal se relaciona com os objetos como um todo composto de múltiplos olhares: “[...] se deve haver aqui um objeto absoluto, é preciso que ele seja numa infinidade de perspectivas diferentes contraídas em uma coexistência rigorosa, e que seja dado como que por uma só visão com mil olhares (MERLEAU-PONTY, 2006, p.107)”. Segundo Merleau-Ponty (2006), esse corpo é o “meu corpo”, o “meu ponto de vista” sobre o mundo e na experiência de ver reconheço o “meu olhar” como uma maneira de conhecer o mundo que tem nos “meus olhos” habitados, os fragmentos (partes) da matéria que vejo. Este habitar pode ser comparado ao contato com o mundo mediado pelo sensível e estésico, como postula Landowski: Na experiência estésica – esse momento em que, como escreve Michel Tournier, as coisas se revelam na sua “essência”, sem buscar outra significação que a sua própria perfeição – pode ocorrer que a realidade faça sentido de um modo quase fusional, como se o contato com “perfume” dos objetos bastasse para tornar o sujeito plenamente Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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presente ao mundo – e o mundo imediatamente significante. A convocação do sujeito pelas qualidades imanentes das figuras do mundo sensível parece então coincidir com a revelação do sentido. Desse ponto de vista, não é possível opor conceitualmente o sentir, com o seu caráter imediato, à reflexividade do conhecer, nem separá-los analiticamente. (LANDOWSKI, 2005, p.94-95).

Este corpo íntegro na experiência estésica de habitar o outro se reconhece em si mesmo como um sujeito plenamente presente no mundo e passa de objeto à meio de comunicação. Na experiência estésica, o sentido das coisas do mundo será revelado ao corpo pela experiência de habitar o mundo. Se para a semiótica do sensível esse habitar é mediado pela estesia, para a fenomenologia essa mediação se dá pelo corpo como um todo de sentido, embora o seu contato com as coisas se dê por diferentes pontos de vista porque os objetos do mundo assim se comportam e se deixam ver. A presença do corpo e dos objetos se manifesta na integralidade da matéria. Por isso o corpo se presentifica inteiro e os objetos também, mas a experiência de conhecer o mundo é fragmentada e se dá por visões múltiplas, embora simultâneas. Cumpre observar, que a experiência de habitar o outro torna o corpo um ser integral que experimenta uma visão múltipla da realidade. Essa experiência do mundo é responsável pela inversão do sujeito de objeto a corpo sensível que se toca e que se vê. Na fenomenologia o corpo experimenta a inversão do corpo/ objeto em corpo/sujeito por meio da experiência da mediação e da comunicação com o mundo, ao passo que na sociossemiotica, este mesmo corpo será um corpo actante, corpo que atua e interage com o mundo e com o outro. No vídeo Narciso (2000) a experiência da visão do corpo, do ver e do ser visto, e do habitar os objetos por uma só visão com mil olhares, é somada ao aspecto múltiplo e metonímico do vídeo. Isto comprova o fato de que a comunicação com o mundo por meio da linguagem audiovisual favorece a experiência do corpo fragmentado. Essas características do vídeo são descritas da seguinte forma pelo pesquisador do audiovisual brasileiro, Arlindo Machado: Tríade | Dossiê A LINGUAGEM AUDIOVISUAL E AS PRATICAS INTERACIONAIS NA VIDEOARTE | Regilene Ribeiro

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Em decorrência da baixa definição da imagem videográfica, a maneira mais adequada e mais comunicativa de trabalhar com ela é pela decomposição analítica dos motivos. A imagem eletrônica, por sua própria natureza, tende a se configurar sob a figura da sinédoque, em a parte, o detalhe e o fragmento são articulados para sugerir o todo, sem que esse todo, entretanto, possa jamais ser revelado de uma só vez. Decorre daí que o recorte mais adequado para ela é o primeiro plano (close up), a baixa definição e a precariedade da profundidade de campo impedem o aproveitamento de quadros abertos e a ocorrência de paisagens amplas. Isso não quer dizer evidentemente que só possam existir primeiros planos no vídeo, mas que aí todos os planos tendem para o recorte fragmentário e fechado, cujo modelo é dado pelo primeiro plano. (MACHADO, 1997, p.194).

A citação de Machado (1997) sobre o modus operandi da imagem eletrônica se aproxima do pensamento de Merleau-Ponty (2006) sobre a percepção visual do corpo, e estas se ligam á experiência estésica defendida por Landowski (2005) na medida em que a experiência de habitar o mundo é vivida por um corpo que reconstrói continuamente o seu todo de sentido por meio das múltiplas visões que tem do mundo e das coisas, tendo como mídia o corpo e o vídeo. Dessa maneira, fica claro a qualidade sensível da linguagem audiovisual que constitui tanto o corpo quanto o vídeo como sistemas de expressão e comunicação abertos que operam como fissuras na realidade e formas em vias de construção: sistemas simbólicos em edificação que mediam as práticas interacionais entre a linguagem do corpo e a linguagem audiovisual.

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REFERÊNCIAS

BARATA, Danillo. Entrevista ao Site Videobrasil On-line. Dossiê Danillo Barata. 2009. Disponível em: <http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier043/ apresenta.asp> Acesso em: 02 Mar. 2012. CANTON, K. Espelho do Artista [auto-retrato]. São Paulo: Cosac & Naif, 2004. KRAUSS, R. Video: the aesthetics of narcissism. In: BATTOCK, G. New Artists Video. New York: E.P. Dutton, 1978. p. 43-64. LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: EDUC, 1992. _____. Para uma semiótica sensível. Revista Educação & Realidade. Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. RS, v. 30, n. 2, p.93-106, jul/dez, 2005. p.93-106. _____. Interacciones arriesgadas. Tradução de Desidério Blanco. 1°. ed. Lima: Universidad de Lima, Fondo Editorial, 2009. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas. SP: Papirus, 1997. MERLEAU-PONTY. Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 3ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. OLIVEIRA, Ana Claudia de. (org.) Semiótica plástica. São Paulo: Hacker, 2004.

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A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA: ENTRE TRAMAS E DRAMAS DO SENSÍVEL

THE PRODUCTION OF MEANING IN CINEMA: BETWEEN PLOTS AND DRAMAS SENSITIVE

Dossiê Cinema e Audivoisual

Saulo Magalhães Resende* Regina Andrade** Cibele Vaz Macêdo*** *Doutorando em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na área de contemporaneidade e Processos de subjetivação, com enfoque na dinâmica organizacional do terceiro setor. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: saulomagalhães@ yahoo.com.br ** Pós-Doutora pela Université de Paris V-René Descartes. Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora visitante da Université de Pau Et Des Pays de Ladour, Campo de Bayonne em e Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. RJ, Brasil. E-mail: pospsi@uerj.br ***Doutoranda e Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora de Psicodiagnóstico e Pesquisadora da Universidade Estadural do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ. Brasil. E-mail: cibelevaz@gmail.com


Resumo: O filme Linha de Passe (2008) dirigido por Walter Salles Júnior e Daniela Thomas tem como núcleo central a trama de uma empregada doméstica com quatro filhos que mora num bairro de periferia da grande cidade de São Paulo. A obra explicita um forte anseio de seus diretores em falar sobre a realidade brasileira através da história de vida de alguns personagens, mas que por vezes esbarra numa tentativa totalizante. O objetivo deste artigo é analisar o filme sob uma perspectiva crítica, procurando problematizar como a estética e a cosmética de um espaço caracterizado Suburbano é elucidada numa tentativa de partilha do sensível no decorrer do longa metragem. Discutimos como um cinema que participa desta partilha do sensível ao produzir em suas ficções o embaralhamento das legitimidades de uma dinâmica familiar, das atividades e dos espaços, pode dar lugar a uma reconfiguração do comum para uma possível partilha do social. Palavras-chave: Partilha do Sensível. Espaço Suburbano. Estética e Cosmética da fome. Cinema Brasileiro. Linha de Passe. Abstract: The film Linha de Passe (2008) directed by Walter Salles and Daniela Thomas Jr. has the core plot of a maid with four children who lives in a neighborhood on the periphery of the big city of Sao Paulo. The book explains an intense yearning for its directors to talk about Brazilian reality through the life story of some characters, but sometimes hit a totalizing attempt. The aim of this paper is to analyze the film in a critical perspective, seeking to investigate how the aesthetics and cosmetics of a space characterized Suburban is elucidated in an attempt to share the sensitive during the feature film. We will discuss how a film that takes part in this sharing of sensitive produce in his fictions shuffling of legitimacy, identities, activities and spaces, can lead to a reconfiguration of the ordinary for a possible sharing of the social. Keywords: Sharing Sensitive. Suburban Space. Esthetics and Cosmetic hunger. Brazilian Cinema. Linha de Passe.


Olha pra mim... você está me vendo? Você está me vendo, playboy? Essa é a frase final do personagem Dênis (João Baldasserini) no filme Linha de Passe (2008), de Walter Salles Júnior e Daniela Thomas. Trata-se da história de uma família pobre constituída por uma mãe solteira e seus quatro filhos. Cleusa (Sandra Corveloni), a mãe, trabalha como empregada doméstica e está grávida. Dênis, o mais velho, trabalha como motoboy e já tem um filho. Dinho (José Geraldo Rodrigues) é frentista e evangélico. Dario (Vinicius de Oliveira), prestes a completar 18 anos, está na idade limite para conseguir realizar seu sonho de ser jogador de futebol profissional. E, finalmente, Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), o mais novo e único negro entre os irmãos, que busca insistentemente conhecer seu pai biológico, do qual sabe apenas a profissão, um motorista de ônibus. Linha de Passe explicita um forte anseio de seus diretores em falar sobre a realidade brasileira através da história de vida de alguns personagens, mas que, por vezes, esbarra numa tentativa totalizante. Olha pra mim... representa, ao final do filme, a expressão de uma família relativamente numerosa (mãe solteira, grávida, e mais quatro filhos) e que parece querer retratar traços de todo o Brasil – a paixão pelo futebol, a fé na igreja evangélica, questões raciais e de abandono e a criminalidade. O fato é que em Linha de Passe encontramos um modo de pensar e, por que não, de sentir a relação do sujeito com as mazelas da vida em um universo cosmopolita: a grande São Paulo. Com um recorte mais específico, o filme procura narrar a periferia e o seu contraste gritante com as imagens da zona sul paulistana, com seu glamour e estética que se pretendem padrões. Nessa relação, a discussão sobre o futuro e os projetos de identidade capazes de fornecer algum sentido aos atos recebem a marca do abandono social; em contrapartida, o longa enfatiza que é possível encontrar, nessas vidas carentes de maiores oportunidades, mas repletas de vigor e intensidade, a vontade de lutar e se construir, com todas as contradições próprias do humano.

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A Trama do espaço favela (suburbano), dos territórios e fronteiras Os componentes do espaço, quando se referem à urbis, são os mesmos em todo o mundo e formam um continuum no tempo, mas variam quantitativa e qualitativamente segundo o lugar, do mesmo modo que variam as combinações entre eles e seu processo de fusão. Em Linha de Passe o espaço alterna figura e fundo da problemática da carência sócio-economica-cultural. Segundo Santos (2008), vêm as diferenças entre espaços. É fato que o comportamento do espaço acha-se assim afetado por essas enormes combinações de situação geográfica e individual. Nesse sentido, o filme tem o cuidado em caracterizar a maior cidade do Brasil, São Paulo: com cerca de 19 milhões de habitantes, 200 quilômetros diários de engarrafamento e uma média 300 mil motoboys. Seu foco, porém, está na favela (subúrbio) da grande cidade e as relações que as pessoas que vivem ali estabelecem no dia a dia, à margem da grande São Paulo. A metrópole do filme é impessoal, violenta, insegura. O contraste de classes faz-se presente demarcando bem o território de cada personagem. Mas o que se entende por favela/subúrbio? Há vários termos que expressam conceitos sobre os espaços das cidades. A palavra subúrbio, etimologicamente, significa o espaço que cerca uma cidade. Tem como principal característica a baixa densidade de ocupação dessas áreas que, por essa razão, podem abrigar pequenas propriedades agrícolas, condomínios de luxo, estádios, parques, ou outro tipo de empreendimento que busque mais espaço. Com a industrialização, por exemplo, formaram-se subúrbios industriais e operários. O conceito traduz uma situação intermediária entre cidade e campo e não uma condição socioeconômica. Porém, com o crescimento das cidades, o que antes era suburbano tornou-se urbano. Conforme a mancha urbana vai se ampliando, áreas que antes se enquadravam nesses critérios, com uma intensa ocupação e urbanização, passam a se caracterizar como bairros, mas nem por isso deixam de ser chamadas de subúrbios (PALLONE, 2005). Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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Linha de Passe se passa nas ruas da Cidade Líder, bairro situado na Zona Leste de São Paulo, onde os personagens principais moram e são reconhecidos por seus vizinhos e familiares; as relações de proximidade são baseadas no auxílio mútuo, diferentemente das relações distantes e formais estabelecidas na burguesa Zona Sul da cidade. Fica claro que esse bairro onde eles vivem tem um valor para cada um deles, um significado: em uma cena do filme, o personagem Dario, ao se inscrever em um teste para uma “peneira” que escolhe os melhores jogadores para entrar no futebol profissional, afirma que mora na Cidade Líder, local desconhecido pelo responsável pela inscrição que parece preferir anotar na sua ficha o nome da cidade, São Paulo, pouco se importando com o lugar de onde o personagem veio.

Ao elencarmos as questões sobre as implicações

éticas e estéticas em torno das imagens, do ver e dos regimes de visibilidade, constatamos que tais questões não são novas e têm uma larga tradição na história do cinema e das teorias. Trazidas pelo debate midiático, tornam-se, muitas vezes, questões brutais, simplificadas e tratadas em torno de antagonismos maniqueístas. É preciso, então, restituir sua complexidade e ambiguidade, que tem como base uma investigação bem mais extensa e complexa (BENTES, 2011) . Ivana Bentes (2007), em um outo texto, aponta para o fascínio que a geografia e a paisagem do Sertão exerceram e exercem sobre o cinema brasileiro, tendo como contrapartida urbana o fascínio pelos territórios dos subúrbios e favelas. Segundo a autora, esse fascínio é combinado com expressões de horror e repulsa, sentimentos contraditórios que o cinema nunca deixou de apontar e expressar. Em grandes linhas, poderíamos colocar, de um lado, o cinema da romantização da miséria e sua contrapartida, a “pedagogia da violência”, que marca alguns filmes do Cinema Novo, até chegarmos ao contexto contemporâneo, em que a violência e a miséria são pontos de partida para uma situação de impotência e perplexidade.

Nesse sentido, Linha de Passe é

diferente, pois se passa na metrópole paulista e coloca uma questão estética básica como fundamento do enredo: como é a vida do pobre na cidade grande, repleta de anseios, conflitos, obstáculos e lutas, na legalidade ou não, para Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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realizar seus sonhos. O longa-metragem mostra a relação entre os ricos e os pobres: uma relação superficial que, em muitas vezes, a única conexão entre estes opostos é de “patrão e empregado”. Cleuza, por exemplo, é extremamente submissa à Estela, sua patroa, e elas mal se cumprimentam. Estela não deixa de ser educada, mas se percebe que a interação entre elas se dá somente em assuntos relativos ao trabalho. Refletir sobre o território implica pensá-lo nas suas dimensões simbólica e cultural, que promovem uma identidade territorial conferida por determinados grupos sociais como forma de apropriação simbólica do espaço onde vivem. A identidade territorial está simbolicamente localizada no tempo e no espaço, e tem suas “geografias imaginárias”, suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de casa/lar, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas (HALL, 2000). Dessa forma, submerso nessa estética, o longa de Walter Salles e Daniela Thomas não deixa de romantizar a miséria, que, segundo Bentes (2007), pode ser entendido com uma saída pelo ideal midiático da fama e da popularidade, na qual o filme não foge da violência e das tensões daquele território, mostrando também os diferentes agentes e mediadores nessa localidade: o desemprego, a religião e a violência nas figuras do desocupado, do religioso e do assaltante. A redenção da pobreza pela celebridade e pelo midiático pode ser entendida como signo do contemporâneo e, talvez, como marco de mudança social. É fato que os filmes brasileiros contemporâneos que falam do subúrbio ou da favela refletem um momento de fascínio por esse outro social, em que os discursos dos marginalizados começam a ganhar um lugar no mercado, onde esse teor contemporâneo favorece novos discursos. Todos eles passam a refletir o cotidiano dos moradores desses espaços, muitas vezes já estigmatizados como favelados, desempregados, presidiários, subempregados, drogados, uma marginalidade difusa que ascendeu à mídia e aparece, nessa mesma mídia, de forma ambígua. “Pobreza e violência que conquistaram um lugar no mercado como temas de um presente urgente” (BENTES, 2007, p. 248)

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No filme analisado, as fronteiras da metrópole diferenciam-se, em muito, das outras cidades: dá mais oportunidades aos favorecidos financeiramente e coloca mais barreiras aos pobres; cria um abismo enorme entre ricos e pobres; constrói falsas esperanças na cabeça das pessoas, principalmente dos pobres, que tentam passar por cima dos obstáculos e acabam valorizando planos muito difíceis de serem realizados. Por isso, a cidade grande é a culpada pelo sofrimento dos cinco familiares por causa dos grandes contrastes e preconceitos que concentra, das ideias que forma e as próprias fronteiras e barreiras que gera. Para Bentes (2007), então, passamos da “estética” à “cosmética” da fome, da ideia na cabeça e da câmera na mão (um corpo a corpo com o real) ao steadcam, a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o “belo” e a “qualidade” da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássicas.

Um cinema ‘internacional popular’ ou ‘globalizado’ cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética ‘internacional’. O sertão torna-se então palco e museu a ser ‘resgatado’ na linha de um cinema histórico-espetacular ou ‘folclore-mundo’, pronto para ser consumido por qualquer audiência (BENTES, 2007, p. 245).

Torna-se importante, então, salientar que o drama dessas questões não é novo, e sempre causa incômodo quando o cinema trata temas complexos e difíceis, como os impasses da pobreza, da violência social, utilizando-se, para isso, a linguagem do filme de entretenimento, o que Bentes (2011) define como “imagens-clichês”, folclóricas e, por que não, publicitárias, e um tipo de narrativa baseada na ação e no espetacular. Sobretudo, o que nos interessa hoje, segundo Parente (1998), enquanto possibilidade de solução é um cinema da criação que remete à afirmação do real enquanto novo, ou seja, um cinema que rompa com os modelos da representação cosmética e com os antigos ideais de verdade da indústria cinematográfica. Assim, pode-se entender que o espaço crítico, como esse texto Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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se propõe, é o operador necessário que faz do contemporâneo não um signo vazio, um significante com referência social e um porvir de novas linguagens. Quando imagens são repensadas, e até mesmo esgotadas, um novo panorama pode surgir de outras imagens que pensam as formas precedentes. Jacques Aumont (2008) afirma que “o cinema não é simplesmente uma língua, mas serve para pensar. Ou é um modo de pensar” (AUMONT, 2008, p. 23), em um momento da história no qual a discussão sobre a desigualdade social está na linha de frente de variados discursos com viés político, atrelados a uma reflexão sobre o cotidiano das cidades, o próprio cinema hoje pode ser entendido como um filamento dessa construção histórica. Das poltronas, muitas das histórias contadas, ou melhor, das imagens, narrativas e sons combinados a que assistimos são as estéticas e as cosméticas da miséria que aparecem, replicando suas existências.

A partilha do sensível no cinema “O cinema e o seu vínculo com outras mídias funciona como um produto de base da sociedade contemporânea, participando do imaginário de uma determinada sociedade e da experiência dos indivíduos.” (GUTFREIND; STIGGER; BRENDLER, 2008, p. 264). É, desse modo, uma zona de destaque na formação do imaginário social acerca das representações, inclusive das estereotipadas. Então, o que partilha Linha de Passe? Qual o movimento gerado no filme que exala a experiência dos indivíduos na nossa sociedade? Conseguimos nos ver ali, naquela narrativa, sob uma perspectiva sensível? Uma questão é fato: a Sétima Arte corrobora para o modo como a sociedade se vê, podendo ter alterações periódicas nessa percepção de acordo com alterações nos contextos sociais (SILVA, 2008). Nesse diálogo, Nova (2010) salienta que muito embora a sociedade exerça influência sobre o cinema, a relação é mútua. Ela pondera que a ação do cinema sobre os espectadores é inquestionável, mesmo que não se tenha um consenso de até que ponto ele influi sobre os indivíduos.

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Quando o cinema se propõe a apresentar uma realidade experienciada na atualidade, pode-se claramente inferir uma dimensão política e estética comunicada, tomando de empréstimo o conceito de partilha do sensível. Assim, Rancière (2005) busca afirmar uma dimensão estética da política, referindo-se, ao mesmo tempo, a duas noções: a de que existe participação em um plano comum, que dá forma à comunidade, e ao recorte desse comum sensível em partes espaço-temporais definidas: A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter essa ou aquela ‘ocupação’ define competências ou incompetências para o comum, dotado de uma palavra comum etc. (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

Esta partilha do sensível faz ver, de maneira concomitante, a existência de um plano comum sensível e espaço-temporal dos corpos, das práticas, dos discursos e dos processos de subjetivação, e a segmentação desse comum em partes definidas, seu recorte em tempos e ocupações específicas, suas relações de inclusão e exclusão, de interioridade e exterioridade, os regimes que organizam modos de ver e de dizer e que deixam folgas nas quais a negociação de sentidos é possível. No entendimento de Rancière (2005), tal partilha é algo em que incidem tanto a política como a estética pois “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÈRE, 2005, p. 17). A partilha é estética ao ser efetuada em um comum sensível, “como um sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2005, p. 16). E é exatamente essa partilha do sensível que parece permear as nuances do longa-metragem. No jogo de futebol, linha de passe é a troca de bola entre Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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os jogadores de um mesmo time. É um conceito que está em seu cerne, arraigado no ideal de cooperação mútua em prol da vitória do grupo. A linha de passe é o momento em que o jogador olha para o outro, em que abdica da posse da bola imbuído pelo ideal da coletividade. No filme de Walter Salles Júnior e Daniela Thomas, o jargão futebolístico é título e metáfora para o olhar que partilha o sensível ali na periferia paulistana. Linha de Passe trata exatamente do atravessamento entre um plano comum do anonimato, identidade e cooperação que permeia seus personagens oriundos de um mesmo grupo familiar, ou seja, uma mãe grávida e seus quatro filhos. E, dessa forma, evidencia o dito popular de que “os dedos da mão não são iguais”. No que diz respeito ao plano comum, é necessário compreendê-lo em sua singularidade. O comum não se coloca como um plano geral de igualdade e identidade entre membros, uma vez que ele não é a priori ou natural, mas algo a ser sempre constituído. É dessa forma que Rancière (2005) fala de uma estética na base mesma da política, uma compreensão que não é uma estetização da política como partido, sua captura pelo Estado ou pelo capital ou uso pela vanguarda. Ela se aproxima, antes, de um determinado regime dos recortes e das formas resultantes que possibilita e regula a relação com o sensível, que define como e o quê pode ser visto e ouvido, incluído ou excluído, compondo o próprio sentido do político.

A dinamicidade da família É assim, numa perspectiva de singularidade, que o filme narra a dinâmica familiar que se desenvolve na Cidade Líder, periferia de São Paulo. Não só a família, mas como cada elemento lida com sua existência, sua problemática e suas limitações e imaginações. Sempre nos surpreende como o diretor Walter Salles percebe a constelação de amigos e de família. Seus primeiros filmes com um “tom” de inspiração na apologética de Glauber Rocha vão se dissolvendo e

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entrando em temas mais psicossociais. Em Diários de motocicleta (2004) faz do amigo um parente; em Linha de Passe faz dos parentes, amigos. A responsável pela família é a mãe, Cleusa, que tem quatro filhos e está grávida do quinto. A personagem trabalha como empregada doméstica e é apaixonada por futebol. Seus filhos e suas relações são a essência do filme. Eles podem ser percebidos como quatro fragmentos que pulverizam e unificam a trama. Um deles é Dario que, assim como a mãe, tem predileção pelo futebol. Ele deseja se tornar jogador profissional, mas, prestes a completar 18 anos, sabe que suas chances serão soterradas com a idade adulta. “O tempo é duro com o atleta”, sentencia um potencial empregador.

Outro filho é Dinho, frentista

de um posto de gasolina. Após se converter, tornou-se um evangélico fervoroso, deixando para trás um passado obscuro. Dedica-se à sua fé com exemplar zelo e ajuda o pastor nos afazeres cotidianos da igreja. Dênis é o irmão mais velho. Trabalha como motoboy, tem um filho e luta para poder conquistar algo nas ruas de São Paulo. E Reginaldo é o caçula. Meio-irmão dos outros, não conheceu o pai. Negro em uma família de brancos, sente-se distante deles. Cleusa esconde a identidade do pai, e como a única informação que tem sobre seu genitor é sua profissão, motorista de ônibus, Reginaldo incansavelmente o procura entre os ônibus da metrópole. Ele passa horas do dia viajando pela cidade, observando os condutores, procurando algo que o identifique, buscando se reconhecer em algum. A trama do filme remete-nos às aproximações do estético ao político e a pensar a questão da arte, ou antes, as suas práticas, nas relações com as formas de segmentação e visibilidade de uma família. As formas de agir que entram em composição com outras formas, com modos de ser e modos de visibilidade vão interferindo na distribuição geral desse comum. Nesse sentido, Rancière (2005) esclarece o caráter político da arte, entendida como prática estética: a arte não é política no sentido da transmissão de mensagens, como meio de divulgação de palavras de ordem, panfletarismo, pregação ou messianismo. A estética da política não se faz por uma estetização da política – sua captura pela unicidade Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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do sentido, pela totalização da experiência, como usada nas campanhas do fascismo. A arte é política mesmo antes de qualquer tentativa nesse sentido, mesmo quando pretende se afastar radicalmente de qualquer intervenção social, de qualquer compromisso, qualquer aliança.

Sob o ponto de vista da

Psicologia Social, que estuda os grupos e agrupamentos, a dinâmica familiar tem um estatuto importante. Dentro dela, os vínculos e relacionamentos podem oferecer ao sujeito em sua formação de subjetividade todas as experiências do mundo, inclusive as da estética, o que nos é evidenciado na relação mãe e filhos apresentada pelo filme. Esse processo estético é dotado de um duplo potencial de emancipação. Por um lado, esse potencial reside na ociosidade, na recusa a qualquer forma de subordinação ou de funcionalidade, na resistência ao controle social, aproximando-se, assim, da postura do trabalhador que reivindica a si o direito ao ócio e à contemplação, à liberdade de indiferença. Por outro lado, o regime estético advoga a auto-supressão da arte em favor de sua integração plena na construção da vida comum renovada e que torna indistinta a arte e política, trabalho e lazer, enfim, promove a união dos contrários. É precisamente essa habilidade de pensar as contradições que define a estética. E é esse paradigma que atesta a ideia de uma política da arte que independe mesmo da vontade do artista de refutá-la ou de fazê-la servir a uma causa política. Com Linha de Passe, Walter Salles e Daniela Thomas procuram olhar o Brasil e tentar traçar um entendimento sobre o país do ponto de vista subjetivo, no interior de uma família difícil. Há uma tentativa de reinvenção, de autorresignificação e, por que não, de transformação. E a transformação, para eles, está atravessada pela noção de identidade, visibilidade, pertencimento familiar. Seja a de Reginaldo, que não consegue se reconhecer na família e necessita ser reconhecido e reconhecer o pai, negro como ele; seja a de Dinho, que se entrega à religião para ser visto por Deus, que se dedica a cada culto a testemunhar um milagre que nunca chega; seja a de Dênis que, anônimo como todos os milhares de motoboys de São Paulo, cruza a cidade em busca de uma Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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sustentabilidade que não alcança e, pior, sabe que não alcançará; seja a de Dario, que almeja vestir a camisa de um time de segunda divisão, fazer gols, ouvir seu nome na boca dos torcedores.

Considerações Finais Dentro desse viés, o longa-metragem apresenta um roteiro onde sua periferia é formada por pessoas que carregam suas belezas, suas amarguras, seus defeitos, seus crimes, suas falhas. Enfim, seus personagens nos são apresentados como pessoas com carne e sangue, algo bem distante dos estereótipos pós Cidade de Deus (2002). Na resolução de Linha de Passe, seus personagens alcançam, cada um à sua maneira, cada um na sua história, um novo paradigma. Eles não rompem com seu status social, mas alcançam alguma plenitude que justifica o título, porque é no olhar do outro e só apenas após o reconhecimento do outro, que podem ser encarados como um indivíduo. Esse outro que é a família, que mal sustenta as identidades e subjetividades de cada um dentro de sua dinâmica. Uma mãe que, mesmo sofrida, evidencia uma retidão de caráter e enfrenta com realidade sua pobreza, mas não deixa também de sonhar, de pensar no futuro e de desejar o melhor para seus filhos. E é assim, então, que o conceito de partilha do sensível pode iluminar nossa compreensão a partir de uma fronteira entre estética e política na qual podemos pensar o cinema. Essa arte que pode ser compreendida como estrutura plural que engloba produção, consumo, práticas, criatividade e diferentes valores que dizem respeito a uma sociedade específica. “Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista: é necessário que alguém faça os filmes” (BERNARDET, 2003, p. 11). Essa é a Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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primeira frase do livro Cineastas e imagens do Povo (2003), do célebre JeanClaude Bernardet. Para o autor, as imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas sua expressão, e sim a manifestação da relação que estabelece nos filmes entre cineastas e o povo. Essa relação, segundo Bernardet, não deve atuar apenas na temática, mas também na linguagem e no destino das imagens. E o que se pode chamar propriamente de destino das imagens é o destino desse entrelaçamento lógico e paradoxal, conforme preconiza Rancière (2012a), entra as operações da arte, os modos de circulação da imagem e o discurso crítico que remete à sua verdade escondida nas operações de um e as formas de outra. Assim, uma proposta do cinema com as imagens do povo, necessariamente conclama a ideia de realismo subjetivo, ou seja, uma realidade representada sem aniquilar a subjetividade envolvida nessa imagem. Um diálogo intenso do cineasta com o território do povo. Parece que o princípio unificador dessas estratégias é acionar uma dupla metamorfose, correspondente a natureza dupla da imagem estética do povo: a imagem como cifra da história e a imagem como expressão subjetiva. Trata-se, em um processo de ousadia por um lado, de transformar as produções finalizadas, inteligentes, da imageria em imagens “ditas” opacas e às vezes estúpidas, mas que interrompem o fluxo midiático. Dessa forma, Rancière (2012b) mais uma vez nos leva a refletir sobre os modos como são vistos as ambiguidades do cinema já é marcado pela duplicidade do que se espera dele: “Que suscite a consciência, pela clareza de um desvelamento, e energia pela apresentação de uma estranheza; e que revele a um só tempo toda a ambiguidade do mundo e como lidar com essa ambiguidade” (RANCIÈRE, 2012b, p. 23). Nesse sentido, o autor nos chama a atenção para a forma como o cinema projeta a obscuridade da relação que se pressupões entre a clareza da visão e as energias de ação. Ora, se o cinema pode esclarecer a ação, será talvez questionado a evidência dessa relação. Evidencia-se, nesse momento de ambiguidade, a necessidade do cinema em estabelecer diálogos polifônicos, que ao discutir um realismo dito subjetivo, Tríade | Dossiê A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA | Saul Resende, Regina Andrade e Cibele Macêdo

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parece ser fundamental uma convergência de percepções que enriqueçam esse processo representativo. Acredito então que a Psicologia Social pode se configurar com uma opção peculiar nessa fala, ampliando a construção/ desconstrução dessas formas de produções e potencializando a ideologia de um cinema brasileiro contemporâneo que, por ora, se considere (pelo menos por alguns diretores) como um cinema político que é embebido da imagem do povo.

REFERÊNCIAS

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PALLONE, Simone. Diferenciando subúrbio de periferia. Cienc. Cult., São Paulo, v. 57, n. 2, Jun. 2005. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php? script=sci_arttext& pid=S000967252005000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 Set. 2011. PARENTE, André. Ensaios sobre o cinema do simulacro: cinema existencial, cinema estrutural e cinema brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Pazulin, 1998. 172p. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005. ______. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contratempo, 2012a. ______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contratempo, 2012b. SANTOS, Milton. O espaço dividido. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. SILVA, Robyson Aalves. Cinema e Representação Social: uma relação de conflitos. Artigo apresentado no Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação / XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, 2008. Filmografia LINHA de Passe. Direção: Walter Salles Júnior e Daniela Thomas. Produção: Mauricio Andrade Ramos e Rebecca Yeldham. Roteiro: Daniela Thomas, George Mouram e Bráulio Mantovani. Interpretes: João Baldasserini, Vinícius de Oliveira, José Geraldo Rodrigues, Kaique de Jesus Santos, Sandra Corveloni e outros. [S.l.]: Universal Pictures, Diaphana, Rai, 2008, 1 filme (108 minutos). son., color., 35 mm.

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MÍDIA, COMUNICAÇÃO E CIDADANIA: UM ESTUDO DE DISCURSOS VEICULADOS NA TELEVISÃO

Dossiê Cinema e Audivoisual

MEDIA, COMMUNICATION AND CITIZENSHIP: A STUDY OF SPEECHES AIRED ON TV

Rosália Maria Netto Prados

Pós-Doutora em Ciências da Comunicação pela USP. Doutora em Semiótica e Linguística Geral. Pesquisadora. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rosalia.prados@gmail.com


Resumo: Este trabalho constitui-se de uma análise dos discursos manifestados em textos publicitários e de propaganda educativa veiculados na televisão, para uma reflexão sobre o exercício da cidadania e a cultura contemporânea. Na comunicação, diferentes discursos são produzidos e fazem parte de uma rede de significações construída pelos sujeitos, num determinado contexto espaço-temporal e sociocultural. Esta pesquisa é descritiva e fundamenta-se em estudos contemporâneos de comunicação e análise do discurso. A metodologia deste trabalho fundamentase numa análise semiótica discursiva, ou seja, é uma análise das etapas enunciativas em que o sentido do discurso é gerado. O objetivo é analisar os discursos manifestado sem enunciados de propagandas educativas veiculadas na mídia. Por meio dessa perspectiva de análise do discurso, é possível a reconstrução do processo discursivo nas campanhas político-educacionais e culturais e a descrição de valores socioculturais que caracterizam alguns aspectos da comunicação na contemporaneidade. Palavras-chave: Discursos. Cidadania. Contemporaneidade. Semiótica. Resumo: This paper presents an analysis of the discourse manifested in texts advertising and educational in TV, to reflect on the exercise of citizenship and contemporary culture. In communication, different discourses are produced and are part of a network of meanings constructed by individuals in a given spacialtemporal context and sociocultural. This research is descriptive and is based on studies of contemporary communication and discourse analysis. The methodology of this work is based on a semiotic analysis discursive, ie, is an analysis of the enunciative steps in which the sense of the speech is generated. The aim is to analyze the discourses manifested in texts of educational discourses broadcast by the media. Through this perspective of discourse analysis, it is possible to reconstruct the discursive process in education campaigns and description of socio-cultural values that characterize some aspects of communication in contemporary society. Keywords: Discourses. Citizenship. Contemporary. Semiotics.


INTRODUÇÃO O exercício efetivo da cidadania, nas práticas sociais contemporâneas, pode ser percebido por meio da linguagem e respectivos discursos da mídia, em diferentes comunidades constituídas político e sócio culturalmente. Verifica-se que é importante o papel dos veículos de informação para a divulgação dos direitos e deveres do brasileiro. Em suas práticas sociais, o sujeito é atravessado por discursos, que são processos de produção de sentidos que, por sua vez, manifestam-se por meio de linguagens verbais e não verbais nas diferentes situações de comunicação. Neste estudo, o objetivo é analisar os universos discursivos veiculados na televisão, que é um meio de comunicação de massa. O sujeito constrói sua identidade numa determinada cultura, época e lugar. É possível, portanto, discutir aspectos da cultura contemporânea e cidadania brasileira, no que se refere aos processos discursivos políticoeducacionais e culturais. A partir de relações de linguagem, nesse contexto sociocultural contemporâneo, constroem-se os universos discursivos que caracterizam essa educação não formal, que se realiza por meio de campanhas institucionalizadas ou não. Propõe-se uma análise das relações de interdiscursividade, mais especificamente, do discurso de propaganda político-educacional e cultural, já que há uma intencionalidade educativa nos textos de campanhas veiculadas na mídia, como no caso daquelas de prevenção do uso de drogas, ou de doenças sexualmente transmissíveis, dentre outras. Na contemporaneidade brasileira são produzidos vários discursos sobre cidadania, igualdade de direitos, justiça social, democracia, vontade política, dentre outros, que fazem parte de uma rede de significações construída pelos sujeitos. Segundo Pais (2005), um único e mesmo discurso pode pertencer simultaneamente a mais de um universo de discurso, caracterizando-se a interdiscursividade, de modo que um discurso publicitário, por exemplo, pode

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estar inserido num universo de discurso feminino, político, científico ou educacional. Antes de se desenvolver esta discussão sobre discursos, é necessária uma apresentação da noção de discurso, de acordo com essa perspectiva, segundo Fontanille: quando se escolhe como ponto de partida o discurso, dá-se conta rapidamente de que formas cristalizadas ou convencionais que nele encontramos estão longe de serem unicamente signos, pois uma das propriedades mais interessantes do discurso é a sua capacidade em esquematizar globalmente nossas representações e nossas experiências. Do mesmo modo, o estudo dos esquemas do discurso toma rapidamente o lugar do estudo dos signos propriamente ditos. (FONTANILLE, 2008, p. 83).

O discurso é considerado como resultado de uma expressão humana que produz sentidos, representações e experiências. Mas ainda é necessário delimitar elementos que são característicos da análise de discurso, na qual se baseiam as ideias de Fontanille. Este, portanto, refere-se à Semiótica, que tem por base a linha teórica de análise do discurso por meio da desconstrução de suas estruturas, pois a existência das "coisas" somente faz sentido por meio da produção de um discurso que lhes atribui significados, ou seja, o discurso produz sentido. Na sociedade brasileira contemporânea manifestam-se diferentes discursos político-educacionais e culturais, no que se refere à educação cidadã. E, dessa maneira, as linguagens que caracterizam a rede de comunicação, em que se mantém o sujeito contemporâneo, apresentam universos de discursos que refletem os sistemas de valores, como exercício pleno da cidadania, felicidade ou saúde, por exemplo. Segundo Pais (2000), ao longo do processo histórico, a migração de indivíduos e de grupos decorre do esforço incessante do homem, em busca da sobrevivência ou de melhores condições de vida. Fugir de situações políticas insuportáveis e procurar qualificação profissional, ou inserção no mercado de trabalho, incentivam o deslocamento de pessoas em correntes que se Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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intensificam nos dias atuais. O convívio de grupos humanos de culturas diferentes, que sustentam sistemas de valores e ‘visões de mundo’ distintas, conflitantes, no plano da ética, dos usos e das aspirações, caracteriza o contexto brasileiro contemporâneo e justificam a constituição de universos discursivos de inclusão social e do exercício da cidadania. Seguem nesta discussão a análise e descrição das relações de interdiscursividade na mídia e na cultura contemporânea, de acordo com a metodologia semiótica discursiva. A Semiótica, segundo essa perspectiva, propõe um estudo das etapas dos discursos manifestados nos textos, dos processos de construção do ‘saber social’, ou do saber compartilhado nas situações de comunicação.

Cultura e Mídia: uma discussão sobre Semiótica discursiva Numa cultura, os discursos constituem redes de significação e estão inseridos num processo dinâmico. Por exemplo, um signo pode ser motivado por um determinado fato social, numa determinada época e espaço, e produzir sentidos únicos nesse determinado contexto. Isso também explica por que um discurso pode ser aceito e é reforçado pelos meios de comunicação, por exemplo, os discursos político-culturais, no atual contexto e, a partir deste, o renascimento de uma obra literária, que pode possibilitar outras leituras e pesquisas ou estudos e tornar-se significativa ou sedutora depois de muitos anos. Pode se dizer, portanto, que o gosto por um determinado romance renasceu, depois da (trans)formação pela palavra ou pelo discurso. O discurso de propaganda na televisão, nesta análise, como o de prevenção de doenças é um discurso social não-literário, ou seja, é produzido por um sujeito coletivo e dirigido, também, a um sujeito coletivo, ou grupos sociais. É um discurso que pode ser analisado de acordo com uma linha da Semiótica, que é a Sociossemiótica, descrita mais adiante, após a metodologia semiótica de análise do discurso que se segue.

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A Semiótica é uma ciência da significação, ou da interpretação, já que a transmissão, a conservação, a transformação e a aprendizagem da cultura realizam-se por meio das práticas sociais que, por sua vez, organizam-se segundo processos discursivos. Pais (2005) afirma que processos discursivos que integram o complexo linguístico e sociocultural de uma determinada comunidade só funcionam caso se conservem, para assegurar a intercompreensão dos sujeitos, e caso se modifiquem para responder às novas necessidades de comunicação, por isso são atos de re-criação. Na análise semiótica, são considerados alguns aspectos do processo da produção e transformação do conhecimento realizado pelo sujeito cognitivo, isto é, o processo da elaboração do mundo discursivamente construído pelo sujeito. Sistemas e discursos são determinados historicamente e delimitados geograficamente, pois a visão de mundo de uma comunidade sociocultural e linguística, bem como sua ideologia e sistema de valores, acha-se sempre em processo de (re)formulação e um constante processo de vir a ser. Paradoxalmente, esses sistemas e respectivos discursos transmitem a seus membros o sentido de estabilidade e continuidade, ou melhor, os processos culturais são apreendidos no convívio social, uma vez que, as diferentes linguagens (linguagem verbal, música, gestualidade, literatura, artes etc) são particulares em cada sociedade.

A metodologia de análise semiótica discursiva Em sua metodologia de análise, a Semiótica não trata somente do signo, mas da significação, que pode ser entendida como uma relação de dependência entre o plano do conteúdo, de significados e sentido de um signo, e o plano da expressão, significantes e parte material do signo. A significação, também, pode ser entendida como os processos de significação, que se armazenam na memória, recuperam-se e se transformam permanentemente. Pode ser vista, Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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também, como o percurso que gera o sentido, ou seja, aquele em que se dá a atualização de elementos disponíveis no discurso. De acordo com essa metodologia de análise, uma estrutura narrativa dos discursos, portanto, é anterior à sua manifestação, ou melhor, segundo Greimas (2001), a narratividade do discurso pode ser reconhecida em manifestações do sentido aceitando-se a necessidade de uma distinção fundamental entre dois níveis de representação e de análise. Um nível aparente da narração, em que as diversas manifestações desta se submetem às exigências específicas das substâncias linguísticas por meio das quais ela se exprime; e um nível imanente, que constitui uma espécie de tronco fundamental comum, em que a narratividade se encontra situada e organizada anteriormente à sua manifestação. Um nível semiótico comum se distingue, portanto, do nível linguístico e lhe é logicamente anterior. A análise do discurso, de acordo com essa perspectiva, para descrever o percurso da significação, estuda também a discursividade, ou a etapa superficial do discurso. Considera-se que a enunciação, a partir do pós-estruturalismo, é vista como um processo mental e só pode ser estudada através das marcas que deixa no enunciado e tem o discurso como processo e o texto como produto. Nesse processo, na estrutura da superfície, com a intervenção do enunciador, aparecem os atores, o tema e as figuras; determinam-se o tempo e o espaço. A estrutura profunda, ou semântica profunda do discurso constitui a primeira etapa do percurso gerativo do sentido, ou seja, é aquela em que é gerada a significação, no modelo clássico de percurso gerativo. Segundo Greimas (2001), o discurso se reduz à significação considerada como uma estrutura semântica elementar que se baseia numa relação de oposição. Nessa etapa profunda do discurso, por meio dessa metodologia de análise é possível descrever os sistemas de valores, ou axiologia discursiva. Segundo Pais (2005), por meio da reconstrução do discurso, na análise semiótica, examinam-se cognições, significações, recortes culturais próprios de uma cultura, que habilitam ao convívio e conferem a consciência e o sentimento de pertinência ao grupo, de sua permanência e continuidade no eixo do tempo. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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Um recorte na Semiótica: a Sociossemiótica Este estudo, por tratar-se de uma análise dos discursos da mídia, para uma reflexão sobre a discursos político-educacionais e de educação não-formal, é objeto da Sociossemiótica, que, atualmente, é uma especificidade da análise semiótica da Escola de Paris. A Sociossemiótica, ciência cuja abordagem é recente, trata da captura do sentido, enquanto dimensão provada do ser no mundo, ou seja, o sentido em situação ou em ato, construído no momento da interação. Examina, portanto, no seio da vida social, o funcionamento dos processos discursivos, ou sistemas de significação, e seus respectivos sentidos construídos nas práticas sociais (PAIS, 2005). Logo, a Sociossemiótica estuda os discursos sociais não-literários, tais como os discursos científicos, tecnológicos, políticos, jurídicos, jornalísticos, publicitários, pedagógicos, burocráticos, religiosos, dentre outros que foram gerados nessas respectivas práticas da esfera social humana. Esses universos de discurso, segundo Pais (2005), são caracterizados como discursos sociais, porque, embora tenham, como é evidente, emissor e receptor individuais, caracterizamse por enunciador e enunciatário coletivos. Por exemplo, pertencer a um grupo ou segmento social, como um partido político, ou os legisladores, ou ainda a comunidade científica, dentre outros, são consideradas práticas sociais que geram discursos não-literários. São assim determinados porque a função estética, como a linguagem e estilo, embora neles exista, com características específicas, não é determinante de sua eficácia, como no discurso literário. Seu estatuto é conferido pela sociedade, porque são gerados nas diferentes práticas sociais na esfera de atividade humana. A Sociossemiótica, segundo Landowski (1992), trata do exame da terminologia e das figuras através das quais se exprime a diversidade das posições sociais e dos interesses em jogo no discurso, bem como a questão do ‘funcionamento global’ e da ‘eficácia social’ dessa atividade discursiva enquanto tal. Somente o critério temático da semântica não é suficiente para o estudo dos discursos sociais: Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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(...) o caráter político de um discurso, oral ou escrito, não poderia ater-se apenas, nem mesmo prioritariamente, ao fato de que ele “fala de política” (critério semântico), mas depende muito mais ao fato de que, ao fazê-lo, realiza certos tipos de atos sociais transformadores das relações intersubjetivas (critérios sintáxico e pragmático), estabelece sujeitos “autorizados” (com “direito à palavra”), instala “deveres”, cria “expectativas”, instaura a “confiança”, e assim por diante. (LANDOWSKI, 1992, p. 10)

O sujeito coletivo está indefinidamente em construção, uma vez que, segundo Landowski (op. cit., p.23), a alteridade do Outro é um dos elementos da identidade do Nós. Dessa maneira, os discursos da propaganda se ancoram numa conjuntura que impõe mudanças justificando-se um discurso educacional, caracterizado como educação não-formal, apoiado numa vontade política. São pertinentes as considerações sobre a vontade política que move os discursos educacionais presentes na mídia, segundo Landowski. Há uma lógica que constitui um dos motivos mais constantes e poderosos da dinâmica do discurso político que é mais profunda e de alcance mais geral, subjacente a todo desejo de renovação, em toda a esperança de ‘transformação do presente’ que antes procede do desejo que da vontade ou da necessidade. Ou seja, para se compreender a que se deve a força dos movimentos de opinião que apoiam ou apelam, com uma insistência particular, para o aparecimento da mudança em política, é necessário considerar que esses movimentos não se detêm somente à racionalidade de um homo politicus ideal com justos argumentos que o impeliriam a agir para transformar o mundo e torná-lo um mundo melhor, mas sim a “alguma coisa que tem relação com a gestão do sentimento de identidade dos próprios sujeitos, atores ou testemunhos do que muda em torno deles e com eles” (LANDOWSKI, 1992, p. 92). Para Landowski, o desejo de mudança não é apenas uma tomada de posição diante de coisas que mudam, ou que se gostaria que melhorassem, mas também escolher uma maneira determinada de viver seu próprio devir, ou seja, de colocar-se em condição de ‘desfrutar o tempo presente’, qualquer que seja Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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este, percebendo a si mesmo como imediatamente inscrito no movimento do momento que passa, como participante do desenrolar de uma atualidade vivida em comum com outrem, compartilhada, efetivamente ‘presente a si mesmo’. Dessa maneira, a mudança torna-se produtora de identidade. Não se trata de, ao aderir à mudança, deixar de ser alguém, ou deixar de apresentar ideias como apresentava antes, mas, segundo Landowski (1992, p. 93), é talvez exatamente o contrário, um dos meios mais elementares de afirmar sua própria existência, tanto o olhar de si mesmo como diante de outrem. É mudar senão “a vida”, em todo o caso, o sentido de sua própria vida. O discurso publicitário, ou de propaganda, assim como o discurso político, numa estrutura mais profunda, sustenta-se numa estrutura de poder que se define, segundo uma combinatória de modalidades, ou estrutura modal, nesse discurso, as modalidades do poder-fazer-querer, ou seja, são discursos que podem fazer alguém querer algo. Há modelos de análise sociossemiótica que se baseiam no querer e descrevem a vontade política que, por sua vez, se sustenta numa tensão dialética entre o poder-fazer-querer e o poder-fazer-não-querer. O discurso político-educacional de prevenção veiculado na mídia, dessa maneira, é sobremodalizado, porque apresenta combinatórias de modalidades: poder-fazer-querer→ poder-fazer-saber→poder-fazer-dever/crer. Há uma “vontade política”, da sociedade brasileira, que é representada pelo Ministério da Saúde, que se define por um poder-fazer-querer, isto é, pode se fazer alguém querer algo, para que o cidadão adquirira um “conhecimento”, definido pelo poder-fazer-saber. Assim, pode se fazer alguém saber algo, a fim de que se instaure um dever, modalidade que caracteriza o discurso da ética e o discurso da lei, ou um crer, que caracteriza o discurso da sedução. Segundo essa perspectiva, a análise que se propõe é um estudo do percurso da significação e não do signo em si mesmo. É a descrição dos valores implícitos nos processos discursivos que se configuram nas práticas sociais.

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Discursos da Mídia e exercício da cidadania Na contemporaneidade, apresentam-se diferentes discursos manifestados por meio de percursos temáticos variados, de acordo com processos discursivos presentes na televisão. Ressalta-se nesses discursos apenas o caráter da intencionalidade educacional presente e disseminada em alguns discursos da mídia, como discursos publicitários ou de propaganda que refletem valores sociais formativos para o exercício da cidadania. Definem-se, no contexto contemporâneo, as atuais condições políticocientífico-culturais em que se manifesta o discurso da saúde pública, sustentado no contexto de sociedades capitalistas neoliberais. Evidencia-se uma configuração de valores e saberes que constroem representações científicas e culturais sobre as políticas de saúde, assim justificando-se a veiculação de campanhas educativas. Instalada nesse cenário, a saúde pública se movimenta, ao menos em tese, cada vez mais para iniciativas e práticas para a educação preventiva de doenças, em propagandas veiculadas na mídia. Esta detém mecanismos baseados em determinantes individuais (em oposição a coletivos) e mudança de comportamento para uma ‘efetiva’ promoção da saúde, por meio de um discurso político-educacional. Gohn (2003, p. 23) refere-se, nesse caso, à educação não-formal, que tem um caráter coletivo, passa por um processo de ação de um grupo e é vivida como práxis concreta em conjunto, nas práticas sociais, ainda que o resultado do que se aprende seja absorvido individualmente. Para Gohn, a educação não-formal teria o pressuposto da formação para a cidadania, uma vez que tal estratégia de difusão de conhecimentos estabelece-se em uma dimensão social com possibilidades de que os indivíduos se organizem com objetivos voltados para a solução de problemas coletivos. Assim, entende-se que instituída a prevenção de doenças articulada à promoção da saúde pela via da educação não-formal, sob a perspectiva de concepção cultural, investe-se em práticas sociais de cidadania. Em programas de televisão, há um discurso político-educacional e cultural, quando são figurativizados valores de convivência, ou de inclusão social, como Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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por exemplo, aquele reproduzido por personagens na trama de uma novela, veiculada numa poderosa emissora, em rede nacional, ou ainda, numa reportagem jornalística. Caracterizam-se nesse caso discursos de inclusão social, ou de discussão sobre um tema polêmico,e no caso da novela, esses discursos estão num universo de discurso literário televisivo contemporâneo. Essa interdiscursividade evidencia uma intencionalidade político-educativa no universo literário veiculado na novela. O objetivo deste discurso políticoeducativo é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais. São objetivos que se constroem no processo interativo entre telespectadores e o universo novelístico. O universo de discurso de propaganda apresenta-se por meio de campanhas, por exemplo, da prevenção de doenças, nos discursos da saúde pública em campanhas da prevenção da dengue, dentre outros. Esses são discursos institucionalizados, ou governamentais, por exemplo, o da prevenção da Aids, numa determinada época, no período pré-carnavalesco. O discurso da educação do trânsito, por exemplo, sempre antecedem o período das férias escolares ou feriados, ou ainda, das campanhas antifumo. Configuram-se percursos temáticos nos discursos manifestados no universo de discurso educacional, que permitem leituras semióticas, ou diferentes interpretações, por meio de linguagens verbais ou não-verbais. Esses percursos temáticos podem ser recobertos por percursos figurativos, redundância significativa, ou seja, uma redundância que produz coerência semântica quanto a traços semânticos descritivos. Contemporaneamente, numa campanha de prevenção da Aids, apresentase o contexto carnavalesco, do divertimento, em que há oportunidades de relacionamentos e sobreposto a esse texto, uma campanha educativa, a da prevenção por meio do uso de preservativo. Em 2011, a campanha volta-se para a educação das mulheres. No filme de 37 segundos, aparecem três mulheres escolhendo a fantasia e uma delas diz que não é para se esquecerem do preservativo. Termina o filme com o coro das três mulheres: Sem camisinha não dá! Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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A análise das estruturas narrativas desses textos, num nível da ação, e discursiva, na superficialidade desses discursos, permitiu diferentes leituras: figuras e temas correspondentes a uma axiologia, que é um microssistema de valores numa estrutura profunda do discurso. A pessoa do discurso, o espaço, o tempo, caracterizam os diferentes textos publicitários sobre a prevenção da Aids. Aparece um reforço da necessidade da prevenção, desta vez voltada às mulheres que, na contemporaneidade, são vistas como sujeito autônomo no relacionamento amoroso e não mais submissas à vontade do homem. Por meio da metodologia de análise semiótica foi possível uma leitura mais profunda, dos sistemas de valores presentes no universo de discurso educacional. Segundo Pais (2005), é possível formalizar alguns microssistemas de valores a partir da interpretação discursiva, para a elaboração de modelos, que são modelos de análise que permitem a descrição de valores dos discursos, compatíveis às “leituras” do discurso manifestado num texto. Na análise de outro texto de propaganda, sobre a prevenção de doenças cardiorrespiratórias, na campanha antifumo, difundida na mídia, no jornalismo impresso e televisivo, a partir da lei paulista 13.541, de 07 de maio de 2009 - “Lei Antifumo”, regulamentada pelo Decreto 54.622 de 31 de julho de 2009 (SÃO PAULO, 2009), foram descritos valores subjacentes aos textos em que se caracterizam tensões dialéticas entre o querer-ser / querer-fazer e o dever-ser / dever-fazer. São valores discursivos da vontade política e da lei presentes nos discursos publicitários e de propaganda. De acordo com esse discurso, é importante o papel da prevenção para o exercício da cidadania. No caso das campanhas de prevenção de doenças, ou contra o fumo, os discursos de propaganda mantêm relações de interdiscursividade com o universo de discurso da vontade política, do querer-fazer e do não-querer-fazer, valores presentes nos diferentes textos, que veicularam apoio, ou questionamentos suscitados após a promulgação da lei antifumo. Sobre a campanha antifumo no estado de São Paulo, uma vez que foi promulgada a lei, apresenta-se a relação interdiscursiva também com o universo de discurso dessa lei, uma tensão entre o dever-fazer e o dever-não-fazer, ou Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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seja, uma tensão entre o obrigatório e o proibido. Esta análise possibilita a descrição de valores subjacentes aos discursos da mídia sobre o cigarro, principalmente, no enunciado sobre a advertência do Ministério da Saúde. Em São Paulo, pode-se observar a diminuição da publicidade de cigarros na mídia televisiva. As linguagens que se manifestam no discurso publicitário, ou de propaganda, hoje, possibilitam leituras semióticas sobre a importância da informação e o conhecimento compartilhado no contexto cultural e educacional presentes na mídia. O estudo das estruturas do discurso, segundo a Semiótica, tornou possível a reconstrução do sentido e a definição das modalidades que caracterizam as estruturas de poder do discurso publicitário e de propaganda,que produzem os efeitos de sentido da persuasão e da sedução. Há características que definem esses discursos. A definição da publicidade, segundo Barbosa (apud CASAQUI, 2005, p. 29), é a de que cabe a ela informar sobre aspectos reais ou imaginários de um produto ou serviço, a fim de convencer e persuadir e, até, envolver determinado segmento de maneira a produzir neste um desejo de satisfazer suas necessidades físicas ou psíquicas, por meio do objeto ou serviço anunciado. Por meio de modelos que descrevem a dinâmica discursiva, segundo a Semiótica do discurso, é possível verificar que o processo de produção, acumulação e transformação do saber, bem como da significação e da informação, os recortes culturais, sustentam, numa cultura, sistemas de valores que se apresentam nas situações de comunicação, por meio de diferentes linguagens. Configura-se, assim, uma rede discursiva coerente, segundo a cultura e sistemas de valores, em que circulam e se inter-relacionam diferentes linguagens na contemporaneidade.

Considerações Finais Por meio dessa análise, pôde-se verificar que no nível superficial dos textos, a combinatória de processos significativos, ou unidades de significação, Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê Midía, Comunicação e Cidadania | Rosália Prados

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inscritas na linguagem desses enunciados, possibilitou “efeitos de sentido” que, por sua vez, conforme o contexto, produziram outras leituras e interpretações. Estas caracterizam a estrutura profunda do discurso veiculado nos textos dos enunciados, revelando os microssistemas de valores caracterizadores dos discursos para o exercício da cidadania manifestados na mídia. Concluindo a análise da estrutura profunda dos discursos, verifica-se que nas etapas do percurso do sentido dos discursos foi possível detectar relações entre ‘forças em jogo’ no âmbito da atual sociedade brasileira. Para o estudo de alguns valores no contexto sociocultural contemporâneo, foi analisada a semântica profunda dos discursos presentes nos textos dos enunciados de campanhas educativas veiculadas na mídia que revelou os valores: Consumo e Convívio, na campanha de prevenção da saúde, Poderfazer-querer e Poder-fazer-não-querer, Dever-fazer e Dever-não-fazer, no texto da lei antifumo, respectivamente, dos discursos da Adaptabilidade, da Vontade Política e da Lei, com base em modelos de análise semiótica de Pais (2007), adaptados às leituras semióticas de textos da mídia na cultura contemporânea. Como se pôde observar, essa axiologia, ou microssistemas de valores, sustenta uma ‘visão de mundo’ coerente sobre discursos e cidadania, hoje, no Brasil, veiculados na televisão.

REFERÊNCIAS CASAQUI, Vander. Polifonia Publicitária: das construções da ‘realidade’ jornalística à da retórica em publicidade – uma análise dialógica. In: BARBOSA, Ivan Santo (org.). Os sentidos da publicidade. Estudos interdisciplinares. São Paulo: Pioneira Thomson, 2005. FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. Trad. PORTELA, Jean Cristtos. São Paulo: Contexto, 2008.

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GOHN, M. G. Conselhos gestores e participação sociopolítica. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. GREIMAS, A. J. Del Sentido II. Ensaios semioticos. Madrid: Gredos, 2001. HEJLMSLEV, L.T. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2006. LANDOWSKY, Eric. A Sociedade Refletida. São Paulo: EDUC editora da PUC, 1992. PAIS C. T. Aspectos de las visiones del mundo y de los sistemas de valores en culturas de la América Latina y del Caribe. Acta semioticaetlinguistica. São Paulo, v. 8, p. 395-421, 2000. _____. Propaganda e Publicidade no interdiscurso. Os sujeitos dos discursos científico e tecnológico em busca de seus objetos de valor. In Revista Philologus. Ano 11, nº 31. Rio de Janeiro:CIFEFIL, jan/abril, 2005. __________Considerações sobre a Semiótica das Culturas, uma ciência da interpretação: inserção cultural, transcodificações transculturais. In. Acta Semiótica et Linguistica. Vol. 11. Ano 30. São Paulo: 3ª Margem, 2007, p. 149-157. PRADOS, Rosália Maria Netto. Discursos e Pesquisa Interdisciplinar: Sociossemiótica e contribuições de Foucault. In: BASSIT, A. Z. (org). O interdisciplinar – reflexões contemporâneas. São Paulo: Factash, 2010. SÃO PAULO, Assembleia Legislativa de. Lei nº 13.541. Secretaria Geral Parlamentar do Estado de São Paulo, de 7 de maio de 2009. Referências na Web BRASIL, Ministério da Saúde. Campanha da Aids de 1988. Disponível em: <www.youtube.com/watch?V=SubGNMNP0> Acesso em 12 de março de 2012. _____. Ministério da Saúde. Campanha da Aids de 2011. Disponível em: <http:// www.aids.gov.br/campanha/carnaval-2011> Acesso em 20 de fevereiro de 2012.

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O CINEMA DE MICHELANGELO ANTONIONI, OU: PAISAGENS PARA PENSAMENTOS

Dossiê Cinema e Audivoisual

MICHELANGELO ANTONIONE’S CINEMA, OR: LANDSCAPES FOR THOUGHTS

Mônica Toledo da Silva

Pós-Doutora pelo departamento de comunicação social da FAFICH (UFMG). Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC. Artista pesquisadora do corpo no cinema e performances audiovisuais. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: monica1605@gmail.com


Resumo: A estrela de Antonioni Monica Vitti protagoniza três de seus filmes acerca da incomunicação – A aventura, O eclipse, O deserto vermelho. O diretor italiano é comentado a partir de conceitos de Noel Carroll, Noel Burch e Jean-Paul Sartre, cada qual com uma contribuição singular aos estudos do corpo no cinema e que, nos filmes abordados, ajudam a compor mapas de emoções e as paisagens para pensamentos tão caros à linguagem estética moderna única de Antonioni. Palavras-Chave: Cinema. Michelangelo Antonioni. Corpo.

Abstract: The star of Antonioni Monica Vitti starred in three of his films about the lack of communication – Adventure, The Eclipse, The Red Desert. The Italian director is commented from concepts Noel Carroll, Noel Burch and Jean-Paul Sartre, each with a singular contribution to the study of the body on film and that the films discussed help compose maps of emotions and landscapes to thoughts so dear to unique modern aesthetic of Antonioni’s language. Key-words: Cinema. Michelangelo Antonioni. Body.


Toda ação tem sua duração própria, como seu lugar particular; aplicar a mesma medida de tempo a tudo é mutilar homens e coisas. Cromwell1

As imagens em movimento habitam um complexo campo discursivo em nossa sociedade e cultura. O cinema expõe o paradoxo entre o eterno e o fugaz. Cada expressão visual e sonora gera uma informação, ou é um signo audiovisual. O cinema nasce do corpo e de seus discursos: o corpo abriga histórias sem fim; vindo da dramaturgia, este personagem cinematográfico é embebido de gestos, emoções e narrativas próprias que vão somar-se a outras deste suporte. As narrativas corpóreas são embebidas de cultura, memória, imaginação e discursos particulares. Os conteúdos sonoros e visuais do corpo somam-se aos recursos da câmera, do cenário, da montagem, da palavra, da música, fotografia, do teatro e pintura, e de diversos meios de representação de uma narrativa em imagens-movimento, do personagem ao universo do próprio autor, para a criação de narrativas sempre exclusivas. A representação de uma memória, um estado de loucura, a própria realidade, são também fluidas. O discurso não linear permeia uma emoção, um sentimento ou uma situação do corpo. Como criar um código estável para esta matéria nada palpável? Por isso a ideia de um cinema2 do corpo vivo. As imagens que temos, que criamos, que lembramos, são produzidas no corpo em movimento; proponho analisar a construção deste olhar, 1

Prefácio de Do grotesco e do sublime, Victor Hugo, 2004, p. 49.

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O cinema do corpo não se refere a uma época histórica, nem está localizado geograficamente numa determinada região, nem a algum momento específico da arte, e sim a uma forma de realização. Por isso autores de épocas diferentes (como os dos anos 1920, 60 e 2000), de movimentos distintos (como a nouvelle vague e o surrealismo) e de lugares variados (europeus e asiáticos) são todos passíveis de realizar obras que comunicam estados do corpo como opção estética e exercício de linguagem. Igualmente, não se pode dizer que toda obra audiovisual de tais épocas históricas, locais e momentos artísticos são cinemas do corpo.

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contextualizado neste corpo, que promove novas visualidades no contexto audiovisual. Um corpo e o ambiente se contaminam gerando ações, reações, e produzindo novos sentidos no contexto, em cena. A ação provoca uma alteração significativa no conjunto da cena e gera um novo sentido, não é apenas o deslocamento ou ato físico em si. O corpo em movimento no cinema potencializa suas possibilidades criativas. Temos também um universo de sequências de ações que se passam no corpo, imaginadas e, portanto, fora do eixo temporal. Nosso corpo é nesse sentido análogo a este ambiente de infinitas possibilidades de criação de sentido: o material bruto do filme. O chamado “material bruto” refere-se ao que é captado pela câmera – antes da edição, momento no qual selecionamos as melhores sequências e imagens captadas para determinado propósito. Este material é muito rico, pois contém infinitas possibilidades de combinação de cenas e criações de sentido – ele é todo o material disponível. O montador/ diretor/ autor irá compor e organizar a estrutura do filme, que, dessa forma finalizada, torna-se visível (exibido). Um filme é construído como uma imagem do corpo: é experienciado, imaginado, manipulado. A edição incorpora a força da e-moção num espetáculo kinestésico que cria um ambiente próprio do corpo e do filme (BRUNO, 2002, p. 25)3 . A imagem-movimento continuamente reinventa lugares como ambientes narrativos (places as sites). A absorção do sujeito ou objeto na narrativa espacial envolve transformações embodied; cinema e arquitetura (no âmbito da pesquisa da autora) proveriam ambientes biográficos; vive-se o filme como se vive o espaço onde se habita, como uma passagem diária, tangível. São ambientes constantemente reinventados pelo corpo vivo, e sediam interações táteis. (BRUNO, 2002, p. 66) A pesquisadora italiana Giuliana Bruno sugere que um filme cria composições de espacialidade transformando um lugar em paisagem, e que os 3

É na emoção cartográfica, onde a imagem-movimento é ativada, que é possível retrabalhar nosso próprio mapa psicogeográfico face às nossas histórias, elucida Bruno. (2002, p. 268). O cinema justapõe num só espaço segmentos de geografias de mundos diversos e histórias temporais. Uma imagem em movimento é uma anatomia móvel, escaneando o espaço íntimo fazendo sua própria geografia. (ibidem, p. 148).

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lugares dão forma aos filmes, que imprimem sua marca no modo como navegamos no espaço (urbano, doméstico, afetivo), emotivamente e cognitivamente. (BRUNO, 2002, p. 20) Neste seu livro “Atlas da emoção” a autora exemplifica o que chama de landscape portraits com obras de Alain Resnais, Michelangelo Antonioni, Win Wenders e Andrei Tarkovski, nas quais os diretores abusam de paisagens para compor narrativas subjetivas e explorar situações em ambientes compostos organicamente, que compactuam e alimentam as construções de discurso e de sentido. Em sua série de filmes sobre a incomunicação, Antonioni inclui “A noite” (La notte, 1961), “O eclipse” (L’eclipse, 1962), “A aventura” (L’aventura, 1960) e “O grito” (Il grido, Michelangelo Antonioni,1957), este último aborda o ponto de vista masculino, num exemplo raro da filmografia do diretor. Trata-se de um homem, Aldo (Steve Cochran), que é abandonado por sua esposa e mais tarde pela amante. Os motivos não são tão claros – quer dizer, não são oralmente comunicados ao espectador. Trata-se mais de uma situação, na qual o personagem se encontra, de abandono, de enfrentamento de um destino nada certo. Aldo se encontra expulso de casa pela esposa, e parte com sua pequena mala a pé por cenários devastadores, que expressam seu estado de espírito: pântanos, árvores secas, terrenos acinzentados. Uma bruma que oculta passantes de lugarejos abandonados à própria sorte em subúrbios esquecidos. Seus sentimentos são absorvidos pelos ambientes, que refletem mais que sua própria atuação verbal a circunstância miserável em que se encontra. O personagem parece manter-se em movimento mais como um senso de sobrevivência do que como um desejo de chegar a algum lugar ou realizar algo concreto. Se perde em seus próprios cenários internos. No cinema a narrativa se organiza espacialmente. Como na cartografia emocional4 e sua paisagem, "vemos e vamos. A imagem em movimento é a síntese do ver e ir – um lugar onde ver é ir. Sentimentos são inscritos como fisionomias móveis. A cartografia emocional é sobre um itinerário, o 4A

metrópole existe como uma cartografia emocional, um ambiente de transporte compondo uma psicogeografia. (BRUNO, 2002, p. 67).

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conhecimento corpóreo cuja textura é o nosso próprio texto: um lugar onde imagens (pictures) se tornam ambiente (BRUNO, 2002, p. 245). Cria-se uma relação entre lugares e eventos que forma a narrativa: ela própria é imaginada, como os lugares são transformados pela sequência em movimento de seus passantes. Técnicas de edição não convencionais (que não reafirmam a locação para situar o espectador) permitem “flanar” pelo filme. O trabalho de edição navega no curso emocional do filme, cria um diálogo com o corpo interagindo com suas várias passagens culturais e fenomenológicas. À margem da viagem do espectador pelo espaço, o filme se move, continuamente refigurado pela (e)moção (e-motion) (BRUNO, 2002, p. 271). Noel Carroll discute a possibilidade de feitura de filmes como pensamentos. Para ele, a ação fílmica pode ser muito mais inteligível que os eventos cotidianos que presenciamos. O principal sobre os filmes contra as teorias realistas, pontua, não é que eles criam a ilusão de realidade, mas que eles reorganizam e constróem, por enquadramentos variáveis, ações e eventos com uma legibilidade e coerência que ultrapassam, em termos de sua estrutura básica imediatamente perceptível, os encontros naturais de ações e eventos (CARROLL, 1996, p. 86). O pensamento ultrapassa os limites de uma simples narração, de ritmo ou estética habituais e traz o problema da expressão em toda sua extensão. O cinema como ele é, universo abstrato, não deve ser usado para contar histórias: isso é privar-se do melhor de seus recursos. O cinema também é feito para expressar o pensamento e seus meandros. Esta é uma das questões que nos permite pensar o cinema atrelado ao corpo; pois, uma vez exposto ao conteúdo das imagens disponívels, o autor trará seus próprios conteúdos e vivências para criar com elas uma linguagem, um sentido. E o fará tanto ao nível de organização sequencial quanto de seleção de cenas, que serão por fim montadas em virtude de seu entendimento, do nível de interatividade que cria com elas, e em última instância, de seu humor. Por isso o processo de montagem é uma performance do corpo. 4 Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê O cinema de Michelangelo Antonioni | Mônica Silva

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Corpo da câmera, da paisagem, da montagem, corpo do personagem: representações para estados do corpo. É difícil discernir e nomear onde um acaba e o outro começa: formas criadas por um corpo que assim vê estas emoções, sentimentos, estes dramas ou estados narrados na obra, é a performance de um corpo que cria estas formas particulares: Truffaut criaria outras imagens para “O filho”, os Dardenne comporiam de outra forma “A liberdade é azul”, Kieslóvski adotaria outros recursos em “Jules e Jim” e assim por diante. São as imagens do corpo de um autor que permitem que ele performe em sua obra.5 Até o início dos anos 1950, o cinema tenta eliminar o mundo do acaso. O primeiro passo para controlá-lo é estabelecer um enquadramento que delimita a área em que se desenrola a ação, mantendo-o fora de campo. O estudio vai tornar-se o refúgio de uma arte que procura fugir de um mundo imprevisível, com o apoio de técnicas cada vez mais desenvolvidas.6 A criação deve ser empírica? “É preciso encontrar uma maneira de considerar esse caráter essencialmente refratário como parte do processo de conceituação que a n t e c e d e a fi l m a g e m . U m a a b o r d a g e m a t r a v é s d a f o r m a e d a linguagem” (BURCH, 1969, p. 167). “O eclipse” (1962) joga com o tema do desencontro de um casal de forma extremamente plástica, em muitos enquadramentos aparentemente oblíquos de uma precisão antonioniana. Uma pilastra divide o corpo dela ao meio numa locação urbana; espaços vazios levam vários segundos; pequenos acontecimentos (a água num meio fio, uma rachadura no asfalto, o olhar por trás dos óculos de um transeunte; planos fechados em objetos aparentemente sem sentido) irrompem em meio a sequências de ação. A história tem como 5

"A liberdade é azul" (K.Kieslówski, 1993), "O filho" (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2002), "Jules e Jim" (F.Truffaut, 1962)

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No cinema estadunidense se filmam separadamente personagens e fundos; essa conquista, ou banimento do acaso, caminha junto com a progressiva entronização da noção de grau zero do estilo cinematográfico, que visa tornar a técnica invisível e eliminar “falhas” de interferências do acaso. Estadunidenses desenvolvem o método estereotipado do campo e contracampo, com cenas filmadas várias vezes de vários ângulos e distâncias focais, mas possibilidades de montagem são restritas – estabelece-se uma composição formal de complexidade mínima (BURCH, 1969, p. 139).

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cenário a cidade de Roma em pleno processo de modernização arquitetônica, e Antonioni explora o foco no inacabado para falar da vida na transição da cidade, do pensamento em construção, “vagando pelos locais como se eles fossem já ruínas incipientes” (BRUNO, 2002, p. 37). Outras vanguardas cinematográficas envolvem narrativas audiovisuais que incorporam o estado emocional do personagem, como o cinema expressionista (a exemplo dos gestuais, cenários e figurinos), impressionista (câmera, textura, movimento, a exemplo de obras francesas e russas do início do século XX), e surrealista (subjetividade dos discursos). Cada um à sua maneira, estes movimentos revolucionários são referências das técnicas de montagem, trilha sonora, movimentos de câmera, pontos de vista, desenvolvimento da ação, criação de metáforas, dramaticidades, direção, cenografia para diversas cinematografias linguagens audiovisuais. Criaram-se referências de construção de conteúdo audiovisual inspirados nas ações humanas. O cinema moderno instaura uma nova dramaturgia7 do corpo humano – e permite experimentar o tempo (entendimento dos três eixos temporais, passado, presente e futuro, como atuantes no corpo vivo em tempo presente). Numerosos momentos de câmera lenta dão corpo a uma investigação sobre a pictorialidade da imagem em movimento, para além de toda funcionalidade narrativa dramatizante. Muitos cineastas produziram uma consciência estética criadora, constituindo um corpo de pensamento e de desejo. O cinema seria nessa perspectiva menos um fim que um meio. Para Eric Rhomer (2004)8 cineastas modernos seriam aqueles que deram existência a seu mundo (“tudo que é bom é moderno na medida em que não se parece ao que foi feito antes”), e ao mesmo tempo voltam a definir o cinema, orientando-o em um novo sentido.

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Dramaturgia para Pina Baush é um jeito de organizar o pensamento, antes das palavras. Não organizar algo dramaticamente, mas trazer algo de alguma maneira.

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Reprodução de entrevista a Eric Rhomer publicada originalmente na revista Cahiers do Cinéma 204, de setembro de 1968, compilada com outras três de diretores da nouvelle vague francesa na publicação espanhola de 2004 (vide bibliografia).

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Seguindo a linha da apropriação (dispensável) das outras artes pelo cinema, Rhomer acrescenta: “não vejo pra quê pode servir a música a não ser para consertar um filme ruim”. O diretor francês confirma com este breve comentário o meu entendimento da realização da obra como um processo exposto a variáveis externas, do ambiente, a fatores e informações que são agregados ao movimento criativo de seu autor e que podem determinar os rumos da narrativa. Variáveis que ele exemplifica com o acaso ou uma pessoa. François Truffaut (2004)9

afirma: “Os filmes não têm necessidade de

contar histórias, basta contar o primeiro amor, a ida à praia, etc (...). O que fazíamos era muito apaixonado, pois precisamos destruir certas coisas, e fazer as pessoas se apaixonarem por outras.” O movimento da nouvelle vague continua sendo de certa forma revolucionário: não simplesmente pelos livres usos da câmera na mão, pela opção por locações “reais”, não atores (em parte), música diegética e luz natural: mas pelo entendimento do filme como uma ação do corpo, pela liberdade (assistida) concedida no ato da filmagem, no ato da montagem, e na abordagem aberta do tratamento do roteiro – que como menciona Truffaut, pode referir-se a um passeio ou a uma paixão. A aparente espontaneidade faz com que vejamos a ação do corpo do autor mais próxima ao resultado da tela, isto é, seus próprios pensamentos. O ato performativo se faz presente num resultado que é provisório e que levou em conta os aparatos, disponibilidades técnicas e também as variantes do contexto

que se permitiu absorver,

contribuindo para aquela linguagem e aquela paisagem. Antonioni faz largo uso dessa linguagem cinematográfica, em sua chamada “tetralogia da incomunicação" (“O eclipse”, “A aventura”, “A noite” e “O deserto vermelho”, à qual ainda poderia-se acrescentar “O grito”, o filme onde seus personagens vivem realidades “alheias” em relação ao espaço físico de onde interagem, parecendo expor suas paisagens internas: muito silêncio, fotografias e composições visuais singulares, emoções em fragmentos 9

Em referência à mesma publicação mencionada na nota anterior, entrevista a François Truffaut originalmente publicada na Cahiers du Cinéma 138, em dezembro de 1962.

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narrativos). Obras que ocultam sentimentos e expõem visualmente as emoções de seus protagonistas através de artifícios tão antinaturais como pintar árvores, frutas, casas, etc, nas locações. A opção da não verbalização, da ausência da fala em grande parte de seus filmes e do uso da fala de modo não linear, lógico ou conectado à cena de modo explanatório, assim como em Godard, têm um efeito mais ilustrativo e de composição do que fucionar como uma legenda ou leitura cênica; é um recurso bem sucedido de (não) se comunicar sem o signo da palavra. Antonioni não se rende à representação pictórica figurativa, e sua continuidade está mais relacionada à situação emocional na qual se encontra seu personagem – e por isso mesmo o ritmo do filme é coerente com o fluxo desta sensação ou pensamento, naturalmente imprevisível – do que na sequência de cenas visualmente coerentes ou uma sucessão “natural” de imagens. As variantes de construção das linguagens dos filmes mostram-se híbridas, e o sentido do corpo aparece no conjunto da cena, na semiose dos recursos narrativos, e não apenas concentrado em uma representação particular. Assim, o corpo sempre conduz a narrativa. Um mostra-se mais legítimo que os outros, mas fundamentalmente não está apartado deles. A partir de um mesmo corpo dominante na composição da cena, pode-se chegar a criações distintas. Carroll defende que o cinema deve ser pensado com o olhar precário que o produz, atendo-se à recriação de imagens na memória, à criação do contexto cênico, percepção do lugar10 para se construir uma narrativa autônoma, aberta e fruto de um acaso “pensante”. Para esse entendimento do cinema os “pesos formalistas são obsoletos”. As ações internas dos personagens e suas construções são fragmentos. O teórico sugere observar obras enquanto narrativas do corpo, fonte de experiência criativa para o estudo das emoções (CARROLL, 1994, p. 217, 332).

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Antonioni (2004) comenta que tem o hábito de visitar sozinho as locações um dia antes da filmagem, para percebê-lo, sentir os objetos, o que têm a dizer, como comunicam com o espaço, o que reflete a luz, de onde vêm os sons. Ele argumenta que esta ação é fundamental para que sua direção seja a mais adequada àquele ambiente.

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As propriedades tempo, imagem e movimento são também “componentes corpóreos”, elementos que invadem os filmes e constituem o processo significativo, conduzindo a criação de sentidos. O estudo das representações do corpo no audiovisual sugere uma infindável rede de associações de imagens somadas às propriedades inerentes que se impõem na construção das narrartivas, legitimam a união do pensamento do corpo na imagem numa celebração de sentidos móveis. Os recursos são híbridos – o sentido do corpo encontra-se no conjunto da composição da cena. Representações conduzem a incontáveis semioses. Cineastas mais atentos às linguagens do corpo, como Andrei Tarkovski, David Cronenberg e John Cassavetes trabalham com um olhar mais precário, um saber provisório, criando enquadramentos tortuosos, oblíquos. A câmera esconde mais do que mostra, revelando um descompasso que pode traduzir um desconhecimento de alguma informação pelo personagem, um estado alterado de consciência deste, um jogo de sentidos com o espectador. A técnica de explorar a paisagem é muito peculiar em Antonioni, que nos outros filmes que abrangem o tema da incomunicação também está presente. Em “O eclipse” Monica Vitti e Alain Delon são um casal incompleto – quer dizer, não chegam a se formar como casal, mas sim como possibilidade. O filme se desenvolve através de outros acontecimentos (a mãe dela que aposta na bolsa de valores, a amiga que volta de uma viagem à Africa e muitas outras ações menores), que são sempre permeados pela situação suspensa: formarão eles um par? Percebemos o desejo de ambos, por olhares, câmeras fixas, enquadramentos incômodos, quadros insistentes. Se encontram muito, quase sempre em lugares de trânsito, como entradas e escadas. Seus sentimentos são transitórios? Também falam pouco. Por fim marcam um encontro ao qual nenhum dos dois comparece e eis que o filme termina, assim suspenso, numa esquina vazia, onde a câmera se detém por longo tempo e só sabemos que a cena não é imóvel por pequenos movimentos ocasionados pelo vento. Quem fica sozinho é o espectador. 9 Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê O cinema de Michelangelo Antonioni | Mônica Silva

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O áudio parece abstrato: falas desacompanhadas de imagens que as orientem. Muitos silêncios, entre os dois; sequências sem ação, que se não fosse pelo lento movimento de câmera, pareceriam esquecimento do cinegrafista ou falha de montagem. Incongruências e incômodos em cenários da cidade ampla e um tanto suspensa. Vazio é o coração dela? Incongruente é ele? Não importa. Talvez “O eclipse” fale da impossibilidade de amar de qualquer um, simbolizada no não encontro na última cena do filme – o local combinado onde nenhum dos dois comparece – testemunhado pela luz de uma luminária de rua. Há um contraponto na sequência dela na casa de uma amiga, dentre objetos africanos de uma viagem exótica, compõe um oposto absurdo: cômico, exasperante, cheio de gargalhadas e conversas desimportantes – como tentativa de usar a palavra como excesso, como se ela fosse sempre dispensável, desperdiçada em conversas fúteis. Ainda que não se trate aqui de uma tragédia11 propriamente, “O eclipse”, assim como “A noite”, tratam dessa tragédia “menor” da incomunicação. Nesse segundo caso um casal (Jeanne Moureau e Marcello Mastroianni), desta vez casado há bastante tempo, vai a uma festa. As dezenas de convidados felizes e falantes só serve para destacar a solidão do casal, que se separa por algum tempo permitindo que cada um tente buscar respostas para seus dramas particulares. A alegria ininterrupta de tantos convidados, e principalmente a movimentação de seus corpos, que passeiam por entre um grande jardim e uma mansão, em meio a belíssimos figurinos e cenários, serve como pano de fundo para o silêncio perene dos dois, que se contrapõe aos seus corpos também em movimento, mas num ritmo “interno” e muito distinto dos outros convidados, sempre tão entretidos. Após a longa noite, à qual não faltam surtos de alegria momentâneos com outros possíveis cônjudes (ambos marido e esposa flertam), o casal se reencontra e se beija ao amanhecer, sucumbido ao pé de uma árvore,

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O cinema trágico se apropria de formas várias para representar emoções como a dor, a morte, a solidão, a loucura e a depressão. Sem privilegiar soluções óbvias e fáceis – como utilizar-se de uma música triste para compor um ambiente pesado, o choro, o recurso da oralidade para expor os sentimentos dos personagens – os filmes abordam a tragédia pessoal de forma renovada, incluindo sutilezas ou subliminaridades de uma outra concepção mais velada do trágico.

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numa certeza provisória de estar com a pessoa certa. Ou, com a consciência do caráter transitório da felicidade. Como representar o vivo e o descontínuo? As propostas instáveis dialogam com o sentido sempre em movimento, das ações do corpo do diretor, da linguagem da câmera, da representação cênica, da expressão visual e sonora, da gestualidade de atores e da montagem. O filósofo francês Jean-Paul Sartre (2006) sugere que não há encadeamento objetivamente verificável que dê razão de qualquer fato da existência, porque ela mesma é sequência de acasos que constituem a vida na unidade e coerência com que a desejamos. Sartre sugere que a: Conduta emotiva busca conferir ao objeto, sem modificá-lo em sua estrutura real, uma outra qualidade. A emoção é o corpo que, dirigido pela consciência, muda suas relações com o mundo para que este mude suas qualidades. Não se pode sair dela à vontade, ela se esgota espontaneamente, mas não podemos interrompê-la; é sofrida (SARTRE, 2006, p. 65, 76).

As teorias da emoção de Sartre e da percepção de Merleau-Ponty (1964) abordam temas como o funcionamento da mente e a formação das imagens no corpo, as maneiras como este age no mundo e pode se expressar por determinadas ações em determinado contexto, o modo como o corpo mantém seu pensamento em diálogo com o ambiente, como geramos pensamentos e sentimos emoções, como nos expressamos no espaço, construímos conteúdos e lidamos com nossas memórias e imaginações. E como, também, criamos e processamos as nossas imagens. Como as emoções se manifestam no universo cinematográfico, como são expressas e representadas com suas ferramentas e signos cênicos, como conduzem a narrativa do filme? Cada um a seu modo diretores constroem seus discursos corpóreos num cinema livre da narrativa clássica e mais próximo de um pensamento, ou da manifestação de uma emoção num determinado contexto espaço-temporal. Na emoção a consciência se degrada e transforma o mundo em que vivemos, mas é ele próprio que pode se revelar à consciência como mágico 11 Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê O cinema de Michelangelo Antonioni | Mônica Silva

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quando o esperávamos determinado (SARTRE, 2006, p. 84). A magia como qualidade do mundo se estende às coisas, na medida em que estas podem se apresentar como humanas (sentido inquietante de uma paisagem, certos objetos, um quarto que conserva o vestígio de um visitante) ou trazem a marca do psíquico (SARTRE, 2006, p.86). Sartre nos lembra que a emoção não é uma modificação acidental de um sujeito que estaria mergulhado num mundo inalterado. Assim, não se deve ver na emoção:

uma desordem passageira do organismo e do espírito que viria perturbar de fora a vida psíquica: trata-se do retorno da consciência à atitude mágica, uma das atitudes que lhe são essenciais, com o aparecimento de um mundo correlativo, mágico. A emoção é um modo de existência da consciência, uma das maneiras como ela compreende seu “ser no mundo (SARTRE, 2006, p. 87, 91).

O filósofo discorre sobre uma infinita variedade de consciências emocionais e propõe que a consciência não se limita a projetar significações afetivas no mundo que a cerca, e sim vive o mundo novo que acaba de constituir. As significações afetivas são conscientes e lidam com o acaso e com a performance.12 Já “A aventura” aborda uma tragédia mais explícita: Lea Massari (Anna) e Gabriele Ferzetti (Sandro) vão passar um dia numa ilha da Sicília, de barco com amigos. A ilha composta puramente por rochedos torna-se ambiente perfeito para metaforizar a impossibilidade do encontro. Ocorre que Anna desaparece inexplicavelmente e todos se dispõe a procurá-la, até que o fim do dia os obriga a regressar da ilha pedregosa. O elemento trágico está na continuação da história – ou da vida: o tempo passa e todos se esquecem de Anna. Inclusive sua melhor amiga Claudia (Monica Vitti), que faz de Sandro seu par amoroso. Não há sentimento de culpa ou de perda ou qualquer manifestação explícita de luto, a desaparecida é simplesmente abandonada na ilha como se nunca tivesse 12

Performance é compreendida aqui como sequências de unidades momentâneas, que se dão necessariamente no corpo, lugar da impermanência e do movimento.

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existido. Os recursos cinematográficos, em especial a paisagem, que termina num muro barroco de um velho vilarejo italiano, onde o novo casal se aceita em silêncio, nos faz crer na vida como um terreno acidental e incerto. Discorrer sobre os tratamentos estéticos do diretor italiano a seus filmes demandaria um longo tempo, além de uma pesquisa refinada, bem aos modos de suas realizações. São muitos e diversos os exemplos dos usos que ele faz da fotografia, dos enquadramentos, da trilha sonora (ruídos, música, diálogos, silêncios precisos, sons diegéticos), da cor, do figurino, da direção de arte (objetos cênicos), além, claro, da direção de atores e montagem únicas. Apenas complemento que “O grito”, “A noite” e “A aventura” trazem metáforas preciosas à história do cinema para o tratamento de estados mentais ou emocionais de seus personagens – o segundo a requintada festa que abriga convidados tolos e estéreis, aos olhos do casal que tenta ali se ambientar para no fim da noite apenas se encontrar um no outro, o terceiro que faz uma turma de amigos abandonar e depois esquecer uma amiga (a protagonista) numa ilha inócua e rochosa para continuarem suas vidas como se ela nunca tivesse existido. Estranhas noções de valor e amizade passadas em locações barrocas decadentes de uma vila italiana centenária perdida no tempo. As possibilidades de realização de uma obra feita com imagens em movimento amplificam as capacidades imaginativas tanto quanto multiplicam as representações corpóreas, que ganham vida eterna em seu movimento. As representações tão distintas do corpo numa obra audiovisual têm níveis diferentes de apropriação cognitiva. Muitas metafóras e de pensamento se fazem presentes para compor a própria rede de imagens que tece a narrativa para destacar um lugar do corpo que, também, se dá no fluxo. De certa forma, cada autor desde sua realidade própria apresenta um corpo em processo e nunca enquanto um produto. Uma obra audiovisual representa as cenas do mundo sob o olhar de alguém – como vemos no cinema brasileiro de Ruy Guerra, Karim Aynouz e Suzana Amaral. O cinema modern, também, traz um novo tratamento audiovisual para as dramaturgias do corpo. Um cinema de discursos 13 Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê O cinema de Michelangelo Antonioni | Mônica Silva

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incompletos, e todas as outras variáveis que traz consigo para um instante espaço-temporal – e que se faz perceptível na câmera, na montagem, no roteiro, na direção, nos diálogos, na música. Obras como realidades particulares. A feitura de obras nesta linguagem é em si um ato de performance porque seu gesto é uma criação que se dá no contexto. Em “O deserto vermelho” ("Il deserto rosso”) Antonioni constrói muitos vazios: muros de cimento cinza, fumaça branca da fábrica, neblina no porto, ferros e metais que tornam a paisagem industrial quase orgânica, viva em seus ruídos e cores, componto um distanciamento que impossibilita quase qualquer comunicação – que justamente em grande parte do filme se dá entre murmúrios da protagonista de Monica Vitti, Giuliana. A personagem aparece em muitos quadros como se inserida numa tela de pintura: com o fundo branco, sob o fundo bege, preto, vermelho... os quadros aludem à descontinuidade e perda de espacialidade. Giuliana parece se perde, atrás do olhar incisivo, silencioso, num tempo suspenso e indiferente à narrativa. “Estou sempre cansada”. A atuação por vezes teatral, artificial, se compararmos sua direção de arte com outros filmes modernos ou contemporâneos, que também exploram representações distintas da narrativa clássica para expressar seus conteúdos. Em geral, cenografias, figurinos e fotografia parecem mais “próximos ao real” menos manipulados e mais naturais – no uso da luz natural, por exemplo. Antonioni promove no trabalho dos atores e na composição dos quadros as paisagens de Giuliana: abstratas, ruidosas, frias, suas angústias vividas ao longo das sequências em pequenos dramas. Os quadros assemelham-se muitas vezes as pinturas, com o gesto de Vitti suspenso por uns instantes, compondo a tela uma interrogração. Dentre as paisagens criadas destacam-se a sequência do grupo na casa de 14 Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Dossiê O cinema de Michelangelo Antonioni | Mônica Silva

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madeira de interior vermelho, onde a madeira, que compõe paredes cinzas, começa a ser derrubada pelos amigos de Giuliana e este ato vai desconstruindo a própria tela13 , o lugar da representação, à custa de gargalhadas. O cenário vai sendo desmontado, ainda assim continua pequeno para a ação dos personagens, perturbando Giuliana, que em mais um pequeno susto sai abruptamente, sendo seguida por todos, que deparam-se com brumas cobrem todo o ambiente. “Tenho medo de tudo”. O espaço de dentro não dialoga com o espaço de fora. As imagens internas da casa, vermelhas e risonhas, o espaço de fora, branco e silencioso, da corrida de Giuliana de carro para a beira do pier. O cinema como lugar do imaginário justifica, por exemplo, a sequência da menina na praia, quando a água parece surgir para gerar uma pausa na aspereza industrial que acompanham Giuliana. A menina ouve da ilha uma voz, que o veleiro parece ter trazido... A descontinuidade espacial parece aproximar-se de um sonho ou cena imaginada, não vivida. Cenas como a de Giuliana percorrendo cascos de barcos enferrujados, numa sequência de quadros, impossível em tal ambiente inóspito, figura entre os mais subjetivos do filme. Em entrevista sobre o filme, o diretor afirma que a paisagem é mais importante que os personagens; a intuição antecedeu a razão. Não interessa como funciona psicologicamente, cognitivamente, mentalmente, a apreensão do motivo, mas a imagem criada por um corpo na obra. ...Io sono stata malata, sì … ma non devo pensarci, cioè io non devo pensare che tutto quello che mi capita è la mia vita … ecco … mi dispiace … scusi.

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À maneira das modelos destruindo o studio em Blow up (1966).

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REFERÊNCIAS

BORDWELL, David; CARROLL, Noel. Post-theory: reconstructing film studies. Madison: University University of Wisconsin Press, 1996. BURCH, Noel. A práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 2006. BRUNO, Giuliana. Atlas of emotion. New York: Verso, 2002. SARTRE, Jean Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2006. MERLEAU-PONTY, Maurice. Le Visible et l’invisible, suivi de notes de travail. Claude Lefort (ed). Paris: Gallimard, 1964.

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MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION OF QUEER SUBJECTIVITIES DURING THE DICTATORSHIP YEARS IN BRAZIL

artigos

Rick J. Santos

P贸s-Doutor em Lingu铆stica pela New Yotk University. Doutor em Literatura comparada pela State University of New York. Professor. Email: professor.rick.santos@gmail.com


Resumo: Este artigo lança um olhar histórico e político no contexto das produções culturais no Brasil, durante os anos da ditadura militar. Especificamente, propõe-se uma leitura atenta do trabalho da escritora lésbica Cassandra Rios e as formas que ela incorporou elementos da cultura pop e dos meios de comunicação de massa como um artifício literário para criar um diferente, novo, a visão da subjetividade Queer entre as pessoas, apesar do regime institucionalizado conservador e repressivo da censura do Estado. Palavras-chave: Cultura de Massa. Subjetividade Queer. Cassandra Rios. Literatura. Abstract: This article takes a historical and political look at the context of cultural productions in Brazil during the years of the military dictatorship regime. Specifically, we propose a close reading of the work of lesbian writer Cassandra Rios and the ways she incorporated elements of pop culture and means of mass communication as a literary device to create a different, new, vision of Queer subjectivity among the people in spite of the conservative and repressive institutionalized regime of state censorship. Key Words: Mass culture. Queer subjectivities. Cassandra Rios. Politics. Literature.


MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION OF QUEER SUBJECTIVITIES DURING THE DICTATORSHIP YEARS IN BRAZIL Rick J. Santos Recebido: 30 abr. 2013 Aprovado: 24 maio 2013 Pós-Doutor em Linguística pela New Yotk University. Doutor em Literatura comparada pela State University of New York. Professor. Email: professor.rick.santos@gmail.com

Resumo: Este artigo lança um olhar histórico e político no contexto das produções culturais no Brasil, durante os anos da ditadura militar. Especificamente, propõe-se uma leitura atenta do trabalho da escritora lésbica Cassandra Rios e as formas que ela incorporou elementos da cultura pop e dos meios de comunicação de massa como um artifício literário para criar um diferente, novo, a visão da subjetividade Queer entre as pessoas, apesar do regime institucionalizado conservador e repressivo da censura do Estado. Palavras-chave: Cultura de Massa. Subjetividade Queer. Cassandra Rios. Literatura. Abstract: This article takes a historical and political look at the context of cultural productions in Brazil during the years of the military dictatorship regime. Specifically, we propose a close reading of the work of lesbian writer Cassandra Rios and the ways she incorporated elements of pop culture and means of mass communication as a literary device to create a different, new, vision of Queer subjectivity among the people in spite of the conservative and repressive institutionalized regime of state censorship. Key Words: Mass culture. Queer subjectivities. Cassandra Rios. Politics. Literature.

After 1968, with the consolidation of the Institutional Act # 5 and institutionalization of an elaborate system of censorship, nothing could circulate publicly, whether in writing recording, video, or in any other format, without the regime’s official seal of approval from the military regime that overruled the democratically elected government and established a repressive and bloody Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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dictatorship in Brazil. The absurdity of the harshness and absurdity imposed by the military censors was well captured by Laurita de Araújo, a secondary teacher in the 60’s. According to Araújo, local-school teachers had to get federal government official approval permits before putting on end-of-year school plays, or else they risked being framed as agitadoras—trouble-makers (2008). Punitive actions for agitadoras ranged from suspension without pay and/or dismissal from the job to “disappearance,” jail, and even torture/death. However, far from annihilating national cultural productions, censorship stimulated creativity, artistic consciousness-raising and political/cultural defiance. In general, during this period, most cultural productions attempted to move beyond the point of “speaking of” the people, i.e., the adoption of popular themes and language in order to make literature and art simplified and relatable to a middle-class audience. As a response to the repressive political, socio-cultural values imposed by the repressive regime, the intellectual elite realized that no longer could they afford to exist apart from society. With the official system of censorship in place, literature took on a privileged role for political consciousness raising of the people (conscientização). In the 60’s and 70’s, many artists took on a paternalistic cultural missionary task of politicizing the people with their art. In spite of the insertion into some truly popular location by the left sects of the Brazilian “cultural elite” and the establishment of some connections with the labor unions, by and large the cultural mission of this era was unsuccessful in its politicizing mission: the people simply did not understand and/or resisted the message disseminated by a largely middle-class “cultural elite.” Soon, it became clear to the intellectual elite that in order to politicize the people, it would be necessary to include them in them in their education process, not simply feed the masses with counter-ideological ideas/ positions from above. It was precisely in the midst of this context that the lesbian writer Cassandra Rios overtook the project of (re)Presenting queer subjectivities in a liberatory manner that reveals their humanity and rescues their existence from the Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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fixed objectified position fixed heteronormativity without any pretension to exhaust or unveil the “ethnographical Truth” about the topic for an elite group of enlightened intellectual elite. With the absence of a significant of a significant literary market in Brazil, as Renato Ortiz pointed out that directly or indirectly, for the most part, there has been a close relationship between “high literary culture” and the means of mass communication, since many of the greatest writers in Brazil have made their living as journalists. However, in spite of the creation of many newspapers and magazines by leftist intellectuals, such as O Pasquim, after the AI-5’s creation the sanctions and imposition demanded and imposed by the government gradually increased, which led to a “war” between intellectuals and the media. The result of this “war,” that was easily won by the government-controlled media, could be summarized as the co-optation of some intellectuals and the separation of those more “radically inclined.” In summary, the revolutionary dream to politicize the masses through culture never came true: the great economically oppressed masses preferred to what chanchadas and talk shows, like Chacrinha and Silvio Santos, while dreaming of the military promises of economic boom and social mobility. That dream actually translated into the acquisition of a t.v. set and a small apartment in the projects financed by the government bank, BNH. So, in Brazil, the intellectual literary left, disappointed by the people’s lack of “commitment to the revolution.” For the most part distanced itself from the people (do povão) and gradually formed its own elitist, or hegemonic, circles, as Luiz Claudio Carvalho puts it:

… especially in the 70’s, we can observe the formation of a sort of “hegemony” of thought of the left. It was a kind of loose “hegemony” which never took on any kind of concrete social action. Maybe Gramsci’s term, “hegemony,” is not quite appropriate in out [Brazilian] case: what actually happened was a “trend,” a “left Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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fad.” During the 70’s it was “chic,” in social occasions or in bars, particularly in big metropolises as Rio and São Paulo, to speak of Chico Buarque’s new song, or to ask about the “disappeared” Geraldo Vandré, or to carry with you the thick copy of Antonio Callado’s Quarup, a high caliber classic of political literature, which had almost been censored (Carvalho, 1996: 29).

As a result of the unhappy marriage between some leftist intellectuals and the media, a “left rhetoric,” in the social context of the 70’s, slowly gained value as a cultural product—especially in the cultural market aimed at the “more educated” middle class public. The “new counter-culture” of resistance combined a mix of traditional left symbols and icons of a “pop counter-culture” disseminated by mass media. It was not uncommon to find in most middle class teenagers’ rooms a “political kitsch” mosaic display, which included picture of Che Guevara, John Lennon, Rita Lee, peace symbols, etc. This commodification of leftist discourse contributed to increase the gap between the “politicized literary left” and the “uncultured people” with less formal education. While the elite went to the theater and read books, the lower class watched soap operas and read magazines. Unlike elitist academics, Rios understood that besides the great importance given to educational projects—much valued by leftist writers—as a tool for social change, it would be necessary to truly incorporate other elements of pop culture and means of mass communication in order to really achieve political consciousnessraising among the people. During the decades of the 60’sand 70’s, she managed to publish over forty novels that cultivated the ground and laid the foundation for the emergence of a specific gay and lesbian literature in Brazil in the 80’s and 90’s. While she was not the first to depict gays and lesbians in Brazilian literature, unlike her predecessors and contemporaries, Rios was the first author who did not portray homosexuality as pathology or a moral vice. In her novel, although not immune to prejudice, suffering, and human character flaws, Queer subjects are portrayed positively: Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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… Aprendam a fazer a distinção entre os maus elementos e o comportamento da pessoa de bom caráter seja ela ou não homosexual. Nãoprocurem na exaltação do amor … entre duas criaturas do mesmo credo, os sinais da demência ou os arroubos do vício e da corrupção … apenas tentem entender e respeitar o problema de cada um que luta por seus direitos (sejão estes quais forem), sob a pressão do temor inculcado pela hipocrisia que encapa a sociedade (1972: 12).

For this Rios was, indeed, a pioneer in creating and keeping alive a different, new, vision of Queer subjectivity in the Brazilian context. She took into considerations institutionalized forms of oppression, as well as the multiplicity and specificities of gender, sex, race, class—their interdependence —and their the complexity of resistant negotiations on a daily basis. Historically, her writings took on a heightened transgressive significance in the face of the strong prohibitions imposed by the dictatorial regime. On the one hand the dominant system strongly pushed “family values,” while on the other, it severely and violently punished and erased all forms of transgressions—including non-conformity to pre-established sexual roles. In this context, the only possible, “approved” and publicly acknowledged (re)presentation for Queer subjects was the stereotyped, caricatured image perpetrated for/during Carnaval. On the few occasions when it was necessary to refer to Queer subjects in “family” places (as to warn the young, for example), Queers were described much similarly to “The Big Bad Wolf” in cautionary tales, as abject figures. In the media and other vehicles of mass communication/socialization, Queer subjects were portrayed as moral degenerates fit only for scorn. Rather than disregarding this oppressive, imposed image (which was indeed the popular public vision of Queer subjects) and, unlike the literary writers of the left who positioned themselves apart from the people (do povão) directing their writings to a specific elite public, Cassandra Rios took on the oppressor’s gaze while keeping in mind another vision of self and Others, which he could not see (and by Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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extension control or censor). Because she could see from both positions, Rios was able, through the use of simulacrum and farce, to displace her oppressor’s gaze, while inscribing resistant and complex meanings where the dominant eye would bury them. In her books, Rios developed a chronicle-like style that resembled newspaper and popular writings. Thus, she made her literature appealing to the lower class (the naïf) reader, who, in general, was not used to reading books. Always aiming to (re)present “new signification” for/among the popular reader, Rio intentionally avoided “dense” language. She employe,instead, an apparently simplistic dialogue and a ”rising suspense” formula similar to that of Romance de Folhetin in order to present her public with interwoven questions of gender, sexuality, race and class as they pertain to the formation of subjectivities. The, apparently simplistic, text/ picture Rios created seemed, at face value, to reproduce the same ideologies and values of the dominant, white, patriarchal class; but, in fact, it only seemed to be a copy of the hetero-patriarchal Father’s text, just like the suspended grin seemed to belong to Alice’s cat in Lewis Carrol’s novel (1960). However, upon closer scrutiny, both cat’s and Father’s real pictures are nothing but holograms, a tactical “trick” of resistance in a context of institutionalized oppression. As we read Rios’s text with an eye for positive/creative transgression, for example, we are able to see a “hidden transcript” that deconstructs the mainstream narrative to reveal a hidden story of resistance to oppression. This “floating picture/text” Rios creates requires that readers learn how to read the difference and transgression inscribed in it: how do we hear Cassandra Rios’s voice? Does the voice of the patriarchal hetero-Father echo in her, or has she occupied the male heterosexist voice and, by doing so, inscribed herself into hetero-patriarchal language? However, since that mode of speaking does not allow for an active subject place for a lesbian, even as Rios is “into” that voice, is she not, also, outside of it? What happens, then, with the

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excess that cannot be absorbed? What does it mean to be something that, by definition, does not exist? By appropriating and playing with stereotypes, Rios creates a multilayered discourse that disturbs and challenges monolithic notions of binary gender identities, thus, giving voice to a multiplicity of ”invisible” and “nonexistent” Others. Her fiction is highly complex and artfully created in a way that establishes dialogue and intertextuality with the mass culture industry of the “Chanchadas” (Brazilian vaudevilles), “teatro de revista” (Brazilian burlesque theater), and the, then, recently introduced television. In other words, Rios’s work incorporated and dialogued with mass media in order to speak (in a coded language, of course) to the people/o povão. Her palimpsestic texts of simulacrum create a complex picture that combines fragments of all these mediums in order to form a “literary kitsch.” In Patuá (1979 a), for example, Rios combines elements of canonical literature (Don Quixote), Brazilian history (Tiradentes), pop culture (James Bond) and Brazilian soap opera stars (Francisco Cuoco) in order to postulate her “trick,” that challenges the distinction between literature and pop culture/art: Minha irmã Carolina levou um coice de um cavalo e nunca mais licou boa da cabeça. É completamente lelé. Às vezes cisma que eu sou a Lady Godiva se estou comoscabelos soltos; outras me chama de Scheharazade e me pede que lhe conte mais uma estória se não vai mandar matar-me, logo ao amanhecer; persegue a minha avó chamando-a de Joaquim Silverio dos Reis, que por causa dela Tiradented foi enforcado, e chama a caçula Mágda de tartaruga que não sai da sua carapace. Acho que ela nos ve assim mesmo. O Juca é o Conde de Monte Cristo, o James Bond, o Francisco Cuoco, o Don Quixote …. E eu, quando não sou a desgraça e a desonra da família, a Ofélia que casou com Otelo, o rei negro, sou a rainha Elizabeth, ou a dona da Copenhagen porque graças a mim ela todos os dias devora seus chocolates recheados de fruta e licor (RIOS, 1979a, p. 31)

Carolina is evidently part of the cultures elite group that displays a familiarity and thorough knowledge of “high culture.” Her distorted perception, however, Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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blends “high” and “mundane” visions in a manner that obliterates the distinction. Her mad vision poses a challenge to the dominant construction and monopoly over meaning. While forced to conform to the world around her, Carolina is also a subject who contributes to the shaping of the world. Lenina and other people are also “forced” to recognize and acknowledge Carolina’s alternative world/ways of sense making: “I think she really sees us that way.” In her texts, as illustrated in the passage above, Rios precipitates a meaning explosion by creating a “literary kitsch.” Her meaning saturated texts overfills the readers’ senses and produce an “excess,” that cannot be controlled by the dominant paradigm. These multilayered mosaic texts conceal resistance in the face of oppression while, simultaneously, provide space for infra-resistance to flow. As she attempts to give visibility and sociality to Queer subjectivities in a social context where discourse has been monopolized by the fascist regime, Rios faced a hard dilemma. Her writings needed to make sense and be understandable to the popular reader; however, they also required a high level of complexity to disguise the resistant aspects from those in power. Instead of ignoring the oppressive vision, Rios’s trick consisted in embracing and (re)producing oppressive discourse “with a slant.” Rather than taking over the position of oppressive discourse, the “slanted re-production” reworked its internal logic and exposed it as an ideological one, thus subverting the hetero-patriarchal dominant culture’s monopoly over representation. For example, instead of dismissing the stereotyped Carnavalesca caricatures of Queer subjects, Rios often times adopts them as a starting point to introduce Queer realities as part of the everyday life in a way that was both “new” to her hetero public, as well as affirming for her non-hetero readers. By embracing the caricatured representations disseminated by the media-controlled oppressive regime, Rios negotiated censorship while managing to bring these “imagined figures” out of the ghettos of Carnaval (the section of public sphere to which gender transgression has traditionally been confined/exiled) into everyday life Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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sphere. Rios defamiliarize the familiar and, by doing so, specifically reinscribed resistant meaning to it right under the oppressor’s surveilling eyes. Let us look at one scene of Eu Sou Uma Lésbica (1979 b) as an example. Here Rios (re)presents, through the eyes of her main character Flávia—a young,semi-closed lesbian—the “typical” bashing of a butch woman and her effeminate gay friend, as they attempt to pass as a heterosexual couple in order to gain admittance to a Carnaval ball from which Queers had been warned to stay away from: O pau preto desceu na sua cabeça e as pernas da machona dobraram. Comprimi ospeitos com as , sentindo algo estranho e violento. Revolta. Pena. Lástima, e acima de tudo vergonha. Meu carnaval estava acabado. Virou quaresma. O espetaculo era triste demais para mim. A bicha, gritando com sua voz esguiçada coisas que eu nunca ouvira antes, sendo posta para fora; a machona, carregada pelos guardas escada abaixo. Manville [o segurança], medindo a jovem [a namorada da machona] que se encolhera num canto, medrosa e disfarçando não estar com a machona, toda fresca no seu sarong, cheia de colares e olhares de femea acuada, disse, estufando o peito que não estufou, ao contrario, ficou sumido sob a camisa rasgada: “Você pode entrar…” Pensei que a moça fosse fazer meia volta e seguir os guardas quelevavam a machona desfalecida. Quatro deles carregavam o seu fardo, e a sua bunda ia batendo nos degraus, enquanto os saltinhos da sua linda companheira seguiram tlac-tlaqueando para o salão regurgitante. Acho que só não vomitei porque engoli demais as palavras que me subiam a pela garganta, querendo xingar a cadela que, sem pestanejar, preferia o baile de carnaval asaber para onde estariam levando a sua machona (1979 b: 78-79).

Here Rios’s text can be read in several different ways: 1) through the monolithical vision of the oppressor, it is mere reproduction of his vision of the world—those who break the rules of patriarchal traditions suffer for their insubordination; 2) the average citizen is presented with a familiar picture which evokes empathy; 3) homosexual readers, particularly young ones like the narrator of the passage, are presented with a cautionary tale, warning them against the Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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against the dangers and traps Queer folks are subjected to in a homophobic society. ”[This] bleak picture Rios paints of homosexuality in Brazil” (Duncan, 1994:361), as critic Cynthia Duncan puts it, would not be a surprise for most Brazilians in the 60’s and 70’s. However, what is interesting about the way Rios represents Queer subjects in her work is her rejection of the “victim’s role” imposed by the dominant vision. Rios’s characters are not just helpless victims of a homophobic society; they are resistant subjects making choices under oppression. It is precisely at points like this that Rios distinguishes herself from authors like Adelaide Carraro and Carlos Zéfiro, whose works are solely produced as cultural objects to be consumed uncritically in exchange for money. By going beyond mere re-presentation of victimization, Rios and her work take on a pioneer role and unparalleled significance for the field of Gay and Lesbian Studies in Brazilian literature. After what seems to be a reproduction of the same alienating and sensationalistic techniques used by the cultural industry to avoid censorship and “catch” her readers, Rios clearly moves on beyond it to reveal her political project of depicting Queer subjects in a different manner. After painting the familiar picture, which even naïf readers would have no problem identifying, Rios would go further, challenging them to re-think the “obvious.” As Flávia continues her narrative, a community of gender transgressors and resistance to heteronormativity and homophobia comes alive. Nesse interim, olhando para o palanque, deliciando-me com o nervosismo de Manville, que nos seguia com seu olhar em brasa, vi, por trás dele, uma jovem de sarong subindo as escadas do palanque. Ela estava com algo na mão e sua atitude era suspeita, pois se esqueirava enquanto os foliões tentavam encobri-la, pulando em volta dela. Era um grupo estranho de machonas e bichas. Ouvi a gritaria contrastando com o corre-corre. Vi de reliance o corpo de Manville tombando, os foliões descend as escadas aos saltos e gritos.

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A moça de sarong desferira a garrafa de cerjeva sobre a cabeça de Manville. A cara dele estava uma pasta de sangue, que esguichava como um suíno em dia de matança. A gritaria e o corre-corre eram provocados pela turma da machona, que lhe dera cobertura, fazendo-a escaper sem que os guardas ficassem sabendo quem deferira o golpe na cabeça do branquicele despeitado… (RIOS, 1979b, p. 85).

In this passage, it becomes clear that the young femme’s apparent acceptance and resignation to the bouncer’s (and dominant society’s) rules are simply a survival strategy that allowed her to get on with life in spite of oppression. It is significant to notice that resistance is constructed and carried out here, not as an individual act of heroism, but as a communal set of moves negotiate collectively. Writing from location, as a Brazilian lesbian who, like her characters, had to negotiate oppression, identity, class and sexuality on a daily basis, Rios managed/ dared to write explicitly, not just of isolated individuals, but of whole communities of genders transgressors. While she did not restrict her writings to a specific gay and lesbian public, Rios most definitely paid close attention to viados/faggots, putas, transvestites, and particularly sapatonas/dykes. Decades before the “Occupy Wall street” activists showed the importance of taking over public spaces collectively, genders transgressors “occupied” a central role and were given a special subject-role in Rios’s literature. In her works, Rios gave voice and visibility to the existence of an underground community of resistance. In the words of the Brazilian lesbian activist and high school history teacher, Sônia Peixoto, Cassandra Rios’s work spread a sense of community among Queer subjects during a time when one could not speak openly about “these thing.” Peixoto says: “I remember reading her [Rios] in secrecy. It was a really cool feeling seeing written on paper, in a printed book, those feelings I thought no one else besides me felt” (Peixoto, 1998). For this transgressive mode of speaking, which gave visibility to the Sapatona as subject of enunciation while questioning the Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos MASS CULTURE AND THE (RE)PRESENTATION | Rick Santos

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distinction between “high” and “low” modes of narrative, Cassandra Rios’s works were marked and dismissed as pornographic by the elitist and heterocentric groups (critics, academics, censors, etc.), who controlled the “literary field” during the dictatorship years—anos de chumbo—in Brazil. In one of the earliest studies on Brazilian gay literature, Sapê Grootendorst observed that “in Brazil ‘gay literature’ is in general considered to be something forbidden, pornographic, in bad taste and of poor quality. Occasionally, it may serve emancipatory purposes, but in general, it belongs to the ghettos of a forbidden world” (GROOTENDORST, 1993, p. 52). However, in a country where those who hold power (editors, critics, military censors, members of the academy, reviewers and media entrepreneurs, etc.) to make the separation between “Art” and “mass culture” (read, “quality” and “trash” respectively) are highly heterosexist, misogynist, classist and Eurocentric, the very distinction between “quality” and “trash” is a political stance which has to be questioned and understood in relation to its social-political and literary context. For when we take into consideration the socio-political and historical context of her writings, Rios’s work stands out as a monument (re)Presenting Queer subjectivities in a liberatory manner that reveals their humanity and rescues their existence from the fixed objectified position fixed heteronormativity. It was during the “dark years” of repression (nos anos de chumbo) that Cassandra Rios laid the foundation upon which, much later during the re-democratization of country and the “loosening” of the government institutionalized censorship (abertura) of media, would blossom the contemporary Brazilian “Queer wave” of post Stonewall and “AIDS-era” intellectuals.

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REFERÊNCIAS ARAÚJO, Laurita de. Personal conversation, 2008. CARROL, Lewis. Alice’s adventures in wonderland. New York: Signet Classic: Penguin [1872], 1960. CARVALHO, Luiz Cláudio. 1996. Roberto Freire: uma paixão no labirinto. Unpublished Manuscript, 1996. DUNCAN, Cynthia. Cassandra Rios. In: Latin American Writers on Gay and Lesbian Themes. Ed. Divid Foster. Westport, CT and London: Greenwood Press, 1994. GROOTENDORST, Sapê. Literatura gay no Brasil: dezoito escritores brasileiros falando da temática homoerótica. Unpublished Manuscript, 1993. PEIXOTO, Sônia. Personal conversation, 1998. RIOS, Cassandra. Patuá. Rio de Janeiro: Record, 1979a. _______. Eu sou uma lésbica. Rio de Janeiro: Record, 1979b. _______. Mutreta. Rio de Janeiro and São Paulo: Editora Mundo Musical, 1972.

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O SAGRADO E A COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA

SACRED AND CONTEMPORARY COMMUNICATION

artigos

Nizia Villaça

Pós-Doutora em Antropologia Cultural, Paris V, Sorbonne. Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Titular Emérita da Escola de Comunicação (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: nmvillaca@uol.com.br


Resumo: O texto busca dessacralizar o entendimento do que seja sagrado, tanto na diversa tradução religiosa, quanto nas expressões espetaculares da comunicação contemporânea que acaba por pluralizar o entendimento do tema sem que, por isso, perca as marcas de sua liturgia incluindo os efeitos de poder. Palavras-chave: Sagrado. Espetáculo. Poder. Abstract: The text search desacralize the understanding of what is sacred, both in translation diverse religious expressions as in spectacular contemporary communication which ultimately pluralize understanding of the subject without thereby lose marks its liturgy including the effects of power. Key words: Sacred. Entertainment. Power.


Inventa e você morrerá como um criminal, repete e você viverá feliz como um tolo Balzac

Nossa reflexão a propósito do sagrado se apóia, notadamente, em Giorgio Agamben (2007). Buscamos pensar a dinâmica do sagrado como uma estratégia de poder que amplia o trabalho de Foucault. Agamben fez uma leitura corajosa do pensamento político contemporâneo falando da biopolítica como luta da vida contra o poder. O estatuto do sagrado se insere e dá continuidade à suas reflexões acerca do capitalismo, das revoluções tecnológicas modernas e da insegurança jurídica nas sociedades contemporâneas. Nesta linha de pensamento, profanar – conceito originalmente romano – significa tirar do templo (fanum), subtraindo algo do uso da propriedade dos seres humanos. Desta forma, a profanação pressupõe o sagrado (sacer), ato de retirar do uso comum. O capitalismo é visto criticamente como religião e a tarefa das novas gerações será libertar-se da asfixia consumista e, paralelamente, afastar-se também da sacralização do eu soberano de Descartes chamando a atenção para o impessoal, o obscuro e o pré-individual de cada um de nós: o gênio, a magia, o jogo, como fugas de captura em dispositivos de poder. Os juristas romanos sabiam perfeitamente o sentido de profanar. Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses e assim, subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Puro, profano, livre dos nomes sagrados é o que é restituído ao uso comum dos homens o que supõe um processo de profanação cuja possibilidade o autor discute. O que foi separado ritualmente como sagrado pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana, ganhando novas dinâmicas e usos. A religião supõe distinção entre sagrado e profano. Contra o universo das regras, profanar não implicará em incredulidade ou indiferença com relação ao Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos O Sagrado e a Comunicação Contemporânea | Nizia Villaça

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divino, mas uma “negligência”, uma atitude livre e distraída que ignora a separação ou faz dela uso particular, criativo, em que o imaginário desempenha papel fundamental. O jogo, por exemplo, libera a humanidade da esfera do sagrado, mas sem o abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso não utilitarista, os objetos transformam-se em brinquedos e a “religio”, que já era percebida como falsa ou opressora, passa a “vera religio” ou “negligência”. O homem moderno parece não saber jogar com a multiplicação vertiginosa de novos e velhos jogos, buscando o sagrado na forma de insossas cerimônias da nova religião espetacular onde o mito desaparece para deixar apenas o rito. Nesse sentido, os jogos televisivos de massa fazem parte de uma nova liturgia, e secularizam uma intenção inconscientemente religiosa. Segundo Agamben (2007), é preciso fazer, portanto, uma distinção entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças que se deslocam de um lugar para o outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado, remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado. O sagrado se construiu como contraponto para ideias novas que sempre amedrontaram a humanidade, formando um espaço que era controlado por mitos e ritos imutáveis. O sagrado demarcava espaços que deveriam ser respeitados na sua diferença embora, como sublinhou Weber (2006), a razão e a emoção se misturassem e tipos de vida racional e metódica passassem por pressuposições irracionais. A importância do carisma foi acentuada pelo autor e a ética dos protestantes esteve na origem do capitalismo moderno. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos O Sagrado e a Comunicação Contemporânea | Nizia Villaça

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O sagrado de alguma forma ocupa o topo da pirâmide produtora de sentido. Desta forma, quando atravessamos a crise do sentido, o sagrado também entra em crise. A compreensão da evolução do sagrado passa por uma revolução que implica numa mudança do paradigma do sentido. Como fato histórico e cultural o sagrado passou por mudanças que implicaram enfraquecimento e, paradoxalmente, maior proximidade do quotidiano. Traçaremos aqui um pequeno roteiro esboçando o rebaixamento do sagrado, partindo das sociedades primitivas e caminhando em direção à profanização e pragmatismo de algumas tendências contemporâneas que convivem frequentemente na mídia com esoterismos e misticismos. Se pensarmos nas grandes religiões, nos grandes relatos, não temos no contemporâneo a oferta organizada de tabus, os livros sagrados parecem ter sido substituídos por livros mágicos e de ajuda, e o bem e o mal como outros produtos se misturam nas telas de cinema e outras plataformas eletrônicas que recorrem às imagens bíblicas e arcaicas para dar força aos apelos do marketing. Também, os espaços siderais produzidos digitalmente são chamados a substituir o Olimpo ou as Abóbodas Celestes. Na sociedade primitiva, o sagrado se apoiava na natureza figurado em objetos fetiches que mediavam a transcendência. Hoje, desaparece a sacralidade sentida pelo homem na sua pequenez sob a grandeza da natureza mãe e madrasta com seus deuses invocados para premiar e castigar, como refere Mircea Eliade (1974). A religião medieval na Era Cristã era emblemática do mistério do mundo trancado entre mosteiros em textos na mão de poucos. Com o iluminismo, a razão acabou com a mitologia por meio da racionalidade científica. O homem sábio substitui o sacerdote. Como bem afirma Adorno e Horkheimer, a ciência veio dissipar o mito e acaba presa da mitologia com o endeusamento da técnica. As articulações da mídia com o sagrado suscitam hoje inúmeras reflexões que discutem os rituais de lugar e tempo passíveis de serem investidos de sacralidade. A mídia cabe no sagrado e o sagrado na mídia? Não assistimos a uma certa divinização midiática mesmo que seja de cunho profano, ou são as Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos O Sagrado e a Comunicação Contemporânea | Nizia Villaça

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igrejas evangélicas que levam à mídia sua sacralidade? Na esteira destas questões faremos comentários a propósito do imaginário contemporâneo do movimento Nova Era, a obra de Paulo Coelho e seu misticismo aplaudido globalmente.

Universo místico e mágico de Paulo Coelho O autor faz de sua literatura um veículo de divulgação de ideias, crenças e representações do universo mágico-religioso que o identificam com o movimento Nova Era.1 Seus livros são uma espécie de obra militante, na medida em que entre histórias romanceadas de personagens, que vão descobrindo o mundo mágico-religioso, conta seu próprio trânsito e vivência por diversas crenças, saberes, símbolos e representações de diferentes tradições do pensamento cristão e pré-cristão. Assim, em seus livros, descortina-se um universo mágico-religioso marcado por uma diversidade temática simbólica: peregrinação religiosa, anjos, alquimia, bruxas, realização de milagres, a descoberta da face feminina de Deus, o pertencimento a ordens místicas que remontam o catolicismo medieval. Apresenta em sua literatura, uma perspectiva eclética e variada de símbolos crenças e representações. Descortina um universo mágico espiritual que tem um único objetivo, o desenvolvimento espiritual individual como meio de transformação pessoal. Através de sua literatura, o autor populariza um conjunto de conteúdos de ordem mágico espiritual. Este conjunto abre-se ao leitor como uma “realidade” possível, em que todos os que desejam vivenciar esse universo podem ter acesso. Dessa forma, a vivência da esfera religiosa pode ser apropriada como um modo de vida. 1

O movimento da Nova Era (do inglês New Age) tem como característica uma fusão de ensinos metafísicos de influência oriental, de linhas teológicas, de crenças espiritualistas, animistas e paracientíficas, com uma proposta de um novo modelo de consciência moral, psicológica e social além de integração e simbiose com o meio envolvente, a Natureza e até o Cosmos. Tem muitas vezes como base um caráter libertário e de oposição à ortodoxia e o conservadorismo das religiões organizadas. O movimento da Nova Era em si ocorreu nas décadas de 1960 e 1970, tendo como inspiração princípios teosóficos, e escritos sincréticos do século XIX e início do século XX. Faz parte dos movimentos de contracultura da época e serve como ferramenta de contestação contra as religiões e valores tradicionais. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos O Sagrado e a Comunicação Contemporânea | Nizia Villaça

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Dentro dessa perspectiva, vamos encontrar uma expressão variada dessas manifestações de espiritualidade através de ligação com práticas e objetos que o simbolizam. Identificam-se a essa vivência de espiritualidade um conjunto de comportamentos relacionados ao lazer, consumo de objetos e serviços que fundamenta um estilo de vida (MAGNANI, 1995). Nesse universo de “mercado de bens simbólicos”, encontramos a literatura de Paulo Coelho2 como “produto” de grande expressão comercial e de mídia, de grande sucesso, divulgando em seus textos a mensagem Nova Era. Muito dos seus enredos expressam o estilo de espiritualidade Nova Era. A literatura mística espiritual de Paulo Coelho constitui-se como expressão textual de um conjunto de ideias e práticas, que se caracterizam como próprias do movimento Nova Era. O cerne deste movimento é o desenvolvimento espiritual como meio de autoaperfeiçoamento do indivíduo na busca da autorrealização. Em outras palavras, a literatura de Coelho é um produto da Nova Era, difundindo com seus enredos a proposta central desse movimento, que coloca o desenvolvimento espiritual como meio individual de transformação global do indivíduo, pois alcança o autoconhecimento, o bem estar e a sua autorrealização. Por outro lado, a obra do escritor, juntamente, com outros livros que abordam a mesma temática do desenvolvimento do indivíduo e sua autorrealização constituem-se em uma importante expressão cultural. Observase um enorme consumo desses livros – vide, por exemplo, a listagem de livros mais vendidos, divulgados semanalmente nos principais jornais do país. Os livros de Paulo Coelho têm estado entre os primeiros ao longo de toda uma década. Com um número de leitores no mundo todo, que ultrapassa a 15 milhões, segundo os dados de divulgação do próprio autor. Por isso, consideramos ser importante um estudo que se dedique à análise dos temas que vêm sendo trabalhados pelo autor e, mais, como estes são aprendidos e significados pelos seus leitores. A importância deste estudo, não reside na compreensão da literatura em si mesma, mas para, através dela,

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Ver sobre o autor: O monte cinco (2007); O alquimista (2006); O diário de um mago (2006); e Brida (1990). Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos O Sagrado e a Comunicação Contemporânea | Nizia Villaça

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enquanto expressão de um “consumo” que se relaciona a demandas de ordem espiritual, poder inferir dados que signifiquem um contexto social que indica estar na religião, um tema relevante que aporta sentidos para compreendermos a época em que vivemos, onde cada vez mais os comportamentos sociais indicam que há uma busca de sentido para vida envolvendo temas de ordem espiritualreligiosa. Marcando assim, o que muitos estudiosos vêm indicando como complexo ambiente de recomposição do sagrado que serve de reorientação das práticas sociais dos indivíduos. Paulo Coelho difunde, através de sua literatura, um imaginário de possibilidades de vivências místicas e de experiências espirituais numa sociedade moderna tecnologizada sem, contudo, exortar o banimento ou amaldiçoamento dos artefatos materiais como causa da infelicidade das pessoas. Pelo contrário, a questão toda centra-se em uma busca individual que propicie a melhoria da inserção do indivíduo neste mundo racionalizado. O objetivo é mostrar novas formas de relacionamento para as pessoas com esses produtos culturais, possibilitando o (re)significamento disto para suas vidas. A difusão, através de sua literatura, de crenças e proposta espirituais de tipos variados compõe o ideário do movimento Nova Era. A solução para os problemas que as pessoas encontram estão dentro dos próprios indivíduos, o que se torna necessário é apresentar as formas possíveis do despertar dessas forças potenciais.

Sagrado: pluralização, individualismo e esvaziamento Tornou-se lugar comum hoje, nos estudos sobre religião desenvolvidos pelas Ciências Sociais, o reconhecimento da importância do fenômeno da revitalização do campo sagrado. Em vários aspectos trata-se de uma recomposição deste campo, mas em outros, depara-se com uma profusão de novas formas de religiosidade.

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Ao lado das formas tradicionais de religião sobrepõem-se uma diversidade de crenças manifestas, sob a forma de novos movimentos religiosos, grupos e seitas de diversas origens, com diferentes orientações e práticas espirituais. Essa diversidade de expressões, referem-se à presença de sistemas religiosos orientais como hinduismo, budismo e taoismo, ou em suas derivações que se apresentam em propostas terapêuticas como meditação transcendental, IChing ou seitas como Hare Krishna, Haj-neesh. Há também no seio das religiões judaíco-cristãs novas expressões religiosas que emergem como o movimento carismático na Igreja Católica; as Seitas Pentecostais e Neopetencostais, desmembrando-se das Igrejas Evangélicas. Encontra-se ainda, novas alternativas religiosas como o Santo Daime, resultante da reunião de elementos sincréticos católicos populares com elementos rituais indígenas, constituindo-se como um culto xamânico vegetalista. Toda essa diversidade de crenças e práticas religiosas é indicadora da magnitude da oferta espiritual nos dias de hoje. Nessa direção, uma das características centrais desse complexo fenômeno contemporâneo de oferta de sentidos e representações religiosas, é que ao lado de suas propostas de desenvolvimento espiritual, encontra-se a oferta de serviços terapêuticos e objetos carregados de sentidos transcendentais. Na esteira desse fenômeno, encontramos no movimento da Nova Era uma das expressões significativas da diversidade e revitalização do campo religioso. Esse movimento apresenta sua centralidade na proposta de que cada indivíduo faça seus próprios recortes espirituais montando seu próprio sistema produtor de sentido e de explicação da realidade, sob a lógica do cultivo de si, da transformação do self e da crença na chegada de uma nova era para o planeta (PETERS, 1992). A dinâmica do sagrado hoje atravessa, portanto, movimentos de secularização, espetacularização e um pluralismo crescente que frequentemente o esvazia de sentido. É o rito sem o mito. Recentemente, no Rio de Janeiro, a estreia de um espetáculo teatral da artista Cláudia Raia deixou visível o rebaixamento das crenças. “Sou messiânico, peço ao Deus Meishu-Sama que eu seja um bom catalisador da energia divina e Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos O Sagrado e a Comunicação Contemporânea | Nizia Villaça

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me coloco à disposição”, dizia Jarbas Homem de Mello; Guilherme Magon, que divide o camarim com Jarbas, é católico. “Rezo Pai Nosso, Ave Maria e peço para abrir a minha escuta aos outros”. No camarim ao lado, a budista Cláudia Raia se preparava física e espiritualmente antes de subir ao palco. Se maquiava e rezava. “Rezo mantras pedindo humildade para que a minha vaidade não se sobreponha ao personagem”, contava Cláudia (SANTOS, 2012, p. 3). O desfile masculino de Alexandre Herchcovitch foi um dos poucos momentos relevantes desta temporada da São Paulo Fashion Week. Inspirada nos trajes dos judeus ortodoxos, a coleção desperta o olhar com uma discussão muito perspicaz sobre a questão da fé e da tradição no cotidiano. Resgatando os lenços, coletes e mantos tradicionais, o estilista criou uma série sofisticada, contemporânea, vendável e bem construída. A roupa de Herchcovitch conversa diretamente com a ideia por trás da música do grupo. Está conectada com os cool jews (judeus cool), termo usado na comunidade judaica americana e que virou até um livro com dicas para adolescentes. Muitos passaram a fazer questão de usar o quipá, por exemplo, só que em versões modernas e estampadas, como se fosse um boné. Das belas camisas e vestes com franjas às listras que começam nas mangas – lembrando a faixa que prende o tefilin (acessório que contém trechos da Torá, usado durante as preces) ao braço – e depois viram estampas de jaquetões de nylon, tudo aparece em versão destituída da carga religiosa e suas consequências (WHITEMAN, 2012, p. C7). Tais exemplos apontam o esvaziamento do sentido do sagrado, transformando-o em pura retórica apropriada pelos dispositivos da moda e do espetáculo. Hoje, no entanto, a consumação da sociedade e da comunicação, para dar visibilidade aos produtos e interação entre pesquisa de mercado com o público, frequentemente usam a chamada para a cultura religiosa e misturam o racional e emoção como Carey (1992, p. 13-36) disse em seu design de comunicação e as metáforas do universo mítico e religioso.

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REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. CAREY, J. Communication as culture: essays on media and society. New York: Routledge, 1992. COELHO, Paulo. O monte cinco. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. ______. O alquimista. São Paulo: Planeta do Brasil, 2006. ______. O diário de um mago. São Paulo: Planeta do Brasil, 2006. ______. Brida. São Paulo : Planeta do Brasil, 1990. ELIADE, Mircea. Traité d´histoire des religions. Paris: Payot, 1974. MAGNANI, José G. Cantor. Esotéricos na cidade: os novos espaços de encontro, vivência e culto. In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo: Fundação SEADE, v. 9, n°. 2, abr/jun, 1995. PETERS, Ted. O eu cósmico. São Paulo: Siciliano, 1992. SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Vida é um cabaré com Buda, Jesus e Falabella. In: O Globo, 4 de abril de 2012. Segundo Caderno. WEBER, Max. Sociologie de la religion; tradução Isabelle Kalinowski. Paris: Flammarion, 2006. WHITEMAN, Vivian. Judaísmo inspira Herchcovitch no último dia da SPFW. In: Folha de S. Paulo, 25 de janeiro de 2012. Cotidiano.

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COMPLEXIDADE E FOTOGRAFIA COMPLEXITY AND PHOTOGRAPHY

Matheus Mazini Ramos* Silvia Laurentiz**

artigos

*Doutorando em Artes Visuais pela ECA/USP. Professor Acadêmico e de cursos técnicos livres na área de comunicação e fotografia. Fotógrafo jornalístico e publicitário. Sorocaba, SP, Brasil. E-mail: mmazini@ gmail.com. **Livre Docente. Professora Associada da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Leciona no Departamento de Artes Plásticas, na graduação, e no Programa Pós-graduação em Artes Visuais, ambos da ECA-USP. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: laurentz@uol.com.br


Resumo: Atualmente, diferentes campos do conhecimento discutem a imagem e seu potencial de representação. A partir da complexidade fotográfica, fundamentada principalmente pelo conceito de Umwelt, apresentamos sua condição de simultaneamente ser mediação entre objetos e coisas: não sendo de fato “as coisas fotografadas do mundo”, deixando clara sua condição ficcional, e sendo “coisas do mundo” (referente a elementos do mundo ainda não-objetivados). Palavras-chave: Fotografia. Percepção. Umwelt. Sistemas. Abstract: Currently, different fields of knowledge discuss the image and its potential of representation. From the photographic complexity, based mainly on the concept of Umwelt, we present the condition of the image be simultaneously a mediation between objects and things: not actually being “photographed things in the world”, making clear its fictional condition, and being “things of the world” (referring to elements of the world still non-objectivated). Keywords: Photography. Perception. Umwelt. Systems.


INTRODUÇÃO Embora existam formas de conhecimento que não possuem algo em comum, arte e ciência compartilham algumas particularidades, e um núcleo comum, sua relação com o mundo: enquanto a ciência assume uma posição que a ocupa em construir esquemas conceituais ou representações que reflitam de forma objetiva a realidade do mundo, a arte, por sua vez, apresenta-nos uma posição que nos permite discorrer sobre as possibilidades do real (VIEIRA, 2008), consequentemente, realidades possíveis. Arte e ciência, desta forma, desempenham um importante papel, uma complementando a outra. Entretanto, ambas, na tentativa de garantir a sobrevivência do sistema cognitivo que as cria, apresentam uma nova interface, que, segundo Jorge Albuquerque Vieira (2008), é desenvolvida ao longo da evolução dos sistemas cognitivos e da própria realidade. Esta interface tenta suprir de alguma forma as diferenças da realidade percebidas pelo sistema vivo. Para essas diferenças é dado o nome de informação.

Informação como diferença, que pode ser entendida como objetiva e/ou como aquela que é percebida e elaborada por um sistema cognitivo, logo com certo teor de subjetividade. Diferenças podem estar associadas às distribuições espaciais na organização de um sistema ou podem surgir ao longo do tempo, na evolução de alguma propriedade do mesmo. (VIEIRA, 2008, p. 78)

Faz-se necessário uma interface que codifique as diferenças/informações e as armazene em um sistema, de modo particular neste artigo, no sistema cognitivo do indivíduo. Este filtro de informações que cresce na medida em que se amplia a experiência do indivíduo com a realidade tem recebido grande atenção nos últimos tempos. Veremos o conceito de Umwelt, criado por Jakob von Uexküll, e depois muito bem trabalhado por Jorge Albuquerque Vieira, no texto supracitado.

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Amplificação do Umwelt biológico O conceito de Umwelt – termo que pode ser traduzido como “mundo ao redor” e/ou “mundo ao entorno” – primordialmente, veio dar conta do mundo objetivo da percepção dos animais em seu meio ambiente. “You can see further that the Umwelt is an exclusively objective world, not because it does not involve things, but because it envolves things only in known aspects” (DEELY, 2004, p. 20). Quer dizer que objetos, quando se tornaram conscientes (o que os diferenciam de “coisas”, para o autor), estão suscetíveis para serem investigados, de acordo com qualquer constituição intrínseca que possam ter ou através de uma mistura enquanto realidade socialmente construída. Outra questão importante é que por “mundo objetivo” não se está opondo a um “mundo subjetivo”, pois, na verdade, parcialmente, ou pelo menos sob alguns aspectos, inclui algo de subjetividade através da sensação, modo pelo qual o mundo objetivo é percebido. Esta posição, John Deely explica: The Innenwelt is subjective; it is the modeling system not only speciesspecific to each variety of animal, but also intrinsic to each individual of whatever variety. But the Umwelt is objective, a public realm within each species yet between all individuals of that species and, to some measure (if never completely), public even across some species. The human Umwelt is first of all an animal Umwelt, a species-specific objective world, but it is based on a biologically under-determined Innenwelt or modeling system. This modeling system, the speciesspecifically human Innenwelt, Sebeok1 came to call "language" in the root sense, in contrast to the common (mis)use of the term “language” to mean what is in reality the exaptation of language to communicate and to constitute linguistic communication as the species-specifically human communication modality. (DEELY, 2004, p. 20/21)

Desta forma, linguagem é um tipo de adaptação da espécie (exaptação) para sobrevivência, baseada na experiência de cada espécie com o mundo.

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Refere-se a Thomas Sebeok, Sebeok, professor emérito da Universidade de Indiana, EUA, que ampliou o universo da semiótica incluindo cadeias sígnicas não humanas, cunhou o termo "zoosemiótica" e levantou algumas das questões abordadas pela filosofia da mente. Ele também foi um dos fundadores da biossemiótica. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Complexidade e Fotografia | Matheus Manzini/ Silvia Laurentiz

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A ideia surge da premissa de que cada animal possui seu mundo próprio, seu mundo particular, de modo geral, suas próprias percepções e, os mesmos devem ser entendidos dentro de seu habitat, meio em que vivem. Uexküll entendia o sistema vital de forma coerente onde o sujeito e um dado objeto observado, se definiam como objetos inter-relacionados em um todo maior. “O Umwelt seria assim uma espécie de interface entre o sistema vivo e a realidade, interface essa que caracteriza a espécie, em função de sua particular história evolutiva”. (VIEIRA, 2008, p. 79) Essa ideia pode ser bem representada na forma de uma metáfora; Uma metáfora esclarecedora seria imaginar um determinado sistema vivo como que preso em uma bolha, que não seria completamente ou perfeitamente transparente, mas que funcionaria como um sistema de filtros. É claro que a base biológica do Umwelt é fortemente associada aos canais de percepção do ser vivo. Mas além dos sistemas perceptuais, essa “bolha” envolve processos de elaboração interna de informações nos sistemas nervosos envolvidos. Tendo-se em conta a hipótese ontológica de que a realidade é complexa, cada “bolha” ou sistemas de filtros seleciona características, representações, perspectivas da mesma de forma particular para cada sistema cognitivo (...). (VIEIRA, 2008, p. 79)

Com isso, grande parte da informação que um sistema vivo recebe da realidade que o rodeia é armazenada e codificada em seu universo particular e, na medida em que o mesmo sistema se depara com outras realidades ou experiências, a bolha de informações que o cerca tende a aumentar e/ou enriquecer, como um círculo vicioso. O Umwelt é representado pela interface capaz de armazenar códigos/informações captadas da diferença que é proporcionada pela realidade, esses códigos/informações podem ser analisados também como a ‘função memória’ de um sistema vivo. Como um Umwelt seleciona e filtra informações provindas do ambiente e as internaliza de forma codificada, todo material que um sistema vivo dispõe para construir conhecimento é representacional, ou seja, é construído de “algos” que representam um “algo externo” para um “algo” particular, que é o sistema cognitivo. Esta última conceituação, triádica, envolvendo os 3 “algos”, é o que Peirce chamou de Signo. (VIEIRA, 2008, p. 79)

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Esta noção de Signo amplia a posição anteriormente apresentada por Deely de linguagem e o surgimento de sistemas comunicacionais como estratégia de permanência da espécie. Não só os sistemas vivos, mas todos os outros sistemas, para sua sobrevivência e sua permanência no tempo, precisam estar atentos às variações de uma dada realidade e, principalmente, serem sensíveis às características que são importantes dessa realidade. Contudo, segundo Vieira (2008), tendo em vista que o conceito de Umwelt é a interface, a ponte entre o mundo da realidade objetiva e o mundo das representações de um sistema cognitivo, não pode ser visto somente como objetivo. Nem tão pouco como subjetivo, valendo-se do fato de ser uma mediação, pois a subjetividade tem que estar ancorada pela objetividade, caso contrário, o indivíduo não sobreviveria por não conseguir adaptar-se bem à realidade, e vice-versa. É neste ponto que o conceito de Umwelt torna-se amplificado. Mas há um ponto fundamental para a espécie humana, que já foi observado por vários filósofos contemporâneos. Nosso Umwelt já deixou de ser meramente biológico. A complexidade humana, principalmente manifestada pela extrasomatização de signos constitui as esferas do psicológico, do psicosocial, do social e do cultural. (VIEIRA, 2008, p. 80-81)

Por essa razão, vivemos hoje em um mundo permeado de signos pertencentes às mais variadas áreas de conhecimento e que compreende, portanto, vários níveis de complexidades, não apenas do sistema biológico. O termo filosófico “mundividência” (VITA, 1964), o qual significa “visão do mundo”, abarca o conceito, amplificado, desenvolvido por Uexküll. Mundividência implica em um conceito de informações, adquiridas ao longo da vida, desde nosso nascimento até nossa morte, das diferenças proporcionadas pela realidade e que consolidam e formam nossa posição sobre o mundo, pois,

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cada indivíduo possui um contexto sistêmico de natureza histórica, cultural, hereditária e, na contemporaneidade, midiática. Desta forma, o conceito de “Umwelt amplificado” que pode ser representado pelo conceito filosófico de “mundividência”2 , torna-se uma potencial ferramenta para percebermos e lermos um mundo que, cada vez mais, passa a ser um mundo de signos, de representações, o que reflete de forma direta nas próprias questões que envolvem, por exemplo, o sistema fotográfico. Os signos filtrados e armazenados pelo Umwelt podem direcionar a forma com que percebemos e concebemos as complexidades das representações – da realidade concreta – apresentadas pela imagem fotográfica na medida em que dá subsídios ao leitor da fotografia que permite, além de um conhecimento específico do código fotográfico, nas mais variadas áreas, caminhar para um processo de semiose. Este último refere-se ao termo introduzido por Charles Sanders Peirce para designar um processo de significação ou produção de significados. O que Peirce denomina semiose, ou ação do signo, se consolida nessa tríade signo/objeto/interpretante que se movimenta, tanto no sentido de continuar na geração de interpretantes como na de se aproximar do objeto. Assim, o signo gera um interpretante e esse, por sua vez, passa a exercer o papel de signo – outro signo –, assim gera outro interpretante, sucessivamente. No movimento dessa tríade, o homem desempenha o papel de mediador entre um signo e outro e o signo, por sua vez, é um mediador entre o homem e o mundo. Desta forma, podemos afirmar que o signo peirceano é potencialmente qualificado para ser um produto do Umwelt, uma vez que o mesmo filtra as informações vindas da realidade e as internaliza. Sendo assim, todo material que um sistema vivo possui para ler o mundo tem um caráter substancialmente representacional. Jorge Albuquerque Vieira reforça esta

Outro termo utilizado para tratar de assunto correlato é “Semiosfera”. Fica aqui registrada a importância de um novo trabalho sobre a relação entre Semiosfera, Umwelt e Mundividência. Neste momento podemos citar o livro “Semiótica da cultura e semiosfera”, organizado por Irene Machado, pela ed. Annablume, SP, em 2007. 2

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afirmação dizendo que só acessamos no mundo o “semioticamente real” (VIEIRA, 1994, 2008). Essas reflexões firmam que a fotografia - que envolve uma técnica -, desenha, engendra e constrói uma linguagem. Os aparelhos, que quando manipulados lançam ao mundo objetos diferentes – as fotografias -, constroem processos que são observados no tempo. Eles engendram novas relações entre as pessoas, bem como relações entre eles e as pessoas, relações estas que envolvem também outros aparelhos já existentes. A engenharia dessas relações constitui a linguagem, no caso, a fotográfica. Deste modo, a fotografia constrói significados, uma vez que pode afetar nossos sentidos, provocar reações imediatas e nos levar também às reflexões, ou seja, nesse caminhar, a fotografia – como objeto do mundo –, se transforma, se converte em signo, substrato para nossa consciência. Mas essa linguagem é distinta da linguagem verbal, uma vez que ela é constituída por formas visuais representadas, signos distintos da palavra, que apresentam ou representam coisas do mundo visível.

Permanência do Umwelt Pelos motivos apresentados, a fotografia se qualifica, também, como uma importante estratégia de sobrevivência do Umwelt, na medida em que se transforma em linguagem, é memória, e efetua um importante papel na permanência de um sistema no tempo. Para Vieira “memória é uma grande solução evolutiva. Da mesma forma que o código genético preserva a informação e a propaga, uma obra de arte é guardada, evocada, transmitida pela cultura de um povo”. (VIEIRA, 2008, p. 95) A íntima relação da fotografia com a realidade que nos cerca, e sua capacitação técnica, bem como contextual, de deter informações sobre tal realidade, faz com que a imagem fotográfica se apodere de características que são peculiares ao real, enfatizando a relação mimética com seu referente. Tais observações, que no atual campo de estudo – o da fotografia –, já foram Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Complexidade e Fotografia | Matheus Manzini/ Silvia Laurentiz

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vastamente discutidas por diversos pesquisadores da imagem, hoje, nos dão subsídios em pensar a fotografia como uma importante ferramenta do Umwelt para preservação da espécie no tempo. Ontologicamente, a imagem fotográfica participa de uma realidade diferente daquela que a gera, pois se trata de uma bidimensionalidade, uma imagem plana, diferente da visão tridimensional humana, mas seu poder de registro, documento, de fixar espaço e tempo, torna a mesma uma potencial ferramenta para “comutação” do real.

A fotografia, uma das invenções que ocorreram naquele contexto, teria papel fundamental enquanto possibilidade inovadora de informação e conhecimento, instrumento de apoio à pesquisa nos diferentes campos da ciência e também como forma de expressão artística. (KOSSOY, 2001, p.25)

Com isso, a realidade capturada pela imagem fotográfica, apesar de sua condição ficcional, carrega variações do real, que estão internalizadas como informações em seu âmago, o que propicia uma conexão direta entre um sistema cognitivo com a interface fotográfica. Essa mediação é matéria-prima do Umwelt. O mundo tornou-se de certa forma “familiar” após o advento da fotografia; o homem passou a ter um conhecimento mais preciso e amplo de outras realidades que lhe eram, até aquele momento, transmitidas unicamente pela tradição escrita, verbal e pictórica. (KOSSOY, 2001, p.26)

A fotografia, especialmente a documental, torna-se ampla fonte de conhecimento. A imagem fotográfica, da mesma forma que suscita emoções é ao mesmo tempo uma fonte de informação, exatamente por essa última questão que, principalmente, em meados do século XX, o mundo se viu aos poucos sendo substituído por sua imagem. Ainda na esteira do autor, a fotografia propiciaria uma inusitada possibilidade de autoconhecimento, de recordação, de criação artística, de Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Complexidade e Fotografia | Matheus Manzini/ Silvia Laurentiz

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documentação e denúncia graças a sua natureza testemunhal, ou melhor dizendo, nas palavras de Kossoy, “graças a sua condição técnica de registro preciso do aparente e das aparências” (KOSSOY, 2001, p. 27). A realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pelas imagens; e os filósofos, desde Platão, tentaram admitir nossa dependência das imagens ao evocar o padrão de um modo de apreender o real sem usar imagens. Mas quando, em meados do século XIX, o padrão parecia estar, afinal, ao nosso alcance, o recuo das antigas ilusões religiosas e políticas em face da investida do pensamento científico e humanístico não criou – como se previa – deserções em massa em favor do real. Ao contrário, a nova era da descrença reforçou a lealdade às imagens. (SONTAG, 2004, p. 169)

De forma mais específica, segundo Sontag (2008), as crenças que não podiam ser mais concedidas à realidade compreendida na forma de imagens, eram concedidas à realidade compreendida como se fossem imagens. Neste sentido, observamos que a fotografia tem esta capacidade de causar uma sensação de aquisição do “real capturado”. Quando tiramos uma foto temos a impressão que obtemos a “posse temporária” de um determinado objeto (no sentido de “coisa consciente”), ou de uma determinada pessoa. A imagem fotográfica capta a essência do objeto fotografado, torna-se um pouco desse objeto. Mas é mais do que isso. Susan Sontag cita o filósofo alemão Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872), no prefácio da segunda edição de “A essência do cristianismo”, quando observa que nossa era prefere “a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser” (SONTAG, 2004, p. 169). Com isso, a autora conclui que, ao mesmo tempo, temos a perfeita consciência desta condição da imagem. E seu lamento premonitório transformou-se, no século XX, num diagnóstico amplamente aceito: uma sociedade se torna “moderna” quando uma de suas atividades principais consiste em produzir e consumir imagens, quando imagens que têm poderes excepcionais para determinar nossas necessidades em relação à realidade e são, elas Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Complexidade e Fotografia | Matheus Manzini/ Silvia Laurentiz

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mesmas, cobiçados substitutos da experiência em primeira mão se tornam indispensáveis para a saúde da economia, para a estabilidade do corpo social e para a busca da felicidade privada. (SONTAG, 2004, p. 169-170).

Talvez o principal fator que leva a imagem fotográfica a se tornar uma estratégia de sobrevivência para a ‘espécie’, seja essa capacidade que a fotografia tem de ser percebida como a própria realidade, sendo “coisa fotografada”, mas como também sendo “coisa”. O que leva a discussão sobre a relação entre Objeto Dinâmico (externo ao signo) e Objeto Imediato (pertencente ao próprio signo) de Charles Sanders Peirce e a importância desta relação na própria concepção de realidade, ou ainda, da percepção do real (BERNSTEIN: 1964; HAUSMAN: 1990; VIEIRA: 1994; LAURENTIZ: 1997, 2007). Desta forma, ao mesmo tempo, a fotografia se apresenta sendo mediação entre os objetos, não sendo de fato “as coisas/fotografadas do mundo”, deixando clara sua condição ficcional, e sendo também “coisas do mundo”, portanto, objeto mediado e imediato. Mas a grande questão é que deve haver uma coerência entre as coisas do mundo e suas representações/mediações (no sentido de objetivação dos elementos do mundo), pois estas são criadas como estratégias de sobrevivência, conforme o exposto, e não sendo coerente com o real, a espécie não sobreviveria.

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REFERÊNCIAS BERNSTEIN, Richard J. Peirce´s, Theory of Perception, In Studies in the Philosophy of Charles Sanders Peirce, E.C. Moore e R.S. Robin (eds.) Amnhest: The University of Massachusdtts Press, p.165-189, 1964. DEELY, John . Semiotics and Jakob von Uexküll’s concept of umwelt, Sign Systems Studies 32. ½, 2004. HAUSMAN, Carl R. In and Out of Peirce’s percept. In Transactions of Charles Sanders Peirce Society, Summer, vol XXVI, nº 3, p. 271-308, 1990. KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. PEIRCE, Charles Sanders. The electronic edition of The collected Papers of Charles Sanders Peirce. Utah: Folio Corporation (Vol. I-VI edited by Charles Hartshorne e Paul Weiss; vol. VII-VIII edited by Artur W. Burks); Harvard University Press:EUA, 1994. LAURENTIZ, Silvia. Sobre as Coisas do Mundo – uma abordagem pela semiótica peirceana in Revista da APG, Associação dos Pós-graduandos da PUC-SP, vol VI, nº 11,36-45, 1997. LAURENTIZ, Silvia. Realidades Mistas – da realidade tangível à realidade ontológica, Anais 19º Encontro ANPAP, in http://www.anpap.org.br/anais/2010/ pdf/cpa/silvia_regina_ferreira_de_laurentiz.pdf , 2010. SONTAG, S. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. _____. Semiótica, Sinais e Organização. Palestra concedida no Colóquio Questões Metodológicas em Ciências Cognitivas, setembro, Instituto de Estudos Avançados, 1994. VITA, Luís Washington. Introdução à Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

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VISUALIZAÇAO, SEMIÓTICA E TEORIA DA PERCEPÇAO VISUALIZATION, SEMIOTICS AND PERCEPTION THEORY

Ana Maria Guimarães Jorge* Daisy de Brito Rezende** Edson José Wartha***

artigos

*Pós-Doutora pela Indiana University-Purdue. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC. Pesquisadora do PPGCOM Comunicação, Consumo e Entretenimento, Memória, da ESPM-SP; e do Centro Internacional de Estudos Peirceanos (PUC-SP); Universidade São Judas Tadeu. São Paulo, SO, Brasil. E-mail: ana.guim@yahoo. com.br. **Doutora em química pela Universidade de São Paulo (IQUSP). Professora no instituto de química da mesma instituição – São Paulo, SP, Brasil. E-mail: dbrezend@ iq.usp.br. ***Doutorando em Ensino de Ciências Químicas pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ensino de Ciências Químicas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor assistente na Universidade Federal de Sergipe (UFS). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ejwartha@usp.br.


Resumo: Este trabalho constitui uma investigação que busca, na teoria da percepção de Peirce, uma nova forma de interpretação dos aspectos relacionados ao processo de visualização molecular no Ensino de Química. Desde 1987, é crescente a relevância do uso de métodos de computação gráfica, associados às simulações com ferramentas computacionais, para incrementar e conceber melhor representação signo-visual, em plataformas mais robustas; experimentação, por educadores e pesquisadores; visualização molecular por meio da linguagem não verbal; e observação das partículas invisíveis da Química. Cada vez mais, mídia eletrônica e digital têm possibilitado às esferas da comunicação e da informação um aperfeiçoamento dos meios e dos processos, o que de fato amplia a capacidade de representação dos processos sígnicos em movimento e na formação de cadeias signicas. De um lado, a reprodução qualitativa das interrelações, de outro, o estabelecimento de conexões com seus objetos. A Teoria da Percepção peirceana, juntamente aos princípios investigativos das tecnologias cognitivas, sob pesquisas de cognitivistas e neurocientíficas, oferecem ferramentas e pontos de vista extremamente eficazes para a observação científica dos fenômenos no mundo. Palavras chave: Teoria da percepção. Semiótica. Visualização científica. Abstract: This work is an investigation based on the Peirce’s Perception Theory that constitutes a new approach to the interpretation of some aspects related to the molecular visualization in the Teaching of Chemistry. Since 1987, it is increasing the relevance into use of methods associated with graphics computer simulations, helped by computational tools in order to enhance and develop the visual representation signon platforms more robust; experimentation by educators and researchers; molecular visualization through non verbal language and observation of Chemistry´s invisible particles. Increasingly, the electronical media and the digital ones have enabled the spheres of communication and information a refinement of means and processes, which actually extends the capability of representation of sign processes in motion and the formation of chains of signs. On one hand, the qualitative reproduction of interrelations, the other, establishing connections with their objects. Peirce’s Theory of Perception, along the principles of investigative cognitive technologies under cognitive and neuroscience research, offers tools and viewpoints extremely effective for scientific observation of phenomena in the world.


INTRODUÇÃO Nos últimos anos, o desenvolvimento da mídia eletrônica tem proporcionado às esferas da comunicação e da informação um contínuo aperfeiçoamento de meios e processos que ampliaram a capacidade dos processos sígnicos, tanto no sentido de reproduzir qualidades, quanto no de estabelecer conexões com seus objetos. Atualmente, a hipermídia é o melhor exemplo desse contato ampliado entre signo e objeto. Dentro do campo da semiótica, a visualização científica é um processo de geração de signos, uma cadeia de interpretantes no processo de representação, que se inserem em um fluxo de tradução de informação em significados. Visualizações são criadas para ampliar, melhorar e tornar mais eficiente o processo de interpretação e comunicação. Nesse artigo, optamos pela Teoria da Percepção na acepção da semiótica peirceana para a interpretação da visualização molecular, visto que a teoria dos signos é também uma teoria do conhecimento e, portanto, não poderia faltar uma teoria da percepção. Teoria que pode nos levar a olhar de maneira diferente sobre o Ensino de Química, pelo fato de desempenhar o papel mediador entre o mundo e suas linguagens, assim também, as tecnologias cognitivas sob pesquisas cognitivistas e neurocientíficas.

Visualização Científica A primeira definição de visualização científica surgiu em 1987 no relatório “Visualization in Scientific Computing”, como uma forma de comunicação que vai além das aplicações e dos limites tecnológicos. Na mesma época, o termo foi usado para sensibilizar a National Science Foundation sobre a importância do uso de métodos de computação gráfica associados às simulações com ferramentas computacionais (SEIXAS, 1997). Em geral, a visualização científica é

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empregada para representar, adequadamente, dados brutos na forma de imagens, processo importante para análise visual de conjuntos de dados, porque facilita a identificação de suas relações e dependências. As visualizações, por intermédio das representações visuais, fornecem apoio cognitivo através de vários mecanismos que exploram as vantagens da percepção humana, assim como, a rapidez do processamento visual. No entanto, a forma como os humanos percebem e reagem ao resultado da visualização, ou seja, às imagens geradas, influencia fortemente sua compreensão sobre os dados (ALEXANDRE E TAVARES, 2007). De maneira geral, o termo “visualização” significa construir uma imagem visual na mente humana, e isto é mais do que uma representação gráfica de dados ou conceitos. Assim, uma visualização pode funcionar como ferramenta cognitiva, tornando-se um artifício para a construção de conhecimento ao utilizar as capacidades perceptivas e cognitivas humanas. Ao organizar dados, segundo critérios específicos, com o objetivo de visualizá-los, acaba-se por obter informações que possibilitam a construção de novos conhecimentos sobre os mesmos. Portanto, ferramentas computacionais de visualização e de análise podem dar apoio aos seus utilizadores no processo de análise dos dados. No caso da visualização científica, os modelos gráficos são construídos com dados medidos ou simulados, associados a fenômenos de natureza física que, frequentemente, carregam de forma intrínseca o componente do posicionamento espacial ou temporal, permitindo a representação de objetos ou conceitos do mundo físico e simulações computacionais (DASTANI, 2002). Em Química, a visualização científica geralmente é denominada como sinônimo de visualização molecular. O termo visualização molecular significa o uso de qualquer tipo de representação não verbal, como, por exemplo, fórmulas químicas, diagramas, gráficos, símbolos químicos, representações estruturais, fotografias, imagens, modelos, simulações, animações, softwares interativos, com existência concreta ou virtual, em formato 1D, 2D ou 3D que permitem uma

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“interpretação científica”. Geralmente, os termos: recursos visuais, ferramentas visuais e representações visuais são usados como sinônimos de visualização. Neste artigo, o termo que melhor se ajustaria ao termo visualização seria modelagem, uma vez que o termo visualização refere-se a ver ou enxergar o que antes era invisível, o que não é o caso para os entes químicos, visto serem eles modelados ou imaginados. Os livros didáticos e os professores usam uma variedade de representações visuais (visualizações) para introduzir conceitos químicos fundamentais (NOH e SCHARMANN, 1997). A Figura 1 mostra um exemplo da utilização de uma visualização molecular para explicar o conceito de isomeria na Química. Para identificar isômeros geométricos, que têm a mesma fórmula (C4H8), mas com diferentes propriedades e, portanto, estruturas, os alunos são obrigados a traduzir uma fórmula química em sua estrutura molecular, visualizar (modelar) as possíveis configurações tridimensionais (3D) e comparar essas configurações.

Figura 1. Representação visual de isômeros geométricos; H representado em amarelo; C em preto (ACD/ChemSketch Freeware)

Por exemplo, a Figura 1 apresenta duas moléculas de buteno em que os átomos e as ligações químicas são esquematizados como bolas e bastões de cores diferentes. Ao mesmo tempo, conceitos-chave também são apresentados, como é o caso do número de ligações que um átomo de hidrogênio ou de carbono tem e a forma geométrica de uma molécula de buteno. Para interpretar as estruturas apresentadas na Figura 1, é exigida uma série de operações cognitivas

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de domínio espacial como, por exemplo, reconhecer convenções gráficas, manipular informações espaciais fornecidos por uma estrutura molecular e acompanhar mentalmente algumas restrições com base em conceitos químicos. Desse modo, é de se supor que a aprendizagem de conceitos químicos envolva habilidades viso-espaciais na execução de determinadas operações cognitivas (WU E SHAH, 2004). Wu, Krajcik e Soloway (2001) desenvolveram uma ferramenta de visualização o ‘e-Chem’® que permite aos estudantes construírem modelos virtuais, observar simultaneamente vários aspectos relacionados ao objeto virtual e avaliar sua utilidade. Os autores verificaram que essa ferramenta de visualização, em combinação com modelos concretos de bolas e varetas, permitiu a estudantes do Ensino Médio desenvolver um melhor conhecimento visual e conceitual dos esquemas químicos. Estes autores afirmam ainda que o ‘eChem’® aumentou a habilidade dos alunos conseguirem transitar de representações 3D para 2D. Moura, Cardoso e Lamounier (2009) demonstram, em seu estudo, a potencialidade da Realidade Virtual no ensino de Geometria Molecular, visto que tal tópico exige profundo discernimento dos alunos no domínio da visualização e manipulação espacial. Constataram que ambientes virtuais permitem aos alunos visualizar e manipular modelos de moléculas melhorando, desse modo, as habilidades dos alunos e facilitando o aprendizado dos mesmos. Outros estudos sobre o uso de ferramentas computacionais modernas (FERK, BLEJEC e GRIL, 2003; WILLIAMSON e ABRAHAM, 1995) também verificaram que recursos de visualização molecular são facilitadores na superação de algumas dificuldades apresentadas pelos alunos na representação da espacialidade de estruturas químicas. Representações dinâmicas como simulações e animações tridimensionais fornecem explicações visuais para fenômenos científicos que não são diretamente observáveis. Esses estudos enfatizam o valor das representações computadorizadas tridimensionais no

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processo de aprendizagem em Química em relação às representações bidimensionais, como as que aparecem nos livros didáticos. Urhahne, Nick e Schanze (2009), em três estudos nos quais procuravam avaliar a eficácia de simulações e animações tridimensionais para a aprendizagem em Química, chegaram à conclusão de que somente a habilidade viso-espacial tem fator preponderante no processo de elaboração conceitual. Essa habilidade pode ser julgada como uma capacidade específica que facilita a aprendizagem de conceitos químicos. Porém, sempre deve ser verificado até que ponto os estudantes podem usar essas habilidades viso-espaciais para resolver problemas de Química. Só deste modo a compreensão de estruturas químicas e de suas propriedades pode ser melhorada, pela construção de representações visuais adequadas. Copolo e Hounshell (1995) compararam quatro métodos de visualização molecular utilizados com estudantes de Química Orgânica na aprendizagem de estruturas e propriedades das substâncias: a)

grupo 1- representações bidimensionais de livros didáticos;

b)

grupo 2- representações tridimensionais em computadores;

c)

grupo 3- representações tridimensionais com modelos físicos de

varetas e bolas; d)

grupo 4- uma combinação de representações tridimensionais de

computador e de modelos de bolas e varetas. Os resultados revelaram que houve uma retenção mais alta no Grupo 4, ou seja, no grupo que usava mais de um tipo de representação. Porém, quando eram aplicados testes que exigiam dos estudantes apenas representações bidimensionais, nenhuma diferença significativa foi identificada entre os quatro grupos. Há outros estudos na literatura que indicam que estudantes alcançaram mais sucesso ao resolver tarefas que envolviam a rotação mental de representações 2D quando trabalhavam e manipulavam ferramentas visuais

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(vídeos, objetos moleculares, objetos virtuais, por exemplo; SEDDON e SHUBBER, 1985; SEDDON e ENIAIYUJU, 1986; TUCKEY e SELVARATNAM, 1993; HABRAKEN, 2004; WU e SHAH, 2004; SILVA e RIBEIRO, 2008; RAUPP, SERRANO e MOREIRA, 2009). Também encontramos estudos que indicam que o uso de ferramentas de visualização diminui a carga cognitiva necessária ao processo de visualização mental e, desse modo, proporciona ao estudante realizar translações entre vários tipos de representações (MAYER, 1989; MAYER, 1997; SHAH e MIYAKE, 1999; BARNEA e DORI, 2000; GYSELINCK e CORNOLDI, 2002; BASTOS e MAZZARDO, 2004; SWELLER, 2005; DESTEFANO e LEFVRE, 2007; COSTA, COUTINHO e CHAVES, 2010). Por outro lado, estudos (STIEFF e RAGE, 2010; STIEFF, 2011) sobre o papel do raciocínio imagístico na resolução de problemas de Química Orgânica verificaram que os estudantes empregam, preferencialmente, esse tipo de raciocínio para transladar entre várias representações moleculares. Porém, identificaram que, em tarefas mais complexas, em que é necessária a manipulação mental de imagens e a identificação de relações espaço-visuais, os estudantes usam quase que unicamente o raciocínio diagramático para resolver problemas (como, por exemplo, problemas referentes à estereoquímica, mecanismos de reações e vias sintéticas), evitando o uso do raciocínio imagístico. Os estudantes aplicavam uma série de algoritmos sobre os diagramas a fim de tornar a informação espacial explícita bem como para prever o resultado de translações espaciais, ou seja, faziam uso de diagramas para ilustrar características espaciais das estruturas sem invocar o uso de imagens mentais (raciocínio imagístico). Concluíram que os estudantes, por apresentarem incapacidade de visualizar estruturas moleculares, buscam alternativas para resolver problemas que exigem reconhecimento viso-espacial de objetos químicos. Desse modo, podemos conceber que a visualização molecular como forma de linguagem visual é de fundamental importância na elaboração conceitual em

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Química e que, tal como a linguagem verbal, seu papel não é meramente o de comunicar ideias, mas também o de construir novos conhecimentos. É importante lembrar que a linguagem química expressa diferentes níveis de abstração. Por exemplo, os estudos da estrutura da matéria e da teoria molecular, em especial, nos remetem a formas de representação visual, sem as quais a elaboração conceitual torna-se praticamente inviável (GIORDAN, 2008). A compreensão da relação entre cognição e percepção se dá por meio da Semiótica, pois para Peirce (2005), representações cognitivas são signos, representações mentais são modelos de processos cognitivos e operações mentais ocorrem na forma de processos sígnicos. Na Química, os sistemas de signos são complexos e, portanto, é fundamental compreender o processo de percepção dos signos durante o processo cognitivo. Nesse caso, é necessário compreender a questão da percepção e sua relação com a visualização, pois o objeto percebido é muito diferente do mundo descrito pelas ciências.

Teoria da percepção de Peirce A percepção é, para Peirce, o objeto de estudo da semiótica que ocorre dialogicamente segundo um modelo triádico constituído de: percepto, percipuum e julgamento perceptivo. A Figura 2 procura mostrar a relação entre os constituintes peirceanos da percepção:

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Figura 2. Contituintes peirceanos da percepção (adaptado de Mucelin e Bellini, 2008, p.124)

Para Mucelin e Bellini (2008), na proposta triádica de Peirce, os constituintes da percepção são entes interdependentes e indecomponíveis que permitem que se analise e caracterize isoladamente cada um deles. Assim, em toda percepção existem os elementos: percepto ou objeto (fenômeno ele mesmo) que independe daquilo que dele se possa pensar, devido a sua existência e insistência sobre os sentidos sem nada manifestar; o percipuum ou o modo como o percepto, captado pelos órgãos sensoriais, é imediatamente interpretado no julgamento de percepção; e o julgamento de percepção, que corresponde a uma espécie de proposição a nos informar sobre aquilo que está sendo percebido. De acordo com Santaella (2012), ao interpretar a teoria peirceana da percepção no âmbito da moldura lógica da semiose, o percepto funciona semioticamente como objeto dinâmico enquanto que o percipuum seria, na teoria peirceana, o objeto imediato. Como diz Santaella (2012): A percepção é determinada pelo percepto, mas este só pode ser conhecido através da mediação do signo, que é o julgamento da percepção. Para que esse conhecimento se dê, o percepto deve, de algum modo, estar representado no signo. Aquilo que representa o percepto, dentro do julgamento perceptivo, é o percipuum, meio

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mental de ligação entre o que está fora e o juízo perceptivo, que já é fruto de uma elaboração mental (SANTAELLA, 2012, p. 95).

Em síntese, Santaella (2012) afirma que perceber implica algo externo, o percepto. O que caracteriza o ato de perceber é o senso de externalidade de que o percepto vem acompanhado, junto aos esquemas mentais humanos na produção de um efeito interpretativo que, para a mente, é um primeiro. Os efeitos interpretativos são os julgamentos de percepção, ou signos. Nada se pode dizer sobre aquilo que aparece aos sentidos, senão pela mediação do juízo perceptivo, isto é, de uma interpretação. Jorge (2011) aponta para o fato de que a percepção envolve captar e participar das qualidades objetivas de algum fenômeno, misturadas aos elementos da memória, do raciocínio realizado, da emoção sentida, e que essas qualidades objetivas dos sentidos como filtros da alma também se misturam aos elementos subjetivos de cada indivíduo. Para essa autora, de acordo com a teoria peirceana, a percepção é a porta de entrada das formas e das qualidades do mundo, informação recebida e processada por um organismo. Para Jorge (2011), perceber é um ato espontâneo e anterior à realidade consciente ou a qualquer significação, que posteriormente poderá ou não ser gerada. A percepção proporciona a coleta de dados sobre o que é fisicamente sentido, porém tais dados podem variar de acordo com as condições de fundo pessoal e a forma percebida passa a transcender o objeto sentido. Princípio que apoia o que já foi enunciado no início deste artigo, não se pode esquecer de que, muitas vezes, o objeto percebido é diferente do mundo descrito pelas ciências. As diferenças na percepção das propriedades de objetos percebidos por diferentes culturas se distinguem a partir dos diferentes níveis de aprendizagem e de experiências passadas com esses objetos. Jorge (2011) afirma que os diferentes sistemas culturais interferem no modo como os objetos são percebidos, ou seja, a percepção e leitura da obra serão modificadas dependendo do repertório de informações e da reflexão sobre esses significados

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culturais que o observador tenha. Portanto, é possível concluir que os indivíduos terão pré-concepções do real para perceber e compreender o significado dos signos de maneira diferente. O objeto a ser examinado é resultado da interação de signos comuns com um referente percebido subjetivamente por cada interpretador. Os seres humanos são, primeiramente, decifradores de signos, que moldam fenômenos captados perceptivamente, tal como enfatiza Santaella: (...) em termos peirceanos, é preciso levar em conta que o efeito que a mente produz não precisa ser necessariamente racional. Pode ser da ordem de uma reação puramente física, ou então, pode ser um mero sentimento com toda a evanescência que é própria de um sentimento (...) (SANTAELLA, 1998, p. 48).

A visão peirceana da percepção se embasa em uma teoria triádica (signo, objeto e interpretante) e sob a predominância da secundidade, ou seja,

da

segunda categoria fenomenológica, enquanto reação e interação do indivíduo com seu signo, implicando a memória. Entretanto, Peirce conseguiu ir além da evidência dualista de percepção. Primeiro, porque ele não concebia a separação entre percepção e conhecimento, pois acreditava que toda cognição começava na percepção e terminava na ação deliberada. Segundo, porque tanto a cognição como a percepção seriam inseparáveis das linguagens através das quais o homem pensa, age e se comunica. Ou seja, a partir dessas afirmações, entende-se que a teoria peirceana da percepção se respalda em sua teoria geral dos signos e vice-versa, explicando logicamente os fundamentos das significações humanas por uma inteligência científica (SANTAELLA, 2005). Entender a semiótica como uma ciência que focaliza o “ver” por intermédio da exploração de todos os sentidos, usando-os como “antenas” de captação de mensagens verbais e não verbais, sejam visíveis ou invisíveis na estrutura dos diagramas, figuras, imagens, torna-se caminho metodológico facilitador do entendimento da interação sígnica. Em disciplinas como a

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Matemática, a Química e a Física, por exemplo, a estruturação sígnica é discutida com auxílio de lógicas. Por exemplo, a composição verbal é provocada pela lógica do pensamento, mas se manifesta por meio da lógica linguística, que requer todo um instrumental específico e complexo, uma vez que opera fundamentalmente com signos-símbolos: entidades abstratas, convencionais e mutáveis, do ponto de vista significativo (SIMÕES, 2008). A experiência é o elemento central da formação do conhecimento na teoria peirceana. Experiência que se torna algo experienciável pelo homem na medida em que ele observa um objeto (percepto). O objeto, na relação com o ser, passa a ser experienciado. Assim, a ideia enquanto significado oriundo da experiência perceptiva se constitui por processo experimental. Nesse caso, de acordo com Manechine (2006), a percepção, entendida na primeiridade como o apreender o fenômeno em condições de qualidades, tem o sentido de percebêlo, admirá-lo. No defronto com o real, o aluno estabelece relações sobre o objeto observado produzindo signos de secundidade relacional. Nesse compreender, novas relações vão se estruturando, amplia-se ao máximo esse conhecer sobre o contexto analisado, definindo-o não em conhecimento pronto e acabado, mas como conhecimento experienciável. Ibri (1992) lembra que não existe uma forma específica de experimentação filosófica a partir da qual a experiência possa ser interpretada, ou seja, a interpretação já é uma experiência, e ela, a experiência, é o próprio curso da vida. Para Peirce, o processo de semiose ocorre a partir da experiência vivenciada pela inter-relação das categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade (crescimento sígnico de ideias e sistemas, cadeia de signos, pensamento etc). A mente do intérprete engendra aquilo que é percebido, experiencialmente, em um processo contínuo e dinâmico (semiose ilimitada), que Peirce denominou representação da coisa ou mediação.

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Santaella (1998) reitera que não há separação entre percepção e conhecimento. Toda percepção envolve elementos inconscientes e, em sua Semiótica, nem empirista nem racionalista: A primazia lógica é do signo, mas a primazia real é do objeto. O objeto é determinante, mas só nos aparece pela mediação do signo. Somos seres mentais, o signo é um primeiro porque aquilo que a mente produz vem imediatamente na frente. Essa é a ideia de mediação. Mas, para compreendê-la em termos peirceanos, é preciso levar em conta que o efeito que a mente produz não precisa ser necessariamente racional (...) Porém, aquilo que está representado no signo não corresponde ao todo do objeto, mas apenas a uma parte ou aspecto dele. O signo é sempre incompleto em relação ao objeto (SANTAELLA, 1998, p. 44 e 45).

Percebe-se mediante um signo, dependente de um objeto, e de acordo com o que se está preparado para perceber. Para Peirce, o pensamento é uma característica do universo e não apenas dos seres humanos. Em uma floresta, por exemplo, há diálogos e negociações entre a flora, a fauna, o clima, as estações do ano, que ocorrem por séculos para que se chegue à formação que é conhecida atualmente. Para Peirce, a floresta está em semiose. Todo conhecimento é, segundo Peirce, inferencial, mediato, articulado no tempo e processual, se faz mediante signos e no decorrer da experiência (SILVEIRA, 2001). Considerações sobre a visualização cientifica e a teoria da percepção peirceana A visualização molecular pode funcionar como uma ferramenta cognitiva, tornando-se um artifício externo para a construção de conhecimento, ao se utilizar das capacidades perceptivas e cognitivas dos estudantes. Como afirma Jorge (2011), a percepção possibilita a síntese, compondo o objeto percebido, pois toda percepção adiciona algo ao percebido. Por exemplo, a estrutura física da representação de uma molécula com bolas e varas (Figura 3) vista por alguém seria, de modo empírico, um feixe de qualidades isoladas que envia estímulos aos órgãos dos sentidos. De modo mais intelectualista, o objeto molecular seria um objeto percebido como uma ideia.

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Figura 3. Representação de uma molécula com bolas e varas

Segundo Jorge (2011), historicamente, desde os gregos, há tendência em conceber que a percepção não pode ser considerada muito confiável para o conhecimento, porque depende das condições específicas de quem percebe e está propensa a criar ilusões. Especificamente, sob o viés epistêmico do processo ensino-aprendizagem, no caso da Química, a imagem, o modelo ou a estrutura percebidas não correspondem à realidade da estrutura da molécula (não há pretensão entrar na controvérsia do status epistemológico do conceito de estrutura molecular). Desse modo, para a formulação do pensamento científico, devem-se abandonar os dados da percepção a fim de formular ideias abstratas relacionadas com as leis de combinações químicas, uma tentativa de explicar suas relações e, in the long run (teste das hipóteses e suas representações), corrigir tais representações. A modelagem representacional dos elementos químicos em um ambiente digital, por exemplo, fenomenologicamente oferece ao aluno a observação do objeto representado em 3D, ou 2D, entretanto, mesmo assim com uma sofisticação representativa das relações abstratas encapsuladas num objeto tridimensional, não é possível perceber de uma só vez todas as camadas e características desse objeto, pois apenas alguns fragmentos, algumas características, do objeto são percebidos de cada vez na composição do todo relacional observado. De um modo geral, a visualização molecular surge como o termo que nomeia a reunião de processos de computação gráfica, refletindo o momento de incremento do objeto no ambiente digital com auxílio das novas possibilidades tecnológicas da produção de representações, signos, e acréscimo ao

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desenvolvimento de linguagem e de informação científica. A visualização molecular é legitimamente um sistema semiótico, pois se trata de um ambiente de produção de linguagem e de representações, a ser melhor entendido pelos pressupostos teóricos e pela análise da Semiótica peirceana. Há o objetivo de pensar a visualização molecular no sentido de aprimorá-la como ferramenta estratégica de prospecção de novas informações, relações mais precisas de pertinência e verdade entre o objeto real e sua representação em signos, pois é desse modo que ocorre o crescimento e evolução do conhecimento científico (MEDEIROS, 2009). Por conseguinte, as potencialidades do uso de ferramentas de modelização para o ensino de Química podem ser vistas a partir da variedade de usos possíveis: a)

Ferramentas para aquisição e manipulação de dados;

b)

Multimídia baseada em conceitos de hipermídia,

apresentando as informações de forma estruturada gráfica; c)

Micromundos e simulações: os primeiros consistem em

programas muito completos que implementam a simulação de uma vasta gama de processos e leis, enquanto as últimas são programas menores, com modelos de um sistema ou processo voltado para a sua visualização; d)

Ferramentas de modelização: programas que permitem que o

usuário construa a sua própria simulação. Assim, as fórmulas moleculares, os gráficos, as equações químicas e os modelos geométricos, por exemplo, deveriam ser compreendidos como substitutos racionais das substâncias em determinado contexto. Em síntese, cabe lembrar que o corpo teórico da Química é construído sobre uma linguagem própria, criada para representar o universo das transformações químicas. As representações gráficas e pictóricas de um mundo abstrato de átomos, íons e moléculas são símbolos que, a todo o momento, estão presentes no enfoque

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teórico dessa ciência. As fórmulas químicas, os mecanismos e as equações químicas, além de funcionar como ferramentas no trabalho do químico, cumprem, também, a função de linguagem, permitindo a mediação e a comunicação dos conteúdos. Sem a ação dos signos, isto é, sem atribuir significados à linguagem, os estudantes dificilmente conseguem compreender os fatos e os fenômenos, em um movimento que vem dos significados exteriores para seu interior. É o domínio dessa linguagem que possibilita aos estudantes aprender, fazendo com que estejam aptos a manipular sistemas de símbolos.

Considerações Finais Pode-se concluir que a visualização molecular, ou melhor, o processo de modelagem ou de imaginação no ensino de Química é, acima de tudo, um sistema semiótico. Esse processo envolve diferentes formas de linguagem, ocorre por meio da produção de uma linguagem específica e da compreensão de representações variadas. Pode-se analisá-lo substituindo-se a perspectiva psicológica pela perspectiva semântica, ou seja, privilegiando a relação entre linguagem e mundo, ao invés da relação sujeito e objeto, e considerando a representação como processo de mediação. Toda cognição, desde a percepção até o raciocínio lógico e matemático, está mediada por signos. Portanto, a estimulação da percepção é fundamental no processo de ensino e aprendizagem dessa ciência,. De acordo com a semiótica, a percepção também pode ser definida como a porta de entrada das formas e das qualidades do mundo. A semiótica poderá proporcionar novas perspectivas para o entendimento de diversos fenômenos de mediação, processos de significação, representação e interpretação. Portanto, na observação de todo e qualquer fenômeno de linguagem que ocorre em sala de aula poderá ser interpretado à luz da Semiótica de Peirce e, desse modo, a Teoria da Percepção poderia apoiar eficientemente o desenvolvimento da

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habilidade viso espacial, ou a questão da carga cognitiva sobre conceitos que demandam altas habilidades viso espaciais por meio do uso de ferramentas de visualização. Há intenção de apoiar um aumento qualitativo da percepção sobre o objeto e, consequentemente, uma diminuição da carga cognitiva sobre o mesmo, facilitando o processo de compreensão conceitual. Desse modo, pode-se afirmar que o uso das ferramentas de visualização ou de modelagem (físicas ou virtuais) contribuem para uma ampliação da percepção sobre o “objeto” (objeto imediato na concepção peirceana) e, desse modo, o grau de abstração das relações que podem ser estabelecidas permitirá uma variação de sua relação com o objeto (objeto dinâmico), aumentando a eficiência do processo de semiose na geração de novos interpretantes, ou seja, de novas ideias sobre as formas relacionais e, consequentemente, geração de um novo signo.

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ARQUITETURA DE MUSEUS NAS CIDADES CONTEMPORÂNEAS MUSEUM ARCHITECTURE IN CONTEMPORARY CITIES

Cecília C. B. Cavalcanti

artigos

Pós-Doutoranda na escola de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Comunicação e Cultura pela mesma instituição. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: ceciliacbc@gmail.com.


Resumo: Este artigo pretende analisar por que os museus aparecem nas cidades como principais pontos de referência, assim como eram as catedrais no passado. Se antes a arquitetura simbolizava o divino, hoje encontramos verdadeiros santuários de conhecimento e informação. Sua presença física é baseada numa arquitetura com características mescladas ora de catedral, palácio, teatro, escola, biblioteca, pesquisa e ora como depósito ou armazém, caracterizando-se como espaços que estão ligados a todos os outros, heterotopias ligadas a recortes de tempo (FOUCAULT, 2006). Percebe-se que, nos últimos 40 anos, enquanto a arquitetura das cidades as transforma em memoriais, os novos espaços-museus visibilizam formas contemporâneas de comunicação com o futuro. Palavras-chave: Arquitetura. Museus de ciências. Cultura. Espaços-museus. Abstract: This article aims to analyze why the Museums are main reference points in the cities today, as were the cathedrals in the past. Then, the architecture symbolized the divine, now we find true sanctuaries of knowledge and information. Its physical presence is based on an architecture with mixed characteristics, sometimes as cathedral, palace, theater, school, library, research, and sometimes as a warehouse or storage room, characterized as spaces which are connected to all others, heterotopias connected with fragments of time (FOUCAULT, 2006). In the last 40 years, while the architecture of the cities turned them into memorials, new spaces-museums enabled contemporary forms of communication with the future.


ARQUITETURA DE MUSEUS NAS CIDADES CONTEMPORÂNEAS1 Cecília C. B. Cavalcanti Recebido: 05 abr. 2013 Aprovado: 24 maio 2013 Pós-Doutoranda na escola de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Comunicação e Cultura pela mesma instituição. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: ceciliacbc@gmail.com. Resumo: Este artigo pretende analisar por que os museus aparecem nas cidades como principais pontos de referência, assim como eram as catedrais no passado. Se antes a arquitetura simbolizava o divino, hoje encontramos verdadeiros santuários de conhecimento e informação. Sua presença física é baseada numa arquitetura com características mescladas ora de catedral, palácio, teatro, escola, biblioteca, pesquisa e ora como depósito ou armazém, caracterizando-se como espaços que estão ligados a todos os outros, heterotopias ligadas a recortes de tempo (FOUCAULT, 2006). Percebe-se que, nos últimos 40 anos, enquanto a arquitetura das cidades as transforma em memoriais, os novos espaços-museus visibilizam formas contemporâneas de comunicação com o futuro. Palavras-chave: Arquitetura. Museus de ciências. Cultura. Espaços-museus.

MUSEUM ARCHITECTURE IN CONTEMPORARY CITIES Abstract: This article aims to analyze why the Museums are main reference points in the cities today, as were the cathedrals in the past. Then, the architecture symbolized the divine, now we find true sanctuaries of knowledge and information. Its physical presence is based on an architecture with mixed characteristics, sometimes as cathedral, palace, theater, school, library, research, and sometimes as a warehouse or storage room, characterized as spaces which are connected to all others, heterotopias connected with fragments of time (FOUCAULT, 2006). In the last 40 years, while the architecture of the cities turned them into memorials, new spaces-museums enabled contemporary forms of communication with the future.

Keywords: Architecture. Science museums. Culture. Space-museums.

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Os resultados aqui descritos fazem parte da tese de Doutorado: O Conhecimento em exposição: Novas linguagens da comunicação como construção multidirecional de conhecimento e de percepção do mundo contemporâneo, que teve o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua em que se fecham as cortinas do céu e se iluminam as cidades. Baudelaire

INTRODUÇÃO Os museus, assim como as galerias de arte, não são espaços neutros, mas convertidos em um marco físico e sociocultural, que exercem uma ação sobre a percepção da obra ou objeto, podendo modificar seu significado, assim como alterar a perspectiva das cidades contemporâneas face suas características arquitetônicas. Alguns críticos (MADERUELO, 1990; DIMITRIJEVIC, 1987) chegam a considerar que muitos desses edifícios que abrigam obras de arte ou experimentos científicos, não passam de “monumentos autoindulgentes que os arquitetos se elegem a si mesmos e onde a arte (ali exposta) se reduz a peça decorativa da arquitetura” (MADERUELO, p. 222), os convertendo em uma instalação por si mesmo. Entendemos os museus como espaços ligados a outros dentro da cidade, heterotopias em todos os seus sentidos, ligadas à acumulação do tempo (FOUCAULT, 2006), provocando, independentemente de sua arquitetura ou exposição, uma justaposição temporal e uma redefinição espacial, (...) ao mesmo tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e absolutamente irreal, já que ele é obrigado, para ser percebido, a passar por aquele ponto virtual que está lá longe (Ibidem, p.415).

Ao pensarmos as cidades contemporâneas podemos visualizar três questões básicas: as intervenções urbanas temporais ou não, os fluxos de Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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mobilidade e as políticas de reurbanização dos centros urbanos. Na verdade, as três questões se interligam a cada novo planejamento. Especificamente ao falarmos dos espaços-museus, percebe-se que nos últimos 20 anos vêm surgindo novas formas arquitetônicas que invadem os espaços urbanos e que fazem parte, muitas vezes, das diversas políticas de reurbanizações. Ao mesmo tempo, esses edifícios surgem em espaços onde é necessária uma intervenção, criando “ilhas” de mobilidade e exemplos de cidade futurística, tornando os espaços em mercadorias, com a finalidade de “adequar as cidades às demandas e aos fluxos internacionais de turismo e consumo urbano [...] recriar sentidos e usos dos conteúdos e materiais do passado” (LEITE, 2002, p. 115). Caberíamos perguntar o porquê dos museus como pontos de referência arquitetônica nas cidades, mas ao pensarmos que vivemos em uma sociedade de mercado, onde tudo se precifica (TUCHERMAN e CAVALCANTI, 2013) e, ao mesmo tempo, denominamos esta era como a Era do Conhecimento, seria lógico pressupor que a visibilidade dada aos museus estaria relacionado com o lugar depositário do saber. Ou melhor, a arquitetura de novos museus vai construindo um novo cenário nas cidades em todo o mundo, verdadeiros monumentos do conhecimento. Por outro lado, podemos dizer ainda, que as cidades estão sendo planejadas baseadas num novo realismo, o qual mais do que apenas a funcionalidade, requer uma renovação dos modos de representar com a construção de espaços de memória – a memória se tornou obsessão cultural de proporções monumentais em todos os pontos do planeta (p. 16) [...] visibilidade é igual a sucesso (HUYSSEN, 2000, p. 100).

Memória e história Historicamente, Huyssen (2000) aponta que, a partir da década de 70, houve uma reestruturação de grandes centros urbanos, tanto nas cidades europeias, quanto nos Estados Unidos, recriando empreendimentos patrimoniais Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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e visibilizando heranças nacionais, em uma “onda da nova arquitetura de museus”, juntamente com uma comercialização em massa da nostalgia, provocando uma atitude, quase viciada, de musealização baseada numa premissa de consumo, significando dizer que o passado vende mais do que o futuro. As cidades vão se compondo em sinfonias da memória, onde até cafés ganham importância por terem sido o espaço de algum personagem ilustre em sua rotina matinal diária para o café da manhã e leitura dos jornais, numa grande comercialização das heranças nacionais ou do medo do esquecimento das tragédias e horrores. Na mesma direção, Harvey (2007) vai nos dizer que a tradição histórica é reorganizada como cultura de museu, comercializada e mercantilizada como tal, (...) não necessariamente de alta arte modernista, mas de história local, de produção local, do modo como as coisas um dia foram feitas, vendidas, consumidas e integradas numa vida cotidiana há muito perdida e com frequência romantizada (p. 273).

A própria arqueologia de civilizações milenares foi transformada em parques turísticos monumentais2 , permitindo ao Estado apresentar-se como guardião de uma tradição generalizada (ANDERSON, 1993, p. 253). Burke (2003) já nos apontava que “a proliferação dos serviços de informação nas primeiras cidades modernas foi em parte um efeito de divisão urbana do trabalho e em parte uma reação à crescente demanda por informação” (p. 69). As grandes cidades começaram a produzir intensamente folhetos e livros de informações sobre si mesmas, material que todo turista utiliza-se até os dias de hoje. Porém, nos atrevemos a dizer que, nos últimos 30 anos, as cartografias das cidades estão sendo desenhadas a partir da velocidade e das inovações técnicas, científicas e culturais, gerando o conhecimento como patrimônio e sua representação como a nova forma de manifestação de poder. Afinal, o crescimento das atuais Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) 2

Como por exemplo, os parques e construções das civilizações Astecas, Incas e Maias, denominadas de cidades pré-colombianas, em alusão à descoberta das Américas por Cristóvão Colombo. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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possibilita uma nova lógica do movimento da população e das atividades econômicas, criando o que Sassen (2001) denominou de cidade global. Paralelamente, nas construções nos espaços virtuais, onde se simula mais do que se experimenta, ou se vive comportamentos possíveis, o poder tende a cair nas redes dos media, nos possíveis da ciência e regras do direito (SERRES, 1994, p. 195). Ou, pouco a pouco, assistiremos à rede substituir as instituições, como as Igrejas, bancos, escolas, universidades, museus e a cultura. Lembremos que arquitetos são também chamados àqueles que nos sites projetam a informação: denominados de arquitetos da informação. Entretanto, Huyssen (2000) ressalta que as cidades como centro estão longe de ser obsoletas, mas, no entanto, estão sendo afetadas e estruturadas por essa cultura de imagens da mídia ou como o autor denomina - uma arquitetura de imagens (p. 101). De todo modo, recorremos a Sennet (2008) para estabelecermos que as mudanças entre as relações entre corpo e tempo determinadas pela aceleração da velocidade da transmissão da informação, transformaram os espaços em fragmentações urbanas ou lugares de passagem. Grandes corredores urbanos facilitam os deslocamentos e, assim, a nova geografia leva mais água para os moinhos dos meios de comunicação [...] “o corpo se move passivamente, anestesiado no espaço, para destinos fragmentados e descontínuos” (p. 18), até a monotonia da paisagem ser quebrada pelo encontro de obras arquitetônicas, rompendo a relação com o tempo presente, remetendo o olhar tanto para o passado quanto para o futuro.

Espaços públicos Nas cidades contemporâneas, toda cultura da exposição pública é também “uma cultura do desengajamento, pois o espaço público neutraliza-se do interior, através da percepção simultânea e constante das diferenças” (JOSEPH, 1998 apud: SERPA, 2004). A concepção de parques públicos torna-se, nesta nova concepção, novos lugares para o consumo de cultura, aí incluídas também a científica. Serpa vai nos dizer que estes espaços podem ser considerados como Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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mediadores oficiais, fazendo emergir uma representação estática e simplificada da “natureza” no contexto urbano. E, os museus de ciências, cada vez mais construídos como parques públicos, passam a configurar o cenário das cidades contemporâneas como integrantes de uma rede cultural e onde o conhecimento se configura como atração e patrimônio. Este é, por exemplo, o caso do Parque de La Villette, em Paris, intimamente ligado a grandes equipamentos culturais, como a Cidade da Música e a Cidade da Ciência, além do Cabaré Selvagem, da Géode (um cinema para exibição de filmes em três dimensões) e dos Teatros Internacional de Língua Francesa (Ibidem, p. 28).

Citamos outros exemplos, como o Ciudad de las Artes y de las Ciencias (1998), um ousado projeto do arquiteto Santiago Calatrava, maior atração turística da cidade de Valencia, na Espanha, mais por seu edifício do que por sua coleção (Imagem 1); o CosmoCaixa - Barcelona, inaugurado em 1984, com uma ampla reforma em 2004, um dos principais museus de ciências no mundo por sua inovação no método expositivo; Catavento (2009), em São Paulo e alguns projetos no Brasil como o MUSA, Museu da Amazônia (2010), em Manaus e o Museu do Amanhã e o MAR – Museu de Arte do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro. Ou seja, enquanto as cidades musealizadas, principalmente as do velho mundo,

vendiam o passado, a construção de novos museus de ciências e

tecnologia vende o futuro, imprimindo uma nova arquitetura, não só com objetivo de melhor utilização do espaço, mas de tornar visíveis tecnologias a favor da sustentabilidade. Os grandes blocos de concreto adquirem novos contornos com a fusão da natureza e novos materiais. Este fenômeno é melhor observado a partir da década de 1980, onde os museus de ciências começam a conferir “status” às cidades, convertendo-se em fenômenos do espetáculo e pontos turísticos, integrando-se a uma nova indústria cultural-museística.

Imagem 1 – Ciudad de las Artes y de las Ciencias – Valencia – Espanha Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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A arquitetura classifica como públicos todos aqueles espaços de propriedade pública e que são acessíveis a todos livremente. Os espaços coletivos seriam definidos como espaço público, mas de propriedade privada, como os shoppings ou museus. Ressalta-se que, como a maioria dos museus a entrada é paga, o transforma em um coletivo seletivo ou para quem pode pagar. Embora o espaço público se constitua, na maioria das vezes, no espaço urbano, devemos entendê-lo como algo que ultrapassa a rua; como uma dimensão sócioespacial da vida urbana, caracterizada fundamentalmente pelas ações que atribuem sentidos a certos espaços da cidade e são por eles influenciadas. Não sendo necessariamente todo espaço urbano um espaço público, há de se verificar quando um espaço urbano pode ser caracterizado como público (LEITE, 2002, p. 116).

Se formos olhar pela filosofia (LEITE, 2002; ARENDT, 1987; HABERMAS, 1997), um espaço urbano torna-se público quando este constitui-se de certas configurações espaciais e um conjunto de ações e quando essas atribuem sentidos de lugar: locais onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente (Leite, 2002). Isto significa dizer que todos os movimentos sociais e políticos nascem e crescem nos espaços públicos, onde se formam pela interação social e significativa, onde as ideias e os valores se formam, se transmitem, se respaldam e combatem; espaço que em última instância se converte em campo de treinamento para a ação e reação (CASTELLS, 2009, p. 395). A construção de grandes museus, integrados a parques públicos, requer áreas cada vez maiores, permitindo a revitalização de certos bairros e criando novos centros urbanos, áreas de lazer e encontros. Aqui citamos uma vez mais a Ciudad de las Artes y de la Ciencia em Valencia, Espanha, construído ao final do Parque del Cauce del Río Turia, uma área de um milhão e meio de metros quadrados. Por sua vez, o Parque de La Cité des Sciences (1986) em Paris, localizado na divisa de Seine-Saint-Denis, numa área de 25 hectares de um antigo abatedouro, é hoje o maior parque da cidade de Paris e sua segunda maior área verde. Ainda em Paris, no final dos anos 1970, a construção do Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou, mais conhecido como Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Beaubourg (1977), projeto dos arquitetos Renzo Piano, Richard Rogers e Gianfranco Franchini, foi fundamental para a revitalização do bairro Marais (pântano, em francês). Mesmo com toda a polêmica criada em torno do seu projeto, o Beaubourg foi concebido não apenas como um museu, mas também como um centro cultural, cuja funcionalidade, liberdade de circulação e flexibilidade de espaços favorece a adaptação às mais inimagináveis propostas sob o lema “Cultura para todos”. As tubulações aparentes de cores diversas deram ao Beaubourg um aspecto de "Refinaria" (terminação atribuída pelos motoristas de táxi parisienses). Em 2008, mais de dois milhões e 700 mil pessoas visitaram o Centro Cultural (Ministère de la Culture e la communication, 20103 ). Apenas por curiosidade, existem em toda França 1.212 museus, sendo que 56 em Paris. Como já sabido, o Louvre é o museu mais visitado do mundo, com mais de oito milhões de visitantes/ano. Mas, segundo dados do Ministério da Cultura da França de 2008, o que surpreende é que o La Cité des Sciences ocupe o segundo lugar em número de visitantes, com 3.042 milhões de visitantes, ultrapassando o Orsay (3.025 milhões) e o Beaubourg (2.748 milhões). Este exemplo converge com a opinião de Harvey (2007), quando ele afirma que a melhor maneira de recuperar o sentido dos lugares e sua tradição da compressão tempo-espaço está na estetização romântica da paisagem urbana, expressa na forma de museus. De fato, as políticas voltadas para uma industrialização “limpa” e a reconstrução dos espaços urbanos, principalmente nos grandes centros, promovem o aparecimento de novas infraestruturas urbanas, cujos símbolos são os centros comerciais, os hipermercados, os espaços museológicos ou os parques temáticos. Um dos traços distintos da arquitetura das cidades contemporâneas seria sua função lúdica, criando "novos" centros nas cidades abstraídos do espaço e tempo exteriores e, muitas vezes transformando espaços privados em públicos. Estes acabam por ter funções híbridas, ora funcionando como área de lazer, ora como museu e ora como escola.

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Disponível em: http://www.culture.gouv.fr/nav/index-stat.html Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Palácios e galerias A arquitetura de museus pode ser observada através dos tempos pela forma de visualização das exposições. O primeiro museu moderno foi organizado em 318, localizado no Fórum Romano, onde os souvenires das conquistas do império eram expostos em ordem cronológica. Andando por essa espinha, o visitante poderia acompanhar a história do poder que Roma acumulara nas guerras (SENNETT, 2008, p. 101). A ideia de tempo corrido linearmente era baseada nas formas do peristilo (extensa série de colunas) e da basílica (construção retangular, onde se entra por um lado e sai-se por outro), formas oriundas da Grécia. A primeira estrutura, o peristilo, fazia com que as pessoas andassem sempre para frente, sem distrações nas laterais, comparada por Sennett (2008), como uma espinha dorsal, disciplinadora do olhar e do movimento do corpo: “olhar e acreditar” (p. 102). A segunda estrutura, a basílica, não passava de um lugar de encontros. A primeira galeria de arte surge em Florença, na Itália, no final do século XVI. Este espaço nada mais era que um grande corredor que servia para unir dois palácios, onde foram aproveitadas as paredes para a exposição de uma coleção de obras de arte, que antes estavam espalhadas em outros espaços. O nome adotado para esse espaço, galerie, acabou, com o tempo, tornando-se sinônimo de sala reservada para as coleções de arte e a Galerie des Uffizi uma referência importante para a construção de um imaginário burguês de prestígio e importância (Kiefer, 2002, p. 12).

Kiefer (2002) e Montaner (2003) vão nos apontar que, com a ascensão da burguesia depois da Revolução Francesa, passou-se a considerar de suma importância a abertura de museus públicos. É nesta época, no final do século XVIII, período denominado como a Era da Razão, que vai haver uma divisão entre os museus de Artes e de Ciências, representada pela arquitetura no estilo neoclássico. Para a arquitetura, a aceitação de uma razão natural para justificar Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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a arquitetura clássica dá lugar a um racionalismo pragmático, que a desvincula de uma ideia de verdade universal (KIEFER, 2002). Data deste período, a criação dos Museus Nacionais, tendo os palácios, antes sede das monarquias e coleções particulares, como sua primeira expressão arquitetônica. Exemplos de palácios que viraram museu bastante conhecidos são os Museus do Louvre (1793) e o El Prado (1819) e, no Brasil, um dos mais antigos museus de ciências do mundo, o Museu Nacional, criado por D. João VI, em 1818, e alojado no Paço de São Cristóvão, a partir de 1892, antiga residência da Família Imperial brasileira. Entre os séculos XVII até princípios do século XX, os Museus Nacionais ganharam importância e prestígio na sociedade e, novas formas arquitetônicas começam a surgir principalmente na forma de panteon, circular e monumental, determinando uma essência atemporal a estes espaços. As galerias, por sua vez, tornam-se, sobretudo, espaços de representação de feitos históricos perfeitamente determinados, ou seja, de um tempo marcado e único. A fórmula museu-palácio foi consolidada a partir da imagem imponente dos edifícios e garantiu a importância dos objetos ali guardados, além de representar uma burguesia agora no poder. Mas, com o passar do tempo, estes edifícios começam a apresentar problemas de circulação, armazenamento e de comunicação com o público. Estes problemas hoje são resolvidos com a construção de anexos (o mais recente no Museu do Prado, em Madrid), redistribuição das coleções para outros museus (como por exemplo, a transferência de obras do Louvre para o Museu D´Orsay) ou a desativação (caso polêmico ocorre com o Palais de la Decouberte em Paris, onde houve resistências ao fechamento do museu e a recolocação de sua coleção para o La Vilette). No final do século XVIII, com o surgimento das disciplinas de arqueologia e estética, iniciava-se a técnica de restauração de monumentos, e os espaçosmuseus se convertem em lugar “privilegiado para a formulação das teorias estéticas” (MONTANER, 2003, p. 9). Mas será apenas no começo do século XIX, que surgirá o primeiro importante verbete específico para a concepção de

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museus - o livro Précis des Leçons d´architecture, do arquiteto Durand (18194 ). Durand acreditava que o projeto de um museu deveria conter o espírito das bibliotecas, um templo sagrado aos estudos (ibidem, online). Este caráter educativo e de investigação que predominava nos museus de todas as tipologias, integra esses espaços à rede da educação, assim como vai inspirar tanto a construção de novos museus, quanto da linguagem expositiva das coleções. Esta ideia, juntamente com a ampliação da consciência da importância política, social e econômica da ciência e da tecnologia no período da Revolução Industrial, acabou dando origem ao Conservatoire National de Arts et Métiers, fundado no séc. XVIII, que existe até hoje em Paris e que teve a sua criação motivada pela necessidade de prover educação profissional para trabalhadores em mecânica. Integram-se a esta filosofia museográfica o Science Museum de Londres (1857) e, como precursor dos chamados museus interativos botton-on ou “veja o que acontece ao apertar o botão ou girar a manivela”, o Deutsches Museum de Munique (1906).

Funcionavam como verdadeiras vitrines para a indústria, proporcionando treinamento técnico a partir de conferências públicas proferidas pela vanguarda da ciência e da indústria sobre temas relacionados à mineralogia, química, mecânica, arquitetura, matemática, além das exposições das coleções (CAZELLI et al, 995 ).

Da caixa de concreto ao cubo digital De uma maneira geral, a instituição museu foi fundamental para os conceitos de cultura na sociedade ocidental. Mas é no princípio do século XX que surgem as primeiras ideias modernistas na arquitetura dos museus. Montaner (2003) situa esta mudança juntamente com a ruptura promovida pelos vanguardistas. O manifesto Futurista publicado no Le Figaro de 1909, por 4

Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5762681g.texte.langPT.f000062.tableDesMatieres

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Disponível em: http://www.cciencia.ufrj.br/publicacoes/artigos/Seminario/Art.Sem.Internacional.

99%20Sibele.doc.

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exemplo, comparava os museus aos cemitérios e, por isso determinava: “Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda a natureza (...)”. O museu acadêmico estava fadado à morte ou, pelo menos, a transformar-se. As ideias vanguardistas não resultaram em nenhuma construção efetiva, mas o projeto arquitetônico do Museu de Arte Moderna (MOMA - 1929) em Nova York foi considerado como ícone desta busca por uma nova concepção dos espaços de exposição. Em resumo, concordamos com Montaner quando diz que: A cada crise (arte vanguardista e as guerras mundiais), o poder do museu como instituição de referência e de síntese, capaz de evoluir e oferecer modelos alternativos, especialmente adequados a assinalar, caracterizar e transmitir os valores e os signos dos tempos, aumentando seu papel nas sociedades contemporâneas (p. 8).

Podemos também entender a arquitetura neste princípio de século XX como uma “destruição criativa” se contrapondo com o “eterno e imutável” (HARVEY, 2007). Voltemos aos anos trinta, quando surgem propostas novas de uma arquitetura específica para museus. O primeiro deles foi o projeto de 1931 de Corbusier, o Museu Sem Fim, ou Museu do crescimento ilimitado, uma espiral quadrada sem fachada que, pretendia dar à cidade de Paris um local onde se permitisse uma expansão constante com ordem e harmonia, além e principalmente, onde o visitante poderia ter acesso às reservas técnicas. Mesmo sem nunca ter sido construído, sua concepção tornou-se referência mundial e algumas tentativas de recriar este espaço podem ser vistas no Museu de Arte Moderna de Rouen, na França, que teve a interferência da arquiteta Andrée Putman, e o Museu D. João 6o, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (COLI, 20106).

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Folha de São Paulo, publicado em 7/03/2010 - O bom museu, Jorge Coli Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Le Corbusier, considerado um dos mais importantes arquitetos, urbanistas e designers do século XX, denominou esta época como a Era da máquina, (...) baseada na tecnologia da engenharia e na produção em massa. Uma era do internacionalismo, comunicação de massa, democracia e ciência. As formas que a definiam eram o carro, o avião e os transatlânticos (DARLING, 2000, p. 10).

A integração do homem com a máquina e a natureza era a marca principal das construções de Le Corbusier e, para projetá-las, criou como base os cinco pontos da nova arquitetura (19267 ), privilegiando a luz natural, espaços internos amplos e flexíveis e a presença da natureza, pontos que ainda inspiram muitos arquitetos: Pilotis: a casa eleva-se do chão Planta livre: a estrutura do edifício permite que o espaço interno seja organizado da forma que se deseje Fachada Livre: como as paredes externas não sustentavam peso, elas podiam receber, sempre que necessário, janelas e outras aberturas Janela Fita: uma grande janela horizontal Terraço jardim: a ideia era recuperar a parte coberta pela casa e pôr seus moradores em contato direto com a natureza.

Três outros arquitetos foram definitivos, juntamente com Le Corbusier, no desenho de uma arquitetura modernista que reinventava os espaços e deixava para trás a linha quadrada e fechada da caixa ou armário, como eram antes os gabinetes de curiosidade ou câmaras de maravilhas. Primeiro, Mies Van Der Rohe, professor da Bauhaus e um dos formadores do que ficou conhecido como international style - projetos de plantas livres e aparente simplicidade, com a utilização de materiais representativos da era industrial como o aço e vidros. Um dos seus edifícios mais conhecido é o Pavilhão alemão na Feira Mundial de Barcelona de 1929 (Imagem 2).

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Os Cinco pontos da Nova Arquitetura foi publicado na revista francesa L'Esprit Nouveau, concebida e editada por Le Corbusier e pelo pintor cubista Amédée Ozenfant. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Imagem 2 – Miers Van Der Rohe - Pavilhão alemão na Feira Mundial de Barcelona de 1929

Frank Lloyd Wright, considerado um dos maiores arquitetos modernistas, alegava que o artista deve compreender o espírito de sua época para iniciar um processo de mudança (HARVEY, 2007). Lembremos que Wright projetou o Museu Guggenheim em Nova York, inaugurado em 1959, que prima pelo seu vanguardismo e pela arquitetura orgânica que valoriza os espaços iluminados naturalmente. A planta do Guggenheim sugere ainda, um caminho de movimento contínuo que, diferentemente da ideia de caixa estática, transformase em um espaço dinâmico por sua forma espiralada (MONTANER, 2003). Por último, citamos o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, considerado um grande protagonista na construção de museus por suas formas sensuais e líricas. De fato, a arquitetura brasileira de museus foi dominante no cenário mundial, principalmente nos anos 50, não só com Oscar Niemeyer, mas também com João Vilanova Artigas e suas formas de grandes praças cobertas, como o edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (1961), e de Affonso Eduardo Reidy, arquiteto do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-1953-1968), em forma de ponte e, inspirado por um lado nas plantas livres de Mies e, por outro, nas texturas e estruturas brutas de Le Corbusier (MONTANER, 2003). Lembremos que o MAM está localizado no Aterro do Flamengo, integrado ao parque desenhado por Roberto Burle Marx, numa área total de 1.200 milhões metros quadrados. O Museu de Arte de São Paulo (MASP – 1957-1968), projeto de Lina Bo Bardi, é considerado como ponto culminante da tradição racionalista e abstrata. Situado em plena Avenida Paulista, seu edifício em forma de prisma suspendido, é também inovador na própria museografia, com as pinturas dispostas sem hierarquias, linhas cronológicas ou de escolas. Para Montaner, estas estruturas só poderiam ter acontecido no Novo Mundo, numa América Latina, aonde o

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legado da história da arte chegava de repente, como um todo que se fazia visível e contemporâneo (p. 39). Arquitetarte Baudelaire vai traduzir o artista moderno bem-sucedido (incluindo a expressão da arte pela arquitetura) como alguém capaz de desvelar o universo e o eterno, “destilar o sabor amargo ou impetuoso do vinho da vida a partir do efêmero das formas fugidias de beleza dos nossos dias” (BAUDELAIRE apud: HARVEY, 2005, p. 435). Os projetos modernistas tentavam aliar beleza e funcionalidade e, a evolução dos projetos em forma de caixas agora reformuladas, tinha também como pressuposto facilitar a solução de problemas espaciais e das transformações, em tamanho e forma, das próprias coleções a serem expostas. As técnicas de construção e as urgências de um melhor atendimento ao público também foram fundamentais, tais como energia, climatização, informação, circulação, acessibilidade, funcionalidade, áreas de encontro, restaurantes e capacidade de crescimento. Neste sentido, os museus de ciências foram os grandes precursores ou beneficiados por esta tecnologia (MONTANER, 2003), muito pela necessidade de espaços amplos para o tamanho dos módulos e modelos expostos. De toda maneira, os avanços dos sistemas técnicos e dos meios de comunicação e informação na segunda metade do século XX foram determinantes para as construções mega estruturais, com espaços neutros e de máxima pluralidade de funções, permitindo uma melhor adequação das exposições e a massiva visitação desses espaços. Para isso, uma das opções para arquitetura do interior dos museus é a simplificação, espaços abertos, transparências e fluidez na circulação entre as salas de exposição. Os museus agora eram projetados para serem lugares agradáveis de ficar até mesmo independentemente de seus motivos-objeto, o acervo exposto. Para isso foram agregados novos serviços como restaurantes, lojas, parques e jardins, além de outras facilidades e, mais do que tudo, em contraposição ao museu antigo,

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muita luz natural iluminando amplas circulações e grandes espaços de exposição muito mais integrados e fluidos. (KIEFER, 2002).

O que se observa, é que na década de 60 do século XX, a concepção dos projetos dos museus passou a levar em consideração os valores históricos de cada disciplina, ou seja, os projetos, inclusive de remodelação ou ampliação, eram concebidos a fim de atender a cada tipo de coleção: Museus de História, Arte Moderna, Arte Contemporânea, Ciências e os Centros Culturais. Ao mesmo tempo, os museus de ciências, no final desta mesma década, começam a descaracterizar suas disciplinas nas exposições, como ocorria no século XVII, quando a representação da ciência podia ser definida pela visão de um tempo único e pela exibição de máquinas e instrumentos. E, se antes o museu era o bastião da alta cultura, agora representa a indústria cultural para as massas, convertidos em edifícios mais hedonistas e populares, divertidos e comunicativos, com objetivo de reforçar a imagem urbana e turística. Os museus de ciências, porém, só serão considerados fenômenos do espetáculo cultural e integrados ao mapa turístico das cidades, a partir da década de 80, quando há um crescimento da indústria museográfica científica e tecnológica. Espetáculo arquitetônico: novas experiências Como vimos anteriormente, a arquitetura dos museus atuais e como eles se colocam no espaço urbano foram influenciados pelos ímpetos modernistas, e, por outro lado, pelo auge de criação, ampliações e transformações que os museus passaram na década de 80, época da consolidação da cultura pósmoderna. Não é exagero dizer que os edifícios se convertem, eles mesmos, em espetáculo arquitetônico. Ou como diz Huyssen (2000), talvez a caixa e a tela sejam nosso futuro (p. 106), presentes também agora na arquitetura material de novos edifícios, verdadeiras obras artísticas, como o Guggenheim de Bilbao (1997), do arquiteto americano Frank O. Gehry; o Instituto Holandês de Imagem e Som, do arquiteto Rem Koolhaas (Imagem 3); o Museu de Arte Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Contemporânea (MOCA-1986), de Los Angeles; o Parque de las Ciencias, em Granada, Espanha (ainda em reforma); o recente Museu de Iberê Camargo, em Porto Alegre (2008, do arquiteto português Álvaro Siza Vieira) e o Museu de Arquitetura de Groningen (1995). Imagem 3 - Guggenheim de Bilbao e New York e Instituto Holandês de Imagem e Som

Nos últimos anos, é a tecnologia que está aparente e não mais os tubos de água, gás ou eletricidade do Beaubourg. Gigantescas caixas eletrônicas, com transmissão das experiências que podem ser vividas no interior do museu, transformam os edifícios em verdadeiras telas de cinema de alta definição. A mídia digital também invade as salas expositivas e, enquanto o computador passa a substituir os cartazes, os experimentos são substituídos por cenários e interfaces digitais. Pouco a pouco, os museus vão absorvendo a tecnologia, digitalizando e disponibilizando seus acervos nos sites da Internet. Segundo estudo de Pacheco Telma (2008), realizado em quatro museus e seus respectivos websites (três de São Paulo e um de Curitiba) e, que tinha como objetivo principal investigar a percepção e experiência das pessoas que interagem com ambientes físicos e virtuais, 100% das pessoas entrevistadas entre visitantes e responsáveis pela administração das instituições, responderam que a arquitetura é fundamental para atrair o público, sendo que alguns museus são mais conhecidos por seu edifício do que por seu conteúdo. O estudo também conclui que a arquitetura dos museus é considerada como elemento central para manter a associação entre museu real e o virtual. Especificamente na Internet, a arquitetura da informação derruba paredes e o espaço físico, desmaterializando a forma. Neste caso, são identificados pelo menos três tipos de museus virtuais: as páginas institucionais, limitando-se a informações de funcionamento e histórico da instituição; o museu real no ambiente virtual, com a disponibilização de imagens dos acervos e exposições físicas, explorando através da hipermídia os temas expostos no meio real e,

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como o museu virtual Museu de Artes do Uruguai (MUVA) - http:// muva.elpais.com.uy/, o Baltimore Museum of Arts e o Albright Knox Art Gallery. Resumidamente, podemos dizer que as construções e reformulações ocorridas a partir da década de 1980 até o final do século XX confluíram numa linguagem que vai do passado até o contemporâneo, mesclando velhos parâmetros com soluções high-techs. Os arquitetos como mediadores deste diálogo, converteram-se em “artistas” tão conhecidos por suas obras quanto aqueles que são abrigados nos seus edifícios. Assistimos a concursos para projetos, reformas, ampliações serem disputadas por grandes escritórios de arquitetura, e a busca por prêmios e fama. Lembremos, em primeiro lugar (e mais uma vez em Paris), da polêmica pirâmide de vidro, projetada pelo arquiteto chinês I.M.Pei, e inaugurada em 1989, durante o governo do presidente François Mittérand. A pirâmide é o centro dos principais eixos de circulação atuais do museu. A entrada é cercada por espelhos d'água e ao descer encontram-se as bilheterias, os acessos aos diferentes prédios do museu e um pequeno centro comercial. Na direção ao jardim das Tuilleries fica a pirâmide invertida, que também ficou conhecida pelo destaque dado a ela no livro e filme "O Código Da Vinci". Apesar das imensas condições de caráter técnico que requerem os museus atuais, a liberdade de ação que se oferece ao arquiteto na hora de projetar um museu é particularmente grande, assim como os orçamentos para esses “monumentos da cultura” não são escassos (MADERUELO, 1990).

Os arquitetos contemporâneos encontram menos resistências as suas propostas, dando-lhes maior liberdade na concepção de seus projetos. Entretanto, nesta primeira década do século XXI, a linguagem empregada nos projetos pressupõe um diálogo entre o contemporâneo e o futuro, sobretudo com o objetivo da Sustentabilidade. Vemos surgir todos os dias, notícias de uma inauguração de edifícios ecológicos8 , reconhecidos inclusive com o certificado

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Veja em: http://www.revistameioambiente.com.br/2007/05/31/predios-ecologicos-o-ambienteagradece/ ou http://www.tnsustentavel.com.br/noticia/821/Petrobras+inaugura+edif%C3%ADcio+ecol %C3%B3gico+no+Rio+de+Janeiro Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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“LEED”, sigla em inglês de Liderança em Energia e Design Ambiental, criado por um grupo de empresários da construção nos Estados Unidos. A ideia de sustentabilidade nos projetos não é nova. Voltando a Escola Bauhaus, o arquiteto Ernest Neufert inseria em seu verbete “Arte de projetar em Arquitetura” (1936), algumas questões essenciais para a elaboração de projetos arquitetônicos para museus, incluindo nesta categoria as escolas de artes e as bibliotecas. Entre as regras abarcadas no livro, encontramos como pontos prioritários a “proteção das obras contra a destruição, roubo, fogo, umidade, secura, sol e pó”, sem deixá-las de mostrá-las com a luz mais favorável. Nos dias hoje, os edifícios “vivos” ou “sustentáveis” tomam outros significados, principalmente nos museus de ciências, por pelo menos três motivos: pela conservação do planeta e, não menos nobre, diminuir custos de manutenção (energia, água) e prevenir contra os efeitos do aquecimento global sob as peças expostas. Por exemplo, o projeto da Califórnia Academy of Science9 do arquiteto Renzo Piano (o mesmo arquiteto do Beaubourg) levou em consideração os pontos abordados por Nefert, mas especificamente para uma arquitetura voltada para o sustentável em tempos de mudança climática. Dean Weldon, presidente da Academy Studios10 , empresa responsável pela execução do projeto do museu californiano (entre outros), em conferência durante o Curso Museologia Total / 2010, no CosmoCaixa Barcelona, enfatizou a importância de pensar sustentabilidade por dois ângulos: o controle do ambiente interno em detrimento das mudanças climáticas e consumir menos energia, evitando a emissão de carbono. Entre outros pontos pensados no projeto estão: o controle da poeira com a utilização de carpetes e filtros especiais; controle da luz (0% UV light), a fim de que os raios UV não alterem os pigmentos dos objetos e obras expostas; tratamento acústico das salas; sistemas de segurança contra roubos, fogo, materiais tóxicos e controle de doenças. Com estes itens em pauta, um desenho arrojado (a grande atração é o teto vivo – 9

O museu tem uma área de 40 mil m2 e o projeto teve um custo de 488 milhões de dólares. Inaugurado em 2008, teve 2,3 milhões de visitantes apenas no primeiro ano / http://www.calacademy.org/ 10

Disponível em: http://www.academystudios.com/ Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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living roof), o edifício foi certificado pelo LEED e tem uma economia geral de 10%, através do uso de energia solar, coleta de água das chuvas para banheiros e jardins, controle de temperatura e luz pelo sistema de grandes janelas no teto, reciclagem de lixo e a utilização de novos materiais, como por exemplo, o jeans para isolamento acústico. As palavras chaves utilizadas por Weldon são: transparência, exploração, aprendizagem engajamento, inovação e prazer. Se por um lado o museu mantém diversas atrações, como o aquário e a floresta tropical e um programa de pesquisa científica no mesmo espaço, como um museu de História Natural ainda encontram-se velhas fórmulas de exposição como dioramas, murais, cartazes e animais empalhados. Podemos citar ainda, o projeto do arquiteto Toni Gironès para o Museu do Clima em Lleida, Espanha, que objetiva uma integração da natureza com a arquitetura, ou seja, a proposta é interpretar e reconhecer as características reais do lugar, transformando-os em elementos determinantes para a estruturação do projeto (Imagem 4). A ideia seria reinventar os museus de História Natural, a partir da elaboração de uma série de espaços de mediação e diálogo entre as partes - arquitetura e natureza, permitindo ao visitante desfrutar sensações e conteúdos relativos ao meio ambiente e integrar-se àquela paisagem. Estes espaços seriam como espaços de reconciliação, onde o homem que um dia se divorciou da natureza (e vamos dizer que este divórcio foi litigioso e a pensão a ser paga é enorme), possa ser novamente seduzido e voltar a viver em harmonia. Imagem 4 - Projeto do arquiteto Toni Gironès para o Museu do Clima em Lleida, Espanha.

A partir do momento em que, os museus de ciências passaram a configurar o cenário das cidades contemporâneas como integrantes de uma rede cultural, a afluência massiva de visitantes implicou a necessidade de multiplicar os serviços do museu, como exposições temporárias e lugares de consumo, além de ter áreas dedicadas à direção, educação e conservação (MONTANER, 2009). Ou seja, hoje, não é raro acharmos na programação dos museus e centros de Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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ciências atividades além das exibições permanentes, como teatro, concertos, encontros, palestras, cinema etc. Assim, podemos afirmar que o museu de hoje é ele mesmo uma instalação, uma experiência, feito de uma herança híbrida com características de catedral, palácio, teatro, escola, biblioteca, pesquisa e, por que não dizer, de um grande depósito, que compõem a trama da cidade como um rito, como o último monumento que se permite projetar a arquitetura. O museu se constitui em comemoração de si mesmo (MADERUELO, 1990). Arriscamo-nos a dizer que, se fossemos cartografar as cidades contemporâneas, utilizando-se como exemplo o desenho de Roma Antiga de Giambattista Nolli11

(1748), o qual considerava como espaços públicos os

edifícios que representavam os ícones da cidade, ao invés das igrejas e monumentos, possivelmente seriam os museus que apareceriam na planta baixa.

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Disponível em: http://nolli.uoregon.edu/default.asp Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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TUCHERMAN, Ieda e CAVALCANTI, Cecilia C.B. - Sociedade biotecnológica de mercado: subjetividade contemporânea e autoajuda. Trabalho apresentado ao Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia | Artigos Arquitetura dos Museus | Cecília Cavalcanti

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Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013.

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UM GÊNERO JORNALÍSTICO TORNADO LITERÁRIO EM “A ENTREVISTA”, DE SAMIR YAZBEK A JOURNALISTIC GENRE TURN LITERARY IN THE PLAY “THE INTERVIEW”, BY SAMIR YAZBEK

artigos

Luís Cláudio Machado Pós-Doutor em dramaturgia no instituto de artes da UNICAMP. Doutor em letras pela Universidade de São Paulo(USP). Professor da Universidade de Sorocaba, lecionando nos cursos de teatro, dança, música e artes visuais. Sorocaba, SP, Brasil. E-mail: luis.machado@prof.uniso.br


Resumo: Uma leitura da peça “A Entrevista” de Samir Yazbek alicerçada no modo pelo qual o autor olha para a cultura de nossa época, apropriando-se dela e moldando-a em seu texto. As apropriações, no caso da televisão e do jornalismo, a primeira, pois ambienta a ação num estúdio de gravação de um programa de TV, e, o segundo, ao optar pelo formato entrevista. Desse modo, procuramos evidenciar a conveniência de se olhar determinados textos literários pela ótica do jornalismo, pois ele é uma forma moderna estreitamente conectada com o espírito crítico e com a consagração das liberdades individuais. Palavras-Chave: Dramaturgia Contemporânea. Comunicação. Cultura. Mídia. Teatro Brasileiro. Abstract: A perspective of the play “The Interview”, by Samir Yazbek, based on the way the author sees the culture of our times, grasping it and molding it in his text. Such appropriation involves television and journalism; the first being the ambience of action in the studio of a TV show, and the second being the very interview format of the play. Thus, we sought to make it clear the convenience of looking into some literary texts by the lenses of journalism, once it is a modern medium that has intimate connections with the critical spirit and the consecration of individual freedom. Keywords: Contemporary Dramaturgy. Culture. Media. Brazilian Theater.

Communication.


INTRODUÇÃO Samir Yazbek tem sua obra figurada entre as mais importantes de nosso teatro atual. Em 2006, publica na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, “O Teatro de Samir Yazbek”, com a edição de suas peças “O Fingidor”, “A Terra Prometida” e “A Entrevista”. Dessa “trilogia”, “O Fingidor” e “A Terra Prometida” receberam traduções em espanhol e francês, e “A Entrevista” foi traduzida, além dessas duas línguas, também para o inglês. Colocamos a palavra trilogia entre aspas, pois, na visão do dramaturgo, a publicação não constitui em si uma trilogia, embora reconheça alguns poucos pontos comuns às três peças, entre eles, a preocupação com o valor dado à palavra. Na visão do dramaturgo, a ambição do texto teatral deve ser a de: ... organizar certas questões, dúvidas e perplexidades, definir um ponto de partida e de chegada para um caminho que leve o espectador à reflexão, que cause nele algum efeito. A arte da escrita dramatúrgica ambiciona estabelecer alguma ordem num mundo aparentemente caótico. É a arte de criar ordens arbitrárias, ficcionais, que proporcionem a ilusão de que estamos entendendo algo em meio a este caos. 1

Basta substituirmos a palavra “espectador” por “leitor” e suprimir a palavra “dramaturgia” e temos uma visão análoga à Literatura. Exatamente por isso, acreditamos que os três textos possam sim constituir uma trilogia, ainda que esta não tenha sido a intenção do autor, que na contra capa do volume com as três peças, escreve: São temas diferentes. A Entrevista conta a história de um diálogo ao vivo, programado por apresentador de televisão para homenagear a ex-mulher, uma conhecida escritora. A Terra Prometida é inspirada no Livro do Êxodo, da Bíblia, a respeito do povo judaico e sua busca pela Terra Prometida. O Fingidor é uma 1 Disponível em: <http://webwritersbrasil.wordpress.com/a-arte-do-roteiro/entrevistas-2/entrevistasamir-yazbek/>. Acesso em 08/01/2012.

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fábula sobre Fernando Pessoa, o poeta português que, sob o disfarce de um certo Jorge Madeira, emprega-se como datilógrafo na casa de um importante crítico literário, que está empenhado em escrever um substancioso ensaio justamente sobre a poesia de Fernando Pessoa.” (YAZBEK, 2006)

Inegável é que as três peças têm em comum o fato de tomarem como ponto de partida referências que vêm do mundo da Literatura. Em “O Fingidor”, os últimos dias de Fernando Pessoa, bem como seu poema “Autopsicografia”, são a inspiração; em “A Terra Prometida” o tema procede da maior obra literária produzida pela humanidade, a Bíblia, no momento em que, comandado por Moisés, o povo hebreu errou pelo deserto do Sinai; e “A Entrevista” leva ao palco uma escritora de sucesso sendo entrevistada pelo ex-marido num programa de TV. Sabemos que o teatro é um discurso cultural e que, olhando para cultura de uma época, veremos como ela se molda aos textos ou que tipo de apropriações estes fazem dela. Referência no próprio título da peça, o jornalismo, muito próximo da arte, pois, uma das formas da expressão literária, é um símbolo de nossa época apropriado pelo dramaturgo. Sua inserção na corrente central da criação literária é um fenômeno que se deu em todas as literaturas modernas. Ele constitui uma de suas vertentes, uma de suas opções e, às vezes, como no caso de A Entrevista, de Samir Yazbek, é conveniente olhar textos literários pela ótica do jornalismo, pois ele é uma forma moderna estreitamente conectada com o espírito crítico e com a consagração das liberdades individuais. A televisão é outro símbolo de nossa época apropriado pelo dramaturgo ao universo teatral, como indica a rubrica inicial que descreve o cenário, um “Estúdio de um programa de televisão em que não vemos a aparelhagem, nem os técnicos.” (YAZBECK, 2006, p. 211). Importa na representação o contexto e não os elementos que o compõem; interessa mais ao dramaturgo o conteúdo que desse formato ele possa extrair, mais os diálogos e os conflitos que lhe podem render. O autor esclarece que:

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Não houve pesquisa de campo, a não ser na fase final, para conferir algumas referências técnicas do universo da televisão, que a peça apresenta. Atribuo a familiaridade com o tema ao fato de eu ter passado diante da TV minha adolescência, época de tantas descobertas, na década de 1980, quando o jornalismo, sobretudo o televisivo, amadureceu significativamente. O texto, de certa forma, se utiliza de um imaginário que se formou durante esse período, em que vi muitos programas de entrevistas.2

Embora o autor cite os programas de televisão da década de 80, uma entrevista histórica envolvendo uma escritora em programa de televisão que certamente o inspirou, foi a última concedida por Clarice Lispector, em 1977. Para concedê-la, impôs como condição que suas palavras fossem divulgadas apenas depois de sua morte. Foi no programa Panorama da TV Cultura dirigido pelo jornalista Júlio Lerner, que cumpriu a promessa. Gravada em 1º de fevereiro só foi ao ar dia 28 de dezembro do mesmo ano, dezenove dias depois da morte da escritora. Além das duas entrevistas (real e fictícia) terem o mesmo formato, com o entrevistador incógnito, as semelhanças entre Clarice Lispector e a escritora personagem de Yazbek começam pelo fato de ambas trazerem os mesmos dois elementos para a cena: uma bolsa e cigarros. Ambas fumam durante o programa. Na entrevista real, questionada sobre sua produção, a autora responde, entre outras coisas, haver “...hiatos em que a vida fica intolerável [...]podem ser longos e eu vegeto nesses períodos [...] Só estou triste hoje porque estou cansada [...] Eu acho que quando eu não escrevo eu estou morta. É muito duro o período entre um trabalho e outro”3 , questões que repercutem também nas falas da escritora fictícia, que afirma: “...eu me sinto verdadeiramente morta quando não estou escrevendo...” (YAZBEK, 2006). Se pensarmos na televisão de início do século XXI, época em que a peça foi escrita, os programas de realidade ainda são os que mais se reproduzem. Gostemos ou não, os reality shows representam o modo pelo qual a televisão 2 3

´

Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_jornalismo_vai_ao_teatro> Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok>.

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encarna as novas funções, às quais conduziram tanto a mudança social quanto os novos modos de entender a comunicação televisiva. O que não passa despercebido ao dramaturgo. O texto de Yazbek, colocando questões de âmbito público e privado num mesmo contexto, uma gravação de um programa de TV e seus bastidores, leva o receptor (leitor ou espectador) a acompanhar, não só a gravação da entrevista, como o que acontece com os personagens nos momentos em que não a estão gravando, experimentando assim, certo prazer com o ‘inusitado’ acontecimento in vivo da peça. Podemos dizer que as câmeras invisíveis desse estúdio são substituídas pelos olhos dos leitores, no processo da leitura, e dos espectadores na assistência da representação, pois, invisíveis, qual voyeurs, têm acesso à intimidade dessa dupla. Com seus diálogos e rubricas (leitura), a entrevista e seus bastidores (representação), a peça oferece ao leitor, mas, sobretudo ao espectador, a sensação de estar diante de um programa de realidade, a monitorar todos os momentos de uma entrevista televisiva. Os momentos de bastidor são os mais divertidos e interessantes, como costuma dizer quem participa de uma, mas seus telespectadores a eles não têm acesso. No caso da peça, bastante esclarecedores, tais momentos têm a vantagem de serem acessíveis aos seus leitores/ espectadores. O texto se inicia com três rubricas: uma topológica (sobre o cenário/ estúdio onde o programa de TV é gravado); uma referente à ação, esclarecedora do contato entre os dois personagens no decorrer da peça, em que o entrevistador se dirige à entrevistada de três formas indicadas: quando não estão gravando, sua voz é mais próxima à escritora (Entrevistador Cabine), durante a gravação do programa, é ouvida nas caixas de som do teatro (Entrevistador Áudio), e ao final, quando surge no palco (Entrevistador Cena); e a terceira, a dramatispersonae (ESCRITORA e ENTREVISTADOR). Formalmente, temos uma peça de ato único, mas que pode ser dividido em sete cenas:

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1- Prólogo / 2- Início da gravação primeiro bloco do programa / 3- Primeira interrupção, problemas técnicos com o microfone / 4- Retomada da gravação do primeiro bloco do programa / 5- Intervalo / 6- Gravação do segundo e último bloco do programa / 7- Despedida-reconciliação dos dois. As cenas pares são as de entrevista, ou melhor, da sua gravação e, as ímpares, as de bastidor, constituídas pelos momentos que precederam a gravação, dois momentos de interrupção, um por problemas técnicos com o microfone e outro para o intervalo do programa, e os momentos pós-gravação. Os recursos formais que podemos tomar como as marcas das divisões destas cenas são: primeiro a indicação da voz do personagem masculino que mencionamos (Entrevistador Áudio para as cenas de entrevista, Entrevistador Cabine e Entrevistador Cena para as cenas de bastidor); depois, rubricas técnicas entre uma cena e outra, e ainda a rubrica sonora indicando a vinheta do programa como marcadora do início e dos finais de cada bloco. A ação começa logo antes da gravação, momento de reencontro dos dois em que a entrevistada descobre a articulação feita pelo ex-marido jornalista, dado que o leitor/espectador desconhece: ESCRITORA – Por que não me avisaram que era você que faria a entrevista? ENTREVISTADOR (cabine) – Eu tinha medo que recusasse. ESCRITORA – Pois eu recusaria mesmo. ENTREVISTADOR (cabine) – Quando me disseram que a pauta foi aprovada, eu não consegui me controlar. Conversei com o Eduardo e resolvi entrar no lugar dele. (YAZBEK, 2006, p. 212-213).

Este personagem Eduardo, mencionado na apresentação e no fechamento do programa, vem a ser o entrevistador titular do posto, Eduardo Drumond, que excepcionalmente o “cedeu”, “por motivos de força maior”. Outra informação, dada no início, é que essa situação, uma entrevista

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envolvendo os dois, não é a primeira vez que ocorre: “ESCRITORA: Tomara que o microfone não caia como da última vez.” ( YAZBEK, 2006, p. 212). Assim, o que a princípio seria uma conversa sobre literatura, torna-se um acerto de contas pessoal que leva a uma profunda sondagem da alma humana, já que o cerne da ação dramática aqui é algo que nos caracteriza como humanos: a alteridade, a experiência do relacionamento com o outro. Com isso, o texto traz reflexões acerca não só do sentido da criação artística, mas de nossa própria condição. O diálogo que se inicia de maneira formal, discutindo questões profissionais, rapidamente envereda para questões privadas. Nada mais seriam que os diálogos entre uma artista e um jornalista, com a atenuante dos personagens envolvidos terem sido casados, não fosse tal situação trabalhada por um dramaturgo com personalidade estilística bem desenvolvida. Na maioria das vezes, numa entrevista dessas, os diálogos sobre o trabalho do artista pretendem substituir o trabalho crítico e, simultaneamente, participam da extinção da crítica em proveito da perpetuação do culto do autor e da promoção (mercado) dos artistas. Embora isso não seja o que importa para a personagem – que declara em outro momento preferir ser tratada apenas como artista, sem o adjetivo ‘consagrada’ –, a questão mercadológica já lhe é colocada logo no início da entrevista quando questionada sobre a vendagem de suas obras: ESCRITORA – Ah! Sem dúvida. A estimativa é que só nesse último ano, a vendagem dos meus livros tenha praticamente dobrado. ENTREVISTADOR (áudio) – E como você recebe essa notícia? ESCRITORA – Eu fico feliz, é claro. Para uma escritora como eu, é mais do que se pode imaginar. E depois, a gente escreve para ser lida, não é? (YAZBEK, 2006, p. 217).

Como podemos ver, este poder primeiro e todo-poderoso de nosso mundo atual, o poder do mercado, a economia como discurso do eficaz, racional Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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e, portanto, “real”, não pode ser ignorado pelo jornalista.

Evidentemente, a

comunicação e o jornalismo como executor não só estão dentro de sua hegemonia como também são seu veículo de propaganda e seu escudo de atuação. Deste ponto de vista é muito difícil ir além e prescindir de uma realidade que é a que verdadeiramente move o mundo, e o dramaturgo, ao transpor um gênero jornalístico para a criação literária não poderia deixar de referir-se a essa realidade. Por definição, a entrevista é um gênero jornalístico, um diálogo oral planificado entre duas pessoas, no qual uma delas propõe uma série de perguntas à outra, a partir de um roteiro prévio, feita para que o público possa conhecer as opiniões de uma personalidade. O entrevistador, ao dialogar com um artista, busca fazê-lo dizer, não tanto a sua verdade, mas a verdade sobre seu trabalho, como se o artista infalivelmente detivesse (mesmo sem o saber), uma verdade qualquer, una e indiscutível, sobre sua arte. Tendo esta forma como point de départ, o dramaturgo faz render uma reflexão ética acerca da criação artística e da própria conduta existencial, que lhe permite dissecar o ato criador. Aqui uma situação inusitada e inesperada, a entrevista concedida por uma escritora a um programa de TV, cujo entrevistador ela só fica sabendo quem é na hora de gravar o programa, e não por acaso a desempenhar esse papel, seu ex-marido. Ao considerar o gênero entrevista como imprescindível nas programações de rádio e televisão, confirma-se o papel do diálogo na geração de conflitos informativos, pois, perguntar, dosificar informação, colocar-se no lugar dos demais para obter repostas precisas, é muito mais que um simples interrogatório. A partir da primeira pergunta o jornalista se apoia no diálogo para compor informação interessante. Os contrastes gerados entre perguntas e respostas e, inclusive entre comentários não necessariamente questionadores, retratam a possibilidade do diálogo para gerar conflitos e ações.

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É possível afirmar que jornalista e entrevistado correspondem a alguns dos personagens do drama e suas funções mais primárias, o que mostra o quanto uma entrevista tem de teatral, com os envolvidos representando papéis bem definidos. No caso da peça, além dos claros papéis de entrevistador e entrevistada, jornalista e escritora, também estão em jogo os de homem e mulher, ex-marido e ex-esposa. Uma entrevista em parte é teatro e em parte ficção narrativa: um conto protagonizado pelo entrevistado. O encontro físico, a conversação, é um ato teatral. Porque há sempre algo de representação, de jogo de personagens previamente pautado. Lívia Lemos, afirma num determinado momento: “...Bem, eunemseisedeveriafalarsobreisso agora, mas confesso que eu me sinto um pouco desconfortável nesse papel.” (YAZBEK, 2006, p. 219). O gênero entrevista é o que melhor potencializa o diálogo em seu estado mais natural e, nesse sentido, muito se aproxima do típico diálogo do drama.

E o dramaturgo reforça a questão teatral como importante em seu

texto, uma vez que recorre a exemplos vindos da literatura dramática em dois momentos: primeiro, ao ser apresentada, ouvimos do entrevistador que, Lívia Lemos, 43, a escritora da vez, uma das vozes mais fecundas na nova ficção brasileira, “...tem bastante afinidade com a obra do dramaturgo irlandês Samuel Beckett.” (YAZBEK, 2006, p. 215); depois, na entrevista, no único momento em que recorre a personagens literários para exemplificar suas colocações, cita um clássico da dramaturgia universal: “...Uma espécie de Hamlet redivivo é o que eu antevejo para nós, enquanto um destino coletivo.” (YAZBEK, 2006, p. 227). O dramaturgo, cineasta, ensaísta e professor de roteiro Yves Lavandier4 estima sobre os papéis dramáticos, que se o protagonista de uma peça é o personagem que vive o maior conflito e, portanto, aquele com o qual o espectador mais se identifica, não é difícil relacioná-lo com alguns dos participantes do ato dialógico. Lembrando que é difícil predeterminar o papel 4 LAVANDIER, Yves. La dramaturgia. Los mecanismos del relato: cine, teatro, ópera, radio, televisión, cómic. Madrid, Ediciones Internacionales Universitarias, 2003, p. 65. Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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de protagonista numa relação informativa desse tipo. Mas, no caso da peça, parece evidente que a protagonista é a escritora, já que o entrevistador, além de não receber um nome, ser designado apenas por sua função, está a maior parte do tempo fora da cena, apenas ouvimos sua voz. Para Lavandier, os personagens estão diretamente ligados à confluência da dualidade objetivo / conflito, eixo central de toda a ação que há de se desenvolver. Assim, o protagonista não é outro senão aquele que vive o conflito central, com o qual o espectador se identifica emocionalmente e, por isso mesmo, lhe corresponde um único objetivo central, ainda que possa estar cheio de objetivos parciais. Atua como ponte entre o autor e o espectador, pois também costuma responder ao maior processo de identificação por parte do autor, o que, certamente, é o caso da peça de Yazbek, como o confirma essa sua declaração: “Em “A Entrevista”, a personagem da Lygia diz: “Eu sinto que o meu melhor ainda está por vir”. Eu me sinto um pouco assim.”5 Podemos dizer que, basicamente, são dois os tipos de entrevistas: a informativa e a de personalidade. A primeira quando o jornalista busca conhecer dados, opiniões especializadas ou simplesmente confirmações. Este tipo de diálogo tem como objetivo ampliar ou comentar a notícia. Na do segundo tipo – caso da peça –, o jornalista tenta abordar a obra, o pensamento e a maneira de ser de uma pessoa que, por sua transcendência, poderia interessar ao público, aspecto constantemente aludido: ESCRITORA – ...Bem, eu acho que você gostaria que eu falasse sobre outras coisas, não é? ENTREVISTADOR (áudio) – Não, podemos falar sobre isso mesmo. Aliás, aqui podemos falar sobre o que você quiser, que é, em última instância, o que interessa às pessoas que nos assistem.(YAZBEK, 2006, p. 220). [...] ESCRITORA – Não, é que eu não gosto muito de comentar sobre a minha vida pessoal. Eu quase nunca acredito que ela possa ser útil às pessoas.

5 Disponível em: <http://webwritersbrasil.wordpress.com/a-arte-do-roteiro/entrevistas-2/entrevistasamir-yazbek/>. Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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ENTREVISTADOR (áudio) – Ao contrário, eu acho que pode ser interessante para o público que nos assiste. Afinal, parecem coisas pessoais, mas acrescentam muito à compreensão que temos da sua literatura. (YAZBEK, 2006, p. 220). [...] ENTREVISTADOR (áudio) – ...Creio que pode ser útil para muita gente. (YAZBEK, 2006, p. 220), [...] ENTREVISTADOR (cabine) – O público vai compreender Lívia, isso é muito importante para você. E a entrevista está ótima. E depois, eu acho que as pessoas podem se beneficiar com tudo isso, porque, afinal de contas, não estamos falando só de nós mesmos, não é?(YAZBEK, 2006, p. 237) [...] ESCRITORA – Será que essas coisas interessam a alguém? ENTREVISTADOR (áudio) – Mais do que imagina. (YAZBEK, 2006, p. 241).

Utilizando o diálogo no estilo direto como modo de expressão, a entrevista parte do reconhecimento de uma interação nos diferentes planos, que é a condição primeira para que a hegemonia das palavras não termine por sobrepor o fluir da conversação. O jornalista realiza a pergunta e imediatamente aparece a resposta do entrevistado. O diálogo, diferentemente da entrevista, flui num plano mais simétrico que esta, se faz entre pares e vai gerando suas próprias estratégias de conversação. Se na entrevista temos entrevistados e no diálogo, interlocutores, o exercício de Samir Yazbek nesta peça foi trazer os personagens do diálogo para o campo da entrevista, ou vice-versa. Desta forma, consegue extrair o que ela de melhor pode oferecer ao teatro, uma vez que toda entrevista tem sua pequena ação dramática. Ao longo da conversa coisas acontecem, ou deveriam acontecer. Resumindo, uma boa entrevista, como toda boa peça de teatro, é aquela em que se produzem certas trocas emocionais ou intelectuais. Num mundo em que ser uma coisa e parecer outra rege a vida de grande parte das pessoas, o texto busca refletir sobre as relações humanas neste contexto. No release da produção do espetáculo, o autor esclarece:

Difícil encontrar hoje em dia quem não esteja dividido entre a nostalgia de uma vida comunitária e os imperativos da globalização. Mais raro, porém, é quem esteja atento aos problemas decorrentes dessa contradição. Este texto nasceu, tanto no conteúdo quanto na forma, como uma tentativa de investigar essa Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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questão, aprofundando a dicotomia essência/aparência, que rege a existência da maioria dos indivíduos no mundo contemporâneo.6

O jogo público/privado, característico dessa dicotomia aparência/ essência, já se apresenta nas duas primeiras rubricas: a primeira delas com respeito ao cenário, estúdio de um programa de televisão, o que remete aos domínios do público, e a segunda rubrica com respeito à ação, “Bastidores de uma entrevista gravada”, bastidor imediatamente ligado ao privado. A primeira cena, antes do início da gravação, funciona como um prólogo que nos coloca a par do contexto no qual se desenvolverá a ação. Neste prólogo, em vários momentos o entrevistador quer justificar sua atitude: “Eu estava devendo isso para você.”(YAZBEK, 2006, p. 213); “Foi a forma que eu encontrei de mostrar quanto eu te admiro.” (YAZBEK, 2006, p. 213); ou “...Há meses você não atende a um telefonema meu. Eu não tive outra saída.” (YAZBEK, 2006, p. 214); e ainda “...Talvez essa não tenha sido a melhor forma. [...] Mas eu não podia deixar de participar dessa homenagem” (YAZBEK, 2006, p. 215). O que neste momento salta aos olhos, como característica da personalidade da homenageada é um orgulho, com algum rancor, que se manifestará outras vezes; neste prólogo, ela diz “Chega, eu não quero mais falar sobre isso. Aliás, eu prometi a mim mesma que nunca mais ia falar com você.”(YAZBEK, 2006, p. 214). Essa pequena ‘introdução’, indubitavelmente, faz parte do privado. Recebemos informações acerca dos dois e, o mais importante, que tiveram um passado em comum. Ele se refere a sua interlocutora, uma grande e célebre escritora, por seu primeiro nome, como se gozasse de uma intimidade: “Que foi que eu fiz, Lívia.”(YAZBEK, 2006, p. 213). A próxima cena é o início da gravação da entrevista, como manda o figurino, com a devida apresentação da entrevistada e o início da conversa é a homenagem que o Comitê das Artes do Governo Federal está prestando à 6 Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ peca_reestreia_no_tuca_em_curta_temporada>. Acesso em 10/11/2011.

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autora. A intimidade entre ambos fica reforçada quando o entrevistador afirma conhecer o trabalho dela desde o início e poder testemunhar o quanto ela se dedica e com muita seriedade à literatura. A entrevista segue tratando de questões mais de ordem pública como o mercado editorial, arte e consagração do artista, até que o entrevistador, com uma frase, retorna ao privado “...Aliás, aqui podemos falar sobre o que você quiser.” (YAZBEK, 2006, p. 220). A princípio, não só figuras públicas, mas todos, podemos falar o que quisermos entre quatro paredes, e não num programa de televisão. É a deixa para mudarem de domínio: ENTREVISTADOR (áudio) – Me diga uma coisa, Lívia, eu não sei se estou certo, mas você não está me parecendo muito animada com tudo isso. ESCRITORA – Eu não lhe pareço bem? ENTREVISTADOR (áudio) – Estou te sentindo um pouco abatida. ESCRITORA – Como você percebeu isso? ENTREVISTADOR (áudio) – Antes mesmo da entrevista começar, enquanto a gente conversava, notei que você se referia à homenagem de uma forma meio vaga, sem entusiasmo. (YAZBEK, 2006, p. 220).

A partir daí, até a primeira interrupção de ordem técnica, prevalecerá o privado, demonstrando que os dois se conhecem muito mais que uma simples relação escritor/leitor pode permitir. Durante esse pequeno intervalo forçado que é a cena 3, os diálogos trocados são apenas formais. Na quarta cena, solucionado o problema técnico com o microfone, o retorno à gravação, retomada a partir do incômodo de ser uma pessoa pública. O seu subtexto, ironicamente, sugere estarem falando da própria relação deles. Uma intervenção do entrevistador parece sugerir o que talvez tenha motivado o imbróglio envolvendo os dois, embora, aparentemente estejam falando de outras coisas: “Quer dizer então que a incomoda que as pessoas vivam sempre esperando que você seja alguém interessante, não importa em quê.” (YAZBEK, 2006, p. 226) E a entrevista segue até o intervalo programado, mesclando vida e obra, o público e o privado, aos poucos revelando a lucidez da artista, com suas reflexões sobre postura ética diante da vida e da arte.

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A próxima cena, a de número 5 na nossa divisão, que se dará no intervalo, é toda ela privada e, tirada do contexto (bastidor de um programa de TV), caberia perfeitamente a uma discussão de casal: “ESCRITORA – Quem lhe deu o direito de me expor dessa maneira?” (YAZBEK, 2006, p. 234).; ou “ENTREVISTADOR - ...é bem típico de você, não é? Fugir quando as coisas estão se esclarecendo.” (YAZBEK, 2006, p. 235); e ainda: “ESCRITORA – Não lhe parece uma loucura falar dessas coisas publicamente?” (YAZBEK, 2006, p. 236). Na sexta cena temos o retorno à gravação, para o último bloco. O entrevistador quer seguir tratando do desencanto da autora com a vida e sua crise de criatividade. É a parte mais interessante, pois a estratégia frustrada do entrevistador em querer passar para o público uma imagem da artista com a qual ela em nada se identifica, leva a uma mudança de postura na entrevistada, que perde seu orgulho, declarando ter deixado de se sentir “a filha preferida de Deus” (YAZBEK, 2006, p. 244), assumindo publicamente questões bastante íntimas. A atitude revela uma postura corajosa, assertiva em relação àquilo que não se esperaria ouvir de uma artista, sobretudo no auge da carreira, com as vendas subindo e recebendo homenagens, o que em muito lembra a postura de Clarice Lispector na entrevista citada que, ao ser questionada sobre o papel do escritor respondeu: “O de falar o menos possível.”. A escritora-personagem chega a dizer “É que eu não ando com muita vontade de falar nada, sabe?” (YAZBEK, 2006, p. 220) e “[...] e quase sempre a gente não é interessante em coisa nenhuma, essa é a verdade. Por isso, acho que na maioria das vez o melhor mesmo é não falar nada.” (YAZBEK, 2006, p. 226) Nas palavras do autor: ...provocada por seu ex-marido, a escritora reafirma seus valores mais genuínos, contaminando a esfera pública com um pouco de humanidade. No entanto, mais do que enfocar o ‘público’ e o ‘privado’, o enredo pretende desvendar, através da relação que estabelecem, a natureza das personagens, suas possibilidades e seus limites.7 7 Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ peca_reestreia_no_tuca_em_curta_temporada>. Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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E eles vão ao extremo. Mas esta cena adquire grande importância por nela se dar uma revelação pública, da parte do entrevistador, de que a obra da escritora mudou a vida dele. A declaração soa como um pedido de desculpas e como uma afirmação da importância dela na sua vida, fato, ao que tudo indica, nunca fora dito antes. Tal declaração leva a escritora a extravasar seu amor pela literatura, o quanto escrever é importante na sua vida, a ponto de ser seu próprio sentido, e cria uma metáfora que é uma das mais lindas definições dessa arte: “...a literatura não passa de uma forma para quem não conseguiu extravasar todo o amor que sente.” (YAZBEK, 2006, p. 247). E, como numa epifania, sente a inspiração voltar. Fim da entrevista, com a formalidade que o gênero pede. No epílogo, quando o entrevistador surge em cena, é nítido que ambos não são os mesmos que eram antes da entrevista, que, de fato, serviu para um acerto de contas e, quando ele lhe pede um cigarro e ela lhe dá, o gesto é simbólico da certeza da retomada na relação entre ambos, não necessariamente a relação amorosa, mas a de amizade, certamente. Temos de reconhecer que a entrevista é um gênero que utiliza ferramentas literárias e jornalísticas e, segundo o dramaturgo,“...na peça o jornalismo está presente mais como forma e menos como conteúdo, fazendo com que uma mera conversa se transforme num autêntico diálogo, teatral e filosófico, nos moldes socráticos.”8 A partir da junção forma jornalística + diálogos filosóficos, o autor constrói uma dramaturgia de alto nível, repleta de qualidades literárias, que mesmo enquanto “entrevista”, acaba cumprindo aquilo a que qualquer uma se propõe: que o seu leitor/telespectador/ouvinte aprenda com a experiência dos entrevistados, que algo lhe sirva para a vida.

Os exemplos a seguir podem

comprovar esse aprendizado que podemos extrair das falas de Lívia Lemos: 8

Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_jornalismo_vai_ao_teatro>. Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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A grande questão do século que se inicia, seria fazermos uma reflexão sobre a nossa incapacidade de agir, mesmo sabendo de tanta coisa errada que mereceria uma tomada de posição mais certeira da nossa parte. (YAZBEK, 2006, p. 227). [...] ... temos de encarar de frente toda essa nossa fragilidade [...] eu já me convenci o suficiente do quanto sou falível e superficial. O problema é que, se ficarmos o tempo todo alimentando as nossas fraquezas, nós não vamos ter força para seguir adiante. (YAZBEK, 2006, p. 228). [...] ...me parece importante resgatar essa ideia. A construção da vida como um destino que devemos explorar ao máximo. (YAZBEK, 2006, p. 233).

Yazbek transforma o que seria um diálogo direto, onde duas pessoas trocam alternativamente os papéis de emissor e receptor (uma situação comunicativa), num diálogo reproduzido em texto (literatura), metamorfoseando o que seria apenas literal, em literário. No diálogo jornalista/escritora, a literatura é entrevista por uma entrevista, e essa interlocução de escrita provocada e provocadora que nos oferece a dramaturgia de Yazbek, leva-nos a enxergar a vida pela ética/ótica da escrita, tomando como forma uma entrevista que, em seu registro de vertigem, poética em ação, mostra-se como espaço mais que possível da escrita literária. Nas palavras do professor Mário Santana: A imitação das ações humanas se configura numa sequência de situações com tal ficcionalidade que nos dá a certeza de tratar-se de matéria do real processada poeticamente. Não nos deparamos com a cópia de uma aparente situação retirada da realidade; encontramo-nos ante um organismo artificialmente montado, para nele reconhecermos aquilo que nos diz respeito na ficção representada. Assim, Samir revela ter a verve necessária aos bons dramaturgos. (YAZBEK, 2009, p. 13).

No espaço híbrido entre a escrita e a fala configurado pela entrevista, à escrita cabe-lhe apenas registrar, é grau zero de corporeidade, sem temporalidade própria. Yazbek entendeu que, nesse espaço, a entrevista de escritores pode transtornar essa ingenuidade a ponto de se concebê-la como um espaço contaminado. Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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Pela dupla dimensão implicada no espaço de uma entrevista, o dramaturgo faz sua escrita aflorar da dinâmica entre o visto e o ouvido, entre a grafia e a fala, o eu que diz e o eu que escreve conduzindo-nos, na própria tensão do discurso, aos indícios do imponderável, à arte literária.

REFERÊNCIAS AUTANT-MATHIEU, M.-Ch.(org) Écrire pour le théâtre – les enjeux de l’écriture dramatique. Paris : CNRS Éditions, 1995. DUBATTI, Jorge. Concepciones de teatro: poéticas teatrales y bases epistemológicas.(Colihue Universidad). Buenos Aires :Colihue, 2009. __________. El teatro jeroglífico: herramientas de poética teatral. (Col. Textos Básicos). Buenos Aires: Atuel, 2002. GARCÍA BARRIENTOS, José-Luis (Director). Análisis de la Dramaturgia: Nueve obras y un método. (Colección “Arte” nº 163) Madrid: Editorial Fundamentos, 2007. GARCIA, Silvana. A dramaturgia paulista da geração 90. In: O teatro transcende. Blumenau, nº 11, 2002, p. 57-58. GOMES, André Luís (org). Leio Teatro. Dramaturgia brasileira contemporânea, leitura e publicação. São Paulo: Editora Horizonte, 2010. ISSACHAROFF, Michael. Le spectacle du discours.Paris: Corti, 1985. LARTHOMAS, Pierre. Le langage dramatique. Paris: P.U.F., 1980. Tríade: Artigos: Um gênero jornálistic tornado literário em “A Entrevista” de Samir Yasbek | Luis Machado

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LAVANDIER, Yves. La dramaturgia. Los mecanismos del relato: cine, teatro, ópera, radio, televisión, cómic. Madrid: Ediciones Internacionales Universitarias, 2003. YAZBEK, Samir. O Teatro de Samir Yazbek. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura - Fundação Padre Anchieta, 2006. ______________. Os Gerentes. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.

WEBGRAFIA <http://webwritersbrasil.wordpress.com/a-arte-do-roteiro/entrevistas-2/ entrevista-samir-yazbek/>. Acesso em 08/01/2012. <http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ o_jornalismo_vai_ao_teatro>. <http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok>. <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ peca_reestreia_no_tuca_em_curta_temporada>. Acesso em 10/11/2011.

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LES SCIENCES DE L’INFORMATION ET DE LA COMMUNICATION. ÉRIC DACHEUX (COORD.), PARIS, CNRS ÉDITIONS, 2009. Marcelo Santos

resenha

Doutor em Comunicação e Semiótica, pela PUC-SP. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: formarcelo@gmail.com


LES SCIENCES DE L’INFORMATION ET DE LA COMMUNICATION. ÉRIC DACHEUX (COORD.), PARIS, CNRS ÉDITIONS, 2009.

Marcelo Santos Doutor em Comunicação e Semiótica, pela PUC-SP. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: formarcelo@gmail.com

Em 2009, Éric Dacheux, professor do departamento de Comunicação da Université à Blaise Pascal, França, organizou pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) o volume “Les sciences de l'information et de la communication”, ainda sem tradução para o português e objeto desta resenha.Objeto, aqui, tem duplo sentido: designa não apenas a nossa matéria ― stricto sensuo conteúdo livro ―, mas também certa intenção autoral,a de falar sobre Epistemologia.O assunto, contexto recente, parece despertar grande interesse: há pouco, abril de 2013, Jairo Ferreira, professor na Unisinos, anunciou a criação de periódico exclusivamente devotado ao debate das questões epistemológicas comunicacionais. Digno de nota, inclusão necessária, é citarmos o último número da “Revista Logos”, titulado “A Cientificidade da Comunicação: Epistemologias, Teorias e Políticas”, cujo conteúdo, editado por Vinicius Pereira e Erick Felinto, foi objeto de acaloradas mensagens, também abril deste ano, na lista de discussão da Compós1 . Tomemos como exemplo o que escreveu o professor da USP Ciro Marcondes Filho: “Vinicius Andrade Pereira demonstra um grande desconhecimento do debate que atualmente se desenvolve em torno de questões epistemológicas da comunicação no Brasil”. Tudo comentado, parece-nos importante trazer à baila o mencionado livro organizado por Éric Dacheux, no qual nomes de peso discutem epistemologia da comunicação em textos anteriormente veiculados pela publicação do CNRS Hermès. São artigos que, ao momento, aparentam ser ignorados por boa parte dos pesquisadores brasileiros. A apresentação de “Les 1Associação

Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

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sciences de l'information et de la communication”, autoria do próprio Dacheux, põe acento sobre questão no mínimo curiosa quando pensamos naquilo que Erick Felinto escreveu em 2011: no Brasil, discutir epistemologia da comunicação é, grosso modo, definir o “campo da comunicação”, algo supostamente apartado de outras disciplinas. O balde de água fria despejado por Dacheux (2009, p.16-17) é a notícia de que, na França, les sciences de l’information et de la communication (SIC) – note-se o plural e a conjunção aditiva – são marcadas por abordagens heterogêneas e múltiplas. Desde o seu nascimento, cumpre explicitar: em 1972, Robert Escarpit (estudos literários), Roland Barthes (semiologia) e Jean Meyriat (documentação) reuniram o grupo que, em 20 de janeiro de 1975, instituiu oficialmente as SIC como área de conhecimento naquele país (ibid. pp. 19-20). Um delicioso texto no qual o especialista das mídias Dominique Wolton entrevista Edgar Morin, treze páginas ligeiras, segue-se à apresentação de Dacheux. Então, Morin recorre ao seu próprio itinerário como pesquisador para abordar o nascimento das pesquisas em Comunicação na França. Morin fala da sua migração da “sociologia do cinema” para a teoria sistêmica, passando por temas como as “revistas femininas”; aponta a evolução barthesiana, das mitologias à semiologia contrária ao pensamento de A. J. Greimas; revela, ainda, crença na interdisciplinaridade. As palavras de Morin, findadas, encontram escrito de Jesús MartinBarbero,nomeado, livre tradução, “As questões das ciências da comunicação na perspectiva latino-americana”. Barbero (2009, p.53-54) começa por explicar um primeiro momento de pesquisas marcadas por, de um lado, certo colonialismo intelectual, onde se localiza a hegemonia do paradigma informacional/ instrumental norte-americano; do outro lado, quase por oposição, a crítica ideológica de denúncia, oriunda das ciências sociais latinas. Papel coadjuvante, mas ainda assim digno de nota, foi o desempenhado pela semiótica, notadamente a devedora do estruturalismo francês. Na década de 1970, segundo Barbero (ibid., p.54-56), o resultado desta separação “saberes técnicos e crítica social” produziu certa esquizofrenia entre posições teóricas e práticas Tríade | Resenha LES SCIENCES DE L’INFORMATION ET DE LA COMMUNICATION | Marcelo Santos

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profissionais. Então, a inserção das comunicações como subárea das ciências sociais – conforme ainda hoje observamos no Brasil – acabou por fomentar o estudo dos meios de comunicação enquanto meios de dominação. Os anos de 1980, porém, trariam ruptura radical: tal período, a reflexão impulsionada pelos “estudos culturais” reorganizou no contexto latino as topografias do pensamento comunicacional (ibid., p. 57). Surgiu um novo relacionamento com as ciências sociais, caracterizado pela incorporação de conhecimento histórico, antropológico e estético, sem que sociologia e ciência política fossem marginalizadas. Ao invés de dissolver objetos de estudo nas mencionadas disciplinas, o olhar plural serviu para destacar a especificidade – complexa, transdisciplinar – daquilo que se entende como comunicação. Barbero (ibid., p.59) assinala três consequências dessa nova perspectiva: 1) a comunicação é, ao mesmo tempo, motor e condutor final da interação social; 2) a instauração do “midiancentrismo”, a confusão entre comunicação e o estudo dos dispositivos técnicos; 3) a consideração da existência de uma “comunicação autêntica”, localizada fora das mídias mercadológicas. Hoje, segundo Barbero nos informa no seu texto, os estudos comunicativos também se voltariam para a consideração de que comunicação e cultura são áreas chaves da batalha política; haveria também a preocupação com uma “economia da informação”, necessária à gestão pública e privada; e, no que se reporta à cultura, a comunicação funcionaria como o espaço estratégico de criação e apropriação de diferenças entre povos, classes ou etnias. Os “estudos culturais”, apontados por Barbero como propulsores da ruptura verificada na década de 1980 nas pesquisas em comunicação latinas, são o assunto do capítulo três de “Les sciences de l'information et de la communication”, assinado por Ien Ang, professor da aludida matéria na University of Western Sydney. Após explicar o interesse do campo – a recepção, domínio complexo, contraditório e multidimensional – e as suas práticas aleatórias e imprevisíveis, inspiração etnográfica, Ang (2009, p.71) informa que a análise de recepção poderia muito bem chamar-se “etnografia dos públicos das mídias”, tamanho condicionamento dos estudos culturais à indicada disciplina Tríade | Resenha LES SCIENCES DE L’INFORMATION ET DE LA COMMUNICATION | Marcelo Santos

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da antropologia. Todo caso, o autor (ibid., p. 87) alerta para a necessidade de hoje, diante das relações culturais profundamente antagônicas, livrar-se da rigidez teórica. No capítulo seguinte, James Curran, professor de comunicação na Universidade de Londres, nos leva a um exercício dialético. O irônico “La réinvention de la roue: Critique des «Cultural Studies»” coloca em suspenso os avanços trazidos pelos “estudos culturais”, sobretudo na contemporaneidade. A tese central de Curran (2009, pp.108-110) é a de que há duas grandes escolas de pensamento comunicacional dentro das pesquisas de recepção: o modelo pluralista, relacionado às abordagens liberal e funcionalista, e o modelo crítico, alguma medida ligado ao pensamento marxista e aos “estudos culturais”. Ao contrário do que se poderia imaginar, alega Curran, a submissão das pesquisas de recepção às proposições de nomes como Eco, Barthes e Hall produziria pesquisas bastante similares às realizadas na década de 1940; isto é: a chamada “segunda geração dos estudos de recepção”, ao invés de inovar e adequar-se às novas realidades sociais, estaria parada no tempo, sobretudo metodologicamente (ibid., p.110-111). Ainda assim, houve, Curran (ibid.) admite, grandes alterações, como a rejeição das explicações totalizantes marxistas, o reconhecimento de público criativo e ativo, e um deslizamento da política para a estética popular. Tais mudanças representariam um “maremoto” (ibid.) nos estudos de recepção, cujo resultado seria a necessária remodelação dos “estudos culturais”, em curso e aberta. O capítulo cinco do livro aqui resenhado tem assinatura de Jean-Baptiste Perret, responsável por cursos na área de sciences de l'information et de la communication na Université Paris IV (Paris-Sorbonne). O escrito dedica-se a discutir, com bastante competência, os fundamentos teóricos da disciplina mencionada. Perret (2009, p.121) nomeia três como as dificuldades de delimitação do Campo: a polissemia do termo “comunicação”, chegando-se, inclusive, à consideração de que “tudo é comunicação” – e à conclusão de que a comunicação é a ciência de tudo; a recorrência teórica constante às disciplinas que originaram a área, ação prejudicial à autonomia das SIC; e, por fim e Tríade | Resenha LES SCIENCES DE L’INFORMATION ET DE LA COMMUNICATION | Marcelo Santos

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consequência direta do problema anterior, a ausência de objetos ou aportes específicos, já que metodologias são retiradas de outras abordagens das Humanidades (ibi., p.123-126). As considerações do autor não são novidade para acadêmicos brasileiros; a estes causaria espanto, talvez, aquelas que Perret aponta como as três dimensões das pesquisas em comunicação na França: a linguística e o social (discursos/práticas sociais), a semiótica e a técnica (dispositivo), o social e a técnica (usos/sistemas de signos) (ibid.: 128-130). A tentação de abordar tantos aspectos de um mesmo fenômeno ao mesmo tempo, diz Perret, pode produzir pesquisas – e quem sabe pesquisadores – superficiais. O sexto e último texto de “Les sciences de l'information et de la communication”, autoria de Dominique Wolton, passa a vista sobre as contribuições produzidas pela disciplina. De um lado, anota Wolton (2009, p. 134), a informação se ocuparia do signo, unidade cognitivo-simbólica; do outro lado, a comunicação busca o Outro-receptor. A união de tais empreitadas em uma mesma e complexa ciência borrou as fronteiras de outras áreas do conhecimento tradicionalmente segregadas: linguística, história, ciência política, geografia e tantos outros saberes, impossível nomeá-los por completo, viram-se, de repente, embaralhados. Se o alerta de Perret, capítulo anterior, incidiu sobre o perigo de investigações sem profundidade, tamanha euforia transdisciplinar, Wonton (ibid., p.138-139), agora, traz perspectiva positivada: a comunicação, em seu caráter complexo, não intenta – e nem deveria fazê-lo – substituir outras ciências; mas, tão somente, ofertar modo diferente de pensar realidades sociais, políticas, culturais e psicológicas. Segundo Wolton (ibid., p.140-141), em tempos de identidades coletivas, nada é mais atual. A leitura do volume resenhado nos faz pensar sobre as discrepâncias entre o tratamento da Comunicação no Brasil e na França: aqui, impera certo conservadorismo e subserviência às regulamentações cartoriais da área ― comunicação é, larga medida, comunicação social; ou sociológica. Lá, assume-se campo transdisciplinar, heterogêneo, complexo e em devir. Talvez por isso, a crítica literária Leda Tenório da Motta (2003, p.34), formação parisiense, tenha

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escrito o que segue no seu “Literatura e contracomunicação”: “saibamos, neste limiar de um novo século [o século XXI], contestar as elites no topo da burocracia institucional que insistem na reserva de mercado para a autarquia das comunicações”. REFERÊNCIAS

FELINTO, ERICK. Da teoria da Comunicação às teorias da mídia, ou, temperando a epistemologia com uma dose de cibercultura. ECO (UFRJ), V. 14, P. 1-15, 2011. MOTTA, L. T. Literatura e Contracomunicação. São Paulo: UNIMARCO, 2003.

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UM DIÁLOGO ENTRE PSICOLOGIA SOCIAL E COMUNICAÇÃO Resenha do livro: HOMENS INVISÍVEIS: RELATOS DE UMA HUMILHAÇÃO SOCIAL FERNANDO BRAGA DA COSTA. SÃO PAULO: EDITORA GLOBO, 2004. Suzana Rozendo Bortoli* Adriano da Silva Rozendo** * Doutoranda do Programa de Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Jornalismo pela mesma instituição. Pesquisadora do grupo de pesquisa Jornalismo e Construção da Cidadania (ECA/USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: sukirozendo@hotmail.com

resenha

** Doutor em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor Assistente da Universidade Federal de Mato Grosso. Rondonópolis, MT, Brasil. E-mail: sukirozendo@gmail.com


UM DIÁLOGO ENTRE PSICOLOGIA SOCIAL E COMUNICAÇÃO Resenha do livro: HOMENS INVISÍVEIS: RELATOS DE UMA HUMILHAÇÃO SOCIAL FERNANDO BRAGA DA COSTA. SÃO PAULO: EDITORA GLOBO, 2004.

Suzana Rozendo Bortoli* Adriano da Silva Rozendo**

* Doutoranda do Programa de Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Jornalismo pela mesma instituição. Pesquisadora do grupo de pesquisa Jornalismo e Construção da Cidadania (ECA/USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: sukirozendo@hotmail.com ** Doutor em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor Assistente da Universidade Federal de Mato Grosso. Rondonópolis, MT, Brasil. E-mail: sukirozendo@gmail.com

Fernando Braga da Costa, professor universitário e psicólogo clínico, ao cursar a disciplina Psicologia Social II, em 1994, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), teve a missão de assumir durante um dia inteiro algum ofício de um indivíduo pertencente à classe pobre para realizar uma atividade acadêmica. A princípio, pensou que fosse chamar a atenção dos colegas e professores quando passasse pelo seu centro de estudos. Ao invés disso, nenhuma saudação, nenhum aceno de cabeça. O então estudante, com 19 anos, teve uma experiência surpreendente: a invisibilidade no meio de outros homens. Tal percepção foi o que o motivou a se associar aos garis contratados pela Prefeitura da Cidade Universitária da USP. Sua pesquisa foi desenvolvida em dois níveis: primeiro, para conhecer e avaliar as condições de trabalho e o estado moral e psicológico dos garis. Segundo, para investigar as aberturas e barreiras psicossociais na relação com esses trabalhadores. O resultado foi publicado em um livro lançado pela Editora Globo em 2004: “Homens Invisíveis, relatos de uma humilhação social”. A obra de leitura fácil e envolvente mergulha em questões da Tríade | Resenha Um Diálogo entre Psicologia Social e Comunicação | Suzana Bortoli / Adriano Rozendo

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Psicologia Social que perpassam a Comunicação. Importante mencionar que dentre muitos sentidos, nesta resenha, levamos em conta que a Comunicação é a “interação social através das mensagens” (DIAZ BORDENAVE, 2003, p.93). Embora a formação do autor seja no ramo da Psicologia Social, ele explica por que sua pesquisa dialoga com a Comunicação.

Na verdade, tudo o que tem a ver com Psicologia, como se trata de compreender a formação da subjetividade humana, passa pela comunicação. As trocas entre os humanos se dão, principalmente, de forma simbólica. Então, não existe compreensão possível sobre a psiquê humana sem que você tenha como uma das ferramentas a comunicação (informação verbal)1.

A fim de realizar uma pesquisa etnográfica por meio da observação participante, Costa varria, pelo menos uma vez por semana, as calçadas e ruas da Faculdade de Engenharia Civil, transportava folhas de árvores, papéis, plásticos e sucata. Entre baratas, limpava lixeiras, capinava gramados, retirava o barro acumulado de canteiros e tomava café com os garis em latas de alumínio. Diante de tantos métodos possíveis para a realização de uma pesquisa de campo, o autor afirma não conhecer nenhuma forma digna de fazer pesquisa que necessite conhecer uma realidade psicológica que não seja a etnográfica. A gente precisa ficar de maneira mais exposta aos fenômenos, mas, a despeito de ter assumido temporariamente a função de gari três vezes por semana, eu nunca, de fato, me tornei um gari. Nunca dependi daquilo para sobreviver, então, de alguma maneira, é impossível eu ter alcançado, de fato, a subjetividade deles, o que eles sentem realmente. Eu posso ter chegado perto disso, mas não ter completado esse caminho todo (informação verbal).

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Entrevista concedida por telefone, em 14 mar. 2013. Os autores consideraram importante conversar com Fernando Braga da Costa para expandir a explicação de alguns pontos do livro. Tríade | Resenha Um Diálogo entre Psicologia Social e Comunicação | Suzana Bortoli / Adriano Rozendo

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Depois de muitos anos de experiência, ao terminar seu doutorado, em 2008, aos 32 anos, o autor chega a uma conclusão: a invisibilidade pública, o desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens, é expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais que assumem caráter crônico nas sociedades capitalistas: a humilhação social – fenômeno histórico, que se constrói e reconstrói no cotidiano de indivíduos economicamente pobres – e a reificação – processo calcado nas determinações mercantis, no qual as pessoas passam a ter valor como se fossem objetos. Esse último conceito também foi explorado na década de 1960 por Berger e Luckmann em “A construção social da realidade”. Os autores defendem que a sociedade é uma produção humana e o homem é uma produção social. Para eles, o mundo reificado é por definição um mundo desumanizado (BERGER; LUCKMANN, 1995). Fernando Braga da Costa relata em sua obra inúmeras experiências que o levaram a crer que era “um uniforme que perambulava” e que vivia em um espaço reificado. Certa vez, varrendo o restaurante dos professores, encontrou duas docentes com as quais já havia trabalhado:

Interrompi o trabalho de varrer e ensaiei o corpo para uma saudação. Passaram a pé ao meu lado, ombro a ombro. Não me viram. Em situação semelhante, poucos meses depois, Restaurante dos Professores, uma delas chegou a me encarar olho no olho. Estávamos a uma distância que não superava dois metros. Olhava com medo. Não me via. Não me reconheceu. Deu um boa tarde tímido e acelerou o passo. Em questão de dias, novo encontro com a docente. Na guarita de entrada do restaurante (o tal restaurante, agora já famoso). Parou o carro ao me reconhecer: - Ué, mudou pra botânica?! - Não. Continuo psicólogo. - E o que cê faz aí?!

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Explico-lhe. - Ah, que lindo! Quem é seu orientador? [...] Ah, vai ficar muito bom! Quero ler, viu?! Quando ficar pronto. Quero mesmo! (BRAGA, 2004, p. 119).

A referida passagem é emblemática ao demonstrar que um uniforme e uma função que (não) envolve intelectualidade são determinantes para alterar as formas de sociabilidade entre sujeitos advindas das práticas comunicativas no espaço urbano. Não é nenhuma novidade que o trabalho, mais do que um meio de gerar renda, é também determinante para a posição e representação social do sujeito diante do outro. No caso dos garis, a pesquisa que gerou o livro “Homens invisíveis” deixa bem claro que tal função não é valorizada e, por isso, essas pessoas passam despercebidas cotidianamente. Ou, pelo menos, passavam até a leitura do livro, que nos faz repensar nossas atitudes e comportamentos – muitas vezes, involuntários – frente a alguns profissionais. Outro ponto marcante da obra é quando os garis pedem que o estudante converse com os supervisores sobre os cabos das vassouras, que eram curtos e os deixavam com dores nas costas no final do dia. Sobre isso, o autor comenta: Todas as tentativas que eles faziam no sentido de poder ter uma condição de trabalho mais digna caía no vazio. Eles nunca eram atendidos. Então, de alguma forma havia uma suposição de que em se tratando de um estudante, pertencente a uma classe social privilegiada, que soubesse dialogar com diretores ou prefeitos da cidade universitária, algo mudaria. Eles achavam que eu, me manifestando como porta-voz deles, pudesse alcançar um êxito diferente, coisa que nunca foi verdade. Várias vezes eu conversei a respeito disso, até, por exemplo, com relação aos cones que poderiam fazer o isolamento de uma das pistas de rolamento para eles não correrem o risco de ser atropelados, mas as respostas eram sempre evasivas, sempre sem muito interesse (informação verbal).

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O leitor pode ser levado a crer que esse “desdém” acontece apenas no Brasil, nação marcada por muitas desigualdades, ou em outros países em desenvolvimento. Mas, não. O autor explica que é exatamente a mesma coisa em outros lugares: “Antes de começar a fazer uma operação policial importante, os policiais se vestem como garis e fingem estar trabalhando como funcionários da limpeza pública, e, com isso, eles passam completamente despercebidos” (informação verbal). Costa também conta que a cor predominante dos uniformes dos garis no mundo todo é alaranjada. A explicação oficial é que essa cor chamativa é necessária para a segurança dos trabalhadores, porém, de acordo com os próprios garis, a roupa se deve ao fato de que se alguém estiver se escondendo, “matando” tempo de trabalho, fica facilmente identificável, mesmo que esteja dentro de um matagal. Questionado se existe alguma forma de combater a humilhação social e a reificação nos dias de hoje, o autor responde que não tem resposta para a pergunta. Em suas palavras: O que eu sei é que existe a necessidade de estudar e investigar a maneira como nós estamos estruturados e vinculados uns aos outros socialmente. Não se altera a relação psicossocial entre os homens sem que se mude o modo de produção e a maneira como nós nos organizamos com relação ao trabalho. Então, se nós continuarmos com dados de uma sociedade baseada no modo de produção capitalista, a gente não rompe com a invisibilidade, muito menos com a humilhação social. A questão não é apenas de cunho psicológico. Em todas as profissões braçais, desqualificadas, como a dos garis, continuará havendo sujeitos humilhados e invisíveis. A contribuição que talvez eu tenha alcançado com esse trabalho é no campo da Psicologia Social. Talvez nós devêssemos pensar em outras contribuições no campo da Comunicação, da Sociologia, da Economia para tentar modificar essa realidade (informação verbal).

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A reflexão do autor vai em direção ao que Berger e Luckmann preconizaram em décadas passadas: “Sendo produtos históricos da atividade humana, todos os universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é realizada pelas ações concretas dos seres humanos” (BERGER; LUCKMANN, 1995, p.157). A Comunicação e todos os seus meios, certamente, podem – e devem – contribuir com tal transformação. Alguns sites de notícias divulgaram que a tese de Fernando Braga da Costa inspirou a criação da personagem de uma faxineira interpretada por Camila Pitanga, na novela Cama de Gato, da Rede Globo, exibida em 2009 e 2010, para explorar essa temática. Porém, o autor não confirma essas notícias:

Na verdade, eu não enxerguei relação nenhuma da personagem com o meu livro. Em nenhum momento eu fui procurado pelas autoras da novela. Fiquei sabendo pelos jornais, pelos veículos de comunicação que elas estavam divulgando a novela como se tivesse sido inspirada no meu livro. Enfim, eu não acompanhei a novela depois da primeira e da segunda semana porque, como tudo o que acontece com a teledramaturgia, tinha caráter bastante maniqueísta, bastante moralista, então, eu não pude reconhecer as inspirações que elas disseram ter tido através do meu livro (informação verbal).

Algumas passagens do livro são tão expressivas que nos fazem pensar que estamos lendo uma estória de ficção, como, por exemplo, a de uma varredora de rua que, quando ganhou um panetone de presente de Natal do estudante universitário, comia um pequeno pedaço por dia e bem devagar para que ele durasse bastante. Sua diversão e passatempo nos feriados era observar o vaivém das pessoas em uma das rodoviárias de São Paulo. Um assunto que não foi retratado na obra, mas foi observado pelo autor é a percepção que os garis têm em relação ao poder midiático:

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Sobre esse assunto, eu notei duas coisas: a primeira delas é que eles não tinham nenhum tipo de esperança ou deslumbramento de que a mídia falaria a respeito do trabalho deles e que isso fosse mudar a própria condição deles. E a segunda coisa é que eles tinham uma visão muito crítica e rústica sobre a maneira como a mídia poderia abordar essa temática. Eu me lembro bem de quando ocorreu o falecimento de um dramaturgo, o Dias Gomes. Ele morreu num acidente, estava num táxi. E quando eles acabaram de ouvir a notícia no rádio (a maioria deles carregava um radinho de pilha no bolso), eles disseram: ‘Isso aí acontece todo dia com a gente, só tá falando dele porque ele é rico e famoso, mas ninguém vai dar uma notícia da gente no rádio’.

Certamente, as possibilidades de entrecruzamento entre Comunicação e Psicologia não se esgotam nos pontos citados. Muitas outras áreas do conhecimento flertam com essa obra, recomendada para pesquisadores que se interessam por estudos multi, inter e transdisciplinares.

REFERÊNCIAS BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Editora Globo, 2004. ______. Entrevista concedida aos autores [mensagem pessoal] em 14 mar. 2013. DIAZ BORDENAVE, Juan. O que é comunicação. São Paulo: Brasiliense, 2003.

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Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia Programa de Pós Graduação Stricto Sensu Comunicação e Cultura 1˚ edição Sorocaba/ SP Junho 2013


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