Heinz Konsalik é o pseudónimo de Heinz Günther. Nascido em 1921 na Alemanha, passou a usar o apelido de solteira da mãe, Konsalik, para assinar os seus livros. Foi correspondente de guerra durante a Segunda Guerra Mundial, o que lhe deu material abundante para as suas obras de ficção. Usa muitas vezes temas da guerra, da medicina e de situações extremas nas suas narrativas, sempre de uma perspetiva puramente humana, evitando tomar partido política ou ideologicamente. O que interessa ao autor são os dramas emocionais e psicológicos que afetam as suas personagens. Morreu em 1999, deixando uma obra de mais de 150 livros escritos e cerca de 85 milhões de exemplares vendidos.
Título: O Médico de Estalinegrado Título original: Der Arzt von Stalingrad 1.ª edição em papel: fevereiro de 2019 Autor: Heinz G. Konsalik Tradução: Eugénio Santos Revisão: Ana Ribeiro Design da capa: Ana Monteiro Imagens da capa: Getty Images © 2018 by Dagmar Konsalik (www.konsalik.de), represented by AVA internacional GmbH, Germany (www.ava-internacional.de) Originally published 1958 by Kindler Verlag, Germany [Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.] Bertrand Editora Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1 1500-499 Lisboa www.bertrandeditora.pt editora@bertrand.pt Tel. 217 626 000 ISBN: 978-972-25-3813-8
PRIMEIRA PARTE
EXCERTO DO DIÁRIO DO CAPITÃO-MÉDICO SCHULTHEISS
Sabe tudo a sopa de couve, como sempre. O pavilhão, o quarto estreito, a cama, os uniformes e os gorros forrados a pele, as luvas, os pratos de latão, as peúgas remendadas mil e uma vezes… Tudo, tudo! Até as primaveras diante da janela do quarto número três, o do nosso capitão-médico, o doutor Von Sellnow. De onde vieram estas primaveras? Ninguém sabe. Apareceram no estreito parapeito da janela, em frente à infinita planície do Volga. O vento de Estalinegrado agita as corolas. Aproximamo-nos muitas vezes dessas flores e tocamos-lhes, pensando nas primaveras da pátria… Há tantas na Alemanha que estas nos parecem estar num pedaço do terreno desterrado como nós, transplantado e, no entanto, vivo… Meu Deus, que voo curioso faz às vezes a mente, quando a pátria está distante! O capitão-médico move-se atrás de mim com passos pesados, como se quisesse cravar nele os pés que lhe rematam as pernas curtas e robustas. O rosto comprido, de testa larga, revela a sua perplexidade e um tremor intangível. — Isto é uma pocilga, Schultheiss! — exclama, furioso, e dá um soco no tabique. — Não é uma enfermaria, é uma pocilga! Não há um único medicamento, nem uma seringa, nem um instrumento! Nem sequer um bisturi… Como podemos trabalhar? Como podemos operar? Dois ou três trapos sujos em vez de ligaduras; quatro pinças enferrujadas, com as quais o Ivan de certeza avivava as velas e que o Pelz apanhou no lixo… Quase não há mais nada nesta pseudoenfermaria. Escreve o que eu te digo, Schultheiss — continua a dizer, sempre a andar. — Nas condições em que os nossos homens aqui trabalham, não vão faltar doenças e acidentes. Vai haver fraturas, contusões, problemas crónicos, icterícias… E disenteria, um nome bonito para referir alguém prestes a rebentar de fome… Mas eu não me vou calar! — grita, colocando-se à minha frente. — Vou mover céus e terra, vou gritar «nãos» assertivos, dar uma bofetada a essa médica russa de meia-tigela! «Vocês, os alemães», gozou ela, «são uns génios, não precisam de medicamentos nem de instrumentos caros. O génio contenta-se em improvisar.» Foi o que ela me disse, aquela corrupta! E temos de nos calar e engolir tudo porque somos condenados, proscritos e não temos direitos. Mas não vou aqui brincar aos médicos, Schultheiss!
Batem à porta. — Entre! — grita Sellnow com voz estentórea. — Desculpe, doutor — diz o nosso enfermeiro Pelz. — Mas o número quatro mil quinhentos e oitenta e três está muito mal… Está em grande agonia, e a morfina não produz efeito. — Estamos feitos! — exclama Sellnow. — Eu disse desde o princípio que esta maneira de tratar uma apendicite era uma merda. Agora estamos numa linda trapalhada! — Acha que há perfuração do apêndice? — perguntou, assustado. — Que mais pode ser? Claro que é uma perfuração. Temos de operar este homem imediatamente, Schultheiss — acrescentou, batendo com o punho na testa. — Mas com quê, se nem sequer há um bisturi? Empalidece, e parece genuinamente angustiado. Preparo-me para lhe dizer umas palavras de consolo quando a porta se torna a abrir para dar passagem ao major Fritz Böhler, o nosso chefe, que teve de se baixar para conseguir transpor o umbral. O seu rosto comprido e estreito, que remata uma testa exageradamente larga, com olhos amendoados, nariz muito comprido e lábios finos, tem claramente impressa a marca de um longo cativeiro. Os cabelos, já grisalhos nas têmporas, perderam o brilho, e o colete de lã, sujo e aberto no peito, deixa ver a camisa remendada e húmida de suor. — Prepara o doente para a operação, Pelz — diz suavemente. O enfermeiro olha-o, assombrado, sem uma palavra. — Com que pensa operar, senhor major? — pergunta Sellnow, sem sequer tentar dissimular a ironia na voz. — Com uma faca, logicamente, Herr Von Sellnow — responde Böhler imperturbável. Sellnow faz um gesto que deve significar: «Está completamente doido.» Depois acalma-se, aproxima-se do chefe e pergunta-lhe energicamente: — Com que faca? Böhler leva a mão ao bolso e tira uma navalha comum, de duas lâminas, como as que usámos na nossa juventude. — Deu-ma um dos nossos homens — explica, a rir. — Conseguiu salvá-la daqueles ladrões dos russos. Dirigimo-nos ao corredor, passando à frente das três grandes enfermarias, onde jazem setenta doentes e feridos, e também das outras três, onde impera a médica russa Aleksandra Kasalinskaya. Sellnow dá-me uma cotovelada. — Quem vai ajudar o Böhler? — pergunta em voz baixa. — Tu, imagino. — Não me apetece muito, Schultheiss. Extrair um apêndice com uma navalha de algibeira! Se alguma vez tiver ocasião de contar isto na Alemanha, tomam-me por um charlatão. Prefiro que o ajudes tu; eu trato da anestesia.
— Mas… tenho tão pouca experiência, e com certeza vai ser tão difícil. — Isso é mais que certo, mas também vai ser longo e penoso. Entrámos na «sala de cirurgia», uma enfermaria ampla onde existe uma mesa coberta com um trapo branco. O doente está aqui e Emil Pelz fala-lhe carinhosamente. Ao ver-nos, aproxima-se e diznos em voz baixa: — Pulso muito fraco e rápido, entre cento e vinte e cento e quarenta. Não é famoso. Böhler aproxima-se da bacia, colocada em cima da mesa. Pelz ajuda-o a despir o colete, e ele começa a lavar as mãos. — Põe um saco, ou outra coisa que arranjes, debaixo das costas do lado direito do doente, limpa a zona a operar e não te esqueças de a rapar. Sellnow aproxima-se do doente e apalpa-lhe prudentemente o lado direito do ventre, com as duas mãos. O homem começa logo a gemer. O médico interrompe-se, dirige umas palavras de conforto ao pobre homem e prepara-se para lavar as mãos. — Eu ajudo — diz, furioso. — Trata da anestesia. Com gestos rápidos, esfrega as mãos e os antebraços com sabão azul e branco e um punhado de areia, tirado de um caixote, e continua a lavar-se dessa forma rudimentar. Pelz deitou água numa panela, que pôs a ferver num fogão de petróleo, e colocou lá dentro os instrumentos de que dispomos. Vejo um par de pinças, dois pedaços de arame curvados, que vão servir de separadores, e a navalha. Aproximo-me de Pelz, que limpou a zona a ser operada, rodeando-a depois com algodão em rama. — Não temos nem categute nem linha de seda para coser? — pergunto. — Não te enerves, doutor — responde, a sorrir. — Já me ocupei disso. Roubei o xaile de seda a Bacha, a cozinheira, e desfiei-o. Agora temos, pelo menos, dois quilómetros de magnífico fio de seda. Pus a ferver a quantidade necessária para a operação. Espalho os nossos «instrumentos» sobre uma tábua, colocada em cima de uma cadeira, junto à mesa de operações, e logo a seguir entra Kasalinskaya. A sua farda de caqui entreaberta deixa ver a blusa vermelha e os compridos cabelos negros caem-lhe sobre os ombros. Usa sapatos rasos de sola grossa e meias de seda. Além disso, fuma um cigarro turco com um cheiro adocicado. — Que está a fazer aqui? — grita Sellnow, avançando para ela. — A fumar numa sala de operações! Enlouqueceu? A médica olha-o com altivez e atira o cigarro para o balde destinado a receber os panos cheios de sangue. Com a sua mão pequena, um pouco amarelada, afasta o capitão-médico e dirige-se para Böhler, que, com os braços estendidos para a frente, dá instruções a Pelz sobre a forma de prender o paciente com umas correias velhas. Kasalinskaya olha para o doente e faz um gesto afirmativo.
— Apendicite — diz. A voz é agradável, profunda, vibrante, quase melodiosa, e os lábios entreabrem-se, como se cada uma das suas palavras fosse um beijo. Os olhos ganham um brilho que a torna quase bela… se fosse possível esquecer que esta mulher percorre semanalmente os acampamentos para atirar os homens para os bosques, as pedreiras, as minas e as obras de construção em Estalinegrado, sempre com a mesma conversa estereotipada: «Apto!», quando morrem de fome e de esgotamento, quando os furúnculos lhes cobrem o corpo e a febre os faz tremer… Rabotat nada… davai… davai… «Vocês destruíram Estalinegrado, arrasaram a bela cidade do Volga… Agora reconstruam-na… com os vossos ossos, se for preciso, com o vosso sangue, com a vossa carne, com o vosso último suspiro…» — Os instrumentos estão prontos? — pergunta Böhler. O cabo tinha-se separado da lâmina da navalha, por causa da água a ferver. — Não faz mal. Sem a madeira fica mais bem esterilizado. Na medida em que se pode falar de esterilização, claro — acrescenta com um sorriso triste. Chama Sellnow, que continua a lavar-se. — Estás preparado, Sellnow? — E depois dirige-se a mim: — Começa a anestesiar, Schultheiss. Enquanto abro o nosso precioso frasco de éter e preparo a máscara, feita com fio e tiras de musselina, Böhler dirige umas palavras de ânimo ao doente. — Fique tranquilo, meu amigo. Já o safámos desta. Daqui a quinze dias vai estar outra vez em forma. Faz-me um sinal com a cabeça, e eu coloco a máscara no nariz e na boca do doente. — Respire fundo e devagar — digo-lhe. — Conte em sentido contrário, começando por cem: cem, noventa e nove, noventa e oito… Compreendeu? Naquele preciso instante, Kasalinskaya aproxima-se e tira-me o frasco de éter da mão. — Dá-mo — diz duramente. Olho para Sellnow, cujos olhos parecem devorar a médica, com manifesto ódio, mas também com admiração por esta mulher de formas magníficas. — Não tem um bisturi? — pergunta, furioso. Ela abana a cabeça. — Nem outro instrumento? O mesmo gesto. — Então, com o que opera? — Nunca opero, sou interna — responde ela, a sorrir. A sorrir, sim, e começa a despejar éter na máscara, inabalável. O doente já não importa. Agita-se bruscamente, entesa o corpo. — Agitação — observa tranquilamente Böhler. — Schultheiss e Pelz, agarrem-no com força. E quanto a si — acrescenta, fazendo um gesto com a cabeça para Kasalinskaya —, encha a máscara
mais depressa. O incidente dura apenas alguns segundos. O doente respira calmamente e tomo-lhe o pulso. — Cento e vinte — digo. Nem um maldito relógio temos para ajudar a contar o tempo. Böhler já preparou a navalha, apoia a mão esquerda sobre o ventre e faz rapidamente a incisão. Enquanto Sellnow abre os lábios da ferida com os separadores de arame, o cirurgião limpa o sangue. Pelz, que trata dos instrumentos, faz uma observação: — Essa navalha corta muito bem — diz. E sorri, porque foi ele quem a afiou. Todos podemos observar agora o interior do ventre. Olho para os rostos: Böhler está tranquilo, senhor de si; Sellnow parece comovido; Kasalinskaya manifesta alguma angústia, a mão que pega no frasco de éter treme. — As pinças — pede Böhler. Tenho um sobressalto. Estendo-lhe uma, que ele usa cautelosamente para separar o peritoneu dos intestinos, depois passa-a a Sellnow. Coloca a segunda a uns centímetros da primeira, Sellnow levanta-as ligeiramente e Böhler enterra suavemente a navalha. O peritoneu abre-se bruscamente e um pus esverdeado, nauseabundo, enche a cavidade. Todos sabemos o que isso significa: é uma inflamação daquele órgão, pelo menos na região do apêndice, e partindo dele. Até àquele momento, Böhler e Sellnow não tinham trabalhado com grande ardor, mas a partir desse momento tudo se transforma. Entrego ao cirurgião uma simples colher, com a qual tira o pus; depois enxuga a cavidade o melhor possível, com trapos húmidos. Sellnow mete as mãos no corte para desprender o órgão vermiforme, o apêndice, que está terrivelmente inchado e perfurado em vários lugares. — Põe o ferro ao rubro — diz Böhler a Pelz. Levanta o apêndice com a mão esquerda, coloca uma pinça e Sellnow faz um nó com fio de seda. Böhler corta o órgão e atira-o para o balde. Segurando-o com simples tenazes, Pelz oferece ao cirurgião um grande alfinete ao rubro. Böhler agarra-o, protegendo a mão com um trapo, enterra-o na base do corte e o ar enche-se de um cheiro a carne queimada. Claro que essa base devia ter sido esterilizada com um termocautério ou outro meio de desinfeção, mas não temos qualquer possibilidade de o fazer. Que me disse o Sellnow há pouco? Ah, sim! «Será muito longo e penoso.» Como poderá o paciente sobreviver a esta inflamação do peritoneu sem medicamentos, sem ajuda técnica? O caso parece verdadeiramente perdido, embora tenha corrido tudo bem até ao momento. Sellnow enfiou a seda numa agulha vulgar, e o cirurgião tem de coser sem dedal. Fascinado, contemplo a sua rapidez, assim como a precisão. Estremeço fortemente quando o oiço gritar para a médica: — Tire a máscara! Quer matar o doente? Dou-me conta então de que a ferida está a ficar roxa. Kasalinskaya deu demasiado éter ao
paciente, que corre o risco de asfixiar. Tomo-lhe o pulso e vejo que tem pelo menos cento e sessenta pulsações. — Tira o frasco de éter a essa mulher — diz-me Sellnow com um grunhido. — Continua tu a anestesia. Não se pode esperar nada de razoável destes monstros. Obedeço. A médica entrega-me a máscara e o frasco sem oferecer oposição e sai imediatamente da sala, a cambalear. É evidente que não consegue resistir mais. Os dois cirurgiões observam, sem poder intervir. Entretanto, deve deixar-se que a natureza aja, e esperar que o doente se reanime por si próprio. Pelz e eu fazemos-lhe respiração artificial. Temos sorte. Os lábios arroxeados e o rosto pálido retomam a cor normal, e o pulso acalma-se. — Acho que podes continuar, chefe — digo. — As sondas — pede Böhler. Pelz aproxima-se com uma panela, no fundo da qual se veem uns tubos fracos de material artificial. São velhos cabos isoladores, que o manhoso Böhler converteu em sondas. Acaba de colocar duas na ferida quando a porta se abre violentamente. Kasalinskaya precipita-se para mim, estendendo-me um pacote. — Toma! É bom para a peritonite! — grita. Volta logo a correr para a porta, vira-se e acrescenta: — Vocês não o merecem. Volto a colocar a máscara e a agarrar no anestésico. Olho, espantado, para o pacote que tenho na mão. «Penicilina», leio, juntamente com as instruções, em inglês. É claro que se trata de um preparado americano. — O que se passa? — pergunta Böhler, em tom impaciente. — Trata da anestesia. — É penicilina em pó — respondo —, claramente destinada ao tratamento local das inflamações do peritoneu durante as operações… — Ah, essa famosa penicilina! Abre o pacote, Pelz. É uma pena não sabermos nada sobre ela! Deixa que Sellnow derrame abundantemente o pó na abertura e depois fecha-a, cosendo-a com o fio tirado do xaile da cozinheira, e fixa as sondas que saem do ventre com alfinetes de ama. A operação durou apenas meia hora e a sorte do paciente está agora nas mãos de Deus. Ajudado por dois doentes que conseguem andar, Pelz transfere o operado para o fundo do corredor, onde colocamos os casos mais graves: cinco homens, um deles de quarenta e cinco anos com icterícia (estamos sempre com medo que possa contagiar os vizinhos, mas não temos hipótese de o isolar); um outro, de quarenta e três, pai de quatro filhos, com um problema cardíaco grave e edema nas pernas e no ventre; um outro a quem um tronco de árvore esmagou as duas mãos, mas agora, que já temos uma faca, podemos operá-lo; um outro ainda com um caso grave de edema, provocado pela fome, que nos preocupa muito; e, finalmente, um homem com tétano, em grande agonia. Tem trinta e seis anos e, já depois de estar preso, soube que a mulher morrera ao dar à luz o primeiro filho. Desesperado, foi a correr até às cercas de arame farpado para se fazer matar pela sentinela russa, mas, naquele dia, o
soldado estava de bom humor e contentou-se em afastá-lo, atirando-lhe uma maçã podre. Procurou então um alfinete enferrujado e picou-se profundamente com ele na parte superior da coxa durante vários dias, até que apareceram as primeiras manifestações de tétano. Quando no-lo trouxeram, não pudemos fazer nada por ele, a não ser enchê-lo de morfina e de veronal, os únicos medicamentos que tínhamos em grande quantidade, vindos dos armazéns da Wehrmacht. Colocámos o recém-operado, que é o jovem conde de Burgfeld, ao lado do moribundo, e saímos. Junto à porta do meu quarto, separo-me do capitão-médico. — Até logo — diz-me —, e cuida bem da nossa faca. A fadiga apodera-se bruscamente de mim, sinto-me deslizar na sonolência. Vou até ao meu catre e deixo-me cair nele. Os meus olhos veem imediatamente algo inacreditável: em cima da mesa está um bisturi, um verdadeiro bisturi, cuja lâmina brilha ao sol que entra pela janela. Ao seu lado, três agulhas, categute, um par de tesouras, um pequeno separador e seis pinças. Levanto-me de um salto, abro a porta e saio a correr. Sellnow saiu do seu quarto e Böhler da enfermaria dos casos graves. — Um bisturi! — grito. — Temos um bisturi! E pinças e categute! Temos tudo! Depois, ponho-me a soluçar como uma criança, apoiado no ombro de Sellnow, que me afaga o rosto. Böhler correu para o meu quarto e regressa com o bisturi. — Temos de lhe agradecer — diz lentamente. — Queres ser tu a fazê-lo, Sellnow? Vejo-o ficar vermelho, mas afasta-se depressa. Kasalinskaya! A médica maldita, a mulher dos risos loucos, da voz estridente, que grita aos miseráveis dos acampamentos: Davai! Davai! Fico sozinho. O jovem conde dorme, e tudo volta a saber a sopa de couve. Ao meio-dia, darei a minha a três doentes. Não conseguiria comê-la. Temos um bisturi… O campo 5110 encontra-se nos arredores de Estalinegrado, a noroeste do Volga, numa depressão com muitos bosques. Parece-se com todos os outros: uma cerca alta de arame farpado, cabanas e pavilhões, em blocos quadrados; ao longo da cerca, torres com metralhadoras e projetores, e sentinelas com uniforme cor de terra. Um grande portão dá para uma estrada construída pelos prisioneiros. De um lado, o posto da guarda e os aposentos do comandante e do médico-chefe da zona. Um pouco separado do pavilhão para os soldados, eleva-se um outro destinado aos doentes, muito comprido, com inúmeras janelas e a entrada debaixo de um alpendre, e a cozinha central, que possui saída privativa para a cerca, com uma guarita. O chão é de terra batida, mas aqui e ali, entre os edifícios, vê-se um pequeno jardim, cuidadosamente tratado, rodeado de pedras, trazidas, nos bolsos, das obras de Estalinegrado. Um deles deu lugar a uma feroz batalha: sete vezes foi destruído por desconhecidos, durante a noite, e sete vezes reconstruído, com bolbos e arbustos introduzidos fraudulentamente. Durante o verão de 1947, até se viram ali tulipas vermelhas e amarelas, cujo aparecimento ninguém conseguiu explicar.
Quando o tenente Markov tomou conhecimento do caso, enfureceu-se e pisou as flores. — É uma revolução, uma insubordinação! — gritou para o major Vorotilov, comandante do campo. — Vou mandar açoitar estes tipos. — Porquê, camarada tenente? Eu também gosto de flores. Sou de Kazan, a cidade das rosas. Naquela noite de estio, Karl Georg, Julius Kerner, Peter Fischer, Hans Sauerbrunn e Karl Möller jogavam às cartas com um baralho feito por eles, sobre um catre do pavilhão onze, bloco sete, enquanto outros os observavam. A atmosfera tinha um cheiro acre a cigarros de makhorka ou folhas de chá secas, que muitos fumavam nos seus cachimbos. A semiobscuridade reinava entre os catres, os armários, os fatos e os homens. — Se continuas a dar cartas assim, levas um chuto no rabo — disse Julius Kerner. — Achas que sou assim tão estúpido que não percebo que estás a esconder dois ases debaixo do baralho? — Ora essa! — protestou Peter Fischer. — Eu jogo às cartas desde que deixei de mamar. O meu pai era um grande campeão. — E o meu é o Pai Natal. Vá lá, dá as cartas como deve ser. Möller, Möller Setenta e Cinco, como constava da lista e era conhecido, enrolava um grosso cigarro de folhas de hortelã secas em papel de jornal. — Tu queres envenenar-nos — afirmou Sauerbrunn, olhando de esguelha para o cigarro. — Como se isto já não estivesse empestado com o suor do Kerner! A porta abriu-se por fora. — Sentido! — gritou o homem que estava mais perto da porta. Um oficial russo entrou, com o gorro descaído para a nuca e um olhar malicioso para os prisioneiros, que se punham de pé sem pressa, esboçando um sinal de sentido. — Markov! — murmurou Sauerbrunn. — Que é que plantaram no jardim? — Miosótis — respondeu, com um sorriso, Karl Georg, o jardineiro do pavilhão. Um homem magro caminhava atrás de Piotr Markov, e parou à frente da mesa, colocada perto dos primeiros catres. Tinha um uniforme sem insígnias; o cabelo gorduroso e negro era reluzente, e um pequeno bigode adornava-lhe o lábio superior. — Que vem o Aaron aqui fazer? — sussurrou Kerner. — A sua presença nunca indica nada de bom. Jacob Aaron Utchomi, judeu que servia de intérprete no acampamento e viera de Moscovo, olhou em volta e consultou com os olhos Piotr Markov, que fez um gesto de assentimento. — Oiçam-me! — gritou Utchomi. — Ontem à noite, alguém roubou um xaile de seda à ajudante de cozinha Bacha Tarrasova. — Era mal-empregado nessa desleixada — murmurou Kerner para Fischer. Um riso trémulo ouviu-se nas últimas filas. — Calados! Oiçam o que decidiu o comandante do acampamento: se o xaile não for restituído a
Bacha Tarrasova até amanhã ao meio-dia, o mais tardar, as rações de pão serão diminuídas cem gramas por dia, durante uma semana. — É um abuso! — disse Kerner. — Fazer dois mil homens passar fome por causa de um xaile! Devíamos afogar esse Markov, como se fosse um gato! — Quem falou dê um passo em frente! — gritou o tenente Markov. Julius Kerner vacilou, mas Sauerbrunn empurrou-o. — Vamos! Senão, ainda nos tira mais cem gramas. Kerner deu um passo em frente. Markov atirou-se a ele, agarrando-o pelo colarinho. — O que disseste? O bafo cheirava a álcool e a tabaco. Estava bêbedo e Kerner percebeu isso. — Eu disse que íamos procurar o ladrão, meu tenente. Piotr Markov empurrou violentamente Kerner contra a mesa: o prisioneiro fez um gesto de dor, mas não disse nada. — Muito bem! — gritou Markov. — Procurem-no! Procurem-no todos! Há um copo de vodca para quem encontrar o ladrão. Mas, se não o descobrirem, não terão pão! Depois saiu. Jacob Utchomi ficou ali durante um breve instante, espreitando a semiobscuridade do pavilhão. Não distinguia as caras, mas via os olhos cheios de ira e de ódio. — O xaile desapareceu e ninguém o vai encontrar — disse ele. — Juntem-se para dar uns rublos à Bacha, para que ela possa comprar outro. Isso basta, mas não digam nada ao tenente Markov. Apressou-se logo a ir para junto do tenente Markov, que gritava diante do pavilhão três. — Porco! — exclamou Sauerbrunn quando a porta se fechou. — O Aaron não pode fazer nada — comentou Kerner, esfregando as costelas. — Ele também tem de dançar. Mas onde vamos buscar os rublos? — Um xaile deve custar pelo menos trezentos! — Que importa que sejam trezentos ou trinta mil? — disse Fischer. — Cada rublo é uma fortuna para qualquer de nós. — Cem gramas de pão a menos durante uma semana — declarou Karl Georg, guardando as cartas —, e logo a trabalhar nos bosques. Não vou conseguir resistir. A sua voz ficou fraca. Depois olhou à volta. — Quem teria sido o sacana que roubou o maldito xaile? — acrescentou.
Na enfermaria, Böhler examinava os gráficos dos doentes, que podiam ser preparados graças ao papel que obteve por intermédio de Sergei Basov Kresin, responsável médico do distrito. Kresin tratava Böhler por porco subalterno, mas às vezes satisfazia os seus pedidos. O capitão-médico Sellnow e o tenente-médico Jens Schultheiss olhavam pela janela, em direção
à pátria, da qual estavam separados milhares de quilómetros. — Neste momento brilha, em Berlim, o sol da tarde — observou Sellnow tristemente. — Na sua cidade, doutor Böhler, em Colónia, as pessoas passeiam nos parques. As raparigas falam com os rapazes e esperam, impacientes, a chegada da noite… E nós, aqui? Apetece-me vomitar! — Isso é a única coisa que o preocupa, Werner? — perguntou Böhler da sua mesa. — Nesse caso, é feliz. — Há três anos que não conheço mulher. Não acha que é de enlouquecer? — Nunca teria julgado tal coisa de si, Werner. — Lembra-me o bom São Francisco, que se atirava para cima de um formigueiro para matar o apetite carnal. Só que, para si, o formigueiro é a enfermaria, as operações, os doentes. Tem estofo de anacoreta… Mas eu sou um homem normal, que raios! Muito normal! E tenho de me conter para não me atirar como um tigre sobre essa Kasalinskaya. — Controle-se, Werner — observou Böhler, pondo a cabeça de lado e afastando os papéis. — Não percebo porque é que a sopa de couves não lhe acalma mais o apetite sexual que um formigueiro. Deve ser um caso excecional, entre dezenas de milhares de prisioneiros. Sellnow sentou-se numa cadeira que Pelz construíra com tabuleiros, pintando-a com tinta roubada durante a pintura da cozinha. — Tenho quarenta e nove anos — disse lentamente. — Casei-me aos trinta e dois, em Kiel, quando era tenente-médico, e tinha trinta e cinco quando nasceu o meu filho, a que se seguiu uma rapariga dois anos depois. Aos quarenta, tinha uma boa clientela em Frankfurt, mas em 1939 fui para a Polónia, depois para França, Noruega, Grécia e Itália, para acabar nesta maldita Rússia. E sempre como médico militar… Postos de socorro, hospitais de sangue… Nove anos perdidos, que nunca me serão devolvidos, nem pelo Estado, nem pelo futuro, nem pelo vosso Deus. Se alguma vez sair desta maldita Estalinegrado, serei um farrapo, de cabelos brancos: um ser inútil. — Levou as mãos aos olhos e suspirou. — Quando penso nisto — acrescentou em voz muito baixa —, apetece-me matarme, como esse desgraçado doente com tétano. Böhler levantou-se, juntando-se a Sellnow ao pé da janela aberta. — Não te deves deixar ir abaixo, como os milhares que ficam desesperados ao cair da noite russa — disse. — Somos médicos, Werner, e não devemos trabalhar só com o bisturi e o estetoscópio, mas também transmitir calma, confiança e força… Temos de representar alguma coisa mesmo que não acreditemos nela, a fingir, como se confiássemos no futuro. A nossa obrigação é ser um exemplo, Werner: um modelo daquilo que cada um gostaria de ser. Até mesmo… que tenhamos de nos obrigar a isso. E este forçar tem de ser dissimulado, oculto em qualquer canto, como os animais que se escondem para morrer. Nós, os médicos, somos, para os milhares de homens que nos rodeiam, a luz que seguem e que lhes ilumina o caminho. — Devia ter sido sacerdote — respondeu Sellnow ironicamente. — E o nosso jovem colega, que
não diz nada… Jens Schultheiss encolheu os ombros. — Que queres que eu diga? — respondeu, com um sorriso cansado. — A si, doutor, roubaram-lhe a vida, a mulher, os filhos… E a mim, o que me roubaram? Absolutamente nada, em termos de valores reais. Quando rebentou a guerra, frequentava cursos de Anatomia e Patologia na Faculdade de Erlangen. Depois, pensei apenas numa coisa: «Desde que te saias bem de tudo isto!» A única coisa que me tiraram foi a minha juventude, mas ainda tenho muito tempo pela frente. — Estou-me a lixar para o que temos pela frente! — exclamou Sellnow, percorrendo o quarto com grandes passadas. — Achas que algum dia nos vão deixar regressar à Alemanha, como propaganda viva contra o comunismo? Não acredito em histórias da carochinha! Böhler apoiou-se na mesa e apanhou um dos papéis da pilha. — Número nove mil quinhentos e vinte e três — disse. — Acidente na mina. Partiu-se um poste e o homem ficou soterrado. Fratura das costelas e contusões internas indeterminadas. O doutor Kresin efetuou o primeiro exame. — Esse suíno! — cuspiu Sellnow. — A doutora Kasalinskaya encarregou-se do tratamento e vacinou-o com antitoxina contra o tétano. — Por fratura das costelas? — Mesmo assim, tem muitas escoriações… Mas deixemos isso, para nós o mais importante é que os médicos russos já se interessam pelo nosso trabalho, já não se mantêm afastados. Por falar nisso: o que disse a nossa querida doutora quando lhe foste agradecer o bisturi? — Fechou-me a porta — respondeu Sellnow, corando. — Hum! E mais nada? — Já chegou. Naquele momento, um homem alto e corpulento, com um uniforme cor de terra, entrou no quarto sem avisar, sem cumprimentar, ficou junto à porta e olhou-os, um a um. — Ah! Está aqui — disse. Böhler fechou a porta e inclinou a cabeça em sinal de cumprimento. — Sim. Quer alguma coisa, doutor Kresin? — perguntou. — Hoje operou com um canivete? — Sim. — É proibido. — Era a única maneira de salvar uma vida. Não tínhamos mais nenhum instrumento. Não temos absolutamente nada, bem sabe. — E coseram com quê? — Com seda.
— Onde a arranjaram? Ao dar-se conta da armadilha, Sellnow meteu-se entre o russo e Böhler, antes que este pudesse responder. — O senhor não sabe, doutor Kresin? — perguntou, num tom seco. — No pavilhão quatro, bloco um, criamos bichos-da-seda. Sergei Basov Kresin olhou para Sellnow com incompreensão e cólera, cortando o ar com um violento movimento de mão. — Seda roubada a Bacha, na cozinha! Coseram com um xaile. É incrível! — Então, dê-nos alguma coisa para coser — disse Schultheiss. — Nada, não lhes dou nada! Podem finar todos! Böhler contemplou o rosto corado do colega e sorriu. Tirou um papel da pasta e agitou-o na frente de Kresin. — O homem da mina, que me mandou, tem uma infeção no baço, temos de extraí-lo. — Como? — exclamou o russo, admirado. — Querem extrair o baço? Aqui? — Sim. — Com um canivete? — Se não pudermos fazer de outra forma… sim. — Está louco! — Não, doutor Kresin — respondeu Böhler, enquanto a testa se perlava de suor. — Estou simplesmente desesperado. Kresin abriu violentamente a porta. — Venha já comigo! — gritou. Afastou-se, enquanto Sellnow agarrava o braço de Böhler. — O que significa isto? — sussurrou alarmado. — Algo me diz que vamos ter uma sala de operações mais adequada — respondeu o major, com um leve sorriso. O sol do entardecer tingia de ouro os pavilhões, as cercas, as vigias e os bosques distantes. De um dos edifícios saía uma canção, acompanhada por uma guitarra improvisada. O prisioneiro Karl Georg cuidava do seu jardim com um ancinho não menos improvisado. Ao ver os médicos aproximarem-se, pôs-se na posição de sentido, apresentando a ferramenta como se fosse uma espingarda. Böhler saudou-o com um gesto e um sorriso. — Como estão os seus furúnculos? — perguntou-lhe. — Estão curados, doutor. A doutora disse-me que tenho de voltar a trabalhar. Se não tivéssemos os nossos médicos…!, pensou Georg, recomeçando a sua tarefa. Os dois dobraram a esquina, em direção ao portão. Com um ar simultaneamente misterioso e alegre, Julius Kerner saiu do pavilhão, indicando ao seu
camarada, através de sinais, que se aproximasse. — Temos quatro rublos, Karl — disse Kerner, orgulhoso. — Quatro rublos? De onde tiraram essa fortuna? — O Möller ainda tinha uma corrente de prata no relógio. Vendeu-a à sentinela do posto. — Quanto custa um xaile? — Segundo nos disse a sentinela, um bom, de seda, vale uns trezentos rublos. — Nunca conseguiremos juntar essa quantia! Terei de falar com a Bacha. Pode ser que já não queira o xaile. — Ela talvez até nem se importe, mas esse sacana do Markov… Uma sentinela, que passeava, parou à frente do jardinzinho, para contemplar as tulipas. Sorriu para os dois alemães e os olhos escuros brilharam no rosto amarelo do tártaro. — Belas flores! — disse com a voz aguda e débil dos asiáticos. — Bonitas para uma rapariga! — Não olhaste bem para mim — murmurou Karl Georg, voltando para o seu trabalho.
O major Vorotilov esperava, sentado atrás da sua grande secretária. Encostado à janela, o tenente Markov vigiava o grande pátio onde se passava revista. Viu Karl Georg, e amaldiçoou em surdina o seu chefe, que tolerava tal coisa. Böhler cumprimentou o comandante e esperou. — O senhor operou? — perguntou Vorotilov, no mesmo tom usado por Kresin. — Não podia fazer outra coisa. — O senhor sabe que não lhe é permitido fazer intervenções cirúrgicas. A sua enfermaria não deve receber doentes a não ser os pulmonares e os feridos que têm de ser tratados. Apenas os doutores Kresin e Kasalinskaya têm o direito de operar. E o senhor fê-lo com uma navalha! Se o doente morrer, vou obrigá-lo a comparecer perante um conselho de guerra, em Moscovo, acusado de assassínio de um camarada. E aos outros todos também! — Só uma intervenção podia salvar a vida do enfermo. Böhler continuava tranquilo, enquanto Sellnow apoiava o peso do corpo ora num pé ora noutro, e Schultheiss, pálido, se encostava à parede. Este último pensava: «Se o aspirante morre, cortam-nos a cabeça… Como se importasse a esses russos a vida de um prisioneiro! Não passam de tretas, mentiras, guerra de nervos… Querem humilhar-nos porque continuamos de cabeça erguida, porque não nos vergamos e não somos maleáveis como a cera nas mãos dos nossos carcereiros.» — Roubaram um xaile a uma cozinheira! — gritou Vorotilov, pondo-se bruscamente de pé. — Todo o acampamento receberá menos cem gramas de pão por dia, durante uma semana, se o xaile não aparecer. Böhler empalideceu, mordeu os lábios e falou, com a voz pouco mais alta que um sussurro.
— É desumano, comandante. Com essa seda salvámos a vida de um homem, e com ela pouparemos muitas outras. É preciso que milhares de inocentes paguem por isso? — Um xaile russo vale mais do que dez mil vidas alemãs! Era Markov quem acabava de gritar, afastando-se da janela, parando diante de Böhler, olhando-o com olhos de fanático, tremendo de excitação, inflamado por um ódio capaz de aniquilar o mundo inteiro. As maçãs pareceram mais salientes no rosto magro de Böhler, que olhava para o chão. — Já me posso ir embora? — E és orgulhoso! Orgulhoso! — exclamou Markov. — Porco alemão! Quem disse: «Há russos a mais… devemos matá-los à fome…»? Quem queria colonizar o Oriente? Quem oprimiu o nosso país e enforcou cem homens sempre que um soldado alemão era morto por ter violado ou roubado? Quem mandava gauleiters a Minsk ou a Smolensk, que carregavam, em camiões, os móveis, os quadros e os tapetes preciosos? Quem? Tu, porco alemão! Tu e o teu Führer, que te deixou pendurado quando as coisas deram para o torto! O vosso bando de assassinos com a caveira matou a minha mãe e o meu irmão, porque tinham saído à noite para mendigar um naco de pão duro… Vocês mataram o meu pai em Stalino; a minha irmã jaz sob os escombros de Kharkov. E continuam orgulhosos, insolentes, sempre os amos e senhores! Cem mil alemães por um xaile rasgado! Até que rebentem todos! Deixou-se cair numa cadeira perto da secretária do comandante, a espumar. Vorotilov baixara os olhos, mas não se tinha oposto à violenta invetiva do seu subordinado, e Kresin estava a um canto, manifestando evidente reprovação. Böhler deu meia volta e dirigiu-se para a porta. — Onde vai? — gritou Vorotilov. — Para a minha enfermaria. Os doentes chamam-me… os porcos alemães, sofredores, feridos, doentes, miseráveis, abandonados e sujos. Piotr Markov agarrou-se à secretária com as duas mãos, para se dominar. — Que rebentem todos! Que rebentem! — gritou ainda. — Doutor Böhler — chamou Vorotilov, fazendo um gesto para acalmar o tenente. A sua voz era tranquila, algo melodiosa. É natural do Sul, pensou Schultheiss, do Cáucaso ou da Crimeia, talvez. — Dentro de poucos dias — prosseguiu o comandante —, o senhor receberá material cirúrgico, categute, anestésicos e tudo quanto precisar. Tenha a bondade de preparar uma lista exata do que for preciso, a fim de que o doutor Kresin a verifique. Escreverei diretamente para Moscovo. — Um sorriso aflorou-lhe os lábios. A antiga astúcia asiática parecia luzir sob a máscara da civilização. — Mas isto não impede que alguém tenha roubado o xaile de Bacha Tarrasova, e os seus camaradas sofrerão uma redução de cem gramas de pão durante uma semana. — O senhor é cruel, comandante. — Mas justo. Disseram-me que o roubo se castigava de outra forma, nos campos de prisioneiros
da Alemanha. — Calúnias da propaganda! Suplico-lhe, comandante, não faça esses pobres desgraçados passar fome. Castigue-me a mim, se necessita de um culpado. Vorotilov moveu negativamente a cabeça. Entre as pálpebras semicerradas fulgia um brilho que Böhler não sabia explicar. — O senhor vai transformar o meu campo num grande hospital — disse. — Sinto-me orgulhoso, tal como o doutor Kresin. O senhor é um grande médico. — Cumpro simplesmente o meu dever. — Chame-lhe o que quiser. Receberá tudo aquilo de que precisar, como já disse. Quanto aos seus compatriotas feridos, enfermos ou sãos, não me interessam. Expiarão o roubo. Durante alguns segundos, Böhler olhou fixamente o comandante nos olhos. Os dois homens pareciam encontrar-se nos dois extremos de uma ponte destruída. O som das palavras chegava corretamente aos ouvidos de ambos, mas desprovido de significado. — Vocês, os russos, são incompreensíveis — observou Böhler. Saiu do escritório; Sellnow e Schultheiss quiseram segui-lo, mas a voz de Kresin deteve-os. — Fique! — ordenou a Schultheiss. — O senhor pode ir-se embora — acrescentou, dirigindo-se a Sellnow. Schultheiss não se mexeu. Naquele momento, Piotr Markov abandonou o escritório, enquanto Sergei Basov Kresin empurrava uma cadeira para o alemão. — Sente-se. O jovem alemão obedeceu, invadido por uma súbita angústia. Kresin juntou as mãos, adotando uma atitude amistosa, como se se dispusesse a conversar em privado com o seu jovem colega. — Temos ouvido dizer — começou Kresin num tom efetivamente amistoso — que tratou o doente operado com um medicamento novo, uns pós. É verdade? Schultheiss mordeu os lábios. Como soubera Kresin da penicilina? Devia mentir ou não? — Que aspeto tem esse medicamento? — perguntou o russo. — É branco, doutor. Trata-se de penicilina, um preparado americano que nós recebíamos nas farmácias militares. — De onde o tirou? — Esse produto estava na nossa farmácia de campanha. — Mas não aparece mencionado na relação. — Não…? Deve tratar-se de algum erro, de certeza; mas é fácil de retificar. Acrescenta-se à lista: «Uma caixa grande de penicilina em pó.» — Entregue quando? — Desconheço. O major Vorotilov, que estava junto da janela, voltou-se.
— Essa penicilina também foi roubada. Schultheiss compreendeu que lhe tinham armado uma armadilha. Só lhe restava uma de duas opções: trair Kasalinskaya ou declarar-se responsável pelo roubo. Haviam-no interrogado a ele, o mais novo, porque o julgavam o mais fraco e o mais cheio de medo. — Peço-lhe que me reduza também a mim a ração de pão durante uma semana. — Não. Vorotilov aproximou-se dele. Cheirava a couro da Rússia, makhorka e suor. — Se eu o castigasse, doutor, seria pela sua falta de confiança. Não me confunda com o Markov. Não quero saber de onde tirou essa penicilina, mas confio na sua discrição, noutros aspetos… Você é médico e, portanto, não faz diferença alguma entre os seus doentes. — O que quer dizer com isso, comandante? — Virá comigo a Estalinegrado, para examinar alguém que me é muito querido. — Uma mulher? — Sim. O doutor Kresin trata-a, mas aconselhou-me que o consultasse a si. — Vorotilov examinou novamente Schultheiss com atenção, como se fosse a última inspeção antes de comprar um cavalo. — Ninguém deve saber onde vai, doutor — acrescentou, como se falasse consigo mesmo. — Nem sequer o doutor Böhler. — Conte comigo. — Se curar a enferma, poderá pedir-me o que quiser, exceto a liberdade, claro. Kresin acendeu a luz. A noite invadia o campo. O tenente Markov guinchava num dos pavilhões. O vento cálido do Oeste levantava nuvens de pó e o ar cheirava a incêndio na floresta. — Partimos amanhã de manhã, muito cedo — disse Vorotilov. — O doutor Kresin irá buscá-lo.
EXCERTO DO DIÁRIO DO CAPITÃO-MÉDICO SCHULTHEISS
Oxalá esta noite passe depressa! O aspirante dorme por fim. As lágrimas cobrem-lhe ainda as faces macilentas e os soluços sacodem-lhe o peito. Kasalinskaya veio, há meia hora, com uma ampola de morfina para ele. Continua a ter o ventre inchado e duro. No entanto, agora está a dormir e a sua respiração é regular. O pulso está quase normal, e isto perturba-me. Há mais ou menos meia hora estava a chorar. Segurou-me na mão. Debrucei-me sobre ele, lendolhe nos olhos toda a sua angústia. — Vou morrer, doutor? — perguntou-me, entre soluços. — Vou morrer? Só tenho vinte e três anos. — Quem te disse esse disparate? — Sou eu que o sinto. A minha barriga… a minha barriga… Parece que tem fogo! — Operámos-te. Tinhas o apêndice infetado e fomos obrigados a extraí-lo. Agora, vai correr tudo bem. — Vou morrer — murmurou, enquanto eu lhe molhava os lábios com um pano húmido, pois não devia beber. — Será o meu castigo… o meu castigo… A voz sumiu-se-lhe e os olhos adquiriram aquele olhar longínquo, que me assusta sempre que o vejo. — Aos vinte e três anos, de certeza que não tens nada para expiar — disse-lhe eu para o consolar. — Fui cobarde! — exclamou com tanta violência que quase não consegui mantê-lo no catre. — Aos dezanove anos saí da Escola Militar de Potsdam e mandaram-me como aspirante para o sector de Estalinegrado… Três meses depois seria promovido a alferes. Que orgulhoso teria ficado o meu pai! Queria ser herói, regressar à pátria com honra. Deram-me o comando de uma companhia e fortificámo-nos numa fábrica de tratores… Depois começou o bombardeamento, que não parava nem de noite nem de dia, sem a mínima interrupção, sem um momento para respirar… Disparavam com
milhares de canhões, sem deixar um metro que fosse de terra por remover… Depois lançaram-se ao assalto como formigas; saíam dos buracos, dos abrigos e dos escombros; deslizavam entre as vigas retorcidas, gritando huuuuurab!, esse huuuuurab! que gela até o tutano… Tártaros, mongóis, quirguizes, calmucos… Saltavam sobre nós, enquanto as nossas metralhadoras os derrubavam. Eu estava no meu abrigo, os galões de prata brilhavam no canhão da manga; era o comandante da companhia… Os soldados olhavam para mim… e eu tinha medo, um medo horrível! Sabe o que é o medo, doutor, quando não se consegue respirar, quando parece que o coração deixa de bater, quando o pulso para…? E os russos estavam a chegar, esses russos que não faziam prisioneiros, que arrancavam os olhos aos feridos… Na escola só tínhamos visto os galões de prata, mas não o que havia atrás deles. E aqueles diabos morenos caíam sobre mim às centenas! Aproximavam-se cada vez mais… Levantei os braços… Eu, o conde Von Burgfeld, comandante da companhia, levantei os braços e guinchei aterrorizado, quando tinha ao meu lado uma metralhadora com dez mil cartuchos. Dez mil cartuchos! Os russos estavam a chegar, como silhuetas numa carreira de tiro; bastava premir o gatilho e teriam caído como tordos. Mas não o fiz; não pude fazê-lo… Gritei de medo e levantei os braços, eu, o comandante da companhia! Mas só tinha dezanove anos… Devo expiar… expiar a minha cobardia, o meu medo… E sei que vou morrer. Que devo morrer! A única coisa que podia fazer por ele era agarrar-lhe a mão trémula e acariciá-la. Às quatro da madrugada manifestou de repente uma grande agitação, queixando-se de violentas dores na parte superior do abdómen. O espasmo sacudia-o, dobrando-o em dois. A seguir vomitou, sem qualquer esforço. O conteúdo do seu estômago esvaziou-se simplesmente pela boca. Assustei-me terrivelmente, tanto mais que o pulso se tinha agravado de repente e o enfermo adquiria um aspeto muito inquietante, encovados os olhos, terrivelmente pálido o rosto. Então, corri a chamar Sellnow, que acudiu em camisa. Mal o viu, pôs-se a praguejar como de costume. — Que nojo! Mas era previsível, não podia acontecer outra coisa nesta pocilga. Temos de chamar o chefe. — Não há esperança? — perguntei. Deve ter visto a minha angústia, pois olhou-me assombrado. — O que se passa? Nunca viu ninguém morrer? — Ninguém que me fosse tão querido. — Conhecia este rapaz? — Agora conheço-o. Recordei-me da ameaça de Vorotilov: «Se o doente morrer, vou acusá-los a todos de assassínio!» Um verdadeiro pânico animal apoderou-se de mim. Percorri o quarto com grandes passadas. O rapaz não podia morrer, iria arrastar-nos a todos atrás de si… Böhler entrou seguido de Sellnow. Também veio Kasalinskaya, que se debruçou, ao lado do
nosso chefe, sobre o doente que gemia. — Temos de voltar a operar? — perguntou suavemente. — Não temos outra solução — respondeu Böhler, endireitando-se. Os três recuaram alguns passos e consultaram-se entre si. — O diagnóstico é difícil — murmurou Böhler. — Provavelmente trata-se de uma peritonite com paralisia do intestino, mas pode ser mais uma dúzia de coisas más. — Quais? — perguntou Kasalinskaya. — Uma obstrução intestinal, trombose arterial ou venal, pancreatite aguda ou um volvo… Não há tempo a perder. Vou fazer uma laparotomia de ensaio, mas parece tratar-se de uma inflamação do peritoneu, com paralisia do intestino. Temos de fazer um ânus artificial. Acha que podemos arranjar nalgum sítio os medicamentos e os instrumentos necessários para uma instalação permanente ou para uma transfusão de sangue? — Onde? — perguntou a médica, encolhendo os ombros. Kasalinskaya tinha posto um quimono por cima da camisa de dormir. — Peça-o ao doutor Kresin, por favor. Prometeu que me ajudava em tudo. Emil Pelz chega com os seus dois auxiliares, e os três colocam o doente, que não para de gemer, na maca. — Deite-se e descanse, Schultheiss — disse-me o doutor Böhler. — O Sellnow e a doutora ajudam-me. Você fica encarregado dos cuidados pós-operatórios. — Muito bem, chefe. Levam a maca. Ainda ouço os gemidos do rapaz, do comandante de companhia de dezanove anos, que levantou os braços por medo, em vez de disparar os seus dez mil cartuchos… Amanhece. O céu aclara sobre os bosques que se estendem até aos Urais. Nas torres, as sentinelas tremem de frio… Reparo nisso, porque observo que batem no peito com as mãos. Na Rússia, as manhãs de verão também são geladas. Há movimento nas latrinas, junto à cozinha. Os ajudantes de cozinheiro vão lá uns atrás dos outros. Bacha está na soleira da porta, a cara alegre aberta num largo sorriso. As suas ancas fortes sobressaem debaixo do vestido fino. O tenente Markov também está levantado… Parece pálido e de mau humor. Mas será que alguma vez está bem? E eis que surge o Sol, que faz brilhar o teto dos pavilhões… As trevas da noite retrocedem, vacilam de fadiga, como animais encurralados, arquejantes… O aspirante dorme no seu catre. A segunda operação correu bem, felizmente. Trata-se por certo de uma inflamação do peritoneu, com paralisia do intestino. O pus continua a sair pelo dreno, caindo sobre um bocado de algodão. Böhler fez um ânus artificial, que deverá funcionar até que o intestino volte à normalidade, se
isso acontecer. Em todo o caso, o aspirante dorme tranquilamente. O sol começa a aquecer, o dia será quente. Penso no meu pai e na minha mãe: as lágrimas assomam-me aos olhos.
Estalinegrado, Tingutaskaya, quarenta e três. Uma casa nova, baixa, com janelas sem cortinas que dão para um grande jardim, perto do Volga, o qual brilha ao sol. À volta, edifícios novos: fábricas, alojamentos para operários, cinemas, teatros, lojas oficiais, o enorme edifício do Partido, o monumento à libertação de Estalinegrado… E o Volga, cinta de prata, grande, imponente, plácido, majestoso na sua imensidão. Kresin parou o jipe, puxou o gorro para a nuca, deu uma cotovelada a Schultheiss e fez-lhe um sinal com a cabeça. — Vou dar-lhe umas informações acerca da enferma. Não vai conseguir enganar Yanina Salya, por isso seja sincero. É a diretora da brigada sanitária de Estalinegrado, sabe muito bem do que sofre e foi ela própria que me informou do seu diagnóstico: tuberculose declarada, com uma caverna do tamanho de uma moeda de três rublos no lóbulo superior do pulmão esquerdo. Perda de peso, nove quilos em seis semanas. Isto chega? — Tem radiografias? — Sim; foram tiradas ao longo da evolução. — Que foi feito até agora? — Pouca coisa: descanso, ar fresco, curas de repouso junto ao Volga, uma alimentação boa, leite, vegetais, óleo de fígado de bacalhau. Fez-se um ensaio com tuberculina, para acalmar a irritação dos brônquios. Temos-lhe dado guaiacol e codeína, para a noite. — Os resultados continuam a ser negativos? Kresin disse que sim com a cabeça. Depois tocou à porta: um soldado abriu, saudando-o ao vêlo. — A camarada Salya está? — Sim. O médico alemão? — Abre lá, palerma! Kresin empurrou violentamente a porta, fazendo sinal a Schultheiss. — Entre — convidou. — Aqui todos desconfiam, porque têm a consciência pesada. Atravessaram uma divisão ampla, pobremente mobilada, saíram por uma porta de vidro e viram, entre os arbustos em flor, sentada numa cadeira de vime, a silhueta delgada de uma jovem. Os cabelos, de um louro-avermelhado, cobriam-lhe a cabeça, pequena; os grandes olhos azuis brilhavam febris…
Schultheiss inclinou-se, esperando que o colega falasse, mas só conseguiu perceber umas palavras. Salya olhou para ele, depois estendeu-lhe a mão, que ele agarrou vacilante, pois estava habituado, há vários anos, a não apertar a mão aos russos. — Foi o Vorotilov quem o mandou? — perguntou com voz cansada. — Servirá de alguma coisa, doutor? — Mas é claro — respondeu Schultheiss, admirado com o excelente alemão da rapariga. — Farei tudo o que puder. Vai curar-se. Kresin agitou a mão, como fazia sempre que desaprovava alguma coisa. — Não são precisos discursos — observou. — Vamos entrar em casa, camarada, para começar imediatamente o exame. Yanina Salya levantou-se sem dizer uma palavra e seguiu à frente deles, com passos tão cansados como a voz, mas movendo as ancas. O seu porte conservava um pouco da antiga graça; era como que um movimento felino, que chamou a atenção de Schultheiss. Conduziu-os ao seu quarto, passou a mão pelos cabelos curtos, olhou rapidamente para o alemão e começou a despir-se sem falso pudor. Deixou a roupa em cima da cama e fechou os olhos, cruzando os braços atrás da nuca. Tinha a pele avermelhada, coberta com uma película de suor. Kresin estendeu um estetoscópio a Schultheiss. — Tome — disse-lhe. — Vou buscar as radiografias. O sol iluminou o busto sobre o qual Schultheiss se inclinava. Uma forte emoção agitou-lhe o sangue, impedindo-o, a princípio, de perceber o ruído da respiração nos pulmões e os batimentos do coração. O suor perlou-lhe a testa; fechou os olhos, tratando de concentrar a atenção. A tuberculose vê-se, pensou, não se ouve. É uma velha regra que se confirma vezes sem conta. No entanto, deu pancadinhas suaves na caixa torácica, tentando localizar a caverna. Não conseguiu, claro. — Vista-se, por favor. Ouviu o roçagar da roupa e, quando se voltou, a rapariga arranjava o cabelo ao espelho. Alguns caracóis acariciavam-lhe a nuca. — Estou mesmo muito doente? — perguntou ela, com um sorriso algo desesperado, que o alemão conseguiu ver refletido no espelho. — Primeiro preciso de ver as radiografias. Se o que o doutor Kresin me disse for verdade, terá de ficar em repouso absoluto. O álcool e o tabaco estão-lhe completamente proibidos. — Agarrou num maço de cigarros caucasianos que estavam em cima da mesa de cabeceira e desfê-lo com os dedos. — Deve obedecer. — O meu irmão morreu prisioneiro na Alemanha — disse ela, abandonando o pente e pegando numa escova. — Trabalhava numa mina, em Moers: sucumbiu a uma furunculose. — É lamentável!
— Talvez um médico alemão tivesse podido salvá-lo, mas ele não quis deixar-se tratar pelo inimigo. Era um jovem cabo, comunista fanático. Eu também sou… mas amo mais a vida do que ele. Kresin voltou a entrar no quarto, e mostrou-se admirado. — Já terminou? — grunhiu. Entregou algumas radiografias a Schultheiss, que viu a enorme caverna claramente. Kresin olhou de revés para o colega alemão. — O que pensa fazer? — murmurou o russo. — Um pneumotórax. — E onde quer que vá buscar o aparelho? — Não há nenhum no hospital de Estalinegrado? — Há, mas não consigo que você lá entre. — Além disso, a doente deve estar sob observação permanente. No campo temos um bom dispensário… Talvez a possamos internar lá. — No campo? — perguntou Kresin, atirando as radiografias para cima da cama. — Está completamente louco! Não se pode instalar a Yanina Salya no meio daqueles presos imundos. — Eu sou um desses presos imundos — respondeu Schultheiss, encolhendo os ombros. — Terá de se arranjar sozinho, doutor Kresin. — Podia mandá-la para a Crimeia, junto ao mar de Azov, ou para Astracã, na margem do Cáspio, onde existem excelentes clínicas, mas ela recusa-se a ir. — Por nada deste mundo! — exclamou Yanina Salya, em tom apaixonado. — Não quero que me façam uma operação que me destrua o peito todo. Schultheiss avançou para a rapariga, pôs-lhe as mãos nos ombros e obrigou-a a sentar-se. — Não é necessário, Fräulein Salya — disse, num tom apaziguador. — Mas se não se consegue obter o simples aparelho que permite fazer um pneumotórax neste país… — Partia-lhe a cara, se você não tivesse os plenos poderes que o major Vorotilov lhe deu — rugiu Kresin, furioso. — Cão alemão! Yanina levantou-se de um salto, apoiando a mão no braço de Schultheiss. — Porque não hei de ir para o campo, se é o melhor para mim? De certeza que o Vorotilov o autoriza. — Camarada Salya! E se souberem em Moscovo, ou se houver uma inspeção? É impossível! A rapariga fixou em Schultheiss os seus olhos febris, de modo tão eloquente que o jovem médico se sentiu tremer. — Como diretora da brigada sanitária de Estalinegrado — disse Yanina —, os trabalhadores daquele campo estão sob a minha autoridade. Se durante uma inspeção me encontrarem ali, direi simplesmente que fui lá para incitar o zelo dos trabalhadores alemães. — Já lá está a doutora Kasalinskaya.
— Hei de entender-me perfeitamente com ela. — Esperemos que assim seja — suspirou Kresin, encolhendo os ombros e guardando o estetoscópio. — Vou comunicar ao comandante. Até à vista, camarada. — Até à vista, camarada Kresin. Voltou a oferecer a mão a Schultheiss, que sentiu a pressão dos dedos finos, mas o rosto da russa permaneceu impassível e pálido. O sol conferia um tom avermelhado aos seus cabelos.
A semana da ração de pão reduzida tinha começado e cem gramas por dia equivaliam a uma refeição daquele alimento pegajoso, húmido, pesado no estômago. Seriam menos setecentos gramas no fim do castigo, e o sofrimento que torturava as entranhas famintas multiplicava-se por setecentos. Rapidamente correu o boato de que Bacha Tarrasova desistia de exigir um xaile novo, mas o major Vorotilov foi intransigente e o tenente Markov multiplicou as suas torturas, que faziam enraivecer e praguejar os prisioneiros. O pavilhão sete, do bloco cinco, declarou greve de fome, mas foi em vão. Markov foi lá com cinco soldados, mandou colocar uma metralhadora em posição de tiro, pôs as rações em cima da mesa e ordenou: — Todos a comer! Aqueles miseráveis seres humanos levantaram-se dos catres e, sob a ameaça da arma, comeram as rações. Markov ria ao sair do pavilhão. Naquele dia, Karl Georg pensou vender as suas tulipas. Hesitou muito antes de as cortar e levar, como um tesouro, para o pavilhão, onde as mostrou a alguns amigos, antes de as esconder debaixo da camisa. Depois foi ao posto da guarda, diante do qual se encontrava um quirguiz a fumar um cigarro. — Eh, suíno! — chamou Georg, mostrando-lhe as flores. — Para a tua amiga, a tua cadela! Levantou as duas mãos, com os dedos esticados. O quirguiz sorriu abertamente, pôs seis rublos em cima de um banco, apanhou as flores e deu um pontapé no rabo a Georg. Ao vê-lo vacilar, o asiático riu a bandeiras despregadas. Hans Sauerbrunn, Julius Kerner e Karl Möller acolheram o furioso Georg. — Seis rublos — disse Kerner, pensativo. — Teremos dezoito, se todos deixarmos que nos deem um pontapé. Como ninguém se riu da piada, entrou a grunhir no pavilhão e foi estender-se no catre. Um homem do pavilhão oito, bloco doze, fez uma verdadeira proeza: por doze rublos, vendeu a um mongol uma gravata que na véspera tinha sido roubada a um mestre de obras, em Estalinegrado. O mongol usou a gravata até ao meio-dia, quando Markov a viu e logo deu duas sonoras bofetadas ao homem, arrancando-lha em seguida. Como o mongol não podia identificar o vendedor, o incidente não teve consequências. Naquela noite, tinham-se reunido cento e trinta rublos no campo. Depois de
os terem contado, enviaram-nos ao doutor Böhler, que os recebeu, comovido, das mãos de Emil Pelz. Num canto, Schultheiss redigia o relatório do dispensário. «Aspirante conde Von Burgfeld, no mesmo estado», escreveu. Depois lembrou-se de que esse conde não existia ali, sendo apenas um número. Riscou o nome e escreveu «4583». Depois deixou cair o lápis: sobre o enegrecido papel estava esboçado o corpo branco de Yanina Salya, esbelto, incrivelmente suave sob o ligeiro suor da tísica. O jovem médico pensou logo no comandante Vorotilov, na sua estatura maciça, poderosa, de pernas que mais pareciam colunas, e sentiu uma súbita aversão, imaginando que Salya podia ser a amante daquele bronco. Aquela mulher, frágil como um suspiro, e o homem, forte como uma árvore… Talvez a quebrasse entre as mãos. A única cura possível consistia em separar Yanina de Vorotilov… Aquela ideia animou imediatamente Schultheiss, deixando-o quase alegre. Böhler baixou a cabeça e deixou os cento e trinta rublos em cima da mesa. — O nosso jovem camarada sonha — observou. — Que enfermaria interessante: um médico excitado e outro que medita. — E, por chefe, um santo — acrescentou Sellnow, em tom sarcástico. — Onde esteve esta manhã, Schultheiss? Quis acordá-lo, mas vi que a sua cama estava vazia. Nem sequer parecia ter sido usada. — O Kresin chamou-me — respondeu Schultheiss muito depressa. — Queria comprovar a lista das nossas despesas. Espero que obtenhamos um aparelho para aplicar o pneumotórax. — Seria maravilhoso! — exclamou Böhler, entusiasmado. — Poderíamos melhorar o nosso dispensário. — E vamos conseguir — afirmou Schultheiss, fechando o livro dos relatórios que meteu dentro de uma gaveta. — Vou ver o aspirante. — Que jovem estranho! — observou Sellnow, abanando a cabeça, depois de Schultheiss ter partido. — Possui dons excecionais. Dei-me conta disso em Estalinegrado, nos últimos dias. Fez uma amputação sem tremer, enquanto a trincheira era violentamente bombardeada. Cosia o coto, quando entraram os primeiros russos. Não lhe fizeram mal, apenas levaram o ferido. Durante seis dias só tratámos russos. Böhler parecia não ouvir. Olhava pela janela, vendo o tenente Markov, parado em frente do pavilhão três, disposto a insultar Georg, o qual, encostado à parede, segurava o ancinho, pronto a atacar em qualquer momento. — Onde estão as flores, porco? — gritou o tenente. — Alguém as roubou — respondeu Georg, encolhendo os ombros. — Têm de estar aqui amanhã de manhã! — Não sou nenhum deus. A observação desconcertou Piotr Markov, que se afastou. Julius Kerner saiu entretanto do pavilhão. — Tens uma língua muito comprida — disse ao camarada. — Ainda te há de dar muitos
desgostos. — Deixa-me em paz! — exclamou o outro, atirando o ancinho. Ao passar diante do quarto da médica, Schultheiss hesitou. Depois decidiu-se e bateu à porta. Aleksandra Kasalinskaya, sentada num cadeirão, tinha os pés pousados numa mesa redonda. As cortinas estavam corridas, e uma fresca penumbra reinava no quarto, fortemente perfumado. A saia subia-lhe até ao meio das coxas, deixando completamente a descoberto as pernas bem torneadas. Debaixo da blusa de seda os seios arfavam. — Ah! É você! — observou, sem mudar de posição e indicando-lhe uma cadeira. — O que quer? Schultheiss sentou-se, sem conseguir desviar os olhos da mulher, e pensou em Sellnow, que se enfurecia sempre que via Alexandrova. — Queria fazer uma pergunta. — Faça. — Conhece a Yanina Salya? — A camarada diretora da brigada? — Essa mesma. — O passarinho tísico do comandante? Sim, conheço-a. Mas porque me fala nessa pobre comunista? Schultheiss baixou a cabeça, pois o brilho dos olhos da médica irritava-o. — Em breve virá ao nosso campo — respondeu, lentamente. — Ah! O comandante acha o caminho até Estalinegrado muito longo? — A Salya está muito doente e é urgente fazer-lhe um pneumotórax. O doutor Kresin sabe-o e vai fornecer-nos um aparelho. Examinei-a… — À camarada Salya? — perguntou Kasalinskaya, surpreendida, pousando os pés no chão. — Onde ficará? — Aqui, na enfermaria, no dispensário. Pensei que me poderia ajudar. Os doutores Sellnow e Böhler não sabem e toda a gente o deve ignorar. — E o que diz o Kresin? — Parece furioso, mas não se pode opor. A Yanina está perdida, se não fizermos qualquer coisa por ela. — E quer tratá-la? — Mediante repouso. — Tendo o Vorotilov por perto? — exclamou Aleksandra, rindo alto e movendo a cabeça, de tal forma que os cabelos negros lhe caíram para a testa, dando-lhe o aspeto de uma ave de rapina. Compreendo o Sellnow, pensou Schultheiss. É uma provocação deixar circular uma só mulher entre nove mil prisioneiros; sobretudo uma mulher destas, que enlouquece os homens apenas com o mexer da cabeça e do corpo.
— O Vorotilov está muito apaixonado — acrescentou ela. — Será o fim da Yanina. — Posso dizer isso ao doutor Kresin? — perguntou Schultheiss, levantando-se. — Mas é claro, e também pode dizer ao Vorotilov que já não pode comigo. — Agradeço-lhe, doutora. Schultheiss inclinou-se ligeiramente e saiu. Quando chegou ao corredor, apoiou-se à parede, esgotado, limpando com as costas da mão o suor que lhe cobria a testa. Yanina, Aleksandra… Que efeito produziam nele as mulheres! Nunca até então o tinham perturbado àquele extremo, e logo agora, que só comia sopa de couve e pão pegajoso! Teria sido contagiado por Sellnow? Naquele momento, apareceu o capitão-médico, que, com ar grave, agarrou Schultheiss pelo braço. — Procurei-o por toda a parte. Onde estava? O aspirante está agitado. Schultheiss foi sacudido por um arrepio. «Estar agitado», na enfermaria, significava que o enfermo agonizava… A expressão de Sellnow era eloquente: pálido e devorado pela preocupação. Se morre, será certamente um assassínio aos olhos de Vorotilov… — O chefe já sabe? — Está junto à cabeceira do doente. O intestino não funciona e o ânus artificial já não segrega nada. Quarenta e um de temperatura e acentuada debilidade cardíaca. Sellnow mordeu os lábios. — Temos de chamar um padre. Há algum no campo? — Cinco pastores evangélicos. — O aspirante é católico. — Deus está em todo o lado onde têm falta d’Ele. Vou à procura de um pastor. O ar cintilava na frente dos bosques quando Schultheiss chegou à praça principal do campo. Nas torres, as sentinelas tinham tirado os dólmanes e bebiam água. Junto à cozinha, o jovem médico viu Bacha com Markov. Deviam estar a discutir, porque ela virou-se de repente e fez-lhe um gesto obsceno. Os prisioneiros do turno da noite gozavam o sol, ao longo dos pavilhões, enquanto tiravam as pulgas e os piolhos das camisas ou lavavam a roupa e as meias num balde. Karl Georg contemplava tristemente o seu jardinzinho seco. A música de um fonógrafo saía do quarto de Vorotilov. Schultheiss, ofuscado, fechou os olhos momentaneamente. Um pastor. O aspirante agonizava. A navalha será a culpada? «Assassínio», diz o comandante Vorotilov. «Serão todos assassinos, porcos alemães!» Porque guardas silêncio, meu Deus, precisamente agora? Sergei Basov Kresin passava por ali. Agarrou Schultheiss por um ombro e sacudiu-o. — O que se passa? Uma insolação? Está pálido e a cambalear. O que aconteceu? — Está a morrer! — exclamou Schultheiss. — Tenho de encontrar um pastor.
E foi a correr para o bloco nove. — Um sacerdote! — murmurou Kresin, com desprezo. — Deus não pode responder quando o homem cai em falta. Logo se censurou por alimentar preocupações por Böhler. O major-médico estava no pequeno quarto, ao fundo do corredor, com uma seringa na mão. Junto à porta, Sellnow contemplava, encharcado em suor, o rosto macerado do aspirante. — Não lhe dê mais cardiazol, chefe — grunhiu entredentes. — Temos falta dele para os outros. — Ainda tenho quarenta e cinco frascos que trouxe do antigo hospital de Estalinegrado. Mas você já o condenou? — Já. Está morto. Apenas o coração continua a bater, como se pudesse viver sem corpo. — Não acredito nessa morte — respondeu Böhler, levantando o braço do doente para procurar a veia, no cotovelo, por baixo da pele amarelecida. — Enquanto o coração bater, não posso considerar este homem morto. — Só o tortura. Não lhe pode salvar os intestinos. Há cinco anos que não assimilam comida de jeito… São como a pele descarnada de um salpicão que tivesse estado demasiado tempo ao sol. Böhler baixou a cabeça em silêncio e mergulhou a agulha na veia. Com todo o cuidado, aspirou o sangue na seringa e depois injetou o cardiazol. Kresin apareceu junto à porta. Trazia o seu estojo e dirigiu-se a Böhler. — Os corvos aparecem onde lhes cheira a carne — notou tristemente Sellnow. — Alguma esperança? — perguntou o russo, sem fazer caso das palavras do outro. — Muito poucas. — Uma terceira intervenção? Böhler endireitou-se e dirigiu-se à janela, da qual pendiam uns panos desgarrados, a fazer de cortinas. O seu rosto magro inclinou-se para a frente. — Já vi morrer muitos homens — respondeu em voz baixa —, era a minha missão na frente. Podíamos tratar milhares, mas morriam muitos mais, devido às condições exteriores e não por causa de nós, os médicos. A este, se tivesse uma sala de operações em condições e os medicamentos necessários, já o teria salvo. Kresin abriu o estojo, deixando cair o seu conteúdo sobre a mesa, e também algumas ampolas de Evipan, que Böhler olhou incrédulo. — Tem Evipan? — Como pode ver. — E só agora me diz? Estou nesta enfermaria há três anos, durante os quais você me pôs todo o tipo de dificuldades… Três anos sem operar porque não tenho nem anestésicos nem instrumentos! O russo corou, a respiração alterou-se e deu um grande murro na parede. — Não se esqueça de que é apenas um preso imundo! — gritou grosseiramente. — Devíamos
deixá-los rebentar a todos! — Então porque é que não o faz? Porquê tudo isto? — perguntou Böhler, apontando para os instrumentos. Após encolher os ombros, Kresin saiu do quarto, lançando ainda por cima do ombro: — Porque acho que é um médico demasiado bom. Sellnow fechou a porta atrás do russo. — É um porco! — exclamou convicto. Depois tomou o pulso do doente e encolheu os ombros. — Tem mesmo intenção de operar outra vez? — Sim, pela terceira e última vez. Se ao menos pudéssemos fazer uma transfusão de sangue! Schultheiss voltou, acompanhado por um homem pequeno e macilento, cuja camisa flutuava em redor do tronco. A cara era terrosa e tinha os olhos profundamente enterrados nas órbitas. Estendeu as mãos descarnadas para os médicos. — O pastor — disse Schultheiss em voz baixa. Böhler apertou-lhe a mão com a palma húmida e verificou que a pressão dos dedos do homem era frouxa. Um tuberculoso, pensou. Será melhor retê-lo aqui. Porque não se terá apresentado à visita? — Vou operar outra vez — anunciou. — Tenha a bondade de esperar aqui, senhor pastor. Sem dúvida que nos será necessário. O pastor tísico disse que sim e aproximou-se devagar da cabeceira do catre, para apoiar a mão, quase com ternura, na testa do jovem. Fechou os olhos: os seus lábios moveram-se numa prece muda. Sellnow tinha as mãos unidas e contemplava os dedos compridos e afilados. Censurava-se pela emoção que sentia. Estava desterrado num campo há muitos anos, a comer couves e pão negro; juntamente com os outros gritara: «Deus não existe, se permite que os inocentes sofram assim», e tinha blasfemado quando o inverno, com as suas neves e as suas tempestades, o flagelava com os seus rigores, jurando nunca mais voltar a pronunciar o nome de Deus… E bastava que aparecesse um sacerdote, um homem encolhido e enrugado, para unir as mãos e rezar! Quando Emil Pelz e os dois enfermeiros entraram e viram o pastor, baixaram a cabeça e também eles juntaram as mãos. Uma voz trémula, sacudida, elevou-se: Chega! Chega! Dá-me paz, Senhor. Vem a mim, Jesus! Adeus, ó mundo; parto para a morada celestial; parto para a paz, deixando atrás de mim os sofrimentos. Chega!
A palavra «chega» penetrava na alma, fundia-se no cérebro, incorporava-se na medula. Sellnow encostou a cabeça à parede e os soluços sacudiram-lhe o corpo. Böhler olhou-o e baixou a cabeça, sem dizer nada: «Que maravilha!», pensou. «Deus existe… existirá sempre… É o Pai dos solitários e dos aflitos.» O pastor retirou a mão da testa do doente. Estava coberta de suor frio. — Devo administrar-lhe os últimos sacramentos? — perguntou. — Ou desejam esperar o resultado da operação? Böhler fechou a ponta do intestino com um bocado de gaze e endireitou-se. — Tem tudo de que precisa, pastor? — Uma garrafa de água e um naco duro de pão — respondeu, sorrindo debilmente, como a desculpar-se. — Deus irá transformá-los no vinho e na hóstia… Com pão e água se aguenta a nossa vida durante anos de miséria. Böhler olhou para Sellnow, que já se tinha acalmado, e para Schultheiss, que parecia já estar recuperado para poder ajudá-lo. — Primeiro vou operar — disse o médico-chefe. — Se o desejar… se os nervos lhe permitirem… pode acompanhar-nos. — Obrigado. Uma tosse seca sacudiu-lhe o corpo, como uma cana sacudida pelo vento. Levou à boca a mão macerada, curvando-se para a frente. «Em breve teremos de rezar por ele», pensou Böhler. Emil Pelz e os maqueiros levaram o aspirante. Quando abriram a porta da sala de operações, viram Kresin, de luvas de borracha, perto da mesa, a arrumar os instrumentos. Aleksandra Kasalinskaya estava também lá, e levantou-se quando os médicos entraram atrás da maca. — Onde está Deus, também se encontra Satanás — murmurou Sellnow. O cheiro do éter invadiu o quarto. Böhler recebeu luvas de borracha das mãos de Kresin. Eram as primeiras, há já mais de três anos…
Yanina Salya chegou ao campo no dia seguinte. O comandante Vorotilov tinha mandado buscá-la a Estalinegrado num jipe, e esperava-a acompanhado por Kresin e pelo tenente Markov. Estava muito bem-disposto, deixando até que Karl Georg plantasse, na sua presença, flores roubadas na véspera do jardim da Fábrica Outono Vermelho. Com a farda, Yanina ainda parecia mais magra e mais doente. O cabelo louro-arruivado caía-lhe sobre os ombros e os seus grandes olhos azul-claros examinaram os pavilhões baixos e as torres, as cercas e a enfermaria. Vorotilov contava a última anedota de Estalinegrado e Markov batia nas coxas. Os olhos da jovem russa brilharam ao ver, numa das janelas, a silhueta de Schultheiss.
Sergei Basov Kresin previa complicações. À sua maneira, Yanina tinha pedido notícias do médico alemão. — Esse bimbo desse alemão não me agrada. Tem as mãos tão macias que, quando apalpa, parece a carícia de um gato. Desagrada-me. O que se lia nos seus olhos era contudo muito diferente: o desejo daquelas mãos, e Kresin, cerrando os dentes, acariciava a ideia de mandar Schultheiss para outro grupo de campos, ou, pelo menos, para um no exterior. Kasalinskaya chegou do lado da cozinha. Sorriu ao ver Yanina e aproximou-se a passos rápidos, para lhe cingir a cintura com um entusiasmo que tanto podia ser provocado pelo carinho como pelo ódio. — Pombinha branca! — exclamou, beijando-lhe as duas faces. — Vens visitar-nos? Vorotilov franziu os lábios. Como um touro que rumina, pensou Kasalinskaya. — A Yanina vai fazer-lhe companhia, camarada — disse em tom cordial. — Quer estimular o zelo dos trabalhadores. — Que súbito interesse pelos alemães! A princípio deixávamos que morressem aos milhares e agora matamo-nos por eles. Existem na Rússia milhões de seres que vivem pior do que os prisioneiros alemães e são mais maltratados do que eles. Mas o senhor deve saber bem isso, comandante. — Se fizéssemos caso da camarada Kasalinskaya, teríamos de matar todos os alemães — disse Vorotilov, rindo, para Yanina. — Temos aqui um sistema excelente: se a fundição ou a serração precisarem de trabalhadores, mandamos a camarada médica aos campos. Em menos de duas horas, temos todos os homens de que necessitamos. Yanina olhou para Aleksandra de lado, recuou um passo e ficou de rosto corado. — Os alemães também são homens — disse. — Camarada — objetou Piotr Markov —, eles tratam-nos como seres sub-humanos. — Isso foi durante a guerra… Agora estamos em paz. — Estaremos sempre em guerra, até que todo o mundo seja comunista — afirmou Markov em voz alta, com um brilho fanático nos olhos. — Não haverá sossego na Terra enquanto a bandeira vermelha não flutuar em toda a parte. Até lá, combateremos contra tudo e contra todos. — O eterno revolucionário! — exclamou Vorotilov, rindo sonoramente. — Pergunto-me sempre por que razão não cantará a Internacional todas as noites, antes de se deitar. Böhler, mais pálido do que nunca, passou nesse momento em frente ao grupo e cumprimentou-o. Vorotilov respondeu-lhe com um gesto, e, sem deixar de rir, gritou-lhe: — Onde vai, curandeiro? — Ao pavilhão oito, bloco quatro; acaba de se dar ali um pequeno incidente. — Já passei por lá — disse Kasalinskaya. — Um polegar esmagado. Ordenei ao homem que
regresse ao trabalho. — Como? — Tem de trabalhar! O senhor julga que me deixo enganar por pretextos desses? Todos esmagariam um polegar para terem uma folga, mas comigo não! Já conheço o truque, fui médica nas minas. Além disso — acrescentou, pondo as mãos na cintura —, não tenho de dar satisfações aos prisioneiros. Böhler fitou Kresin, que olhava para o céu, como se nunca tivesse visto as pequenas nuvens que o vento arrastava. Vorotilov aspirou o fumo do cigarro e Piotr Markov riu-se descaradamente. Yanina Salya olhou-os um a um e depois desviou os olhos. — É desanimador — disse em russo. — Não compreendo. — Agarrou no braço do comandante. — Vamos, leva-me à enfermaria. Vorotilov caminhava alegremente, parecia um urso feliz por sentir a argola presa ao focinho… Aleksandra Kasalinskaya observou-os, semicerrando os olhos, e os seus lábios carnudos abriram-se num sorriso malicioso. — Venha — disse a Böhler. — Vou declarar que o homem do polegar esmagado não está apto para o trabalho. Schultheiss tinha visto a chegada de Yanina da sua janela. Não compreendia o que podia unir aquela jovem terna àquele bronco do Vorotilov. Regou com ardor as primaveras da janela de Sellnow, enquanto o outro ressonava muito alto. O capitão-médico tinha passado a noite junto da cabeceira do aspirante, a discutir violentamente com Kasalinskaya, que entrara de repente no quarto, parecendo manifestar um vivo interesse pelo doente. A visão daquela mulher, a quem apenas a camisa de dormir cobria, pô-lo em tal estado que agarrou na cadeira e ameaçou partir-lha na cabeça. — Que selvajaria! — disse a russa com ironia antes de desaparecer. — Que selvajaria, que heroísmo, que força! Yanina estava, portanto, no campo… Yanina, condenada à morte, com o pulmão esquerdo tão doente… Aos seus olhos, ela continha a imensidão do Volga, o sol filtrado pelos bosques, o canto dos bateleiros que iam para o Cáspio. Toda a melancolia da estepe, todo o céu sobre os montes de Ergheni, estavam contidos naquele olhar. Sellnow entretanto falava nos seus sonhos, parecia discutir com alguém. O seu rosto estremeceu. Como as preocupações desaparecem quando a Yanina está aqui!, pensava Schultheiss. Menos cem gramas de pão por dia, e o campo já reuniu duzentos e treze rublos. No bloco nove, três quirguizes bateram brutalmente em sete prisioneiros porque não se punham em fila rapidamente para a revista. Esses homens tinham acabado de voltar dos bosques e deixaram-se cair nos catres, mais mortos do que vivos. Mascavam pão duro, como se isso lhes desse forças para prosseguir esta vida de animal.
Podia esquecer tudo aquilo, porque os olhos de Yanina eram profundos e misteriosos como a estepe. Bateram à porta e Schultheiss foi a correr abrir. Apareceu Pelz, que o cumprimentou. — Precisam de si no dispensário — disse o enfermeiro, sorrindo. — Temos uma nova doente, e de primeira classe! — Vou já. Schultheiss deu uma penteadela rápida e esfregou a cara com as duas mãos, para lhe dar um pouco de cor. Pareço um cadáver, pensou. Mas é preciso que ela me veja um pouco como era dantes. Saiu a correr, parando, ofegante, à porta do dispensário. Ouvia a voz grave do doutor Kresin, o barulho de móveis a serem mexidos e marteladas no chão. Quando o jovem alemão entrou, Yanina voltou-se para lhe sorrir. Falava-lhe assim com os olhos, mas os lábios brancos e finos não disseram nada. Pelo contrário, Kresin interpelou Schultheiss bruscamente. — Chama a isto um dispensário? — gritou. — É uma pocilga! A camarada Salya tem de ficar aqui, neste lugar? — O lugar é bom quanto baste para os prisioneiros alemães — respondeu Schultheiss. — Há aqui luz, ar e sol, só falta uma coisa: tranquilidade, mas havemos de a ter quando o senhor sair. Yanina Salya riu alegremente, o que desconcertou Kresin. O russo olhou para o médico alemão muito irritado, abrindo de par em par uma das janelas. Aos seus olhos, ofereceu-se a grandiosa paisagem da estepe e dos bosques vizinhos, arruinada pelas torres e pelas cercas. Alguns calções cinzentos e rotos secavam ao sol, numa passagem entre dois pavilhões. — De quem são aqueles trapos? — perguntou Kresin. — A partir de agora é proibido pôr a secar farrapos ao ar livre. Dá nojo vê-los! — A mim não me incomodam — observou Yanina, fazendo um gesto com a mão que lembrava uma borboleta cansada. — Pois a mim, sim! — insistiu Kresin. — Temos de ensinar esse bando de porcos a serem disciplinados. Schultheiss engoliu aquela injúria, como já tinha engolido tantas outras durante os anos de cativeiro. Para dizer a verdade, os médicos eram mais bem tratados, em todos os campos e por todos os russos, especialmente pelos oficiais, do que a massa dos demais prisioneiros alemães. Durante os primeiros tempos, até 1946, batiam-lhes e faziam-nos passar fome, deixando-os morrer a um canto ou por meio de tortura. Mas, no que tocava aos médicos, trabalhava-se psicologicamente, amarrandolhes as mãos com toda a espécie de mentiras e humilhações. Reprovavam-lhes a incompetência, quando fracassavam por falta de meios técnicos; prometiam-lhes ajuda, fingiam respeitar os regulamentos da Cruz Vermelha Internacional, mas, na realidade, nada lhes davam e faziam
deliberadamente orelhas moucas até às suas queixas mais veementes. Chegavam até a negar-lhes os sedativos, o que era uma das coisas mais absurdas, com o pretexto de que podiam utilizá-los como estupefacientes. — Para vocês, alemães, o melhor narcótico é uma boa paulada — respondera Kresin, administrador do grupo de campos de Estalinegrado, Krasnopol e Novocherkask, a Sellnow, que lhe pedira morfina. O capitão-médico tinha-lhe chamado «canalha satânico» e fechara-lhe a porta na cara, o que lhe valeu quinze dias de prisão, a meia ração, castigo que o ódio o fez suportar perfeitamente e que, perante o assombro geral, ainda aumentou mais a sua raiva. O doce calor que emanava de Yanina fez Schultheiss corar e perturbou-o. — O que me vai fazer agora? — perguntou ela, olhando-o com alguma tristeza. — Antes de mais, você precisa de repouso. — Então, comece por matar o Vorotilov — grunhiu Kresin, da janela. — Ele terá de ser razoável — disse Schultheiss em tom firme. — Mostre-me um macho que seja! — exclamou Kresin. — Apenas vê uma mulher, tem de a investir. Yanina olhou para Schultheiss com olhos suplicantes, nos quais havia angústia e desespero. Durante um momento, ele sentiu um violento desejo de a agarrar pelos ombros e de a estreitar contra o peito para a consolar, mas lembrou-se a tempo da sua qualidade de plenni, na presença de uma russa e de um funcionário de patente elevada, de uniforme e ostentando uma cobiçada condecoração. Deixou cair os braços, que levantara, e voltou-se bruscamente para Kresin. — Fräulein Salya terá tudo o que for necessário para a sua cura… se o senhor quiser. — Isso não depende de mim — riu o russo, afastando-se. — Que lindo conto das Mil e Uma Noites! É preciso ser-se alemão para inventar uma coisa dessas! Yanina sentou-se numa cadeira e passou a mão pelo cabelo. — Vem examinar-me esta noite? — Sim, se o comandante Vorotilov não estiver consigo. — Vou dizer-lhe que me sinto muito cansada. — E será verdade, Yanina. — Sim, Jens. Schultheiss tremeu. — Como sabe o meu nome? — murmurou. — Perguntei ao Kresin. — Porquê? — Porque tem os olhos tão azuis como os meus. Os do meu pai também eram assim. Vivíamos junto ao Volga. Ele tinha uma pequena pesqueira e dois barcos que levavam o peixe para o mercado
de Saratov. Morreu de desgosto depois de o meu irmão ter sido mortalmente ferido em Orcha, onde nunca conseguimos encontrar o seu túmulo… A guerra é uma coisa espantosa para os homens, Jens. Endurece o coração e faz surgir o ódio onde só devia reinar o amor. Sou muito jovem e só conheci a guerra. — Que idade tem, Yanina? — Vinte e um anos, Jens. — Tão nova! — E tão velha, ao mesmo tempo. Sempre usei uniforme… Juventudes Comunistas… quadro da organização médica… farda dos guerrilheiros… farda de honra do Partido e do Exército… Só tenho visto soldados, russos ou alemães. Sou mais russa que a própria Rússia… Acha que se pode ser velha com vinte e um anos? Schultheiss passou em revista a sua própria vida, e também só viu apenas pés a marchar, uniformes, bandeiras e estandartes, música militar e aclamações das massas. Calou-se, por não encontrar palavras de consolação nem para Yanina nem para si. — Volto hoje à noite, Yanina — disse suavemente. — Vou guardar um pouco do meu jantar para si. Parece esfomeado. — Agora estou bem — respondeu ele, com um riso forçado. — O corpo habitua-se a viver com a dieta. Durante os primeiros anos, a fome torturava-nos, impedindo-nos de dormir. Um pedaço de pão mole era um tesouro pelo qual alguns estavam dispostos a matar. Comíamos neve para apanhar tifo e ser mandados para a enfermaria, onde recebíamos mais meio prato de sopa como complemento. Depois, o estratagema foi descoberto e vimos o que um homem pode suportar quando acalenta uma esperança e tem fé no amanhã, desde que tenha vontade de viver. Agora… — Olhou para o seu corpo macerado, cujos ossos quase furavam a pele enrugada —, agora converteu-se num simples hábito… Até logo à noite, Yanina… se eu puder vir. Kasalinskaya estava junto à porta, a fumar um cigarro turco, cujo fumo adocicado se agarrava ao chão. Tinha os lábios pintados de um vermelho escandaloso. — Como está o passarinho? — perguntou. — Devia tratar dela, doutora Kasalinskaya — disse Schultheiss. Quis passar sem parar, mas a médica agarrou-o por um braço, atraindo-o para ela. — A Yanina está apaixonada por si — murmurou com voz rouca, de olhos brilhantes, parecendo um tigre fêmea pronto a saltar. — Está a sonhar, doutora! Eu sou apenas um plenni. — É melhor que nunca o esqueça — ameaçou Aleksandra, atirando o cigarro fora e dando uns passos enfurecidos. — O Vorotilov mandava-o fuzilar. — Nunca terá razões para o fazer. Schultheiss sentiu-se invadido pela angústia. Olhou fixamente Kasalinskaya, que aguentou o olhar.
Nos olhos da mulher leu ciúme, orgulho, sedução, desejo e um terrível esforço para se dominar. — Vou falar com a Yanina — disse ela a meia-voz, com um leve tom de ameaça. — Apesar de médico, continua a ser prisioneiro, doutor Schultheiss, e podemos matá-lo como uma pulga. Vá-se embora. Diabo! O diabo em pessoa! Foi obedientemente para o quarto. O sangue latejava-lhe nas têmporas. Empurrou a porta e fechou-a brutalmente. — Oh, belo louro! — murmurou Aleksandra Kasalinskaya, sorrindo.
EXCERTO DO DIÁRIO DO CAPITÃO-MÉDICO SCHULTHEISS
Que bela é a noite, quando os pensamentos se acalmam e sossegam! Estou sentado ao pé da cama do aspirante. Está a dormir. A terceira operação deu bom resultado. O cirurgião só teve de fazer desaparecer uma obstrução de fezes perto do ânus artificial, que quase custou a vida ao doente. O pus continua a sair pelo dreno, mas o pulso está melhor. Kresin dispensou-nos glicose e, sobretudo, estrofantina. O coração reagiu perfeitamente, apenas com um miligrama de medicamento. Admiro Böhler não só como médico, mas também como homem. Consegue dominar-se em todas as circunstâncias e intervém sempre que é preciso. Como médico é audacioso, travando uma luta silenciosa e encarniçada contra a morte, presente à nossa volta, em toda a parte. Nunca pronuncia palavras difíceis. Nós seguimos o seu exemplo, economizamos as palavras em que éramos tão pródigos antigamente. Sinto-me reconfortado quando vejo as mãos de Böhler, os seus olhos, a testa alta, os lábios fios que se entreabrem solenemente para dizer: «O seguinte.» Então esqueço o mundo em que vivemos. Que seria de nós sem ele? Criou esta enfermaria a partir do nada e agora temos o melhor dispensário de todos os campos. Efetuou operações cirúrgicas que fazem pensar no valor dos médicos medievais. Em 1945, amputou uma perna congelada com uma faca de cozinha… Ainda o estou a ver no pavilhão, rodeado pelos homens que sustinham no alto a candeia a azeite: «Segurem-no bem», recomendou aos dois enfermeiros, «vou cortar…» E o doente urrou até perder felizmente os sentidos. Não tínhamos anestésicos… Esta noite não poderei ir para junto de Yanina, às duas da manhã tenho de injetar de novo soro no aspirante. Ao sair do corredor, pareceu-me ver ao longe uma nesga de luz, debaixo da porta. O quarto de Kasalinskaya também estava iluminado. Quando fui à farmácia, ouvi-a andar pelo quarto. Espera que eu vá ver Yanina para chamar Vorotilov. É um diabo, mas é tão linda, tão manifestamente linda! Ao pensar nela e em Sellnow, sinto uma angústia indescritível. Pode dar-se a pior das catástrofes. Quando regressava, os passos da médica russa detiveram-se. Estava sem dúvida à escuta, pois logo a seguir abriu a porta do quarto onde eu estou.
— A Yanina está à sua espera — disse lentamente, com um olhar sombrio e ameaçador. — Estou de vela esta noite — respondi-lhe. — Não posso abandonar o meu doente. — Quer que o substitua? Abanei a cabeça, dando início aos meus preparativos, sem me ocupar mais dela. Aleksandra fechou a porta. Ouvi o ligeiro ruído dos seus passos no corredor, pois estava descalça. Gostava de saber porque fica tantas vezes no consultório à noite. Está proibido formalmente, inclusive a ela própria. Deve passar a noite no edifício administrativo. Depois de injetar o aspirante, alguém entrou no quarto. Não me atrevi a virar-me… Sentia o olhar nas costas… O meu coração batia depressa… Porque há de ser assim, meu Deus? Porque nos atormentas tanto a nós, os pobres plennis, esfomeados e destituídos de direitos? Yanina veio sentar-se perto da janela escura, na única cadeira desocupada. Durante muito tempo não dissemos uma única palavra, só olhámos um para o outro. — A Aleksandra disse-me que você estava de vela. As suas palavras eram como o roçagar da seda. Debaixo das abas do quimono viam-se as suas pernas nuas e os pés descalços com encantadoras chinelas de astracã, bordadas a ouro. Yanina tinha a elegância de uma adolescente, só a boca era feminina… e os olhos pareciam feitos da água do Volga. — Sim — respondi entredentes. Novo silêncio. — Não o vi em todo o dia, Jens. — Estava de serviço nos pavilhões. Não podemos juntar aqui todos os doentes. Cada bloco tem uma enfermaria, onde o médico de serviço faz as visitas. — E você era o médico de serviço? — Era. — Não seria o doutor Sellnow? Baixei os olhos, envergonhado. — Porque trocou com ele, Jens? — Eu não passo de um prisioneiro de guerra, Yanina. Não tenho qualquer valor. — Para mim, tem muito. — Yanina… — Você é cobarde, Jens? Fitava-me diretamente, apoiando o queixo na palma da mão. Não consegui aguentar o seu olhar e voltei-me para o doente, começando a mudar-lhe o penso. — Talvez tenha valor para si — disse eu, fazendo um esforço, uma vez que não olhava para ela. — Ter-lhe-ia respondido com prazer, se fosse livre e não apenas um número nas listas de Moscovo, o seis mil setecentos e vinte e quatro, nada mais. O que se pode esperar de um número que se pode
apagar como inútil ou incómodo? Ergueu os ombros, balançando as pernas finas que terminavam nas chinelas de astracã. — Talvez seja libertado muito em breve, Jens. Centenas de milhares de camaradas seus já regressaram à Alemanha. — Mas centenas de milhares continuam a viver em campos, dos dois lados dos Urais. — Também eles serão libertados. — Já estão acabados, Yanina, definitivamente. Não passamos de espectros. Serão precisos muitos anos para voltarmos a ser nós mesmos, mais do que aqueles que perdemos aqui, na Rússia. Deus fez o homem imperfeito: ao criá-lo, não lhe cingiu a alma com uma pele dura como uma couraça. — Está amargurado, Jens. — Talvez sim, talvez seja apenas o delírio das madrugadas, uma melancolia inexplicável, algo sombrio a que se chama saudade da pátria… Podia viver sem o Volga, Yanina? — Se gostasse mais de um homem que do Volga… sim, Jens. — São só palavras! Dei a volta à cama do aspirante, lavei-lhe a cara com água, depois o corpo, que continua inchado, com uma solução esterilizante. Yanina olhava-me, mas as minhas mãos estavam serenas, muito mais que o meu interior. — Na escola aprendemos muitas coisas sobre a Alemanha — disse. — Não só a língua… Também conheço a civilização, a paisagem, os artistas e os sábios. Vocês são um povo inteligente, mas essa inteligência cega-os e fá-los esquecerem-se de que existem outros povos. — Isso foi o que lhe contaram. A nós também nos disseram que os russos são asiáticos, um foco de incêndio ideológico para o mundo. Quem escreveu esses livros, e quem nos ensinava, nunca viu o Volga, nem o Don, nem a estepe, nem a Yanina. Levantou-se de um salto, para vir apoiar a mão no meu ombro. — Eu não conseguiria odiar todos os alemães — disse docemente. — Porquê, Yanina? — Porque aprendi a conhecê-lo a si… Voltei a cabeça para beijar as pontas dos dedos que descansavam no meu ombro. Ela recuou, com angústia nos olhos, com uma excitação selvagem… Depois abriu a porta e ouvi-a correr pelo corredor. Uma flor tinha ficado perto da sua cadeira, uma pequena eglantina, pálida e delicada como ela, doente e meio murcha. Que bela é a noite! Que doces podem ser os pensamentos de um miserável prisioneiro de guerra alemão! Acredito que Deus também olha pela Rússia.
Ao meio-dia espalhou-se pelo campo o boato de que um comissário político de Moscovo acabava de deter o cabo Hans Sauerbrunn. Karl Georg e Julius Kerner, que presenciaram o facto, contaram apenas, na sua aflição, que Jacob Aaron Utchomi tinha chegado com o comissário e que ambos tinham levado Sauerbrunn ao edifício do comando. Vadislav Kuvakino, o comissário, era um homem gordo, com rosto mongol. Os seus olhos, muito separados e ligeiramente rasgados, tinham um brilho frio e muitas vezes distante, como se lhes repugnasse contemplar o mundo. A maior parte do tempo baixava a cabeça ao falar e olhava para os dedos — afilados, contrariamente ao que era o seu corpo — ou batia com as unhas umas nas outras. O major Vorotilov estava corado. É espantoso, pensava, se for verdade, é incrível. Piotr Markov gozava. Para ele, Hans Sauerbrunn era como uma rês, que podia ser enviada para um campo disciplinar, em Kasymsskoye, entre os pântanos, as febres, as moscas e os lobos… Tinham de exterminar os porcos alemães. Mais admirado que inquieto, Hans Sauerbrunn estava à frente da secretária do comandante a olhar para os russos, um após outro. Estava vestido como sempre: calças rasgadas, camisa aberta no peito peludo, sapatos de pano com sola grossa de borracha. Nos joelhos apareciam duas grandes manchas redondas… Tinha estado a ajudar Karl Georg no seu jardinzinho. Não se atrevia a apagar aqueles sinais e olhava interrogativamente para Jacob Aaron Utchomi. — Já conhece a pergunta — disse Kuvakino ao intérprete. — Faça-a…. camarada. Era-lhe visivelmente penoso chamar camarada ao miserável judeu e fingir reconhecê-lo como seu igual, mas obedecia à sua ideologia, que pretende não estabelecer qualquer diferença entre as raças e as cores da pele, e responde apenas ao chamamento da bandeira vermelha. Utchomi engoliu a saliva e olhou desesperadamente para Hans Sauerbrunn. Fez um esforço brutal para adotar uma atitude tão severa como a dos seus superiores, mas não se conseguiu libertar da sua natureza constantemente humilhada. — Quando foi feito prisioneiro? — A doze de novembro de 1942. — Onde? — Em Estalinegrado. — Antes da capitulação do Sexto Exército? — Sim. Fui estúpido o suficiente para me perder ao ir à procura de provisões. Entrei nas linhas russas com dezassete tigelas de madeira. — Mas não se perdeu por acaso… Não era isso que desejava? Hans Sauerbrunn olhou para Utchomi com olhos assustados. Antes que tivesse podido compreender a pergunta, Vorotilov interveio, em tom mais amistoso. — Estava farto da guerra, como todos nós, e desertou, não foi? Hans negou vigorosamente com a cabeça, pois o pensamento de que o consideravam desertor
feria-o profundamente. — Por quem me toma? — exclamou. — Eu, desertar? Passar-me para os russos? Piotr Markov franziu os lábios e depois bateu em Sauerbrunn com o punho, atingindo-o entre os olhos. Hans vacilou; o sangue que lhe saltava do nariz corria para o queixo, o pescoço e a camisa, tingindo-lhe o peito de vermelho. — Vamos! — disse suavemente o comissário Kuvakino, deixando de bater nas unhas. — Não se esqueça de quem é este homem, camarada tenente. Markov conteve-se; a cólera e a satisfação que sentia refletiam-se-lhe no rosto. A visão daquele sangue alemão causava-lhe uma alegria animal, podia tê-lo bebido, deliciado. Hans Sauerbrunn apoiou-se na beira da secretária, para não perder o equilíbrio. Vorotilov atiroulhe um grande lenço, que ele apertou contra o nariz, deitando a cabeça para trás. Jacob Aaron Utchomi estava quase a chorar, e teve de engolir em seco várias vezes antes de continuar. — Onde nasceu? — Em Berlim. A voz aguda, débil e breve do comissário, elevou-se. Quando falava, cerrava as pálpebras e os lábios delgados inchavam, como os do lama que se prepara para cuspir. — Não é verdade. — Nasci em Berlim, a dezanove de setembro de 1915. — Não seria em Munique? — Não. — O que fazia o seu pai? — Era sapateiro. — É mentira! — repetiu o comissário. — Está a mentir. Porquê? — Meu Deus… Hans Sauerbrunn encolheu os ombros. O que querem de mim? Porque é que me foram buscar? Saberão que o meu irmão pertencia às SS e que o meu pai era chefe de célula do partido? Eu era chefe de grupo das SA, fazia exercícios com os meus homens ao domingo e depois bebia uns copos com eles. Muitas vezes tínhamos de pedir que nos trouxessem trajes civis, porque era proibido irmos para a rua bêbedos, com a «farda de honra». Será que sabem de tudo isto? Então, porque me interrogam? Porque não fazem o mesmo com os milhões que estavam no mesmo serviço e levantavam o braço à espera do Horst-Wessel-Lied? O que era que cantavam os rapazes de uniforme preto? «Sim, a bandeira vale mais do que a morte…» A bandeira que desfraldavam nas manhãs claras de domingo, a gritar: «Os ossos consumidos estremecem…» Aflorou-se-lhe um sorriso nos lábios, que lhe trouxe à boca o gosto do sangue. — Em que está a pensar? — perguntou o comissário. Hans Sauerbrunn estremeceu.
— Eu disse a verdade. Porque me interrogam? Que mal fiz eu? A voz tremia-lhe. A visão dos rostos severos angustiava-o. Sem querer confessar, sentia bater o coração e contraírem-se-lhe os músculos de medo. — Porque mudou de nome? — Como? — Sim, mudou o seu nome — afirmou Utchomi. — Eu? — Sim, converteu Sauerbruch em Sauerbrunn. O intérprete dispunha-se a continuar a falar, mas Vorotilov mandou calá-lo com um gesto e inclinou-se para a frente. — Vá, admita-o — disse em tom amável. — Confesse que é Hans Sauerbruch, o filho mais novo do professor Sauerbruch, o cirurgião alemão. — Filho do médico-chefe do exército alemão — esclareceu Kuvakino. Hans Sauerbrunn negou energicamente com a cabeça. — Chamo-me Sauerbrunn. O meu pai era sapateiro em Berlim. Vivíamos perto da estação de Silésia. — Não é verdade! O comissário levantou-se e pôs-se a andar à volta do prisioneiro, em círculos cada vez mais estreitos, como uma ave de rapina a rondar a presa. — O seu pai está em Berlim — afirmou, parando junto do prisioneiro. — Trabalha na Beneficência. Se confessar será imediatamente libertado. Hans Sauerbrunn cerrou os dentes. Libertado… Libertado… Era o fim da sopa de couve, do pão duro, do trabalho extenuante nos bosques, de Piotr Markov… e das cercas e torres, do inverno russo, de quirguizes e mongóis… Foi sacudido pela tentação. — Então? — perguntou o comissário. — Não sou Sauerbruch — gemeu Hans. — Vamos mandá-lo para Moscovo — alvitrou Vorotilov. — Se lá disserem que é Hans Sauerbruch, é porque é mesmo. Moscovo nunca se engana. — Chamo-me Sauerbrunn! Sauerbrunn! O preso esmurrou a secretária violentamente com o punho e rasgou a camisa. A tensão nervosa transformava-se em crise histérica. Quis atirar-se contra a parede, mas o tenente Markov bateu-lhe no pescoço com a mão aberta e Hans caiu como um saco. — Levem-no — ordenou o comissário. — Eu vou com ele. Ordens são ordens. Quatro tártaros transportaram Hans Sauerbrunn para o seu pavilhão. Os prisioneiros já estavam formados para receber as rações e a sopa de couve empestava o ar, como sempre. Os plennis não foram ter com o camarada, pois não podiam perder o lugar, sob pena de receberem só água, sem um
único farrapo de couve a flutuar. Apenas Julius Kerner e Peter Fischer, que voltavam do trabalho, se aproximaram de Sauerbrunn. — Cães! — exclamou Fischer, rangendo os dentes. — Cala-te — advertiu Kerner, dando-lhe uma cotovelada. Os tártaros atiraram Hans para cima do primeiro catre, e voltaram para a casa da guarda a rir. Karl Georg aproximou-se e reconheceu o camarada. — Meu Deus! — balbuciou. — Meu Deus! Agarrou num balde de água e num pedaço de camisa e lavou-lhe cuidadosamente o sangue da cara e do peito. Ainda desmaiado, Hans gemeu debilmente. — Sentes-te mal? — perguntou um prisioneiro, vindo do pavilhão vizinho. — Talvez. — Seja como for, hoje não comes. Posso ficar com a tua ração de sopa? — Sai daqui, porco! O outro desapareceu. Quando os restantes regressaram, Sauerbrunn continuava a gemer. Estava sentado no catre, com a cabeça entre as mãos. — Ai, o meu nariz… o meu nariz! — Vou buscar o médico — gritou Julius Kerner, que não conseguia comer a sopa. — Se ao menos soubéssemos o que ele fez! O comissário Vadislav Kuvakino comia borrego assado com feijão-verde, acompanhado pelo comandante Vorotilov. Markov olhava para o assado, a pensar, furioso, que só ficaria com os ossos. — Não sei como foi que Moscovo teve a ideia de que esse homem é filho do cirurgião Sauerbruch. Devem ter as suas razões para isso, camarada comandante, seguramente. Segundo tenho ouvido, em certa ocasião, Sauerbruch examinou Vladimir Ilich Ulianov Lenine, e isto não foi esquecido. — E se não é? O comissário comia com prazer a carne perfeitamente assada. — Então será condenado por identidade falsa: vinte e cinco anos de trabalhos forçados. — Mas ele afirmou que não é filho do cirurgião! Kuvakino encolheu os ombros, enquanto levava à boca o garfo cheio de feijão-verde. — Infelizmente, não é tão simples como possamos julgar, camarada comandante. Como foi que disse Pushkin? «O lago fundo continua a ser perigoso, mesmo depois de vazio…» Mastigou o feijão-verde. Vorotilov parou de comer e calou-se. Pensava no rosto a sangrar. Estive na escola militar, pensou, e desde o primeiro dia aprendi a odiar os alemães, mas sou um homem. Será que o Kuvakino também é? Olhou de revés para o lado. O comissário, inclinado para o prato, mastigava ruidosamente. Os
cabelos negros caíam-lhe sobre o rosto amarelado, de olhos rasgados. É asiático, pensou o outro, com um brusco sentimento de repulsa.
A noite ia bastante avançada. Reinava a calma no campo. Karl Georg regava o pequeno jardim, pois só àquela hora conseguira arranjar água. Böhler examinava as informações das enfermarias dos blocos. Depois olhou para os colegas. — Que sabem sobre isto? Estou aqui a ver: número seis mil novecentos e vinte e quatro, Hans Sauerbrunn, fratura do osso nasal. A doutora declarou-o apto para o trabalho. — A ela é que lhe deviam partir o nariz, para saber o que dói — comentou Sellnow, agarrando na informação. — É mesmo dela: «Aprovado: fratura do osso nasal. Pode continuar a trabalhar como lenhador.» Como lenhador, vejam lá! — Devia falar com ela, Werner. Hoje está de serviço, no campo. — Eu? — Sim. O nosso jovem colega não é suficientemente enérgico. Schultheiss corou, mas não barafustou. — Use o método dele: ataque com a cabeça baixa. Nada se impõe mais a esta russa do que a intransigência. — Obrigado pelo elogio — grunhiu Sellnow. Tirou do cabide o dólman remendado e saiu. Böhler seguiu-o com o olhar, esboçando um sorriso. — Daqui a pouco o pavilhão e as cadeiras vão tremer, mas Sellnow vai trazer o homem do osso nasal partido para a enfermaria. Kasalinskaya virou-se ao ver que Sellnow entrava, depois de ter batido, mas sem esperar resposta. Usava uma camisa de seda, cuja transparência pouco deixava à imaginação daquele corpo voluptuoso. Sellnow fez um sorriso irónico, fechou a porta e olhou tranquilamente para a russa. — Que faz aqui? — gritou ela. — Não vê que quero dormir? — Tenho de falar consigo por causa de um nariz. — Fora daqui! — Para ser mais exato, de uma fratura do osso nasal. É uma coisa muitíssimo dolorosa, querida colega. Este tipo de ferimento pode ser muito grave, se não for tratado. Nunca viu os lindos narizes de couve-flor dos pugilistas? Kasalinskaya curvou-se, a tremer de cólera como um tigre prestes a saltar. A camisa entreabriuse, revelando o seio esquerdo, muito branco. O sangue afluiu à cabeça de Sellnow. Avançou um passo e obrigou a médica a sentar-se numa cadeira, e ela debateu-se nas mãos dele, fulminando-o com os olhos negros. — Não me toques! — resmungou. — Vai-te embora, cão alemão!
Sellnow sentou-se em frente dela, cruzou as pernas e passou avidamente os olhos pelo seu corpo. — Declarou o prisioneiro seis mil novecentos e vinte e quatro apto para o trabalho — disse ele. — Sim — gritou Kasalinskaya, atirando o cabelo para a nuca, o que fez enrubescer Sellnow. — O homem tem uma fratura no osso nasal. — Já sei. — E manda-o para os bosques? — Não se cortam árvores com o nariz. — Não me responda com palermices, Aleksandra. — Sou a doutora Kasalinskaya! — rugiu. Toda a selvajaria russa fulgia nos olhos dela. Tremia e esfregava as mãos nos joelhos, sentindo as coxas agitar-se convulsivamente. Empalideceu de repente e duas grandes rosas vermelhas afloraram às suas faces. — Saia imediatamente! — sibilou com a voz quase inaudível pela excitação. — Sairei quando tiver declarado o prisioneiro não apto para o trabalho e ordenado a sua transferência para a enfermaria. — Nunca. Sellnow semicerrou os olhos. Parecia observar a mulher através de um binóculo. Pôs-se bruscamente de pé, agarrou-a pelos pulsos e atraiu-a, vacilante, para si. — És uma fera! — disse raivosamente. — Bruxa! O diabo em forma de mulher! Rasgou-lhe a camisa no peito. Ela batia-lhe na cara com os punhos, depois abriu as mãos e arranhou-o. O homem sentiu o rasgão das unhas e gemeu, mas deitou-lhe a cabeça para trás e beijou freneticamente aqueles lábios mornos e secos. Face àquele ataque brutal, ela deixou de se defender. Com um só gesto, Sellnow atirou-a para cima da cama e deitou-se em cima dela. Lutavam como animais. — Cão! Porco miserável! Depois, com um último grito, rendeu-se. As sentinelas bocejavam nas torres. A brisa morna agitava as árvores até à margem do Volga. O campo 5110 dormia.
O cabo Hans Sauerbrunn foi declarado não apto para o trabalho e transferido para a enfermaria. Sellnow era um homem diferente. Assobiava, tinha perdido a agressividade, estava de melhor humor e até se mostrava mais simpático com o seu antigo inimigo, o médico russo Kresin. Observações que quinze dias antes o teriam feito explodir, agora deixavam-no indiferente. Böhler olhava-o em silêncio, limitando-se a dizer, uma vez, a Schultheiss: — Oxalá dure!
Também Kasalinskaya estava diferente. Se antes era temida, agora era odiada. Tudo quanto tinha de satânico parecia explodir nela. Declarava todos os prisioneiros aptos para o trabalho, sem sequer se dar ao trabalho de os examinar. — Os alemães estão todos bem… Bem demais! — declarou raivosamente a Schultheiss, que a criticava por ter mandado para a mina um pobre homem atacado de furunculose. No entanto, todas as noites que passava no campo — e arranjava maneira de que fossem cada vez mais frequentes — soltava-se nos braços de Sellnow, com toda a selvajaria do seu Cáucaso natal. De manhã estava pálida, de olhos ardentes, animada de novo ódio contra todos os alemães, e mandava os plennis para os fossos, para os bosques, para as pedreiras e para as obras, gozando com as maldições que lhe eram dirigidas. Há uma semana que Yanina Salya estava no campo. Saía pouco, passando quase todo o tempo numa cama pequena junto da janela, ao sol, a contemplar os bosques, a estepe poeirenta, os alemães e a roupa posta a secar, que Kresin tinha feito desaparecer sete vezes, mas que reaparecia sempre. O comandante Vorotilov rendeu-se às exortações de Kresin. Só via Yanina durante o dia, para falar com ela e passear; e chegou a sair com ela uma vez, a cavalo, em direção aos bosques, onde os prisioneiros os viram passar, assombrados. Desde então correu o boato de que tinha chegado uma nova médica ao campo, dando vida à esperança da próxima partida de Kasalinskaya. Mas Aleksandra ficou e manifestou o seu poder sobre os malditos alemães, mandou chicotear três fingidores e ficou a ver os mongóis arrancar-lhes tiras de pele das costas. Depois, satisfeita, voltou para o campo e evitou encontrar-se com Sellnow. Schultheiss mantinha a maior reserva. Não tinha voltado a falar com Yanina, pois as atenções que dedicara ao aspirante, convertido no menino mimado da enfermaria, absorviam-lhe todo o tempo. Entregava-se a isso com manifesta diversão e, embora visse Yanina diariamente — umas vezes vestida de amazona, outras com um vestido de verão branco, generosamente decotado — esforçavase por ver nela apenas uma doente. Böhler entregou trezentos rublos ao major Vorotilov, para comprar um xaile novo para Bacha. Ao princípio, o comandante recebeu o dinheiro desconfiado, contou-o, pô-lo de lado e, por fim, convidou o médico a sentar-se. — Trezentos rublos! — exclamou o russo. — Admiro os alemães. Fazem dinheiro do nada. Como o conseguiram? — Fez-se uma coleta no campo. — Mas não há rublos espalhados pelo chão do campo. De onde saiu este dinheiro? É espantoso, incompreensível, o que se pode tirar de prisioneiros que estão há quatro anos atrás das cercas, que morrem de fome e que caem como moscas no inverno! Como é que se faz vergar os alemães? Não é possível com fome ou frio, nem com duros trabalhos ou castigos. — Porque é que nos quer vergar? — perguntou Böhler, aceitando o cigarro turco que o
comandante lhe oferecia. — Por princípio! — respondeu Vorotilov, olhando para a pequena nuvem de fumo azulado. — No fundo, admiramo-los. Os alemães têm muitas vezes sido mestres dos russos ao longo da história. — E como pode um princípio, esse de que o senhor fala, originar tanta crueldade? — Porque a crueldade é a única arma de que dispomos contra vocês. A vossa alma sensível, a vossa bela alma, como diz Schiller, impede-vos de cristalizarem as qualidades intelectuais em grandes decisões de política mundial. Tiveram um certo rei Frederico, a quem chamavam o Grande. Apoderou-se da Silésia. E o que lhes resta? Depois… um Bismarck… Que subsiste da sua política e do seu espírito? Também tiveram um Stresemann, um Adolf Hitler… Que foi feito deles? O que vos resta? — Vorotilov sorriu com sarcasmo. — Para nós, os russos, além dos nossos divinos artistas só há crueldade. O czar Ivan, chamado o Terrível; o czar Pedro, que mandava cravar o chapéu na cabeça de quem não se chegasse suficientemente depressa na sua presença; Catarina, Isabel, Potemkin, o czar Godunov, Dimitri… Uma montanha de crueldade e de sangue, de terror e de miséria, de violação das almas e subjugação da liberdade. Mas, intangível através dos séculos, subsiste a Mãe Rússia, o cisne melodioso do Oriente, o berço da eternidade. A Europa está degenerada, morre por ter cultivado demasiado a inteligência; devora-a o poderio intelectual, cujo domínio perdeu. A Rússia permanece jovem, e assim se deve manter, para que a crueldade e a força apaguem as rugas dos séculos. O mundo pertence aos povos jovens. — É essa, na sua opinião, a justificação da revolução universal? — Exatamente, doutor. Böhler tirou o cigarro dos lábios e apoiou a cabeça na mão direita, enquanto com a esquerda brincava com alguns rublos. — Cometeu um erro no seu inventário histórico — disse devagar. — Talvez o Ocidente esteja supercultivado, estropiado e, por isso, lhe falte energia, vontade… Mas, devido à sua inteligência, cria também armas contra a vossa revolução. Nós temos algo que mobiliza todas as reservas da alma e do corpo, e converte em mártir até o mais cobarde de todos. E esse algo é a pátria… O último conflito foi uma contenda ideológica. Vocês foram para a guerra porque Estaline ou Hitler (não vamos discutir para saber qual deles) estava possuído pela ideia dominante, devoradora, de ser todo-poderoso, o mais poderoso da Terra… César tinha fracassado, assim como Alexandre, Filipe II, Napoleão… E milhões de homens morreram por causa desse sonho… Só se tratou da pátria quando o inimigo se começou a infiltrar, depois de atravessar as nossas fronteiras, mas então só lhe opusemos um corpo exangue, que lhe foi fácil afastar do caminho. A sua revolução universal também não passa de uma guerra ideológica, e levam-na para países que não têm outra ideologia a opor-lhes senão a pátria. Mas é a mais forte, comandante! Até o mais pacífico dos homens se transforma em animal feroz quando se trata de defender a mulher e o filho, e vocês atiram-se violentamente contra esta rocha, contra o coração dos povos. A sua Rússia não está ameaçada, enquanto vocês ameaçam o
mundo. — Libertaremos a classe operária do capital. — Que será feito dos operários sem o capital? — Serão homens livres, sob a tutela do Estado. — Por outras palavras, o Estado substituirá os pretensos capitalistas… Você acredita, verdadeiramente, que seja melhor trabalhar às ordens de um pequeno grupo de dirigentes estatais, que adaptam as condições de trabalho às políticas, do que sob as ordens de um homem que talvez ganhe quatro vezes mais que os seus operários, mas que continua a ser independente, que é um homem entre homens? O comandante Vorotilov levantou-se atrás da sua secretária. — Continua a ser nazi! — exclamou com súbita violência. — Não, sou apenas um homem que tem nas suas mãos, a quem pode matar porque tem poder para isso, porque está animado por essa crueldade russa, que destrói toda a ordem, como acaba de dizer. E porque sou homem, porque honro e amo o homem sob todas as formas, quando me trata com humanidade eu respeito-o, como desejo ser respeitado. O ritmo da vida nasce desse respeito mútuo. Vorotilov não respondeu, parecia refletir. A sua expressão denunciava deceção e estranheza. Depois deu uns passos. — Ofereço-lhe os trezentos rublos, doutor Böhler — disse, parando de repente. — Poderá comprar medicamentos na farmácia do Estado, em Estalinegrado, por intermédio do doutor Kresin. — Levantou a mão para impedir que o médico alemão falasse. — Mas só com uma condição, doutor: irá, durante uma semana, para o campo exterior doze. — O dos lenhadores, se não me engano. — Esse mesmo. Ficará lá oito dias, apenas como médico. Terá liberdade absoluta; poderá permanecer no acampamento ou ir para os bosques, como desejar. Quando tiverem decorrido oito dias, voltaremos a falar. — Que espera, comandante? — perguntou Böhler, levantando-se e olhando para o seu interlocutor com olhos surpreendidos. — Uma transformação, doutor. — O seu rosto endureceu com uma expressão de ferocidade. — Quero mostrar-lhe como a crueldade pode converter a sua alma tão nobre, tão orgulhosa, num animal, num cão que nem sequer se atreve a ladrar, numa ratazana que se deixa morrer de fome em frente a um monte de manteiga. — Nós estamos indefesos, comandante — observou Böhler, subitamente. — Os russos estão-no há séculos. — Irei, comandante.
Campo doze. Bosques de Verchniaaya Achuba e Sriednie Pogromnoye; troncos que cinco homens não conseguem abarcar. Floresta virgem à beira da cidade… Em Sriednie Pogromnoye, os lobos uivam durante a noite. No inverno vagueiam pelos arredores, olhando para as cabanas dos trabalhadores com olhos brilhantes, enquanto a baba assassina lhes escorre das fauces vermelhas. O campo é composto por alguns pavilhões, cujo telhado suporta o peso de várias pedras. À volta, uma cerca de espinheiro de três metros de altura, com duas pequenas torres. Uma conduta elétrica, solitária através da estepe e das árvores, leva energia àqueles lugares. Vivem ali cento e oitenta e quatro homens, plennis, guardados por vinte e quatro russos piolhosos, esfomeados, miseráveis como os alemães. Comanda-os um sargento, bêbedo a maior parte do tempo, sempre a pedir mulheres, deitado ao sol. Passa-se na frente dele sem o ver. Faz parte do campo, tal como as latrinas e a pequena enfermaria, que Kasalinskaya esvazia implacavelmente uma vez por mês. Esse dia é sempre o mais penoso no campo doze. Nos demais, a vida decorre ali numa monotonia sem esperança: comer, beber, trabalhar e dormir. Durante o dia ressoam no bosque os machados e o estrépito produzido pela queda dos gigantes. De vez em quando, um ferido, atingido pela ramagem, ou com um corte feito pelo machado. O enfermeiro põe tintura de iodo e encolhe os ombros. Davai! Davai! O direito dos mais fortes reina nos bosques. Quem consegue chegar vivo ao fim do dia é feliz… Não se notifica a morte de quem sucumbe senão quatro ou cinco dias depois, para que os seus camaradas possam repartir as rações. Ali até a morte adquire um sentido particular: alimenta os vivos… Durante a noite, quando os lobos uivam e os mochos piam entre os abetos, tudo se apaga no campo. As sentinelas adormecem nas torres. Nunca se evadiu um prisioneiro. Para onde iria? Para o Volga? Para o outro lado do rio? E depois? A Rússia é enorme, infinita para um homem sozinho, enfraquecido e com fome. Perante aquela imensidão, o prisioneiro desfalece… Não o homem, mas a sua alma, o seu valor, o seu desejo de liberdade, a nostalgia da pátria, que lhe oprime o coração… Uma vez por semana, os troncos cortados são transportados. Chega, então, uma coluna procedente de Estalinegrado, formada por tanques de guerra americanos e potentes tratores. Carregam-se os troncos com guindastes e a braço, para depois serem conduzidos à serração. As construções da cidade exigem madeira… madeira… e lá também trabalham plennis, que acartam pedras e tábuas. É o grande acontecimento no campo. Arranjam-se cigarros, jornais, tabaco, álcool… Os camaradas da cidade podem comprar coisas na cantina e fazer trocas com os camponeses. São ricos, aos olhos dos desgraçados do campo doze; mais ricos até que o comandante Vorotilov, com o seu magro salário e a escassa comida, submetida à fiscalização do alto-comando. A esperança aumenta em cada dia… Ainda faltam três… dois… amanhã… hoje! — Como vão as coisas por Estalinegrado?
— Como vai o Peter gordo do pavilhão dezasseis? — E o Emil? Furunculose? — Apanhou-a na fábrica do cimento. Pobre rapaz! — E o Julius? Como? Transferido para Moscovo? Vão libertá-lo? Libertar! Aquela palavra arrancava lágrimas dos olhos… Bebe-se, fuma-se… — E mulheres? — Deixa-me em paz com as mulheres! — Amigos, ao domingo dão-nos porco assado! Comer, comer uma vez, comer vorazmente! — Calem-se! Põem-nos doentes! O trabalho começa. O guindaste chia, o torno geme e o tronco abate-se sobre o pesado reboque… — Tem cuidado, parvo! Quase me esmagavas o pé! O sol brilha, os corpos suam. — Davai! Davai! As sentinelas sorriem; são russos brancos, tártaros, calmucos, georgianos… O comandante Vorotilov levou o doutor Böhler num jipe. Logo que o carro entrou no campo, saltando nos buracos, a notícia correu de boca em boca. — O chefe… com um plenni. Um alto, magro. — O comandante está de bom humor; ri. — De bom humor? Santo Deus! Vai-nos fazer comer ervas! Na enfermaria, os doentes tremem de angústia. Serão as primeiras vítimas, sabem-no desde sempre. Böhler olha à direita e à esquerda, emocionado ao ver aqueles rostos. — Quantos estão aqui? — perguntou antes de pararem. — Neste momento, cento e oitenta e quatro. E o número que me deram ontem pelo telefone, mas já pode ter diminuído desde essa altura. O comandante deitou fora o cigarro. Um plenni observou aquele gesto. Esperou que o carro se distanciasse e depois precipitou-se para a beata, aspirando voluptuosamente o fumo. O sargento estava visivelmente emocionado por se encontrar à frente do seu grande chefe, o qual, sem dizer nada, lhe deu um pontapé no rabo que o fez cambalear. — Vê, doutor? — comentou Vorotilov. — Este homem está bêbedo, embora já o tenha avisado muitas vezes para não beber de mais. O álcool é racionado, mas não sei como é que ele consegue mais do que a conta. Deve trazê-lo de contrabando. Seja como for, está bêbedo. A que podemos recorrer com esta gente, senão à crueldade? E quando está no seu perfeito juízo, ainda é mais cruel do que eu… para os compatriotas, doutor. — Dirigiu-se ao sargento. — Vens comigo, prepara as tuas coisas.
O bêbedo empalideceu, tremeu, vacilou, fez menção de se deixar cair aos pés do seu superior. — Camarada comandante! — balbuciou. — Piedade! Piedade! — Esta tarde irás comigo. O sargento começou a chorar. Cobriu a grande cara siberiana com as duas mãos e chorou como uma criança. — A minha mulher! Tenho seis filhos e os meus pais doentes! Piedade, camarada comandante, piedade! Vorotilov deu-lhe uma bofetada e voltou-se para sair. O sargento caiu sobre a mesa, como se quisesse mordê-la para não gritar. — O que lhe vai fazer? — perguntou Böhler. — Eu? Nada. Vou escrever uma nota ao camarada comissário da divisão para o meter na ordem, só isso. Vai obrigá-lo a arrastar-se de barriga para baixo como se fosse uma lesma. A guarda formou na frente da porta e apresentou armas. — Está a ver? — continuou Vorotilov. — Correu a notícia de que o sargento vai ser transferido. Cada um destes homens espera ocupar o seu lugar, e todos competiram em crueldade, para serem promovidos. Crueldade para os seus compatriotas, doutor… O campo doze pode receber cento e noventa homens. Mais ou menos de três em três meses há que encher um vazio que compreende metade dos efetivos. Dirigiu-se ao jipe, fazendo um gesto de saudação ao médico. — Fique bem — disse em tom grave. — Volto daqui a uma semana. Voltaremos a falar da ideologia da força. Como médico, ninguém o importunará; poderá fazer o que melhor lhe pareça, mas veja bem o que acontece. E agora… adeus. O motor rugiu. Böhler apoiou a mão no para-brisas. — Mais uma pergunta, comandante. Há muito tempo ando para lha fazer. — Diga, doutor. — Onde aprendeu tão bem o alemão? — Na Escola Militar de Moscovo, doutor — respondeu Vorotilov, com um sorriso satisfeito. — Tínhamos instrutores alemães. Estupefacto, Böhler contemplou o jipe, que se perdia entre nuvens de pó. Ao meio-dia, um pequeno grupo de plennis regressou ao campo doze; homens encharcados de suor, sujos de resina, a sangrar de pequenas feridas. Quem os conduzia era um soldado com a baioneta colada, mas com a espingarda descarregada. Quem pensaria em escapar? Böhler passara a manhã a inspecionar o campo, acompanhado pelo sargento, que o tratava como se fosse o próprio comandante. Os pavilhões estavam limpos, como em todos os outros campos, excetuando, claro está, os piolhos, que faziam parte da mobília. A enfermaria carecia praticamente de tudo; tinha apenas um par
de tesouras, umas pinças e umas ligaduras lavadas já muitas vezes, e o enfermeiro era completamente inexperiente. Quatro doentes jaziam nos catres, cobertos com mantas rasgadas. Num canto, um balde cheio de urina empestava o ar. Böhler examinou cuidadosamente os quatro homens, que lhe contaram que alguns meses antes de se sentirem doentes tinham tido calafrios, aparecendo depois a verdadeira febre. O médico não lhes perguntou a temperatura, pois não havia termómetro, nem o número de pulsações, uma vez que o enfermeiro não sabia contá-las. Assim, limitou-se a apalpar-lhes o fígado e o baço, encontrando ambos os órgãos inchados nos quatro doentes. — Há pântanos na vizinhança? — perguntou ao enfermeiro. — Sim, a seis quilómetros daqui, no meio do bosque. — Trabalham lá? — Em toda a parte. Os nossos homens têm medo daquela região. Böhler inclinou tristemente a cabeça. Aqueles doentes de cara murcha, olhos profundamente encovados e lábios pálidos sofriam de paludismo, sem dúvida. Milhares de micróbios tinham hibernado nos seus órgãos, à espera do calor para se manifestarem. — A doutora Kasalinskaya examinou-os? — perguntou, embora já conhecesse a resposta. — Essa vigarista! — exclamou o enfermeiro, com um gesto amargo. — Deu-os como aptos para o trabalho no dia seguinte, argumentando que a suspeita de tuberculose não é doença. — É impossível! — Aqui, tudo é possível. Mas eu fiz com que os quatro ficassem no pavilhão, correndo eu o risco de que fossem descobertos. Terão de se esconder quando a Kasalinskaya voltar. Böhler saiu para o sol, que inundava o campo. O que podia fazer? O sargento aproximou-se. — Que vais fazer? — perguntou. — Fico aqui. Mais oito dias! O russo não compreendeu, mas concordou, ainda assim. Aquele plenni era amigo do comandante e o sargento, um monte de roupa suja que se atira para um canto… No estreito cérebro siberiano reviveu o antigo medo do escravo, a milenar submissão do homem da taiga… O sargento transformou-se na sombra de Böhler. O pequeno grupo de homens que ia buscar as rações apareceu junto da porta, acompanhado por um soldado, manifestando grande estranheza ao ver o médico dirigir-se para eles. Os seus rostos amarelecidos pareciam pergaminho deixado tempo de mais ao sol. — De onde vens? — perguntou-lhe um. — Ainda não tens trabalho? — Ainda não. — Foi o chefe que te trouxe, não foi? Deves ser um tipo importante. Aqui tratam-nos ao pontapé. Por acaso, não serás político, ou comissário do grupo de Seydlitz? Não gastes aqui o teu latim… a
vocês, dá-vos de comer, graças à vossa política suja … A nós dá-nos pancada e faz-nos passar fome. O preso cuspiu e virou-se. Os outros continuaram calados, para demonstrar que o seu camarada tinha expressado a opinião geral e o fogo consumidor ardia nos seus olhos encovados. Depois saltitaram como cordeiros quando a porta se abriu e o soldado deu uma coronhada nas costas de um. Sim, um rebanho! Böhler regressou ao pavilhão, para voltar a examinar os doentes. — Temos, pelo menos, uma seringa? — perguntou ao enfermeiro. — Temos — respondeu o outro, encolhendo os ombros. — E que seringa! Tirou-a de um armário, estendendo-a ao médico. Estava imunda. — É uma porcaria! — Isso é. — Mas você não tem desculpa! O enfermeiro deve, antes de tudo, manter os instrumentos limpos. Se isto acontecesse na minha enfermaria, despedia-o. — Isso é o que você pensa! — rosnou o enfermeiro, furioso. — Ainda agora chegou e já quer pôr tudo de pernas para o ar! Há anos que ninguém se interessa por nós e agora vêm envenenar-nos. — Sentou-se a um canto, acendendo um cigarro. — Limpe você! Böhler ficou petrificado, mas, lembrando-se do que Vorotilov lhe tinha dito sobre a eficácia da força, deu um passo para o enfermeiro. O outro olhou para ele por entre a nuvenzinha de fumo, semicerrando os olhos. — Levante-se! — gritou. — Vá já ferver a seringa! — Vá passear! — respondeu o enfermeiro, voltando costas. — Sou seu superior. — Então, vá duas vezes. — Vou mandar substituí-lo e é já! — E eu estou-me nas tinta — respondeu o plenni, encolhendo os ombros. — Morrer agora ou mais tarde… Toda a gente quina no campo doze. Exaltado pela ira e pela vergonha, Böhler saiu do pavilhão. Um jipe chegava com grande ruído. A sentinela levantou a grade e cumprimentou. O veículo parou, depois de descrever uma grande curva, e uma silhueta de farda caqui e botas altas de pele negra, saltou agilmente para o chão. Sobre os ombros caíam-lhe caracóis compridos. A médica Aleksandra Kasalinskaya olhou à volta e, ao ver Böhler, foi a correr para ele e parou ao seu lado, quase lhe tocando, ofegante, com o corpo a tremer. — Era verdade! — exclamou. — O Vorotilov não me mentiu. Você está aqui! — Como pode ver. — O que veio fazer a este campo? — Informar-me e convencer-me de que uma certa Aleksandra Kasalinskaya usa indevidamente o honroso título de médica.
— Vou mandar matá-lo — disse Aleksandra, com ameaçadora tranquilidade. — É o está sempre a fazer aos prisioneiros alemães. Böhler sentiu que perdia o domínio de si próprio, mas não conseguia conter-se. Olhou Kasalinskaya fixamente nos olhos e, com verdadeiro alívio íntimo, ouviu-se dizer: — O que eu tenho visto é completamente contrário ao direito internacional. — Não venha falar de direito! — O prisioneiro não deixa de ser um homem e até tem direitos, e entre eles o mais elementar é o de ser assistido na doença. Vou ser obrigado a fazer um relatório a esse respeito. — Escusa de se incomodar com isso — respondeu ela com um sorriso que era uma ameaça. — Segui sempre estritamente as instruções de Moscovo: mínimo de isenção de trabalho, máximo de severidade. — Não viu que os quatro doentes da enfermaria têm paludismo? Ainda não percebeu isso? Não conhece essa doença? A menos que não lhe tenham falado dela na faculdade… Kasalinskaya corou, semicerrou os olhos e os lábios ficaram brancos de ira. — Volte para o campo principal… É o meu conselho. Sou responsável pelo que faço aqui. — Perante quem? Perante Deus, por acaso? — Deus — respondeu Kasalinskaya com um riso agudo. — Não chateie o pobre velhote, que já tem trabalho que baste a digerir todas as preces que lhe dirigem! — Eu fico! — afirmou Böhler, cerrando os punhos. — Como queira. Então, vou mandar evacuar a sua enfermaria no campo principal. Böhler empalideceu. — Escute, doutora Kasalinskaya… — Sim! — exclamou ela, não podendo dominar-se mais. — Vou fazer desaparecer esse bordel! Será tudo destruído! — Peça imediatamente desculpa pelo que acaba de dizer! Eu não permito a ninguém, nem sequer a uma médica russa, que trate assim a minha enfermaria… — Não peço desculpa coisa nenhuma! — respondeu ela, olhando-o com ironia. — Se você informar do que se passa no campo doze, eu denuncio que na sua enfermaria se faz sexo. — Quem? Quero saber. Aleksandra respondeu: — O seu adjunto. — O Sellnow? — Sim, e comigo. Há mais de uma semana, quase todas as noites. Não passa de um porco, mas tem a força de um touro. Quando me agarra, podia despedaçar o mundo… Mas vingo-me quando amanhece. Então toda a gente tem de pagar… Aqui no campo doze, como nos campos dezasseis ou dezanove. Cada beijo é um homem declarado apto para o trabalho; cada suspiro deixa uma cama
livre na enfermaria. Böhler deixou cair os braços ao longo do corpo. «A minha enfermaria… há mais de uma semana… O Sellnow… É horrível. Se o Vorotilov ou o Kresin descobrem, a Divisão de Estalinegrado, Moscovo…» Fechou os olhos, assustado pelas inevitáveis consequências, e não reparou que Kasalinskaya lhe tocava. Só recuperou o autocontrolo quando ela lhe bateu na tíbia. — Fazemos um acordo? — perguntou Aleksandra. — É suficiente? Está muito pálido, meu caro. «Vorotilov!», pensou Böhler. «A nossa força reside na crueldade, no sacrifício do indivíduo ao interesse geral.» — Denuncie-o, doutora Kasalinskaya — respondeu, baixando a cabeça. — Vamos arrastá-la connosco na desgraça, uma vez que tolera as investidas de Sellnow… — Violou-me; sim, violou-me… — Todas as noites? — Todas as noites me deixo violar — exclamou Aleksandra, a rir — e, quando não o faço, levanto-me ainda mais furiosa… Mas prove-o, doutor Böhler. Eu vou dizer que o Sellnow me sujeita com brutalidade e pode ter a certeza de que acreditarão mais facilmente numa médica russa, velha comunista, que em dez mil plennis piolhosos. — Tem razão — disse Böhler, tentando retirar-se. Mas ela deteve-o. — Vai regressar? — Pelo contrário, fico. — Quer tornar-se um mártir? — Não. Só quero exercer medicina… se é que sabe o que isso é. Kasalinskaya dirigiu-se rapidamente para o posto da guarda, encontrando ali o sargento, que se catava ao sol. — Boneca — disse-lhe —, vem ver o Ilich Stufanov. Esse porco mongol deve ter blenorragia… Sempre que urina põe-se a gemer. Aleksandra deu uma sonora bofetada no siberiano, mas ninguém prestou atenção. O sargento sorriu. Aquela mão era preferível à do comandante. Meu Deus, a Mãe Rússia é mais madrasta, mas tem coração… O seu rosto largo animou-se ao descobrir um piolho gordo num vinco dos calções sujos. Deliciado, esmagou o inseto entre as unhas dos polegares. Na enfermaria, o enfermeiro estava a ferver a seringa e a chegada de Kasalinskaya sobressaltouo. Saiu para o exterior sem fazer barulho, evitando encontrar-se com Böhler, que estava sentado junto dos doentes. — Tranquilizem-se — dizia-lhes Böhler. — Não têm de se levantar para se esconderem. Estão
mais doentes do que julgam. Irão para a enfermaria principal… dentro de poucos dias. — Essa mulher vai correr connosco a chicote — respondeu um deles. — Já o fez… E tiraram-nos cem gramas de pão por dia. «Os famosos cem gramas!», pensou Böhler. «O xaile de Bacha, com o qual cosemos o aspirante, custou setecentos gramas de pão por homem e trezentos rublos.» Depois lembrou-se de Vorotilov. «Só se verga o homem pela força…» A porta abriu-se com força, e Kasalinskaya apareceu. Atrás dela, o sol fazia realçar a graça dos seus caracóis e das pernas metidas nas altas botas de couro. Tinha um chicote na mão. — Quem está doente aqui? — gritou, sem se mexer. O enfermeiro voltou a aparecer, perfilou-se e saudou como no quartel. — Quatro homens. — O que têm? — Distrofia, icterícia e suspeita de tuberculose. — Isso não são doenças! Fora da cama, todos! Alinha-os à frente do barracão. Têm um minuto. Fechou a porta com estrondo, ouvindo-se os seus passos que se afastavam. Böhler fez sinal aos doentes, que queriam levantar-se. — Deixem-se estar deitados, eu saio. Vocês estão doentes. Passou pela frente do enfermeiro, que tremia, e saiu. Kasalinskaya estava a dez passos de distância, com um relógio na mão, a contar os segundos. Quando terminasse o tempo concedido, voltaria a entrar com o chicote. Böhler avançou até três passos dela, juntou os tacões como o enfermeiro e ergueu a mão para a saudar. — Informo-a de que temos quatro doentes — disse. Kasalinskaya levantou o olhar, guardando o relógio no bolso. — Sou representante deles, na qualidade de médico — acrescentou. — Ordenei-lhes que ficassem na cama. Aleksandra baixou os olhos, afastando-se depois. Uns instantes mais tarde, o jipe partia, entre uma nuvem de pó. O enfermeiro estava junto à porta, contemplando o carro que se afastava, e depois pôs os olhos em Böhler. — Foi-se embora! — balbuciou. — Foi-se embora! — Então, bruscamente, pôs-se a postos. — A seringa está fervida, doutor — disse entusiasmado. — Posso fazer alguma coisa por si, herr doktor?
Quatro dias mais tarde, o comandante Vorotilov fez uma breve visita ao campo doze, chegando no preciso momento em que Böhler se preparava para dar uma injeção a um doente.
— Atabrina? — estranhou o comandante, ao ver a ampola vazia junto da cama. — De onde a tirou? — Encontrei-a por acaso. É um produto americano. Por outro lado, não sabia o que ia encontrar aqui, mas que o que vi ultrapassa sem dúvida todas as minhas expectativas. A condição dos prisioneiros não pode ser qualificada de humana. Vorotilov sentou-se na beira da cama a olhar para a cara macilenta do doente que apanhava a injeção. — Porque estás aqui? — perguntou com dureza. — Porque roubei, meu comandante. — Que é que roubaste? — Duzentos gramas de pão. Tinha fome. — Os outros também têm! Já se deu ao trabalho de perguntar a esses homens porque estão no campo doze? — perguntou Vorotilov ao médico. — Não — respondeu o interpelado. — Porque havia de o fazer? Mesmo que fossem assassinos, o que aqui passam é um castigo cruel demais para qualquer delito. — Tem os nervos sensíveis, doutor — observou Vorotilov, com um sorriso divertido. — Existem campos piores, Kasymskoye… — Já ouvi falar. É uma vergonha para a Rússia. — E o mundo cala-se porque somos fortes. — Não se cala; acusa-os. — No papel! E nós colocamos esse papel nas latrinas dos tártaros, enquanto Kasymskoye continua a existir… Quem nos pode obrigar a acabar com ele? Os Estados Unidos? A Inglaterra? A França, que treme de medo? Meu caro doutor, o Ocidente está podre como uma pera que caiu da árvore há muito tempo. Que venha uma terceira guerra, inclusive com as armas americanas! O Ocidente vai afundar-se na imensidão da Rússia. A terra engole os homens, como as areias engolem a água do mar, e a Rússia sobreviverá porque um dia há de ser o centro do mundo. Será a concretização do sonho de Pedro, o Grande! — Vamos começar de novo? — perguntou Böhler. Levantou-se, tapou o doente, entrou no quarto contíguo, lavou as mãos numa bacia de lata e agitou-as para secarem. — Ainda não estou tão fraco que lhe dê razão — acrescentou. — Faltam quatro dias — observou Vorotilov com um sorriso. — Não lhe daria razão nem que faltassem quatrocentos. — Por princípio? — Sim. — Falta-lhe objetividade.
— E a si, comandante? Vorotilov esticou o lábio inferior e franziu o cenho. O seu rosto carnudo, de olhos inteligentes, adquiriu por um instante uma expressão de espanto. Depois dirigiu-se para a porta. Böhler acompanhou-o. — Corre tudo bem no campo. O doutor Von Sellnow gere a enfermaria, o doutor Kresin ajuda-o e o seu jovem colega continua a tratar de Yanina. Böhler baixou o olhar para o chão poeirento. Yanina e Schultheiss. «Queira Deus que ele se porte de maneira diferente de Sellnow! Se o comandante Vorotilov acordasse do seu sonho, o campo inteiro teria um fim horrível.» — E Kasalinskaya? — perguntou Böhler, circunspecto. — Está relativamente calma, mas todos os dias discute com o adjunto. Ontem atirou-lhe uma cadeira, que saiu pela janela e feriu um soldado. O adjunto respondeu enchendo o soldado de vendas e talas e enviando-o depois à Kasalinskaya para que o dispensasse do serviço. — E o que fez ela? — Deu-lhe uma semana de baixa! Quando o Sellnow soube, tirou as vendas e as talas do homem e mandou-o embora. Vorotilov soltou uma gargalhada, mas Böhler continuou com ar grave. Sellnow estava a exagerar e um dia podia acontecer uma catástrofe. O amor de Kasalinskaya acabaria por arrefecer, resultando na ruína geral da enfermaria. — Será possível transferir o Sellnow para outro campo? — perguntou. — Porquê? — perguntou Vorotilov, sinceramente admirado. — Tem alguma coisa contra ele? — É uma questão completamente pessoal. O Sellnow precisa mesmo de mudar de ares, nem que seja só por seis meses. — Só Moscovo pode autorizar as transferências. Para fazer uma proposta dessas, teria de apresentar razões importantes. Böhler olhou pensativamente para o bosque onde brincavam os raios de sol. Surgiu um trator na vereda, arrastando um tronco grosso. — Não podia dizer que a nossa enfermaria tem médicos a mais e que o doutor Sellnow está disponível por algum tempo? — Mas isso não é verdade! — Por enquanto. Mas eu gostava que se afastasse do campo. — Discutiu com ele? — Não, damo-nos até muito bem. Trata-se meramente de motivos pessoais, que me fazem desejar… como é que eu posso dizer?… afastá-lo. Descontrolou-se um pouco dos nervos, nestes últimos tempos, e vai acabar por se descontrolar completamente… — Não compreendo, doutor.
— Nem eu compreendo muito bem o Sellnow, mas, mais tarde, essa compreensão há de ser certamente penosa. Considero-o bom médico e excelente camarada, mas… — Böhler fez um sorriso forçado — … a sua Rússia venceu-o. — Vamos! — disse Vorotilov, sem continuar a conversa. «A Rússia venceu-o?», pensava, enquanto continuava o seu caminho. «Que quer isso dizer? Vou ter de interrogar o Sellnow.» Da vereda vinham quatro homens, com um ferido às costas. Vorotilov acenou para eles com o queixo. — Os seus negócios estão a prosperar, doutor — observou. — Eu não tenho material para tratamentos, nem unguento para as feridas, nem éter, nem fenol, nem ligaduras com gesso. — A doutora Kasalinskaya está encarregada dos campos exteriores. Vou avisá-la. — Diga-lhe, por favor, que preciso de uma caixa de primeiros socorros, provetas, três seringas e, sobretudo, anestésicos amanhã de manhã, o mais tardar — disse Böhler, reforçando o pedido com um olhar implorativo. — Se a doutora Kasalinskaya não nos der essas coisas, ela… Sim, diga-lhe assim: cometerá um crime contra os homens deste campo. — Assim farei — respondeu Vorotilov. — Na verdade, sou muito condescendente para consigo. Não sei porquê, pois não passa de um prisioneiro, um alemão, um inimigo. Devia tratá-lo como um farrapo, mas trato-o como a um camarada. As altas esferas julgariam mal a minha atitude, se soubessem dela. — Então você também seria vítima dessa crueldade que aprova — respondeu Böhler, a sorrir. — Sem dúvida. Vorotilov subiu para o jipe. O condutor era um mongol pequeno, que sorriu para o médico. É tão difícil esquecer, quando o homem é dotado de sensibilidade. O motor rugiu, Vorotilov enfiou o gorro e Böhler apoiou a mão no para-brisas. — O sargento continua aqui. Espera a sua guia de marcha. Há quatro dias que tem as coisas preparadas. Quando é que o leva? — O diabo que leve os alemães todos! — grunhiu Vorotilov, olhando furiosamente para o médico. Deu uma cotovelada ao mongol e o jipe afastou-se, levantando uma nuvem de pó.
Uma serra fizera uma ferida de sete centímetros entre o segundo e o terceiro dedo do pé. O homem, que os camaradas transportavam, gemia e abanava a cabeça de dor, e tinha as pernas banhadas de sangue. Böhler abriu os lábios do corte e teve tanta consciência da gravidade da ferida que, naquele
momento, se envergonhou, perante Deus, de ser homem. Sem anestésicos! Sem instrumentos cirúrgicos! O enfermeiro correu a colocar um saco limpo em cima da «mesa de operações». Böhler pensou na navalha de bolso e fechou os olhos por um instante. Como curar aquela ferida horrível? — Tens gesso? — perguntou em voz baixa. — Tenho, doutor, mas não há ligaduras próprias. — Sabes fazer umas com gaze? — Sei — respondeu o outro, orgulhoso. — Então faz, depressa. Prepara uma dúzia e traga-me água muito quente. Os quatro homens olharam, assombrados, para o plenni desconhecido. Deitaram o ferido numa maca livre, e secaram depois o suor das suas caras empoeiradas. — Quem és tu? — perguntou um deles. — És médico? — Sim. Sou o major Böhler, médico. — Vimos do campo dezasseis, do outro lado do bosque, perto do pântano. É um buraco indecente, doutor. Ouvimos dizer que havia aqui um médico e por isso trouxemos o Karl. Vamos lá ver, dissemos. Se houver, tanto melhor para ele; se não, tanto dá morrer no campo doze como no dezasseis. — O Karl perdeu muito sangue e com certeza vai apanhar tétano. Eu não tenho nada aqui, exceto alguns medicamentos e as minhas mãos. Os quatro homens olharam-se aturdidos. — Na verdade, seria melhor que isto acabasse de vez — observou um deles. — Dar um pontapé a um russo e fazermo-nos fuzilar. Assim acabava-se tudo. — Isso é precisamente o que eles querem, parvalhão — respondeu o outro. — Cerra os dentes e aguenta. O enfermeiro entrou com as ligaduras e, atrás dele, um dos doentes de paludismo, com uma tigela de água a ferver. Böhler falou à parte com os quatro homens. — Isto vai ser muito doloroso para o ferido — murmurou —, porque não tenho nada para o anestesiar. Têm de o agarrar com muita força. Vai doer imenso, mas, se não lhe limpo a ferida, morre de infeção. Segurem-no bem. Os homens aproximaram-se da mesa e agarraram o camarada, que nem reagiu, tantas eram as dores. Böhler indicou ao enfermeiro a forma como devia colocar o pé. O ferido gritou quando o médico o lavou com água quente e os camaradas só o conseguiram segurar com grande dificuldade. Böhler operou com a rapidez de um relâmpago. Amputou um dedo, já quase cortado pela raiz, com uma navalhada e depois cortou as tiras de pele nas bordas da ferida. O homem sofria horrivelmente. — Deixa-me, deixa-me! — gritava. — Meu Deus! Não aguento mais!
Agarrando o pé com uma mão, Böhler ligou-o rapidamente com a outra, ajudado pelo enfermeiro, e toda a operação foi efetuada em dois minutos. Depois o médico pôs a mão na testa do ferido. — Já está — disse-lhe. — Vais ficar bom depressa, mas isto tinha de ser feito, compreendes? Com os olhos cheios de lágrimas, o homem agarrou-lhe a mão e apertou-a. Böhler molhou as ligaduras em água fria, ligando o pé com elas. — Quando a ligadura estiver seca — explicou —, cortamo-la por cima e por baixo, para dar espaço à ferida. Pode ser que encontremos alguma coisa que possa servir de tesoura. Se não, usamos a navalha. — Sim, doutor — respondeu o enfermeiro, olhando-o com olhos em que se refletiam um respeito e uma admiração infinitos.
Ao mesmo tempo, na enfermaria central, Von Sellnow discutia com o comissário político Vadislav Kuvakino e com o tenente Piotr Markov por causa de Hans Sauerbrunn, a quem o comissário insistia em levar para Moscovo. Sellnow não teria vencido, nem sequer se atreveria a travar aquela batalha, se não tivesse recebido a súbita e inesperada ajuda de Kasalinskaya. Ela disse niet a Kuvakino e declarou que o cabo Sauerbrunn não podia ser transportado. — Por causa de uma pancada tão pequena? — objetou o comissário. — Como pode uma bofetada ter feito tantos estragos? Aleksandra franziu o rosto. O seu ar altivo irritou o tenente, mas dominou-se, porque o comandante se encontrava presente. — Uma bofetada? — perguntou ela. — Quer que lhe mande partir o nariz para compreender? Kuvakino empalideceu. — Ajude-me o senhor! — implorou ao comandante, tremendo, exasperado. — Eu não passo de comandante do campo. Em termos clínicos, só os médicos são responsáveis. — Mas tenho de levar o Sauerbruch para Moscovo! — Esse homem chama-se Sauerbrunn, na verdade — sublinhou Sellnow. — É esse o apelido que consta da caderneta militar. — É falso! Se Moscovo diz que se chama Sauerbruch, o seu apelido é mesmo Sauerbruch. — É pena que em Moscovo não te chamem «palerma» — grunhiu Sellnow, entredentes. Kasalinskaya tocou-lhe com o pé debaixo da mesa. O tenente Markov cerrou os punhos e o comissário limpou o suor da testa. — Levo-o, mesmo com o nariz partido — disse este último. — Responsabilizo-me por tudo. Tem de ir para Moscovo. — Niet — repetiu a médica. — A camarada Kasalinskaya aprendeu a gostar dos alemães — disse Markov, com um sorriso
escarninho. — Se não me engano, vai ao campo doze com mais frequência do que antigamente. — Obedecendo às minhas ordens — interveio Vorotilov. Markov ficou enfurecido. Sellnow olhou de lado para Kasalinskaya e, ao ver nos seus olhos um brilho de triunfo, pensou em qual seria a razão para a mudança de atitude da médica, mas não a descobriu. — Comunicarei a Moscovo — ameaçou Kuvakino. — Não se aborreça — respondeu Aleksandra, encolhendo os ombros. O comissário marchou para o edifício do comando e Markov seguiu-o, tal como Vorotilov, este último mais devagar. — Porque é que fizeste aquilo? — perguntou Sellnow, estupefacto, a Kasalinskaya. — O Sauerbrunn é perfeitamente transportável. Sabes isso tão bem como eu. — Mas é claro — respondeu ela. Os dentes brilhavam-lhe por entre os lábios macios. — Fiz isso exclusivamente por ódio a ti. — Por ódio? Estou comovido, minha querida. — E bem podes estar. Amanhã de manhã, depois de o Kuvakino se ter ido embora, vou declarar o Sauerbrunn apto para o trabalho nos bosques. Sellnow estremeceu e seguiu-a com o olhar, enquanto ela se afastava, com movimentos ondulantes. — Porca! — grunhiu o alemão. — Deviam estrangular-te! No dia seguinte, Aleksandra Kasalinskaya foi de jipe para o campo doze. Não tinha sido estrangulada durante a noite, mas Sauerbrunn também não foi declarado apto para o trabalho. Piotr Markov acabava de ter uma semana má, e entretanto desabrocharam novamente flores no pequeno jardim do cabo Karl Georg, e mais bonitas do que nunca! Até havia arbustos, cuja cor clara dava um pouco de vida à sombria parede do pavilhão. Markov correu ao encontro de Vorotilov. — Estamos num campo de prisioneiros, ou num parque? — perguntou. — Num campo de prisioneiros florido — respondeu o comandante, deixando o tenente sem fala. Julius Kerner, infatigável organizador do pavilhão e de todo o bloco, arranjou uma nova fonte de receita para os plennis. Com pedaços de couro, trazidos pelos que trabalhavam nas fábricas de calçado, confecionavam sandálias, sapatilhas, porta-moedas e carteiras durante a noite; e até flores artificiais, que os soldados da guarda disputavam, desejosos de as oferecerem às suas amigas, filhas dos camponeses. O pavilhão obteve assim, rapidamente, quatrocentos rublos e Peter Fischer, que trabalhava em Estalinegrado, ficou com a tarefa de comprar uma corneta. Certa noite, depois de passar revista, o tenente Markov quase perdeu as estribeiras e o gorro ao ouvir os sons estridentes que saíam de um pavilhão. Alguém soprava num instrumento, e o oficial saiu a correr do posto da guarda. Fez-se silêncio imediato. Markov encontrou-se sozinho no grande pátio central do campo.
— Quem está aqui a tocar corneta? — perguntou, espantado, entrando de novo no posto. Nas janelas, os soldados sorriam. Karl Georg acariciou as suas arvorezinhas, Julius Kerner assobiou uma cançoneta e nem as sentinelas no alto das torres conseguiram conter o sorriso, observando, com interesse, os acontecimentos. — Quem está a tocar corneta? — repetiu Markov, vermelho de raiva. Depois, saiu, tirou um apito do bolso e soprou energicamente. Chamada extraordinária… Reunião imediata de prisioneiros. — Já os ensino, cães alemães! Os plennis saíram a correr dos pavilhões, levantando nuvens de pó, e formaram. Piotr Markov colocou-se na frente deles. — Vão ficar aqui até eu encontrar a corneta — gritou. Depois, chamou quatro soldados e passou metódica revista aos pavilhões, começando pelo de Julius Kerner. Revolveu tudo… O pavilhão seguinte… Dois pavilhões mais… cinco… dez… Nada. Markov chegou à porta da enfermaria, onde o doutor Kresin o observava, desconcertado. O médico levantou os braços, gritando ironicamente: — Piedade, camarada tenente! Não fui eu quem tocou a corneta. Reprimindo um palavrão, Markov foi a correr para a Kommandantur. Uma hora depois, os prisioneiros puderam voltar para os seus pavilhões e a tranquilidade foi restaurada. Mas mal o pó que os seus pés tinham levantado acabou de pousar no chão, as estridentes notas da corneta voltaram a soar. No seu quarto, o tenente Markov descarregou dois fortes socos sobre a mesa. Chorava de raiva.
No campo doze, Kasalinskaya, sentada junto do ferido, examinava o pé cortado pela serra. O homem tinha febre e a ferida supurava, como o doutor Böhler temera. — Pensa declará-lo apto para o trabalho? — perguntou. Aleksandra levantou-se. — Pode trabalhar com as mãos, se o mandar atar a uma árvore — acrescentou o médico. — Temos de lhe amputar o pé — respondeu ela em tom seco. — Mas só porque os serviços médicos aqui são inexistentes. Vamos fazer deste homem um aleijado, porque os russos, os vencedores, que estão sempre a falar dos direitos do homem, desprezam profundamente o indivíduo, os miseráveis e os prisioneiros. — Se continua a falar nesse tom de voz, vou-lhe à cara — ameaçou ela, com voz glacial. — Mande imediatamente este homem para o campo principal. O Sellnow trata dele. Böhler acendeu um dos cigarros que Kasalinskaya lhe tinha deixado na última visita, aspirando o fumo voluptuosamente.
— Tenho uma coisa para si — anunciou ele, estendendo-lhe uma lista, que ela agarrou enfastiada e leu. — O que faço eu com isto? — São os nomes de trinta e sete prisioneiros deste campo — respondeu Böhler com ironia. — Apanharam paludismo no ano passado. Atualmente, têm os vírus a desenvolver-se no baço e no sistema reticuloendotelial (se é que já ouviu falar nisso) e não tardarão a manifestar-se. Temos de afastar estes homens daqui, não só no interesse deles, mas também no dos seus camaradas e dos soldados russos. Cada picada de mosquito pode transmitir o paludismo… Espero que saiba o que isso significa. Kasalinskaya apressou-se a sair do pavilhão. Böhler foi atrás dela. — Onde vai? — perguntou. — Volto para o campo — respondeu ela. — Leve a lista. — Não. — Sim. Mostre-a ao doutor Kresin e explique-lhe do que se trata. Não podemos deixar que os prisioneiros se contaminem uns aos outros. — A guerra foi um crime contra a humanidade. O cativeiro é o castigo justo para esse crime. — Porque se inflama tanto, Aleksandra? Ao ouvir o seu nome próprio, a médica virou-se, ofegante, com uma expressão de assombro. — Está sempre contra nós, os alemães, e o seu niet equivale a uma sentença de morte… Mas surpreende-nos muitas vezes com uma insuspeitada gentileza. Porque se inflama sempre antes? Defende-se do seu bom coração, Aleksandra? A médica fechou os olhos por um instante e o seu bonito rosto ruborizou-se. Recuperou depois o autocontrolo e afastou-se com passos firmes. Quando já estava na estrada e o jipe ultrapassou a coluna de prisioneiros, que a olhavam com ódio, enxugou os olhos com a mão. O meu coração? Quem é que alguma vez quis saber do meu coração? Nem os meus pais, nem os professores! Nem sequer o Karlov, que me violou em Kazan quando eu tinha dezassete anos… Nem Ivanov, nem Piotr, nem Julian, nem Sergei, nem homem algum… Nem sequer o Werner! Não!, ninguém, ninguém! O meu coração?… Tenho coração? Não foi morto pelo frio que me chega de todos os homens, ou da voracidade com que me possuem, para depois me deitarem fora como um osso já roído? O que é que o Böhler sabe do meu coração? Será que o vê? Reconhece-o? Saberia encontrá-lo? O bosque tornou-se mais claro e de repente surgiu a estepe. O ar cintilava ao calor, o motor ronronava e um abutre andava às voltas no céu azul.
O sargento do campo doze saiu do posto da guarda com os braços cheios de pacotes, que deixou sobre a mesa, junto a Böhler. — De onde saiu isto? — perguntou o médico, admirado. — Trouxe a camarada doutora — respondeu o russo com um grande sorriso. — Está aí tudo o que deseja… Medicamentos… agulhas… seringas… tesouras… anestésicos… ligaduras… Tudo! Böhler pôs a mão nos pacotes e olhou para o bosque pela janela aberta. O pó levantado pelo jipe flutuava ainda sobre o caminho.
SEGUNDA PARTE
A primeira neve cobria os bosques e a estepe, e o vento frio, vindo da Sibéria, estendia o seu sopro gelado sobre a planície do Volga, por cima do Cáspio e dos Urais. O Don começava a congelar. Os lobos uivavam de noite e vagueavam pelos pátios dos kolkhozes. No campo 5110 tinham sido distribuídas as fardas de inverno: dólmanes forrados, gorros de pele, botas com sola de feltro, peúgas forradas e luvas. Dos bosques explorados pelo campo doze chegavam grandes quantidades de madeira. Tinha sido colado papel na maior parte das janelas dos pavilhões e as gretas estavam tapadas com barro. Os prisioneiros já conheciam as tempestades e os temíveis frios do inverno russo, que tinham enfrentado sem proteção, em uniforme de verão, tal como estavam no momento da sua captura. Então, a única defesa consistia em encostarem-se uns aos outros. O rosto de Yanina empalideceu com as primeiras neves. Engordara durante os últimos meses, mas a angústia da doença e a certeza de que não tardaria a morrer não desapareciam dos seus olhos. Conforme o desejo de Böhler, Sellnow tinha sido transferido para o campo de Estalinegrado, em plena cidade, para se ocupar dos prisioneiros que ali trabalhavam. Aleksandra ressentiu-se muito com a sua ida, fazendo recair todo o seu ódio sobre o comandante Vorotilov. Deixava-o plantado enquanto falava, ou saía da sala quando ele entrava, coisa que Kresin observava, de sobrolho carregado. O aspirante, já curado, tivera alta, e dormia num pavilhão do bloco dezassete, onde fazia pequenos trabalhos, além de dirigir um grupo de teatro que, no Natal, iria representar uma peça escrita por um plenni. Julius Kerner tocaria então um solo de corneta, que todas as tardes, protegido por uma autorização concedida pelo comandante Vorotilov, ensaiava energicamente, na altura exata em que o tenente Markov fazia ronda. Karl Georg tapara as ramagens dos arbustos no seu pequeno jardim, à espera da chegada de outro bonito verão. Um verão na Alemanha, porventura? Todos pensavam nisso… A esperança dava-lhes forças para aguentarem a miséria, mas falavam pouco, porque perante aquele pensamento se lhes humedeciam os olhos, e o coração quase rebentava. Informando-se discretamente junto dos médicos que mantinham boas relações com a direção do campo, os prisioneiros souberam que no Natal de 1948 seriam feitas repatriações. Em primeiro lugar, os doentes e os incapacitados … Uma noite, Peter Fischer e Karl Möller falavam animadamente com alguns do seu pavilhão,
depois da ronda do tenente Markov. A neve recém-caída, branca e aveludada, estalava debaixo dos pés das sentinelas. O céu estava claro e as estrelas brilhavam, como flores de gelo, sobre o bosque. — Se aderíssemos ao Partido Comunista — disse Peter Fischer, olhando à volta —, rapidamente nos libertariam. — Isso julgas tu! — replicou Emil Pelz, o enfermeiro, que enrolava um cigarro de makhorka. — Quando nos caçarem, não nos soltam logo. Antes de tudo mandam-nos para a escola, em, Moscovo, para nos converterem em bons comunistas, e depois, seremos enviados para a zona soviética, onde teremos de dançar conforme a música e, se nos recusarmos, partem-nos a cara. Não, eu prefiro esperar mais um ano. — Segundo ouvi dizer, este inverno ainda vamos ter menos comida — disse Möller. A notícia produziu efeitos desmoralizantes. Comer… isso era o mais importante. A vida continuava a ser suportável se cada um se conseguisse alimentar, mais ou menos. Era a fome que produzia o desespero, o desmoronamento, a terrível ruína. — Quem te disse? — perguntou Julius Kerner. — O piatial. Já recebeu uma lista do rancho para o inverno. Um litro de sopa por homem e por dia, e quatrocentos gramas de pão! — Os do Vorotilov comem carne — observou Peter Fischer. — Vi eu. — E de vez em quando vamos ter de dar um beliscão no rabo da Bacha por uma colher de gordura — exclamou Julius, saltando do catre. — O que disseste, Peter? Põem em liberdade os que aderem ao Partido Comunista? — É o que consta. — Rapazes, temos de pensar — disse Kerner, abanando a cabeça. — A nossa pele vale mais que um cartão sujo do Partido. O cartão podemos queimá-lo, mas é preciso conservar a pele. Porque não havemos de cantar a Estaline, se nos derem mais de comer e nos mandarem mais depressa para casa? Depois… logo se vê. Primeiro temos de regressar à Alemanha e de comer convenientemente. — Olhou para os camaradas. — O que estará a acontecer na Alemanha? Não voltei lá desde a primavera de quarenta e dois, quando me deram licença para convalescença. A minha Elsa escreveume para Estalinegrado, dizendo-me que estava grávida… Depois foi o fim … Nem sequer sei se tenho um filho ou uma filha. Karl Georg olhava para o teto. A imagem da pátria passava-lhe diante dos olhos… A planície ondulante, com os pássaros gigantes e silenciosos no imenso céu azul… O planador eleva-se, estremecendo sob um sopro de vento, e desliza como uma flecha de prata… — Estávamos debaixo de um arbusto, da última vez — recordou-se ele. — Foi o último dia de férias. E ela gemia… — Cala-te! — gritou Julius Kerner, torturado. Karl Möller reclinou-se sobre a mesa e os seus olhos, enevoados, fitaram, um após outro, os
camaradas. — Teríamos de nos apresentar todos em grupo? — perguntou um deles. — Sim. Talvez nos libertem! Rapazes, podemos passar o Natal em casa! Debaixo da árvore! Tenho duas filhas, de sete e doze anos. Eu toco piano e elas cantam com a minha Trude. As velas crepitam… O ar cheira a abeto, bolos, nozes e maçapão. Os sinos tocam… — Cala-te! — gritou Julius Kerner, levando as mãos aos ouvidos. — Não posso ouvir falar nisso! Pálido, Peter Fischer mordeu o lábio inferior. Depois levantou-se, correu a deitar-se no catre e, com o corpo todo a tremer, voltou a cara para a parede. — Que tem ele? — perguntou Georg em voz baixa. — Ia casar-se na próxima licença. Depois mandaram-no para Estalinegrado… Os outros calaram-se. Os seus espíritos encontravam-se a milhares de quilómetros dali, perdidos nas ruas cobertas de neve ou nos prados floridos, em casas estreitas ou nos grandes bosques… Ela tem cinco filhos… Receberá a pensão…? A fábrica foi destruída em 1942… Será que o meu cunhado a reconstruiu? E as minhas rosas? Meu Deus, que vida esta! Hoje, meio quilo de pão e um pedaço de manteiga seriam o paraíso. Peter Fischer deu um soco na mesa. — A vida é uma merda! Vou filiar-me no comunismo. Vou ter com o comandante. — Eu também — afirmou Julius Kerner. — Com a tua corneta ou sem ela? — perguntou alguém. Riram. Foi uma pausa, um descanso… Várias mãos bateram amistosamente nas costas de Kerner. — Leva-a, Julius! — gritou o outro. — Podes tocar a Internacional! Karl Möller saltou para cima da mesa. — Cantemos! — gritou. … Bem unidos, façamos Desta luta final, Numa terra sem amos, a Internacional… As vozes elevaram-se na noite nevada e o tenente Markov, que lia um conto de Paustinov, no Pravda, franziu a testa. O comandante Vorotilov não ouviu. Sentado junto ao seu recetor de rádio escutava a Europa. Onda curta… Berlim. Uma valsa flutuava na atmosfera cálida, um tenor cantava uma suave melodia! Franz Lehar, O Conde de Luxemburgo. Yanina Salya estava acocorada junto dele, de pernas cruzadas a mordiscar uma bolachinha. O
rosto de Vorotilov brilhava de prazer. — És tão bonita! Ela aquiesceu em silêncio: tinha medo. Perto de Kasalinskaya, Böhler examinava as informações dos campos exteriores, quando Kresin, sorridente, assomou à porta. Parecia de excelente humor. — Os seus compatriotas são magníficos — gritou —, o futuro da Europa está neles! — Avançou como um elefante dirigindo-se ao banho e deixou-se cair numa cadeira. — Esta manhã, três pavilhões inteiros pediram para ser recebidos pelo comandante. — Doentes? — perguntou Kasalinskaya. — Não. Querem ingressar no Partido Comunista! Böhler levantou os olhos, mas a sua cara alongada estava inexpressiva. — Está a brincar, doutor Kresin. — Pergunte ao Vorotilov. Vai mostrar-lhe a lista dos novos revolucionários. Ah! — Transbordava de satisfação. — O seu melhor enfermeiro é um deles. — O Emil Pelz? Impossível! — Não diga isso, já assinou, e todo o pavilhão modelo o fez também… O jardineiro, o corneteiro insolente, o pretenso filho de Sauerbruch… Todos! Böhler levantou-se e o seu olhar cruzou-se com o de Kasalinskaya. Nos olhos da mulher leu uma alegria perversa e um triunfo silencioso. «Será sempre russa», pensou. «Nada a pode mudar… Nem o amor, nem o sofrimento, nem um choque moral… Pertence à Rússia como o Don, o Volga, os Urais, a taiga e a tundra.» — Estiveram recrutadores no campo? — perguntou Böhler. — Não — respondeu Kresin. — Nós recrutamos com o exemplo. A fome aclara as ideias. Quando não se tem o que comer, ficamos racionais. Está aí todo o segredo da proliferação do comunismo. Quanto maior é a miséria no mundo, mais forte é o Partido. Os estômagos cheios não se revoltam. — Que será feito desses homens? — Vorotilov vai comunicar o caso a Moscovo. Virá um comissário para ver se são dignos da causa marxista e, em caso afirmativo, sairão do campo. — Para onde? — Não sei — respondeu Kresin, encolhendo os ombros. — O comunista alemão também continua a ser um soldado prisioneiro. Antes de o pormos em liberdade, precisamos de garantias de que cumprirá as promessas feitas. Só mandamos grupos pequenos. — E se desertarem ao chegar à Alemanha? — Não o farão. Vou preveni-los de que a deserção produzirá represálias sobre os camaradas que ficam aqui. Todos os que tiverem contacto com o desertor serão mandados para um campo
disciplinar. — A noção que na Rússia têm da honra alemã é curiosa — disse Böhler, olhando espantado para Kresin. — Uma ideia muito elevada, doutor. A história demonstrou-nos que se é mais comunista na Alemanha do que em qualquer outra parte. Não o esqueceremos, quando prepararmos os planos para o assalto da Europa. — Parece o Vorotilov a falar. — Estranha isso? — perguntou Kresin, com um sorriso sarcástico. — Nós, os comunistas, pensamos com o mesmo cérebro… Schultheiss entrou com uma expressão preocupada. Olhou para Böhler e depois para os dois russos. — Ao cabo de três semanas, a Yanina voltou a deitar expetoração — disse. — Tem um pouco de febre e suores frios. — O comandante não é um amante muito meigo — troçou Kasalinskaya. Schultheiss não respondeu. Sabia que Yanina estivera com Vorotilov na noite anterior e os ciúmes tinham-no torturado, impedindo-o de dormir, como se fosse uma menina histérica. De manhã fora vê-la, comprovando imediatamente o agravamento. — Tem de voltar a meter-se na cama, Yanina — disse-lhe em tom impessoal. — Foi desobediente e agora vai sofrer as consequências. Não existe cura possível nestas condições. Morrerá de hemoptise. — És duro, Jens — gemeu Yanina suavemente. — Porque és tão cruel? — Não seguiu as minhas instruções. — Sentia-me só, Jens. Foi mais forte do que eu. — Toda a gente se pode controlar. Não somos animais. — Eu sou, Jens! — disse Yanina com os olhos fechados. — Sou um animal. Um acesso de tosse lançou bruscamente o seu terno corpo nos braços de Schultheiss, que a deitou com cuidado, estendendo sobre ela um cobertor. A rapariga respirava com dificuldade e o pulso latejava acelerado. O suor perlava-lhe todo o corpo. Schultheiss correu então a chamar Böhler. Kasalinskaya levantou-se e afastou os cabelos da testa, com as costas da mão. — Sente-se mal? — perguntou. — Parece muito excitada e completamente esgotada. Devia passar o inverno no Sul. Aleksandra olhou de soslaio para Schultheiss, com uma expressão de assombro e incompreensão. — Quer afastá-la daqui? — perguntou, querendo dizer: «Afastá-la do seu lado», mas sem se atrever a isso, devido à presença de Kresin. — Seria melhor para todos. — Ah, bom!
Kasalinskaya dirigiu-se ao dispensário. Yanina estava deitada de lado, debaixo do cobertor. A corrente de ar frio que entrava pela janela aberta acariciava-lhe as pernas nuas. Os ombros pareciam de gelo e ela tinha desmaiado. — Doutor Böhler! — chamou Kasalinskaya, assomando ao corredor. Dois minutos depois, Kresin corria velozmente para o edifício do comando levantando nuvens de neve. A raiva cegava-o, queria destruir Vorotilov à pancada.
O campo de Estalinegrado estava instalado na nave vazia de uma fábrica e contava com um total de quinhentos e sessenta e sete homens, número a que se devia acrescentar quarenta e cinco oficiais, alojados numa casa de pedra. Ninguém sabia porém dizer o que faziam em Estalinegrado, se trabalhavam ou não, e que aspeto tinha anteriormente o seu alojamento. Apenas Sellnow ia de um campo para o outro, tratando de munir a sua enfermaria com os meios suficientes, com a ajuda do doutor Kresin, médico do distrito, que lhe cedia o material necessário. Os quinhentos e sessenta e sete homens estavam empregados na Fábrica Outubro Vermelho, a fundição de aço de dimensões colossais, onde se fabricavam tanques e tratores, peças para canhões e blindagem para barcos. Saída de um gigantesco montão de escombros e de vigas retorcidas, era a manifestação da vontade de viver, apesar das forças destrutivas. O facto de os prisioneiros de guerra alemães e de os presos políticos trabalharem ali aumentava mais esse prestígio, pois a Fábrica Outubro Vermelho fora, em 1943, o último bastião das tropas hitlerianas. Debaixo das suas abóbadas tinham-se albergado, então, milhares de feridos e ali tinham operado, noite e dia, os doutores Böhler, Sellnow e Schultheiss, mesmo durante os bombardeamentos mais violentos. Hoje, a Outubro Vermelho é novamente uma fábrica gigantesca, moderna, com uma floresta de chaminés fumegantes, uma enorme cantina, um teatro, um jardim de infância, uma piscina e uma biblioteca contendo todas as obras comunistas. É o burgo da fé no futuro, o coração latente da revolução… Uma fonte de força do Oriente contra o Ocidente. O sangue que circula nesse coração é constituído por plennis e presos políticos russos, que a reconstruíram. Arquitetos, engenheiros e desenhadores americanos e alemães povoam os escritórios. Operários alemães atarefam-se nos tornos, na fundição, nas laminadoras e fresadoras. Diz-se à boca pequena que o diretor, que ninguém viu até agora, o engenheiro mecânico Piotr Vernerovski, é alemão, um tal Peter Werner, de Chemnitz, e até mesmo Sellnow lhe conhece apenas a assinatura, feita em caracteres latinos, tipicamente germânicos. Assim é o campo de Estalinegrado — um coração gigantesco, um imenso punho cerrado que ameaça o Ocidente, a cidade de Estaline contra a qual a Alemanha se lançou violentamente. Von Sellnow, parado na Praça de Lenine, olhava para a alta fachada do arranha-céus do Partido, rematada pela foice e pelo martelo. De ambos os lados da escadaria monumental, erguiam-se
enormes estátuas em gesso de Estaline e de Lenine. Sellnow voltou-se para Kresin. — Faz todo o sentido empregar o gesso — observou —, pois é mais fácil de demolir quando chegar a altura, muito mais que o ferro ou o bronze. Neste último caso, as cabeças das estátuas podem rolar sabe-se lá até onde e magoar quem passa. — Sou um parvo por lhe mostrar Estalinegrado — disse Kresin, irritado. — Qualquer outro me agradeceria. — Não duvido. — Sellnow percorreu a enorme praça com o olhar, os magníficos edifícios, as janelas cujos vidros brilhavam ao sol de inverno. — Qualquer palerma poderia dizer-lhe que aqui se vê o verdadeiro rosto da Rússia soviética. Os turistas americanos fotografariam tudo com entusiasmo e regressariam ao seu país, dizendo: «A Rússia! Que maravilha!» Mas eu vi o reverso da medalha: as choças infectas das aldeias, as cabanas de terra junto a Orcha, as barracas de madeira ondulada de Minsk. — Isto não é como as fachadas de Potemkin! — disse Kresin, furioso. — Entre, porco alemão! Aí vive-se como num paraíso, e são operários que habitam essas casas. Sim, operários! Estamos num país que ama as massas. — Especialmente quando morrem, aos milhões, a escavar o canal do mar Branco. — São mentiras, calúnias da pandilha capitalista! Não suportam que a Rússia se engrandeça e progrida… Von Sellnow apoiou-se a uma coluna do edifício do Partido, metendo as mãos nos bolsos do seu casaco de pele de cordeiro. O frio avermelhava-lhe o rosto ossudo. — Porque me faz percorrer a cidade? Tem intenção de me converter ao comunismo? Está a perder tempo. Com o que sei do comunismo já me chega. As bonitas fachadas pintadas de branco não conseguem mudar nada. Do casaco forrado, que usava com a pele para fora, ao estilo siberiano, Kresin tirou um maço de cigarros, oferecendo um ao companheiro. — Não o seduziria a ideia de ser diretor de um grande estabelecimento médico russo? — perguntou, acendendo o cigarro. — Não. — Procuramos bons médicos. Temos americanos, ingleses, franceses, indianos, suíços… Porque não havemos de ter alemães? Observei-o, enquanto colaborava com o doutor Böhler. É inteligente, determinado e tem experiência. A Rússia podia empregá-lo. — Não. Sou prisioneiro de guerra. — Deixaria imediatamente de ser para adquirir a categoria civil — disse Kresin, sacudindo a cinza do cigarro. — Lembre-se da história do cabo Sauerbrunn, este verão. Se fosse filho de Sauerbruch, há muito tempo que estaria em liberdade, em Berlim. Nós, os russos, prestamos homenagem à inteligência e ao saber científico. O médico é também um artista que trabalha com
motivos vivos. Sellnow atirou nervosamente o cigarro para a neve, onde o papel se despegou, deixando a mancha escura do tabaco sobre a brancura deslumbrante. — Isso são tudo disparates! — Porquê, doutor? — Tenho mulher e dois filhos. — Haveríamos de os mandar vir. A Mãe Rússia seria a sua segunda pátria e o senhor seria considerado como um russo, com os mesmos direitos que nós. Não lhe faltaria nada. Teria uma casa perto da clínica e o Estado deixaria também um carro à sua disposição. O tratamento é ótimo. Poderia efetuar as suas compras nas lojas do Estado, e a vida seria para si um verdadeiro paraíso. — Talvez na estepe calmuca. — Não sei onde seria a sua clínica. Recebemos apenas instruções de Moscovo para convidar os médicos alemães a adquirir a categoria civil. — Bom trabalho, doutor Kresin! — exclamou Sellnow, a rir. — Já sondou o doutor Böhler? — Já — respondeu Kresin, cujo rosto endureceu. — E que respondeu o meu chefe? — Que fica onde está. — Ah! E porquê? — Diz que a sua consciência de médico lhe ordena que permaneça junto dos doentes e feridos, enquanto existir um só prisioneiro alemão que possa necessitar dos seus cuidados. Nos hospitais, como nos navios, o capitão é o último a sair. Sellnow ergueu os olhos para o céu pálido. Aproximavam-se nuvens carregadas de neve. O inverno russo vinha da Sibéria; estaria ali no dia seguinte, no outro… Durante dias e semanas inteiras, nevaria e gelaria, endurecendo a terra como ferro. Os plennis sucumbiriam com um último suspiro nos lábios pálidos. A enfermaria encher-se-ia… Membros congelados… cegueira da neve… amputações… miséria… Sofrimentos que durariam a vida inteira. O inverno russo não conhece a piedade. — Porque quis interrogar-me, doutor Kresin, se o doutor Böhler já lhe tinha respondido? — perguntou Sellnow, baixando a cabeça. — Achei que talvez pensasse de forma diferente. — Eu? Quer ofender-me? Chame-me porco, cão, estúpido, corrupto… Vou responder-lhe com palavras ainda mais bonitas, mas a minha condição e a minha consciência de médico são intocáveis, ainda que isso me conduza à morte. Também Kresin olhou para o céu. O bafo que saía da sua boca começava a gelar-lhe a ponta do nariz. — Também pensava em Aleksandra Kasalinskaya…
O rosto de Sellnow perdeu a expressão: os olhos afundaram-se debaixo das pálpebras. — Que seria dela? — Iríamos nomeá-la sua ajudante. — Seria o meu fim, a minha morte. — Não se esqueça de que mandaríamos vir a sua esposa e os seus filhos. — Então seria um drama. Aleksandra é como uma égua que reclama o semental. Quando olha para um homem, a única coisa que ele pode fazer é possuí-la, ela é uma força primitiva da natureza. Quando me mandou para Estalinegrado, doutor Kresin, por um momento achei que era a maior desgraça do meu cativeiro e, naquela mesma noite, escrevi à Kasalinskaya. Mas hoje sinto-me contente por estar longe dela, pois livrei-me de uma cadeia sob a qual teria sucumbido. Talvez seja a primeira vez que lhe devo estar grato. — Está enganado, doutor — respondeu Kresin, esticando o lábio inferior, o que lhe dava um aspeto simiesco. — Não é a mim que deve estar grato. A sua transferência deve-se ao major Vorotilov, que a ordenou a pedido do doutor Böhler. — Do meu chefe? — Sellnow baixou o olhar e maquinalmente, com a ponta do pé, enterrou o cigarro na neve. — Nunca me reprimiu por causa de Aleksandra, mas sabia de tudo. Doutor Kresin, permita-me uma confissão: alguma coisa faltaria na minha vida se não tivesse conhecido o doutor Böhler. — Foi isso que eu disse ao Vorotilov. — O senhor? Santo Deus! Também tem um lado humano? Kresin torceu a boca e corou. — Esqueça já isso, porco alemão — grunhiu asperamente. Sellnow riu tão sonoramente que as pessoas se voltaram para o olharem. Começava a nevar, os flocos caiam lentamente e o céu tomara-se sombrio. As sirenes das fábricas ulularam. A pausa do meio-dia… — Vamos? — perguntou Kresin. — Vamos. — E a minha proposta? Sellnow meteu a mão nos bolsos. — Faça de conta que não ma fez.
O comissário Kuvakino reapareceu no campo 5110; viram-no, certa manhã, a falar à porta da Kommandantur com o tenente Markov e com o intérprete Jacob Utchomi. A notícia correu rapidamente por todos os pavilhões. — Vem por causa das adesões ao Partido Comunista. Agora é a sério!
Peter Fischer e Julius Kerner olharam para Karl Georg, que estava ocioso desde o primeiro nevão. Como não podia tratar do seu pequeno jardim, passava a maior parte do tempo estendido no catre, a ler o Pravda, para completar os seus conhecimentos de língua russa. — Chegou o comissário — anunciou Kerner, debilmente. — Já?! — Tu também estás na lista? — Também. — Vamos ser comunistas. — Na Alemanha, eu era chefe de secção das SA — disse Peter Fischer com um sorriso forçado. — Não te vão perguntar nada — disse Georg do seu catre. — Só querem recrutar agentes de propaganda. Segundo ouvi dizer, vão mandar-nos todos para uma escola em Moscovo e em Molotov… uma daquelas chamada Komsomol. — Que significa esse palavrão? — É a abreviatura de Kommunisticheskiy Soyuz Molodyozhi. — Mer…! — disse Peter Fischer. — Trata-se de uma organização análoga às juventudes hitlerianas, onde os jovens comunistas são formados e educados do ponto de vista político. Depois soltam-nos sobre a humanidade. — Na Alemanha? — Imagino que sim. — Isso tudo deixa-me na mesma! — exclamou Fischer, batendo na mesa com o punho. — A mim só me interessa uma coisa: voltar para casa. — Komsomol! — murmurou Kerner, pensativo. — Que me dirá a minha mulher quando eu chegar a casa transformado num comunista a cem por cento? — Que vás para a cama com ela — respondeu Karl Möller, que regressava da cozinha, onde estava de serviço. Rindo, pôs o dólman coberto de neve na frente do aquecedor e colocou em cima da mesa uma lata de carne de conserva, de marca americana. — Algum de vocês tem um abre-latas? — interrogou. — Roubaste-a? — perguntou, por sua vez, Julius Kerner, calculando o peso da lata. — Não, a Bacha deu-ma. Ninguém voltou a falar de comunismo, enquanto comiam. Pouco tempo depois, Utchomi, o intérprete, apareceu à porta. Observou a carne e passou a língua pelos lábios. — Os que pediram para aderir ao Partido Comunista ficam no campo depois da chamada do meio-dia — gritou, engrossando a voz —, e os outros irão para o trabalho. Os primeiros formarão no pátio às três. Está claro? Vendo que ninguém lhe respondia, gritou de novo:
— Está claro? — Vai à…! — sibilou alguém, naquele momento, de um canto sombrio. Utchomi sorriu ligeiramente, depois desapareceu. Por um momento fez frio junto à porta e Julius Kerner estremeceu. — Isto agora é mesmo a sério — murmurou debilmente. Afastou logo a lata de conserva; perdera o apetite. Karl Georg saltou do seu catre, fazendo duas ou três flexões para desentorpecer as pernas. — O Julius está assustado — disse. — E tu? — perguntou Fischer. — Porque havia de estar, rapazes? — respondeu Georg com uma pergunta, encolhendo os ombros. — Não podemos viver pior do que aqui e, se temos de finar… que seja em Estalinegrado ou em Moscovo, em Molotov ou noutro lado, vai tudo dar ao mesmo. Essa história do Partido dá-nos uma pequena esperança de sairmos deste campo, tudo se reduz a aguentar e mostrar que somos verdadeiros comunistas. Assustado, Julius Kerner olhou para a porta, que acabava de se abrir outra vez, dando passagem a uma corrente de ar gelado. Hans Sauerbrunn, o homem do nariz de pugilista, entrou no pavilhão, agitando os braços como pás de moinho para se aquecer. Estava num destacamento encarregado de varrer a neve em frente da entrada do campo, um lugar muito disputado porque era frequente as sentinelas oferecerem cigarros. Esses soldados eram, na sua maior parte, tártaros, geralmente bons, mas a quem a ração semanal de vodca convertia em animais. Peter Fischer gritou: — Novidades? — O comissário está a preparar as listas, juntamente com Vorotilov. Vi-o pela janela. Julius Kerner empurrou para Sauerbrunn a lata de conserva, juntamente com a colher. — A Bacha deu-a ao Möller. Perdemos o apetite. — Por causa de Kuvakino? — Também. Temos de nos habituar à ideia de que a partir de amanhã seremos comunistas. Sauerbrunn esvaziou a lata, limpando depois a boca com a manga. A seguir enrolou um cigarro, com papel de jornal e beatas, acendendo-o no aquecedor. — Ouvi dizer que os novos comunistas dos outros campos já foram transferidos. Passa-se tudo muito depressa, mas ninguém sabe para onde os mandaram. Ordenaram-lhes que juntassem as suas coisas e meteram-nos num camião. — Como se os transportassem para o forno crematório — observou Peter Fischer, o que causou um estremecimento em Julius Kerner. — Não teremos feito asneira? — Basta abrirmos os olhos — interveio Georg. — Não se engana facilmente um velho soldado
alemão. Jacob Utchomi voltou a entrar no pavilhão. — Querem cinco homens para escrever — anunciou. Möller, Sauerbrunn, Kerner, Georg e Fischer apresentaram-se. O judeu examinou-os. — Vocês? — troçou. — A flor e a nata do Sexto Exército? Não fizeram caso do comentário e sorriram. O pequeno intérprete não era má pessoa, os plennis apreciavam-no e ele sentia-se parte deles. — Em marcha. Mas sabem mesmo escrever? — perguntou-lhes pelo caminho. — Não duvides. Ensinaram-nos outras coisas, além de lixarmos os judeus. Utchomi sorriu. Tinha adquirido o hábito de não se zangar com absolutamente nada. De que serviria? Deus amaldiçoara a sua raça e o seu povo… e ele suportava isso com fatalismo oriental, já se dando por feliz quando não lhe causavam muitos problemas. Fê-los alinhar na neve, enquanto entrava no edifício do comando. — Vão deixar-nos aqui até estarmos transformados em bonecos de neve — disse Georg, sacudindo os flocos de neve do cabelo, pois, com a pressa, tinha-se esquecido do gorro. Atrás deles elevavam-se as imensas florestas, como um gigantesco quadro de fundo branco que parecia perder-se no céu. O major Vorotilov saiu, olhou para os cinco homens e fez-lhes um gesto amistoso. — Entrem. Precipitaram-se para o vestíbulo, sacudindo a neve da roupa. — Tenho de os fazer jurar ou sabem guardar segredo? — perguntou o comandante. — Guardamos segredo, camarada — respondeu Georg. Vorotilov sentiu-se desalentado. Por um instante, o espanto refletiu-se no seu rosto, mas depois sorriu e bateu amistosamente no ombro de Georg. — Vocês são uns estranhos… camaradas — disse. Apenas Julius Kerner reparou no tom da voz e empalideceu de medo.
Kasalinskaya voltou ao seu histerismo habitual depois da partida de Sellnow. Despenteava-se nervosamente e depois estranhava ao ver os cabelos em desalinho. Mordia o lábio, sobressaltandose com o sabor a sangue. Böhler observava-a espantado. — Se a Kasalinskaya não volta a estar com o Sellnow, endoidece — disse Kresin, certo dia. Böhler tinha encarado aquilo como um grande exagero, mas comprovava, com crescente terror, a forma que a ninfomania de Aleksandra tomava. O rosto do médico-chefe parecia ter encolhido mais durante os meses de verão, e o seu nariz
adquirira a forma de gancho. O bronzeado, trazido do campo doze, ainda não desaparecera. — É impossível fazer o Sellnow regressar — disse a Kresin. — Se volta a encontrar-se com Kasalinskaya, o caso não poderá continuar em segredo. Markov será o primeiro a aperceber-se e vai ficar muito contente se Moscovo ordenar a dissolução do nosso campo. Não, é completamente impossível. — A Aleksandra ainda nos vai dar muitos desgostos — respondeu o russo, com um olhar assustado. — Essa mulher é o diabo em pessoa. — Então transfira-a. — Não posso fazer isso aos seus compatriotas. — Que quer dizer? — Se a mando para outro lado, será como deixar um tigre feroz em liberdade. Noutro campo agiria com uma crueldade próxima da loucura assassina. Não haveria doentes, mas apenas vivos e mortos. Conhecemos bem essa mulher! E, desde que a Yanina ficou outra vez tão doente, odeia terrivelmente os homens, exceto aqueles que quer atrair para a sua cama. — A ninfomania é uma doença incurável, eu sei — concordou Böhler, esmagando nervosamente o cigarro meio fumado. — Existe um tratamento moderno, à base de hormonas, mas de nada nos serve aqui, junto ao Volga. Vê outra solução, sem ser o regresso do Sellnow? — Quando o bode não vai à cabra, a cabra deve ir ao bode —, respondeu Kresin, encolhendo os ombros. — Daremos quinze dias de licença a Kasalinskaya para ir até Estalinegrado. Ela arranjará maneira de encurralar o pobre Sellnow. — Diz isso de uma forma muito grosseira, doutor! — Toda a vida é grosseira. As pessoas cultas lançam o manto do pudor sobre essa grosseria e vestem o porco de seda, mas o ser primitivo vê-o e mostra-o como é. E eu ainda estou tão perto desse ser primitivo…! Bateram à porta e Kresin abriu; era Utchomi. — Doutor Böhler, o comandante chama-o — disse. — Quer que examine os novos comunistas. — Muito bem — respondeu Kresin, fechando a porta e deixando o intérprete lá fora. — No nosso campo, trezentos e noventa homens descobriram que, no fundo do seu coração, têm um fraquinho pelo papá Estaline. Porque não quer aceitar as nossas propostas? — Já conhece a minha posição, doutor Kresin. É inútil voltar a falar nisso. — Não conseguimos vergar o seu orgulho, nem depois de todos estes anos. Conseguiu até engolir o sapo do campo doze. — Foi difícil — respondeu Böhler, abotoando o casaco e baixando as orelhas do gorro de pele —, mas foi precisamente essa prova que me fez decidir ficar, até que o último dos nossos homens parta comigo da sua espantosa Rússia. — Devia esbofeteá-lo por essa palavra «espantosa».
— Mas não o faz, no fundo, é mais europeu do que quer admitir. Seria um tema espantoso para um psicólogo. Kresin ergueu os olhos para o teto e suspirou profundamente. — E pensar que não podemos matá-lo! — murmurou. Saíram, encurvando-se para resistir ao embate do vento, que atirava os flocos brancos contra os rostos. Os pavilhões, as cercas, as vigias, a cozinha, tudo desaparecia debaixo do manto branco. As marcas dos passos apagavam-se, imediatamente cobertas pela neve. Os plennis esperavam numa longa fila, diante do edifício do comando. Tremiam e apertavam-se uns contra os outros, para se aquecerem, parecendo já um montículo de neve. Kresin indicou-os com um gesto do queixo. — Os novos comunistas. Isto é uma pequena antecipação do exame de aptidão. Primeiro, vamos fazê-los gelar, depois, aquecemo-los. O comissário Kuvakino conhece bons métodos. — Riu barbaramente. — O serviço da Mãe Rússia é tão duro como o dos eunucos na antiga China. Ao chegarem ao vestíbulo aquecido, quase perderam as forças. Vorotilov saiu do seu gabinete e fez-lhes um sinal com a cabeça. Naquele momento, o seu olhar pousou nas silhuetas que tremiam lá fora. Fechou a porta com o pé, dirigindo-se imediatamente a Böhler com uma expressão fechada. — Examine esses homens, indicando a menor falha, a mínima doença. Peço-lhe que seja extremamente severo. — Ao estilo da Kasalinskaya? Vorotilov voltou-se, sem responder. Böhler entrou na grande sala; o comissário Kuvakino olhou-o atentamente e os cinco escrivães levantaram-se, pondo-se em posição de sentido. Böhler olhou-os rapidamente. «Eles?», pensou. «São eles que preparam as listas?» Perdeu o escrúpulo por ter de se mostrar injusto e também não viu, nem por acaso, a mão que o comissário lhe estendia. — Comecemos — disse —, caso contrário, terei de mandar metade para a enfermaria com os membros congelados. Vadislav Kuvakino disse que sim com ar furioso, cerrando os dentes. Tinha retirado rapidamente a mão.
EXCERTO DO DIÁRIO DO CAPITÃO-MÉDICO SCHULTHEISS
A doente está estável há vários dias, parecendo apática e paciente. Deixa-se examinar, não dirige palavra a Vorotilov quando ele a vai visitar e olha-me com olhos de animal ferido. Não posso fazer nada por ela se não recuperar o gosto pela vida. O seu corpo poderia estar são, mas a alma encontra-se doente e morre, enquanto os seus olhos sorriem. Ontem Kresin fez-me uma cena, inundando-me de censuras, até ao momento em que recordou que também ele me levou ao número quarenta e três da Tingutaskaya para conhecer o meu diagnóstico sobre a tuberculose de Yanina. O adjunto do médico-chefe deixa Kasalinskaya histérica; o médico ajudante leva Yanina para a tumba por desgosto de amor. Que campo tão estranho! É de enlouquecer. Kresin tentou falar com Yanina, mas em vão, as palavras que pronunciou não chegaram até ela. Ameaçou e suplicou, e depois veio ter comigo desesperado, aos gritos: — Idiota! Dê à Yanina o prazer de a amar! Eu arranjo maneira de o Vorotilov o deixar tranquilo, mas salve a rapariga, por amor de Deus! Amar Yanina… Que fácil é dizê-lo! Tão fácil como: «Come esse pão» ou «Limpa essa latrina». Meu Deus, teremos perdido toda a sensibilidade durante os anos de cativeiro? Os nossos corações estão cheios de melancolia e de sonhos, mas os nossos atos são mesquinhos, miseráveis, oprimidos pela angústia de nunca mais voltarmos a ver a nossa pátria. Não o dizemos… Contamos que tudo voltará a ser belo, na Alemanha; o que faremos, como daremos início a uma vida nova, começando pelo princípio. Sonhamos com o regresso, com as nossas esposas, os nossos filhos, as nossas mães, as nossas noivas, as nossas famílias. Todos revivem nas nossas palavras, alegramo-nos e acreditamos no amanhã, mas, quando estamos deitados nos nossos catres, com as vigas do pavilhão sobre a cabeça, enquanto o vendaval ruge lá fora, fustigando as paredes, enfraquecemos, entristecemo-nos e descobrimos que não existe esperança no fundo dos nossos corações. Não o confessamos a nós mesmos, porque nos envergonhamos dessa fraqueza e, quando escrevemos o postal mensal para casa — nem sequer sabemos se chega, porque nunca recebemos
resposta —, afirmamos que em breve regressaremos. Em breve! Palavras elásticas, extensíveis como a borracha! E agarramo-nos a esse «breve» sem sequer acreditarmos nele. O que acontecerá se eu amar Yanina e depois me libertarem? Não poderia levá-la comigo, e eu sei que se algum dia nos amarmos, nunca nos esqueceremos um do outro; será a nossa perdição, a dela e a minha. Böhler está no edifício do comando a examinar os homens que disseram querer aderir ao Partido Comunista, uns pobres diabos que esperam assim reduzir o sofrimento! A Rússia não o ignora e vai tratá-los em conformidade. Irá pisá-los até gritarem de dor e repudiarem tudo. Dir-lhes-á então: «Traíram o Partido. Rebelaram-se contra o Estado dos trabalhadores. Trinta anos de trabalhos forçados!» E voltará a mandá-los, aos milhares, para os pântanos na margem do mar Branco e para as minas e as centrais de Irkutsk. Carne para ser devorada pelo Moloch russo! Correias de transmissão para o motor da revolução! É de doidos, ver esses homens a tremer debaixo da neve, à espera da sua vez de entrar no matadouro. De nada serviria argumentar com eles; um só pensamento os domina: regressar em breve a casa. O próprio Emil Pelz, o nosso destemido enfermeiro, faz parte desse grupo. Espera reunir-se à mulher em Berlim. Para onde quer que se olhe, vê-se a esperança. Sellnow escreveu ontem e um dos homens que trabalham na Fábrica Outubro Vermelho trouxe a carta às escondidas. Está de cama há oito dias sem se saber o motivo… Infeção, envenenamento…? Inchou-lhe o corpo, de repente, as pernas não o sustentam. Caiu na neve e os enfermeiros tiveram de ir buscá-lo. Examinou-se a si mesmo, notou falhas nos reflexos e um ligeiro transtorno da vista, mas não conseguiu reconhecer as origens dessas deficiências funcionais. Mandou que o levassem para a cama e está a examinar os acontecimentos dos dias anteriores, para tentar descobrir o momento em que terá ocorrido a infeção ou o envenenamento. Kresin, que o viu no dia seguinte, encontrou-o no quarto a dizer palavrões à frente dos soldados que iam à consulta. Fazia-os sentarem-se um a um ao seu lado, auscultava-os e ditava aos enfermeiros o diagnóstico e a receita. O comandante do campo de Estalinegrado, um jovem tenente recém-saído da escola do Konsomol, contemplava a cena a sorrir e a fumar, encostado à parede. Kresin despachou todos os doentes e examinou Sellnow, mas também não conseguiu encontrar a causa daquela súbita fraqueza, propondo-se mandá-lo para a clínica pública da cidade, a fim de ser submetido a uma observação completa. — Como se lá fizessem mais que você! — grunhiu Sellnow. — Ninguém pode resolver o problema. — Nem sequer nos devíamos ocupar de si — replicou Kresin. — E isso mesmo que eu penso. — É preciso ser parvo para manifestar qualquer tipo de interesse por si.
— Eu não o chamei. Eu trato-me sozinho e, se não conseguir fazê-lo, então logo aviso. — Como quiser! Ao sair, Kresin agarrou um doente pelo casaco, grunhindo-lhe: — Se o estado dele piorar e não me avisarem, mando-te para um campo disciplinar. Sellnow escreveu a dizer que está um pouco melhor, mas que perdeu completamente o olfato, atribuindo isso a um princípio de intoxicação, sem explicar quem teria podido envenená-lo, nem com quê, nem porquê. Böhler ficou muito pensativo, depois de ter lido a carta. — Deve tratar-se de alguma coisa muito particular, Schultheiss — disse-me. — Não sei nada de concreto, mas prevejo algo de estranho. Não sei o que ele quis dizer… Estou tão absorvido a tratar Yanina e a adoçar-lhe o pouco tempo que lhe resta de vida! Poderá realmente o amor curar? Será mais poderoso do que a medicina? Amaria a Yanina se eu próprio não tivesse de me destruir nesse amor, e não posso permiti-lo… Não posso… sou o médico de milhares de indefesos camaradas.
Sentado atrás da secretária, o comissário Kuvakino observa Böhler, que examina os soldados alemães que entram um a um. Os escrivães anotam primeiro os dados pessoais: nome, idade, domicílio, situação familiar, eventual filiação numa antiga organização nazi, bloco e pavilhão, data da captura, e depois sorriem quando o doutor Böhler diz «doze» ou «treze». Da primeira vez, Vorotilov franziu o sobrolho, mas guardou silêncio. Kuvakino censurava-se intimamente por ter sido tão estúpido em estender a mão àquele médico alemão, àquele desprezível plenni, que fingiu não o ter visto. Essa ideia obcecava-o, alimentando a ira que lhe daria a força necessária para atirar os futuros comunistas para a engrenagem psicológica. O tenente Markov estava junto da porta e dava um pontapé a cada prisioneiro que entrava. Considerava aquilo uma marca pessoal, sentindo um prazer maligno em causar o maior mal possível. Também franziu o cenho quando ouviu o médico alemão dizer números e viu o sorriso dos escrivães. Dirigindo-se a Böhler, bateu-lhe nas costas com força. — Que querem dizer esses números? Böhler não lhe respondeu. Deixou o estetoscópio em cima da mesa e agarrou no dólman, que tinha despido devido ao calor que reinava na sala. O major Vorotilov olhou-o assombrado. — O que está a fazer? — Vou voltar para a minha enfermaria. O doutor Kresin vai continuar o exame. Não estou habituado a que me batam enquanto ausculto. Vorotilov corou e depois olhou severamente para Markov, que ria, enquanto mascava sementes de girassol. Kuvakino também olhava, mas estava demasiado desorientado para intervir.
— Prossiga o trabalho — ordenou o comandante, em tom seco. — Não. — Nega-se? Não passa de um prisioneiro de guerra, como os outros! — Então peço que me trate como tal, que me transfira para um pavilhão e me coloque num destacamento de trabalhadores. Vorotilov agarrou-se à beira da secretária com as duas mãos, como se quisesse ganhar ímpeto para saltar. Respirava com dificuldade. — Continue a inspeção! — Não. Böhler abotoou o dólman e pôs o gorro. Markov tirou-lho, atirando-o para um canto. Estava contente. Vingança! Vingança! — Vou-me embora sem gorro — disse Böhler. — Muitos camaradas meus não o têm e gelam-selhes as orelhas. Em quarenta e quatro, amputei mais de setenta. Ao passar diante de Markov, o tenente agarrou-o violentamente pelo braço. — Porco alemão! — gritou. — Vou espancar-te! Os cinco escrivães levantaram-se. O seu major-médico! O seu amigo Böhler! — Temos de afogar o Markov — sussurrou Julius Kerner a Peter Fischer. — Amanhã à noite, nas latrinas. Mesmo que nos custe a pele a todos! — Cala-te! Vorotilov olhou para Markov. Era-lhe muito penoso repreender um oficial russo na presença dos prisioneiros e, como o tenente sabia disso, julgava-se seguro da impunidade. Saboreando o seu triunfo, desferiu um pontapé no traseiro do médico, que foi projetado para a frente e caiu sobre a mesa, atrás da qual se encontrava Kuvakino. O comissário deu um salto, fazendo algo que Markov não esperava: agarrou no tinteiro e atirou-lho à cabeça. O tenente deu um grito e caiu ao chão, com a cara e a farda manchadas pela tinta. — Bravo! — exclamou então um dos prisioneiros que estavam à espera. O comandante indicou-lhe a porta com os olhos, sem dizer nada, e Markov levantou-se precipitadamente, saindo da sala quase a correr. O comissário voltou a sentar-se, depois dirigiu-se a Böhler, que arquejava. — Faça o favor de continuar o exame. Tratarei deste incidente em Moscovo. Temos ordens do Comité Central para nos mostrarmos particularmente corteses com os médicos alemães. Informo-o disso e peço-lhe desculpa pela conduta do tenente Markov. Vorotilov também se sentou, apoiando as peludas mãos na mesa e mantendo os olhos baixos. Ouviu Böhler tirar o dólman e agarrar no estetoscópio. — O próximo — disse. Depois, uma vez mais, pronunciou o «doze» misterioso. Emil Pelz entrou, sorrindo ao médico
enquanto se despia da cintura para cima. — Não tenho nada, senhor doutor, só saudades — informou. Böhler não prestou atenção a esta observação e examinou Pelz como todos os outros, mas, ao chegar ao peito, levantou os olhos, assombrado. — Tens um problema cardíaco! — Será possível? — Nunca tinhas dado por isso? — Não. — Doze! — disse Böhler a Julius Kerner, que escreveu algo na lista a sorrir. — O próximo. Um homem já de idade apresentou-se, com uma barbinha branca e os olhos encovados nas órbitas. — Que idade tens? — perguntou o médico. — Cinquenta e três anos, doutor. Tenho sete filhos em casa e a minha mulher está doente. — E julgas que o Partido Comunista te vai mandar para junto deles? — Foi o que me disseram. — Isso é verdade, comandante? — perguntou Böhler a Vorotilov. O major não respondeu e o comissário Kuvakino debateu-se e bateu na mesa com o lápis. — Cumpriremos as nossas promessas. Além disso, o senhor não está aqui para fazer perguntas, mas para examinar esses homens. — Doze — disse Böhler. E, em voz muito baixa, enquanto ainda apoiava o estetoscópio no peito do homem, murmurou: — Ficas aqui. É muito melhor para ti. O homem saiu a cambalear, parecendo então muito velho. Vorotilov tinha bom ouvido e era perspicaz. Reparou que Böhler dizia mais amiúde «doze» que «treze» e que pronunciava este número especialmente quando se tratava de prisioneiros mais agressivos, como os que existem em todos os exércitos, dispostos a matar por um bocado de pão e a trair o melhor amigo por qualquer vantagem para o próprio. Também pronunciava o mesmo número para os antigos filiados no Partido Comunista Alemão, antes de 1933, depois de os ter examinado superficialmente. Treze!, pensava Vorotilov. O número do azar para os que são bons para a escola do Komsomol. Tentou compreender a relação entre os dois números e chegou à conclusão de que, segundo os princípios russos, Böhler tentava sabotar o processo de recrutamento. Nele, o comunista batia-se com o homem sensível; o russo, com o amigo dos alemães. Podia ter posto fim àquela comédia, representada nas próprias barbas de Kuvakino, mas não o fez. Algo muito profundo o impedia… Contemplou a longa fila que continuava à espera debaixo da neve e, no fundo da sua consciência, sentiu compaixão por aqueles homens, a quem a fé nas suas promessas ia atirar para as fauces de um Moloch insaciável.
O comissário também observava com atenção, mas não reparou em nada de estranho e pareceu satisfeito. Olhava os desgraçados que entravam com olhos quase sádicos, sacudindo a neve e despindo-se, a tremer de frio. Os seus corpos macerados, a pele amarela, as costelas que pareciam querer rasgar a fina pele que as cobria, gritavam a miséria em que tinham vivido durante tantos anos. Mas o comissário desconhecia a piedade; só pensava nas ordens de Moscovo e no programa do Partido. — Os alemães nem sequer valem o esforço de os enterrarmos! — afirmara numa reunião em Gorky. — Vamos deixar apodrecer os seus cadáveres para que alimentem a terra russa, onde nasce o trigo que nos faz grandes e fortes para a revolução mundial. Não tenhamos comiseração por esses cães ocidentais. É preciso humilhá-los, derrubá-los e matá-los! O vento do Oriente soprará sobre toda a Europa, arrancando dos seus mastros as odiosas bandeiras capitalistas! Kuvakino sorria satisfeito. Sim; ele sabia falar! Considerava-se um excelente servidor dos sovietes, como um arauto à frente do carro de Estaline, e orgulhava-se muito disso. Böhler olhou para o comandante Vorotilov: o exame durava já há quatro horas e, durante todo esse tempo, os homens esperavam debaixo de neve. Quando entravam, eram incapazes de levantar os braços; chegavam com o rosto violáceo, quase a cair, como se o calor lhes desse um golpe brutal. Nos seus olhos lia-se o sofrimento de ser indefeso, misturado com o arrependimento de se terem posto daquela maneira nas mãos do comissário. Böhler cerrou os dentes. — Doze! — disse, num tom cada vez mais urgente. — Doze! Doze! Doze! Vorotilov começou a ficar inquieto, e levantou a mão direita, olhando para Kuvakino. — Não lhe parece bem que façamos uma pausa, camarada comissário? — perguntou. — Temos toda a tarde à nossa frente, e o camarada piatial preparou-lhe uma lebre. Kuvakino disse que sim. Em Moscovo não se encontrava lebre facilmente; nas lojas do Estado era muito cara e só aparecia na mesa dos funcionários mais importantes. Dirigiu-se a Böhler: — Continuamos às três. O médico guardou o estetoscópio no bolso e foi buscar o gorro, mas Peter Fischer deu uma corrida para se lhe antecipar e entregou-lho, batendo fortemente os tacões. O comissário semicerrou os olhos, olhou para os prisioneiros e falou para Vorotilov. — Vamos, é muito doloroso para mim ter de respirar tanto odor alemão. Passou à frente de Böhler sem lhe prestar atenção, e teria empurrado o médico se ele não tivesse recuado precipitadamente um passo. Depois saiu a correr. Desprezou a minha mão, pensava, e eu paguei-lhe na mesma moeda. Tenha cuidado! Em Moscovo não sabem tudo e os mortos não falam.
Depois da partida de Sellnow, Aleksandra Kasalinskaya voltou a dormir no edifício
administrativo. Tapada com um cobertor olhava pela janela, contemplando os flocos de neve. A tempestade impedia-a de ir ao campo doze, como tinha previsto; achava que o sargento devia esperar até às oito, despedindo depois os doentes e mandando a coluna de trabalhadores para os bosques. A madeira devia ter a dureza do ferro e os machados não lhe faziam mossa. Que espantoso trabalho para homens famintos e hirtos de frio! A médica recordava aquele dia do inverno de 1946, quando examinara os prisioneiros do campo de Vorkuta, a leste dos Urais. Os lobos uivavam por perto, o frio abria caminho através das paredes e das peles, os aquecedores de nada serviam contra a força da natureza e os alemães, deitados no chão do pavilhão, gritavam de dor. Tinham as mãos, os dedos, o nariz, as orelhas, os braços inteiros gelados… Tinha de amputar, só isso, sem piedade… Não havia alternativa senão a mutilação ou a morte… Na primavera, o campo não passava de um imenso túmulo, mas a inspeção de Moscovo reagiu rapidamente, ao comprovar a magnitude do desastre, voltando a encher o campo com sete mil alemães vindos de Sverdlovsk, Interabes, Vertchne-Uralsk e Cherbakov. Naquele dia, nevava como em Vorkuta, e sete mil alemães tremiam à volta dos aquecedores. Aleksandra afastou o cobertor, despiu a camisa pela cabeça e ficou nua; levantou os braços, enchendo o peito. Era o estiramento de um animal, formoso como uma floresta virgem, poderoso, nobre e de boa raça. Observou-se no espelho, pensando em Sellnow. Sacudiu-a um estremecimento… Cravou os dentes nos lábios, acariciou os seios, o desejo de gritar cortava-lhe o fôlego e, deixando-se cair em cima da cama, escondeu a cara na almofada. Assim a encontrou Kresin quando entrou sem bater. Ficou imóvel por um momento, estupefacto, e depois deixou-se cair numa cadeira, de sorriso sarcástico, enquanto Aleksandra se tapava com uma manta. — Esse é o seu entretenimento matinal, minha pombinha? — perguntou com ironia. — Porque entrou sem bater? Que vem aqui fazer? — gritou Kasalinskaya com raiva. — Queria dizer-lhe que está doente, Aleksandra. Ela riu alto. — Que tenho eu? — Uma doença interior e, além disso, está esgotada. Precisa de descanso. Que lhe pareceriam umas férias? Digamos, quinze dias. — No inverno? — perguntou Aleksandra, desconfiada. — Em plena tempestade de neve? — O ar agora é puro. — Quer ver-se livre de mim, camarada Kresin? — Oh, Aleksandra! — exclamou o médico, levantando as mãos como para a fazer calar. — É-nos indispensável, mas a sua saúde tem prioridade sobre tudo o resto. Descuidou-se muito nestes últimos tempos… Não me refiro ao seu trabalho, naturalmente, mas a si mesma. Os seus nervos não aguentam mais, por isso vou mandá-la para Estalinegrado durante quinze dias, para a nossa casa de repouso.
Kasalinskaya agitou os ombros alvos e formosos, o seu corpo tinha a transparência da porcelana. — Como quiser, camarada Kresin — respondeu lentamente. — Quando devo partir? — O melhor será depois de amanhã, logo que a tempestade pare. Vou levá-la pessoalmente, Aleksandra. — É muito amável — disse ela, sorrindo enigmaticamente. — Os médicos acompanham sempre os loucos. — Não seja exagerada! Levantou-se e estendeu-lhe a mão. Os dedos da mulher estavam frios como a morte, quando deviam queimar. Aleksandra dominava-se perfeitamente, só se deixando ir abaixo quando ficava só, voltando-se contra si mesma, como as ondas ao pé de uma fraga. Quando o médico se dispunha a sair, deteve-o e perguntou-lhe: — Como está o doutor Sellnow? — Não muito bem. Desconfiamos de que tenha sofrido um envenenamento. — Um envenenamento? O que o leva a pensar isso? — perguntou, olhando-o fixamente. — Os sintomas, camarada. Tudo parece indicá-lo, mas ignoramos o que terá sucedido. Quando soubermos, atuaremos. Se se tratar de uma tentativa de assassínio, eu mesmo matarei o culpado. Saiu e Aleksandra ficou como que petrificada em frente da cama.
O exame continuou à tarde. Tinha deixado de nevar e Kresin ajudava o médico alemão, enquanto Vorotilov se agitava na sua cadeira, tentando manter a atenção. O comissário Vadislav Kuvakino sentia-se muito satisfeito: a lebre estava de facto excelente, o vodca era velho e delicioso e Bacha, que o servia, sorriu lascivamente quando ele a beliscou no peito… o comissário sentia prazer em bater nas costas nuas dos prisioneiros com uma régua comprida, acompanhando cada pancada com uma voluptuosa inclinação de cabeça. O tenente Markov não voltara. Deitado em cima da cama, numa sala contígua, meditava em projetos de vingança. Mais que o tinteiro atirado à cabeça, tinha-o ferido o «bravo!» de um plenni. Jurava a si mesmo nunca ceder ao menor sentimento de humanidade na sua forma de tratar os prisioneiros, passando a agir com redobrado rigor. Böhler pronunciava os números com voz firme, mas a presença de Kresin não o deixava trabalhar como bem queria. Teve uma pequena discussão quando chegou a vez dos cinco escrivães. — Aptos! — disse Kresin sem vacilar. — Doze! — gritou Böhler. — Acabe com os seus números, estes homens apresentaram-se voluntariamente! Sem contar com os sinais característicos de falta de alimentação, não têm absolutamente nada, nem diarreia, nem tifo, nem tuberculose, nem distrofia… Apenas muito pouca carne para os ossos, mas em Moscovo hão de
alimentá-los. Karl Georg olhou para Julius Kerner e para Peter Fischer com os olhos brilhantes. — Ouviram? — murmurou. — Em Moscovo! Parece que nos vamos imediatamente embora daqui. Assim, os cinco escrivães foram inscritos na lista dos aspirantes a novos comunistas, contra a vontade de Böhler. O comissário, muito satisfeito, examinou a relação: duzentos e oitenta e cinco homens, uma boa matilha de futuros delatores e polícias do povo para a zona oriental; pessoal de que Moscovo sabia tirar proveito. As silhuetas mudas atravessando a neve voltaram a perfilar-se diante do edifício do comando. A noite caía, o grande frio confirmava-se. Ouvia-se as sentinelas nas torres praguejando. O segundo grupo de trabalhadores regressava, caminhando sob o céu agora novamente límpido, pisando a neve frágil como o cristal. Os soldados da escolta contaram-nos com resmungos, impacientes por irem para o seu pavilhão aquecido. Dos bosques chegavam os uivos dos lobos. Os «eleitos» passaram à frente da mesa de Kuvakino para assinarem a adesão ao Partido Comunista. O texto estava em russo, sem tradução, e ninguém sabia o que estava a assinar, eram animados pelo desejo de regressarem à Alemanha. Kuvakino estava radiante. Apertou a mão a Vorotilov e, enquanto guardava os papéis na carteira grossa, declarou que o campo se tinha portado como um kolkhoz modelo. Com um amistoso gesto de consentimento, respondeu a Böhler, quando este perguntou: — Posso regressar à minha enfermaria? Os meus doentes estão à espera. Kuvakino olhou novamente para Vorotilov, passando depois os olhos pelas duzentas e oitenta e cinco silhuetas trémulas que esperavam lá fora. Sorriu: os olhos dele brilhavam. — Tenho uma pequena surpresa para eles — informou, esfregando as mãos. A um gesto seu, um soldado trouxe uma grande caixa de cartão a transbordar de cartas. Cartas da Alemanha, notícias de casa! Böhler olhou para a caixa e cerrou os dentes. Correio! Depois de quatro anos de torturas, de desespero, chegava a esperança e, com ela, o amor! A solidão acabava! A pátria ia à Rússia! Julius Kerner começou a tremer. Peter Fischer, Karl Georg, Karl Möller e Hans Sauerbrunn olharam entusiasmados para as cartas. — Cartas! — balbuciou Kerner. — Da minha mulher… dos meus filhos… O soldado deixou a caixa em cima da mesa, à frente de Kuvakino, que enfiou nela as mãos, voltando-se para Vorotilov. — Gostava de entregar as cartas só aos que tivessem assinado — disse. — Seria uma crueldade para os outros, camarada comissário — respondeu o outro, empalidecendo.
— Bastava só assinarem também. — Não se pode obrigar o espírito. — Pode-se e hei de prová-lo. — Kuvakino voltou-se para os escrivães: — Chamem os que estão na lista e os outros que se vão embora. Julius Kerner precipitou-se para a caixa e começou à procura dentro dela, até que Peter Fischer lhe bateu nas costas e colocou a lista na sua frente. — Tiras uma a uma. Logo encontrarás as tuas. Möller e Georg começaram a chamar, com voz monótona, enquanto os outros comprovavam os nomes na lista… Waldsmidt…. Ebert… Friedrich Siebach… Emil Pelz… A seleção durou duas horas, durante as quais os duzentos e oitenta e cinco homens esperaram ao frio, a bater nas costas uns dos outros… Quando falavam, as palavras pareciam ecoar, tilintando como o cristal… Duzentos e quarenta e nove receberam cartas, duzentos e quarenta e nove homens felizes, que as leram com os olhos cheios de lágrimas… As primeiras notícias da Alemanha, depois de quatro anos! Naquela noite, o pequeno pastor olheirento percorreu os pavilhões. Tinha de consolar muitos… Os que choravam e desesperavam, os que emudeciam, mas também os felizes, que voltavam a encontrar-se e queriam rezar. Deus regressara com o primeiro correio. Julius Kerner jazia no catre, com a corneta ao lado. Apertava uma carta contra o peito e o seu rosto parecia esculpido, sem vida. Quando Peter Fischer lhe falou, virou-se para ele, sem responder. — Parece atordoado — observou Fischer a Sauerbrunn. — Está muito triste. — O que diz a tua mulher? — gritou Möller a Kerner. — Conta-nos. Julius não respondeu, mas pouco depois levantou-se, pôs a corneta nas mãos de Karl Georg, estupefacto, e saiu sem dólman, sem gorro, apenas de camisa e calças. — Vai gelar nas latrinas — disse Möller, assombrado. — Meu Deus! Também me apetece lá ir depois de ler a carta da minha mãe. Meia hora depois, Julius Kerner ainda não tinha voltado. Karl Georg, olhou para os outros, angustiado. — Alguma coisa se passa, rapazes. Viste o Kerner nas latrinas? — gritou para um prisioneiro que entrava no pavilhão. Peter Fischer levantou-se de um salto, correu ao catre de Kerner e, assombrado, viu a carta. Tirou-a do sobrescrito e começou a lê-la. — Meu Deus, meu Deus! — gemeu, empalidecendo e encostando-se à mesa. — O Julius já não tem nada nem ninguém… Escreveu-lhe um cunhado. A mulher e os filhos ficaram soterrados debaixo dos escombros. Um bombardeamento… Karl Georg olhou para a corneta e compreendeu. — Lá para fora! — gritou. — O Kerner vai tentar alguma coisa! Lá para fora, todos! Precipitaram-se na noite gelada tal como estavam vestidos e o frio caiu sobre eles como um lobo
faminto. Correram pelo campo, tropeçando nas sentinelas aturdidas. Soou a sirene do alarme e os projetores acenderam-se nas torres, iluminando a cerca, os pavilhões, os espaços livres… O major Vorotilov e o tenente Markov saíram da Kommandantur. Apoiado contra a janela, o comissário Kuvakino mordia o lábio inferior. Böhler e Schultheiss, da porta da enfermaria, contemplavam o tumulto. — O Kerner desapareceu! — gritou Emil Pelz. — Recebeu uma carta de casa. Toda a sua família foi morta pelas bombas… — Pobre rapaz! — exclamou Böhler. — Quatro anos na Rússia! E aguentou bem… Agora… Vamos preparar uma cama, Schultheiss. Meia hora mais tarde, encontraram Kerner, no sítio mais afastado do campo, perto da cozinha. Tirara a camisa e as calças e estendera-se na neve, completamente nu. O seu corpo já não tinha vida: os olhos abertos olhavam para o céu e das pupilas pendiam lágrimas geladas. O major Vorotilov parou diante do corpo, enquanto Kresin se ajoelhava, levantando-se depois de cabeça caída. — Morreu — disse laconicamente, e afastou-se. — Porquê? — perguntou Vorotilov a Peter Fischer, que a seu lado, chorava como uma criança. — Perdeu a mulher e os filhos… Dizia na carta. — Levem-no para dentro. Quando o enterrarem, coloquem a corneta ao seu lado. Markov olhava com o olhar fixo. Um alemão a menos. Contudo, pensava na mulher, Yacha, na filha, Vanda, e dizia a si próprio que também elas podiam morrer. Regressou ao quarto a cambalear.
O major Vorotilov, o tenente Markov, Kresin e Kasalinskaya assistiram ao enterro de Julius Kerner. Três semanas depois, Kresin entrou no quarto de Böhler e deixou-se cair sobre uma cadeira. — Em Moscovo estão a demonstrar muito interesse pelos prisioneiros de guerra — informou. — Recebemos instruções para dotar os campos com enfermarias modelo e para indicarmos rapidamente tudo o que é necessário para tal. E ao mesmo tempo, vamos criar diversões culturais: uma biblioteca, campos de jogos, horas de repouso, um teatro, uma cantina… Pergunto a mim próprio por que razão ainda vos conservamos cá, assegurando-lhes uma vida que milhões dos nossos camponeses não conhecem. Alguém deve saber a razão de tudo isto. Sabe o que dizem as instruções? Oiça: «Irão organizar-se equipas de xadrez, equipas de futebol, torneios de atletismo, exposições de arte com as obras dos prisioneiros e dos artistas soviéticos…» Compreende alguma coisa disto? Exposições de arte para os plennis! Futebol, xadrez! Em Moscovo perderam a cabeça. — O desporto faz-nos muita falta — respondeu Böhler, inclinando a cabeça. — Tudo quanto me anuncia contribuirá para reduzir a miséria moral dos prisioneiros, para lhes dar um novo alento! Não, não perderam a cabeça em Moscovo. Só os homens quase satisfeitos rendem bom trabalho.
— Um novo alento! — repetiu Kresin, contraindo o rosto. — Já sei do que se trata, basta-me recordar Sellnow. Se o alento aumentar, isto torna-se um carnaval! — Olhou pela janela para a paisagem gelada. — A propósito, sabe jogar xadrez? — Adoro. — É isso! Nós, os russos, temos uma expressão: Kulturnaya Zhizhn. Vocês dirão: a vida culta… Isso é o que se quer proporcionar aos plennis. Quando regressarem à pátria poderão dizer: «Nos campos de trabalho, a nossa vida era melhor do que a que levavam os russos.» — Levantou-se e atirou uma folha de papel a Böhler. — Anote aí tudo o que precisa. Exigem-nos uma enfermaria modelo, que deve estar pronta na primavera, e virá uma comissão fiscalizar e comprovar se tudo ficou de acordo com o que foi ordenado pela comissão central. — Posso anotar tudo o que quero ter na minha enfermaria, a sério? — perguntou Böhler, incrédulo. — Deve fazer uma relação de tudo o que lhe faz falta para montar uma enfermaria modelo. — E vou receber tudo o que for necessário? — Espero que sim. — Incluindo enfermeiras experientes? — Se as julgar indispensáveis… — respondeu Kresin a rir. Böhler preparou a lista com Schultheiss. Não se esqueceram de nada, desde a mínima pinça até aos maiores separadores, das sulfamidas à penicilina. Mas, sobretudo, pediram camas, instalações sanitárias, desinfetantes, um aparelho para aplicar o pneumotórax, locais de isolamento para a disenteria, o tifo e o paludismo… Naquela mesma noite, Böhler levou a lista ao edifício do comando onde se encontrava ainda o comissário Kuvakino, que classificava em grupos os novos comunistas. Sorriu ao médico e aceitou a lista. — Moscovo é extremamente generosa. Receberá tudo, tudo! Exceto uma coisa: comida suficiente. Böhler sentiu como que uma bofetada no rosto e olhou para Vorotilov, que baixou os olhos e disse: — Não se trata de uma afronta, acontece que a seca foi muito grande no ano passado. As colheitas não deram o que se esperava, o sol queimou o trigo, os legumes e a fruta. Este ano vamos passar fome na Rússia. Dou-me por muito feliz se continuar a receber as nossas rações atuais. Na próxima semana vamos ter de passar às papas de milho e cevada. Até o carvão vai faltar. — E os meus doentes de estômago? Vai ser o fim deles! — Há milhares de doentes do estômago na Rússia. Não podemos fazer nada, a natureza é mais forte do que a nossa vontade. — Vorotilov pôs a mão na lista e olhou para Böhler com ar solene. — Terá uma enfermaria sem igual em Estalinegrado e haverá campos de desporto, cinema, uma biblioteca com os livros russos e alemães mais atuais… Haverá jornais, revistas ilustradas… O cativeiro vai transformar-se em paraíso… Mas continuarão a passar fome.
— E a trabalhar! Vão pedir aos plennis que produzam mais, uma vez que, atrás das cercas, terão todas as vantagens da liberdade. Serão elevadas as normas de trabalho nas fábricas e nas minas, castigando-se os homens que não as alcancem, devido ao esgotamento… De que serve uma enfermaria, para quê campos de desporto, se ninguém terá força para jogar? É uma vigarice! — Que disse ele? — perguntou a Vorotilov o comissário, que compreendia muito mal o alemão. — Nada de importante. Disse que a fome faz sofrer muito. Kuvakino concordou a rir, trocista. — A partir da próxima primavera — prosseguiu Vorotilov, dirigindo-se a Böhler —, as brigadas de trabalho vão receber uma parte do salário correspondente às tarefas cumpridas: duzentos e cinquenta rublos por mês… O campo receberá quatrocentos e cinquenta pela alimentação e pelo alojamento e tudo o que exceder esta quantia ficará igualmente para o campo. Talvez os prisioneiros venham a receber este pecúlio quando partirem para a Alemanha. Talvez… Mas quem trabalhar receberá duzentos e cinquenta rublos e poderá comprar víveres suplementares na cidade e nas cantinas das fábricas… Um quilo de pão custa três rublos e quinhentos gramas de margarina, nove. Duzentos e cinquenta rublos são uma pequena fortuna. — E os que não podem trabalhar, os velhos, os feridos, os doentes? — Têm de continuar a viver, como até agora, de milho, cevada e couves — respondeu Vorotilov, encolhendo os ombros. — Imagino que a camaradagem alemã baste para que os que tiverem dinheiro cuidem dos outros. — Posso anunciar tudo isso no campo? — Pode, mas não indique datas. Moscovo deu estas instruções, mas não sei quando entrarão em vigor. — Viva Estaline! — exclamou Kuvakino, amargamente. Böhler saiu em silêncio do edifício do comando. A notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora e nos pavilhões discutia-se animadamente. — Nada é de graça — observou Peter Fischer. — Se o russo nos dá alguma coisa, tira-nos por outro lado. Já alguém o viu humanizar-se? — Tudo é possível. Karl Georg estava deitado no seu catre a ler o Komsomolskaya Pravda, órgão das juventudes comunistas. Ninguém sabia onde as arranjava, mas conseguia sempre obter as publicações soviéticas mais recentes e estudava-as atentamente para melhorar os seus conhecimentos da língua. Möller chamava-lhe «piolho da inteligência», mas ele não se sentia afetado. — Aqui diz que os russos vão fazer uma reforma monetária e que tudo melhorará depois — informou. — Porque não há de suceder o mesmo connosco? — Porque somos prisioneiros. — Mas também trabalhamos para os soviéticos.
— Então, se é assim — quis saber Peter Fischer —, porque aderimos ao comunismo? — Para regressarmos a casa mais depressa. — Olha que ainda não aconteceu nada. O comissário continua aqui já há três semanas… É preciso que aconteça alguma coisa! — Merda, há de acontecer! — exclamou Karl Möller, olhando para Sauerbrunn, que coçava o nariz esmagado. — Acreditas nisso, Hans? — Estou à espera da surpresa. E a surpresa chegou. Três dias depois, entraram no campo alguns camiões, conduzidos por motoristas russos. Pertenciam aos campos de Sakliochonnyi, onde estavam encerrados os criminosos e os presos políticos, que trabalhavam nas mesmas fábricas que os prisioneiros alemães. Campos disciplinares do primeiro grau, para indivíduos indesejáveis, que se convertiam em cidadãos úteis para o Estado; pequenos campos insignificantes, onde os civis não viviam nem melhor, nem pior do que os plennis. Os camiões, liderados por um jipe onde viajava um tenente, pararam em frente da enfermaria. O oficial saltou para o chão e saudou rigidamente o major Vorotilov, que saía acompanhado por Kresin. — As encomendas, camarada comandante — anunciou o tenente. — Não está tudo, mas trazemos muitas coisas. — É a nova enfermaria! — disse Kresin, estupefacto, a Vorotilov. — Moscovo cumpre a sua palavra. É de enlouquecer… Permitiram que morressem aos milhares e agora querem defender, um a um, os sobreviventes. Tem de se ser idiota para compreender a política. — Felizmente, você não o é, camarada — respondeu Vorotilov ironicamente. Kresin entrou a resmungar na enfermaria e bateu à porta de Böhler, no preciso instante em que ele saía. Olharam-se. — O seu material novo! — gritou Kresin, furioso —, mas não é motivo para que me parta a cabeça! O comandante Vorotilov esfregava as mãos, a sorrir. Descarregaram numerosas caixas, muitas das quais com inscrições americanas, assinalando a sua procedência: São Francisco, Nova Iorque, Nova Orleães, Milwaukee. Medicamentos, camas desdobráveis, mesas de operações, armários, instrumentos, camas, talas ultramodernas, um aparelho de raios X, uma lâmpada de raios infravermelhos, uma tenda de esterilização… Böhler voltou-se de olhos brilhantes, para Schultheiss, que acabava de chegar. — Vê tudo isto, meu amigo? — gritou-lhe, com voz que a alegria fazia tremer. — Parece um sonho. Kresin contou as caixas, comparando-as com a lista entregue pelo tenente. — C’um caneco! — gritou de repente. — Onde está a caixa dos narcóticos? — Que caixa? — perguntou o oficial, enrubescendo.
— A número cento e trinta e quatro! — Não a comi. Trago tudo o que me entregaram. Nem mais, nem menos. — É sempre o mesmo! — berrou Kresin, fora de si. — Roubada! Haverá algum russo que não roube? E logo a caixa dos narcóticos! Neste momento, os porcos de Estalinegrado estão a fazer uma orgia de estupefacientes. Informarei Moscovo, camarada tenente! O jovem oficial empalideceu e conferiu uma vez mais a lista com o material descarregado. Não havia dúvida! A caixa dos narcóticos não estava ali. Ou a tinham subtraído no momento de carregar, ou não fora entregue, desaparecendo num circuito tenebroso onde nunca mais seria encontrada. O comandante olhou para o pavilhão da enfermaria, onde, a uma das janelas, acabava de aparecer Yanina. — Agora vais curar-te, minha pombinha! — gritou-lhe. — Não é verdade, doutor Schultheiss? — Podemos ter esperança a partir de agora, se o pneumotórax aqui estiver. — Se salvar a Yanina, pode pedir-me o que quiser — interveio o comandante, apertando a mão do médico. — Já me disse isso noutra altura. — E cumprirei a minha palavra. Arranjar forma de o repatriarem rapidamente. Schultheiss seguiu Vorotilov com o olhar. Voltar para a Alemanha! O que lhe dizia a mãe nas cartas? «Meu filho, sê corajoso. Todos acreditamos no teu regresso. O pai já voltou do cativeiro em Inglaterra. Envelheceu, mas vai outra vez para o seu lugar no hospital. A grande esperança de te voltarmos a ver dá-nos forças para suportarmos todas as provações. Beijinhos, com toda a nossa ternura, meu filho… Tua mãe.» E o pai tinha escrito por baixo: «Jens, meu filho, tenho a certeza de que regressarás e também tu deves ter esta certeza. Um abraço apertado. Teu pai.» E Vorotilov falava em obter a sua liberdade, já! Olhou para a janela onde estava Yanina. A rapariga não seguia Vorotilov com o olhar, olhava antes para ele, para Schultheiss… O amor brilhava nas suas pupilas. O jovem médico inclinou-se sobre as caixas, apertando os lábios. «Todos acreditamos no teu regresso», escrevia a mãe. «Tenho a certeza de que regressarás», afirmava o pai… Se Schultheiss amasse Yanina, não regressaria.
Inclinada sobre a cama de Sellnow, Aleksandra Kasalinskaya tinha-lhe agarrado as mãos. Tratava-o há quinze dias na Fábrica Outubro Vermelho. A palidez da mulher quase desaparecera. O ar fresco, o repouso e, sobretudo, a presença de Sellnow, produziam efeito. Com um vestido grosso de lã cinzenta, fechado até ao pescoço, e de botas altas nos pés protegidos por peúgas grossas, parecia uma mulher qualquer das que se vê circular pelas ruas de Estalinegrado, e que param em frente das lojas. Uma grande pulseira de ouro, a sua
única joia, tilintava no pulso esquerdo. Nenhum toque de metal, nem sequer um alfinete, iluminava a sombria cor do vestido. O estado de Sellnow continuava a ser muito variável. Entre os acessos febris, passava dias completamente normais, mas, sempre que julgava ter vencido a doença, um novo ataque deixava-o abatido durante três ou quatro dias. Depois voltava a levantar-se para fazer o seu serviço como se nada se tivesse passado. Nem Kasalinskaya conseguia descobrir a natureza do mal, limitando-se, durante os acessos, a cuidar de Sellnow com um carinho emocionante. Quando Aleksandra chegou a Estalinegrado, o capitão-médico, que estava num dia bom, encontrava-se no consultório da enfermaria a tratar de um dedo esmagado. Ela entrou sem bater e olhou à sua volta, assombrada, pois Sellnow fingiu não lhe prestar atenção, apesar de a respiração ter acelerado e de o sangue lhe latejar nas frontes. — Então? — gritou Kasalinskaya. — Nem sequer me dizes bom dia? — Não me chateies — respondeu Sellnow. — Bem vês que estou ocupado. Fecha a porta; está corrente de ar. Aleksandra obedeceu, cerrando os dentes. Depois ficou imóvel. — Há quatro dias que não dás notícias. O doutor Kresin está muito preocupado. — Devia ter vindo ele, não é preciso mandar uma mulher para isso. Os enfermeiros olharam para o médico, estupefactos. Atrever-se a falar naquele tom à terrível Kasalinskaya! Sellnow acabou o tratamento tranquilamente e depois, passando pela frente de Aleksandra, foi lavar as mãos. — Que estás aqui a fazer? — perguntou finalmente. — Não tenho tempo para ouvir os lamentos do doutor Kresin. — Deviam fuzilá-lo! — exclamou ela. Os doentes e os enfermeiros empalideceram e retiraram-se, mas Sellnow limitou-se a sorrir. — Seria uma pena — respondeu. — Muitas vezes lamentamos de noite o que fazemos de dia. A médica olhou-o com maldade, virou-se, abriu bruscamente a porta e afastou-se com passos rápidos. — Da próxima vez, fecha a porta ao sair — gritou ele. Ouviu-a, no outro extremo do corredor, bater nas paredes com o punho. Depois de ter comido no Stolovaya, o grande restaurante da fábrica, Sellnow regressou ao seu quarto. Kasalinskaya esperava-o, com uma expressão velada nos seus lindos olhos negros. Não se falaram. Ela lançou-lhe os braços ao pescoço, beijou-lhe o cabelo e arranhou-lhe a nuca, procurando depois avidamente os seus lábios, enquanto gemia.
Ofegante, sentou-se na cama para compor o cabelo e o vestido. Sellnow viu-a estender a perna para esticar a meia. Nos seus olhos brilhava uma felicidade maravilhosa, um apaziguamento infinito. — Quando tens de ir embora? — perguntou ele em voz baixa. — Nunca, se tu quiseres! — Podias ficar comigo? — perguntou Sellnow alegremente. — Quinze dias, Werner. — Uma eternidade! Aleksandra levantou-se para o beijar, esfregando a cara na sua face, como uma gata. — Meu plenni! — murmurou. Sellnow cravou-lhe as unhas com tanta força na pele que ela gritou de dor. — Nunca mais repitas isso! — disse ele, com ardor. — Não quero ser um plenni ao pé de ti, quero sentir-me livre nos teus braços… Livre como uma águia no céu. — Haveria de a abater para lhe comer o coração! — murmurou ela — O coração que lhe arrancaria do peito quente e ensanguentado. — Agarrou-lhe a cara entre as mãos e beijou-o, mordiscando-o. — Gostava de ser um vampiro para te chupar o sangue. — És uma felina asiática — disse ele, desprendendo-se dos seus braços. Abraçados pela cintura, aproximaram-se da pequena janela, que dava para o pátio da fábrica. No extremo do seu horizonte levantava-se uma cerca alta e uma sentinela russa, coberta com um longo capote, patrulhava o muro. As enormes chaminés soltavam nuvens de fumo. — Sempre cercas! — lamentou-se Sellnow, com voz sombria. — Sempre a separar-nos. — Um dia desaparecerão. Já foram libertados milhares de prisioneiros, Werner. — E então? — perguntou ele, fechando os olhos para evitar o olhar da mulher. — Então ficaremos juntos… Para toda a vida! — Na Rússia? — Ou na Alemanha. Vou para onde tu fores. Sellnow acariciou-lhe a nuca, mas, por cima dela, olhava para as cercas, para as sentinelas, para os prisioneiros que varriam a neve e para o jovem tenente que saía do posto da guarda a enfiar o gorro achatado no crânio calvo. A mulher, Marika, e as duas filhas esperavam-no na Alemanha. Ela era elegante, loura, distinta, filha de um magistrado, habituada a gerir uma grande casa, a receber, a brilhar com o fulgor da sua beleza ativa. Tinham casado por amor e, durante os primeiros e difíceis anos, ajudara-o corajosamente a arranjar clientela, não hesitando em vestir a bata de enfermeira para evitar a despesa com uma empregada. Depois tornava-se novamente a filha de um pai rico, dava festas e usava o nome do marido como uma bandeira. Quando a viu pela última vez, antes de voltar para Estalinegrado de avião, não chorara, mas estreitara-o silenciosamente contra o peito. Só quando já tinha subido para o carro é que lhe dissera:
— Aconteça o que acontecer, Werner, eu espero por ti! «Eu espero por ti…» Sellnow baixou os olhos para os caracóis negros e selvagens. Aleksandra pousara-lhe as mãos brancas, compridas e esguias sobre os ombros. O médico sentia o calor do corpo através do tecido. «Vou para onde fores…» «Eu espero por ti…» «Vou para onde fores…» A angústia do amanhã apoderou-se dele. A sua mulher e Aleksandra… Foi invadido por um estranho sentimento de solidão. — Já não estás doente? — perguntou ela, acariciando-lhe a cara. — Estás tão pálido. — Amo-te — respondeu Sellnow, beijando-lhe as mãos. — Temos de dizer a Kresin que te devolva ao campo. Precisas de repouso, meu poeta. — Estou bem aqui. O trabalho é suportável e a comida também. As brigadas de trabalho recebem uma kacha especial e pode-se comprar muitas coisas na cantina. — Encostou a testa à testa estreita da mulher. — Tive tantas saudades tuas! — Já estou aqui. — Pois estás. — Quinze longos dias e quinze curtas noites! Sellnow respirava o sopro de Aleksandra, já não pensava que falara a Kresin da alegria por se ter visto livre dela. Estava nos seus braços e inspirava o perfume a rosas. Sem deixar de a abraçar, fechou a porta com a mão esquerda…
Quatro dias mais tarde, Sellnow recebeu correio. Para ele também era o primeiro depois de quatro anos. As letras delgadas e altas estendiam-se pelas linhas muito direitas. Em baixo, Sellnow viu a escrita infantil das suas duas filhas. «Meu querido papá…», leu. Deixou cair o postal e baixou a cabeça. Kasalinskaya estava na cidade, fora comprar carne para preparar um festim. «Meu querido papá…» Tremia, não conseguiu continuar. Tinha a impressão de que perdera o direito de receber aquela mensagem. Guardou-o ao peito, sem o ler, durante toda a manhã. O primeiro correio, depois de quatro anos de silêncio! Pensou nos dois primeiros anos, quando, recusando-se a acreditar no silêncio da pátria, perguntava, sempre que ia à Kommandantur: «Não há uma carta?… Não há um postal? Nada?» E o comandante, um capitão russo, de modos corteses, baixava tristemente a cabeça e dizia que talvez se esquecessem de quem morria lentamente na Rússia.
Ser esquecido? Marika esquecê-lo! «Eu espero por ti» tinham sido as suas últimas palavras. Recusava-se a acreditar no esquecimento; esperava um sinal… Aguardara durante dois, três, quatro anos… E o sinal chegou… na forma de um postal que dizia: «Meu querido Werner… Meu querido papá…» E Aleksandra estava em Estalinegrado, a comprar carne… Sellnow levou o postal para um canto do pátio, perto da cerca… «Nós estamos bem e esperamos, com todo o nosso amor, que a vida não seja muito dura para ti. A Marei cresceu bastante e ajuda-me na cozinha. A Lisbeth já vai à escola e desenha umas letras fantásticas. Todas as nossas esperanças, todos os nossos desejos, giram à volta do teu regresso. Penso sempre em ti, Werner, e só hoje compreendo o quanto te amo. A tua Marika.» «Meu querido papá. Estamos todas bem. Agora é verão e vou tomar banho no lago. Volta depressa. Mandamos-te muitos beijinhos. Marei e Lisbeth.» Sellnow encostou-se ao muro, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Marika… Marei… Lisbeth… Pensou depois em Aleksandra e apeteceu-lhe esborrachar a cabeça contra o muro, para acabar com tudo. Também bastaria escalar a cerca. A sentinela dispararia e tudo, tudo, terminaria… Vacilou, ergueu os olhos para o homem do longo capote pardo, com a metralhadora na bandoleira. As botas pisavam fortemente a parte superior do muro. Mas a razão venceu. Guardou o postal no bolso e regressou ao seu quarto, no outro extremo do pátio. A angústia tinha-se apoderado dele. Que iria dizer a Aleksandra? Devia mostrar-lhe o postal? Ela rasgá-lo-ia, arranhar-lhe-ia o rosto, ficaria louca e vingar-se-ia não nele, mas nos milhares de plennis entregues, indefesos, aos seus golpes. Iria transformar-se numa fera, como durante o amor. Para se justificar, tentou convencer-se de que se sacrificava pelos camaradas. Enquanto a amasse, ela abrandaria em benefício de todos, contrariamente aos primeiros tempos, em que era uma fúria de terror durante o dia, para se converter numa fúria de amor de noite. Depois da separação temporária, tinha-se tornado mais feminina, mais terna, mais paciente, mais descuidada, o que atraía de novo Sellnow, fazendo-lhe perder toda a sua vontade. O que começara por ser uma fogueira de puro instinto, transformava-se em amor a cada novo beijo, a cada novo abraço. Sellnow sentou-se ao pé da janela e, enquanto aguardava o regresso da amante, contemplou a fábrica coberta de neve. Quando ela chegou, o frio tinha-lhe avermelhado o rosto e os longos cabelos flutuavam debaixo do gorro achatado. Trazia muitos embrulhos num saco de pano e, largando-os, correu para Sellnow e beijou-o, fazendo-o tremer sob os seus lábios ansiosos e gelados. — Gastei metade do salário — anunciou ela, tirando o casaco. Sellnow olhava para o chão, para não ver os movimentos daquele corpo que, a cada instante, lhe provocavam ondas de desejo. — Comprei carne, salsichas, manteiga ucraniana, óleo de girassol, bolos e chá da China. Tens de te curar completamente, meu lobo. A sua voz transbordava de ternura, era como um estremecimento do Volga. Podia fechar os olhos
para o ouvir e sentir-se feliz… Aleksandra pôs os embrulhos em cima da mesa, começou a abri-los e Sellnow reparou na alegria com que o fazia. Levantou-se, aproximou-se e beijou-a na nuca. Ela voltou-se entre os seus braços para lhe devolver os beijos. — Estás contente, querido? — És um anjo, Aleksandra! — Com alguns defeitozinhos… — O mais grave dos quais é seres linda e selvagem e estares tão perto da natureza. Nunca conheci nada assim… A nossa vida era tão convencional, tão mole, excessivamente rígida entre o espartilho e os costumes. Parecia o vinho de uma colheita antiga, que se saboreia quando a noite cai, à luz do fogo que crepita na chaminé. Tu és o mosto em fermentação, espesso, espumoso, onde ainda ferve a força do sol, e esse mosto embriaga-me, tira-me a vontade. — Lamentas isso? Viu os lábios de Aleksandra à frente dos seus olhos, vermelhos, voluptuosos, ligeiramente entreabertos, e entre eles o brilho branco dos dentes. Tinha as pálpebras cerradas. Sellnow estremeceu e respondeu: — Não — mentiu corajosamente —, não, Aleksandra… — Puxou-a para si e escondeu a cabeça no peito quente dela. — Oxalá eu nunca tivesse nascido… O postal chegado da Alemanha estalou no bolso, como um aviso… «Meu querido papá… Volta depressa… Todas as nossas esperanças, todos os nossos desejos, giram à volta do teu regresso. Penso sempre em ti, Werner, e só hoje compreendo o quanto te amo. A tua Marika». Gemeu e abraçou com mais força Aleksandra, que gemeu também, mas murmurou: — Agora não… Vamos comer primeiro. Trouxe-te muitas coisas boas. Obedeceu-lhe e deixou-se cair quase sem forças num cadeirão que Kasalinskaya tinha mandado vir da cidade, para substituir o habitual tamborete de madeira dos prisioneiros. Enquanto ela cozinhava no fogão a petróleo, Sellnow não tirava os olhos da sentinela que ia e vinha sobre a muralha. Já não haveria fuga nem compromisso possível! Era pura e simplesmente impossível esquecer a véspera e o amanhã. De súbito, chegou-lhe um agradável cheiro a assado e ficou com água na boca. Comer e amar, eis o essencial, o resto não passava de fantasia e convencionalismo. Mas depressa afastou de si aquela filosofia das trincheiras e voltou os olhos para Aleksandra. Pensava no sacramento do matrimónio, na sua indissolubilidade, no dever religioso da castidade, no pecado do adultério. Mas de que valiam aquelas leis no domínio sem lei do cativeiro? Não justificam as condições excecionais, por si mesmas, as transgressões do código da vida moral? Sellnow voltou a pôr os olhos na Fábrica Outubro Vermelho. Sentia que todas aquelas reflexões não passavam de frases ocas, destinadas a adormecer a sua consciência. Um só postal da Alemanha
chegara para abalá-lo, para o separar interiormente de Kasalinskaya, para o devolver ao mundo burguês do seu casamento. Que aconteceria quando se encontrasse à frente da sua mulher, quando o amanhã empurrasse o hoje para ontem? Como se portaria quando estivesse de fato de bom corte e cocktail na mão, a receber os seus amigos admiravelmente cultos? Quatro anos de guerra, quatro anos de cativeiro… Oito anos sem camisa engomada, sem calças impecavelmente passadas, sem gravata, sem casaco, sem sapatos finos com os quais se caminha como se se pisasse algodão. «Temos de arranjar um pouco o ombro esquerdo, doutor. Oh, muito pouco…! E esse vinco no colarinho… Vamos corrigi-lo… A manga? Cai bem. Gosta do casaco assim largo…? Vai ficar satisfeito, doutor.» Olhou-se. O suor empapava o fato sobre o qual duas grandes letras, WP, estavam pintadas de branco, woienno-plenni… prisioneiro de guerra… Mas depressa esqueceria aquele WP depois de regressar a casa, assim como Estalinegrado, a Fábrica Outubro Vermelho, o campo 5110, a enfermaria… e Aleksandra Kasalinskaya… O assado chiava atrás dele. Aleksandra aproximou-se rapidamente para o beijar, antes de voltar para junto do fogão. Estava feliz. Sellnow levou a mão ao bolso e tirou o postal recebido da Alemanha. Tudo se transformará, pensou, para se consolar. Quando fosse libertado, todo o passado ficaria para trás das costas; a vida recomeçaria no ponto em que a guerra a interrompera, oito anos antes. Na sua infinita sabedoria, Deus permite que o tempo traga consigo o esquecimento. Era demasiado cobarde para tomar uma decisão; sobretudo cobarde demais para renunciar ao assado que Aleksandra trazia num prato de lata.
No campo 5110 trabalhava-se febrilmente na instalação da nova enfermaria. Böhler e Schultheiss não paravam um só momento. Emil Pelz sofreu uma crise cardíaca, causada pela fadiga, e foi o primeiro doente da ala acrescentada ao pavilhão. O próprio Kresin deu o seu contributo, ainda que se reprovasse intimamente por não conservar a distância indispensável entre russos e alemães. O comandante Vorotilov também visitava com frequência os trabalhos. Outro doente foi admitido: o tenente Piotr Markov. Entregou-se, não sem repugnância, nas mãos dos médicos alemães, mas não lhe restava alternativa, se não queria arriscar perigosamente a vida. Sofria de uma grave septicemia, que tinha dissimulado até então, torcendo-se de dor no seu quarto e observando, à frente do espelho, o desenvolvimento da doença. Quando o comissário Kuvakino lhe atirara o tinteiro à cabeça, caíra com tão pouca sorte que se ferira no peito com a caneta de tinta permanente. A pequena ferida pareceu-lhe insignificante ao princípio e nem deitou sangue, mas, dois dias depois, declarou-se uma inflamação, que se estendeu gradualmente até ao
pescoço, provocando dores, calafrios, vertigens e um enfraquecimento geral. Ardia-lhe a cabeça. Calou-se, por vergonha, durante duas semanas, mas as dores tornaram-se tão fortes que uma noite gemeu alto. Kresin, que ocupava o quarto ao lado, ouviu-o, foi lá, viu o peito inflamado e acordou Vorotilov e Kuvakino. — Não se pode fazer nada! — exclamou indignado. — Este palerma vai morrer por não ter falado a tempo! E será bem feito! Piotr Markov olhou-o suplicante. Vorotilov abotoou o dólman. — Vou buscar o Böhler — decidiu. — Não — murmurou o tenente, levantando a mão. — O médico alemão, não! — Então, deixem-no morrer! — gritou Kresin, brutalmente. Markov concordou. Sim, era melhor. Antes morrer! Kuvakino olhou para Vorotilov com uns olhos em que parecia ler-se o remorso. — Vá chamar o Böhler — disse também. — É a única coisa lógica a fazer. Durante o exame, Piotr Markov não olhou para o médico alemão. Tinha todo o peito roxo até ao pescoço. — Tem de ser operado imediatamente — anunciou Böhler a Kresin. — Está de acordo? — Claro! Abra-o! Faça-o às tiras! É o que merece. Schultheiss tirou da cama o novo pessoal de enfermagem e depois tapou o corpo de Markov, não deixando a descoberto senão a zona em que tinham de intervir. Contava já com ligaduras esterilizadas numa estufa elétrica, separadores e pinças, categute, seda, anestésicos e um conjunto completo de instrumentos cirúrgicos. Kresin observou os preparativos enquanto lavava as mãos no novo lavabo e calçava luvas de borracha, ajudado por um enfermeiro alemão. Depois aproximou-se da mesa e olhou para o rosto inchado do tenente Markov. — O melhor seria cortar-lhe a cabeça — disse em voz alta. — Assim eliminaríamos o mal pela raiz. Ninguém respondeu. Böhler percorreu com o olhar os instrumentos alinhados, enquanto os seus lábios se entreabriam num pequeno sorriso. «A enfermaria modelo de Estalinegrado!», pensou. Era obra sua. — Está preparado, doutor Kresin? — perguntou. — Estou. A respiração de Markov acelerou-se e sibilou. As mãos, amarradas dos dois lados da mesa, crisparam-se. Ao fundo, Vorotilov agitava-se nervosamente num tamborete, não se atrevendo a olhar para a mesa de operações, mas sentindo-se incapaz, ao mesmo tempo, de sair da sala. Schultheiss indicou, com um gesto, que a máscara de anestesia funcionava devidamente. Antes de começar a cortar, Böhler voltou-se para Vorotilov.
— Não sei se o poderei salvar. Antes de tudo, vou precisar de muito sangue. — Vou já buscar dadores — gritou o major, saindo precipitadamente. Enquanto Böhler operava, Vorotilov tirou todos os soldados da cama e consultou as suas cadernetas militares, à procura de homens com o tipo de sangue AB. Regressou com sete, que ignoravam o que lhes iam pedir. Naquele momento, Böhler fazia a extração do foco de infeção e o sangue já tinha empapado todas as compressas, saltando para o avental de borracha do cirurgião. Os sete soldados russos empalideceram, um, mongol, começou a gemer, mas Vorotilov esbofeteou-o e o homem calou-se. — Aqui estão os dadores de sangue — anunciou o comandante. — Há sete. Chegam? — Chegam. Vamos começar a transfusão. Kresin, também sujo de sangue, aproximou-se dos soldados e indicou um deles, robusto. — Vem cá tu. O russo estremeceu, benzeu-se, mas, depois de ter olhado para o camarada comandante, aproximou-se corajosamente da mesa onde Schultheiss preparava a transfusão. Dois enfermeiros alemães despiram-no e lavaram-no. Deixava-os fazer tudo, sem resistir, pois um só olhar para o tenente Markov tirara-lhe toda a força de vontade. Kresin empurrou-o com o joelho contra a mesa e procurou a veia do braço. — Se tudo correr bem — disse-lhe —, terás três dias de licença em Estalinegrado para recuperares o sangue perdido. — Queres tirar-me sangue, camarada médico? — disse o homem. — O meu sangue! Schultheiss enfiou a agulha e o russo começou a gemer, mas não resistiu, porque Vorotilov estava atrás dele de pistola na mão. O sangue saiu lentamente, através do tubo de controlo, para o braço de Markov e, entretanto, Böhler suturava a ferida. A transfusão acabou no momento em que cosia o último ponto. Já a sorrir, o soldado deitou-se numa marquesa, com um grande bocado de algodão no braço, sobre o local da picada, mas pouco depois levantou-se e olhou para o comandante. Kresin fezlhe um sinal amistoso. — Podes ir-te embora, rapaz, e volta só daqui a três dias. Satisfeito, o homem passou diante dos seus camaradas, que naquele momento o invejaram. O mongol que antes gemera cofiou o curto bigode. Três dias de licença! Virgem Santa de Kazan! Aquilo valia bem três litros de sangue! Kresin e Vorotilov ofereceram-se para velar Markov, por turnos. O tenente foi levado para o quarto que, durante o verão, tinha sido ocupado pelo aspirante. Kresin, que tinha feito a rendição às cinco da manhã, viu entrar Böhler. — Continua tudo bem? — perguntou o alemão. — Sim. Mas o que quer? Descanse — respondeu o russo. — Levanto-me sempre a esta hora. As minhas investigações sobre os tipos de sangue esperam-me
no laboratório. — Caramba! Trabalha demais, doutor. Deixe as investigações para um ajudante. — O doutor Schultheiss está completamente ocupado com o dispensário. Não posso sobrecarregá-lo mais. — Então vou mandar vir o Sellnow. Não posso consentir que trabalhe desta forma. Böhler sorriu e perdeu-se na escuridão do corredor. Kresin, junto a Markov, mergulhou nos seus pensamentos e, sem dúvida, chegou a um resultado satisfatório, pois esboçou um sorriso — para que Kresin sorrisse, tinha de estar excecionalmente contente. No dia seguinte de manhã foi a Estalinegrado, não para ver Sellnow e a sua Aleksandra, mas sim o comandante da divisão. O general Polovitzki bebia um copo de vodca, mas, quando a porta se abriu, apressou-se a esconder a garrafa, embora não tivesse sido suficientemente rápido. — Voltou a cair em pecado, camarada general? — perguntou Kresin, rindo abertamente. — Tinha-lhe proibido o álcool. — Não é álcool, é remédio — grunhiu Polovitzki, esvaziando rapidamente o copo. — O que quer? Alguma coisa para a sua enfermaria do cinco mil cento e dez? — Exatamente, camarada general. — Pretende transformar esse campo de prisioneiros num sanatório? — Mais ou menos. O tenente Piotr Markov está a ser tratado ali. O Böhler operou-o. Foi uma operação demasiado arriscada, audaz, com transfusão. O Markov sofria de um tal envenenamento de sangue que todos, até eu, como médico, o dávamos por morto. — E o alemão salvou-o? — Salvou. O general procurou atrás de si a garrafa de vodca, e uma ordenança trouxe-lhe outro copo. Polovitzki encheu ambos a transbordar. — Esse Böhler é o seu favorito. Deve ser muito bom. — Devemos-lhe que o campo cinco mil cento e dez não tenha sido dissolvido, por falta de efetivos, nestes últimos três anos. Salvou milhares de vidas com os meios mais primitivos. — Ah, sim! A famosa navalha! — O senhor julga que se trata de uma brincadeira — observou Kresin, em tom sinceramente ofendido —, mas eu vi a operação com os meus próprios olhos. — Uma patranha, meu querido camarada curandeiro. — A navalha ainda existe, o Böhler guardou-a cuidadosamente. Com ela, operou com sucesso um caso de apendicite, cosendo a ferida com seda tirada de um xaile roubado. — E que mais quer agora para o seu prodígio? — perguntou o general, depois de ter bebido e passado a língua pelos lábios. — Se a Rússia só tivesse a sua aguardente, ela bastaria para assegurar
a sua fama. — E também para causar mortes prematuras — respondeu Kresin, arrancando a garrafa das mãos do general. — O senhor tem uma enorme angina de peito, e não lho tenho ocultado. Qualquer dia o coração faz puf!, e será o fim do general Polovitzki. De que servirá então ostentar a Ordem de Lenine e ser «herói da Nação»? Não passará de um quintal de carne e ossos, que apodrecerão depressa. E tudo isto por causa da deliciosa vodca! Não volte a prová-la, camarada! — E… que quer o senhor, camarada Kresin? — perguntou o general, apoiando as mãos peludas na secretária. — Quero pessoal. O Böhler está a realizar importantes investigações e tem excesso de trabalho. Essas investigações são de enorme interesse para Moscovo, especialmente do ponto de vista da bacteriologia, pois vamos poder empregar vantajosamente os seus resultados para aumentar a produtividade dos trabalhadores, e é isso que realmente interessa aos nossos chefes… Antes de tudo, preciso de pessoal de laboratório. — Poderia dispensar-lhe alguém da farmácia da divisão. — Perfeitamente. Quem? — Terufina Tchurilova. — Uma mulher? — perguntou Kresin. — Nunca! — Porque não? Julgava-o muito acima disso, camarada. — Mas no campo há milhares de homens que não veem saias há cinco anos. Se vai a Tchurilova… Eu conheço-a, é linda como o diabo e georgiana como o camarada Estaline… Mas, camarada general, o campo vai tornar-se uma manada de cervos enjaulados! — Seguramente esses homens comem bem demais, hem? — observou Polovitzki a rir. — Não lhe desejo que o senhor coma um só dia como os plennis. Mas não se trata disso, eu preciso é de pessoal de laboratório. Essa Terufina não me convém, só vai criar mais sarilhos. Não tem ninguém disponível que não seja mulher? — A Tchurilova está muito bem preparada — respondeu o general, que conseguiu agarrar a garrafa de vodca, servindo-se de mais um copo. — Além disso, posso prescindir dela, porque não há nada para fazer no laboratório da farmácia. — É a sua última palavra, camarada general? — É. — Então, não adiantamos nada a discutir. Até à vista, camarada general, e não beba tanto! — Kresin levantou-se, foi à porta e virou-se. — Não me mande a Tchurilova. Não a quero. O general disse que sim, esvaziando depois o copo. Kresin foi-se embora, furioso. Depois, visitou Sellnow e passeou pela cidade. No dia seguinte de manhã, um camião atravessou a estrada do campo 5110, e dele foram descarregadas algumas caixas e malas, uma cama, um armário e um grande espelho. Depois apareceu
uma loura delgada e elegante, de botas altas e envolta num casaco de peles. Terufina Tchurilova acabava de chegar… No seu quarto, Kresin teve um verdadeiro acesso de fúria.
Böhler examinou atentamente a rapariga que se lhe apresentava. Falava bastante bem alemão e parecia um pouco tímida e reservada. — Mandaram-na para o laboratório? — perguntou com um sorriso. — Tem alguma experiência em análises sanguíneas? — Sim. Fiz algumas na clínica de Tbilisi. A rapariga tinha uma voz doce e grave, que não correspondia muito à cabeleira loura e ao rosto delicado, um pouco pálido. Debaixo do casaco trazia um vestido azul de lã, muito simples, e as suas formas eram quase infantis, com pernas compridas e bonitas e um colo de uma brancura deslumbrante. Contudo, o seu traço mais marcante era a limpidez dos olhos. — Será uma tarefa muito dura, Fräulein Tchurilova. Böhler mostrou-lhe o novo laboratório e, numa prateleira, uma longa fila de provetas coloridas. — O verão passado descobri vírus palúdicos em quase todos os prisioneiros do campo florestal. Existem meios para os destruir, mas não os temos. A Alemanha está longe e os Estados Unidos ainda mais… Na Rússia… desculpe-me… a indústria farmacêutica é um ramo da medicina muito descurado. Talvez isso se deva ao facto de o russo ser, por natureza, muito são e não conhecer as doenças menores. Pensei acudir não só em auxílio dos meus camaradas prisioneiros, como também dos seus compatriotas, pondo à disposição do Instituto Central de Moscovo os resultados da nossa investigação sanguínea, mas ainda me resta muito trabalho pela frente. — Não me assusta — respondeu Terufina Tchurilova, cujo rosto foi banhado por um raio de sol de inverno. — Se está satisfeito comigo… Böhler olhou-a com a desconfiança que todo o homem sente perante a beleza feminina. — Se o seu trabalho for tão bom como a sua figura, Terufina, ficarei muito satisfeito — disse. Ela seguiu-o com o olhar, enquanto ele se afastava pelo corredor, e o seu rosto enrubesceu ligeiramente. Kresin, que entrava no pavilhão, reparou nesse pormenor, e desapareceu no quarto de Markov, fechando a porta com um empurrão. Sentado junto da cama, Vorotilov refrescava a testa febril do tenente. — Já começou! — exclamou Kresin. — A Terufina já deita olhos doces ao Böhler! Isto é uma enfermaria, não é um bordel! — Cale-se! — ordenou Vorotilov. — O Markov ainda está a dormir… Kresin vacilou, desconcertado, durante um momento. — Vou ter com Polovitzki — continuou. — Ou leva a Tchurilova para Estalinegrado, ou mato-a!
A sua cólera desfez-se contudo na antecâmara do general e Terufina Tchurilova continuou na enfermaria. A chegada da rapariga loura causou grande perturbação em Yanina Salya. Certo dia, viu Schultheiss cumprimentá-la, segurando-lhe a mão na sua mais tempo do que o normal, e depois seguila com os olhos enquanto a bela russa entrava no laboratório. Yanina dominou-se, pôs um pouco de cor nas faces, pintou cuidadosamente os lábios, arranjou o penteado, percorreu vagarosamente o corredor e entrou no quarto de Schultheiss. Sentado à secretária, o médico, punha em ordem as fichas dos doentes. Ao ver Yanina, abandonou o lápis e levantou-se. — Vai-te já deitar! — ordenou. — Quem te autorizou a levantares-te? Vai para a cama! — Não — respondeu ela, sorrindo debilmente. — Como não? — Não me vou meter na cama… Ela é bonita? — perguntou devagar. — Não sei. Não olhei para ela — respondeu Schultheiss, encolhendo os ombros. — Mas seguraste-lhe a mão um grande bocado. — Sim? O médico sorriu e voltou para os seus papéis. Ela adivinhou o sorriso e bateu no chão com o pé, impaciente. — É horrível! — disse. — Certo. É horrível. Yanina olhou para ele. «Estaria a falar a sério ou a brincar?», interrogou-se. Vacilou, torceu um pouco as mãos unidas e levantou os olhos para o teto. — Que vem fazer aqui? — Trabalhar no laboratório. — Vai ficar muito tempo? — Vai. — E a Aleksandra Kasalinskaya? — Regressa depois da licença. — Então, vai arrancar os olhos à Tchurilova. — Porquê? É uma rapariga muito correta. — Mas acabas de concordar que é horrível. — Isso não quer dizer nada. Pode ter um excelente carácter… — O seu carácter também é horrível! — Isso não posso eu julgar. — Se eu digo que é horrível, é porque é! — replicou Yanina, batendo novamente com o pé no chão e mordendo o lábio. — Detesto-a.
— Conhece-la bem? — Vi como olhava para ti! Vou matá-la, se não te deixar em paz! — Então, Yanina… Aproximou-se dela e pôs-lhe a mão no ombro. A rapariga desfez-se em soluços, escondeu a cara no peito dele e agarrou-lhe a mão. — Diz que me amas! — gritou. — Que nem sequer vês a Tchurilova! Que ela é para ti como o ar, como uma onda suja do Don! Diz, Jens! — Sim, digo. Volta a meter-te na cama, Yanina. Isto é demais para ti. — Diz! — Sim, ela é tudo o que tu disseste — respondeu Schultheiss obediente —, mas agora volta para a cama. Eu acompanho-te. Agarrou-a por um braço e levantou-a da cadeira. Ela encostou-se um momento e beijou-o freneticamente. A seguir, voltou a ficar abatida, parecendo uma menina triste e desgraçada. Sacudiu-a um acesso de tosse, que tentou dissimular. — Que disparate! — exclamou Schultheiss, abanando a cabeça. — Podes matar-te, Yanina. Ao chegar ao quarto, a rapariga despiu-se e deixou que ele lhe vestisse a camisa, deitando-se e encostando a cabeça na almofada. — Ficas? — perguntou-lhe, sorrindo, feliz. — Sim, até que adormeças. Só te podes curar com repouso absoluto. — Eu só descanso quando estás ao meu lado. Agarrou-lhe na mão. A respiração dela acalmou e em breve adormeceu. Então Schultheiss retirou-se em bicos dos pés e, ao percorrer o corredor, olhou para o interior do quarto de Markov. Kuvakino lia e o tenente ainda dormia, pois desde que fora operado acordava sempre muito tarde. Kresin afirmava que ele era muito preguiçoso e que se aproveitava das circunstâncias. — Viu o comandante? — perguntou Schultheiss. — O comandante Vorotilov? Niet — respondeu o comissário. — Talvez esteja no quarto. — Obrigado, comissário. — Uma pergunta, doutor. — Faça favor. — Gostava de dirigir uma clínica russa? — Muito obrigado, comissário — respondeu Schultheiss, com um leve sorriso —, mas neste momento só tenho um desejo: a liberdade. Kuvakino franziu involuntariamente o semblante e voltou a pôr os olhos no livro. Quando o médico já tinha fechado a porta, murmurou: — Estes alemães são uma corja! Nenhum deles devia voltar para a Alemanha. Ao chegar lá fora, Schultheiss curvou-se para enfrentar o vento que soprava dos bosques,
levantando a neve. As sentinelas encolhiam-se nas torres, os pavilhões quase desapareciam sob o espesso manto branco e dos telhados dos edifícios desprendiam-se colunas de fumo flutuantes. Havia luz no quarto de Vorotilov, e Schultheiss, depois de hesitar um momento em frente da porta, bateu. Necessitava da ajuda do comandante por causa de Yanina Salya, pois a vida da rapariga estava em jogo. Contudo, o jovem alemão também sabia que nunca tinha corrido um perigo tão grande como naquele momento.
O ambiente continuava sombrio no pavilhão, depois da morte de Julius Kerner, o seu antigo animador. Peter Fischer tinha herdado os pobres bens do camarada, incluindo a corneta, instrumento que estudava com ardor, com um professor de música do bloco nove. Hans Sauerbrunn continuava a tirar proveito do seu nariz partido. Tinha sido destacado para a cozinha, onde o seu primeiro trabalho era deitar olhos ternos a Bacha Tarrasova. O cozinheiro surpreendeu-o, certo dia, com a mão debaixo das saias da mulher, e deu-lhe uma forte bofetada, que Sauerbrunn aceitou filosoficamente, dizendo que não era um preço muito elevado pelo pedaço de gordura que Bacha lhe daria, como recompensa por aquele gesto de ternura. Zelava para que as rações dos homens do seu pavilhão, que cada dia se tornavam mais escassas, fossem bem medidas. Seiscentos gramas de pão duro, uma escudela de sopa de couves e duzentos gramas de milho era pouca coisa para o duro trabalho nos bosques ou no campo. Faziam-se preparativos para o Natal. Uma orquestra e um coro ensaiavam, ia levar-se novamente a cena uma opereta, composta por um plenni, devendo-se a letra a um camarada recém-chegado a Rostov, e Karl Georg exercitava-se no bailado, o que lhe valeu a alcunha de «cisne moribundo». O campo ficou emocionado quando o comissário trouxe de Estalinegrado as Notícias para os Prisioneiros de Guerra na União Soviética, jornal impresso num campo perto de Moscovo, e também o Tägliche Rundschau, além do Der Aufbau, órgão cultural do SED. Cada pavilhão recebeu um jornal, cada bloco uma revista, e os plennis puderam finalmente ler em alemão, depois de tantos anos. — Também se passa fome na Alemanha — observou Karl Georg, que lia o Tägliche Rundschau. — Continua a haver cartões de racionamento como durante a guerra, mas agora valem muito menos. — De que data é a tua folha de couve? — perguntou Sauerbrunn. — De dezassete de junho de quarenta e sete. — E ainda não há comida bastante? — É o que diz aqui. No sector L distribuíram trezentos gramas de peixe por pessoa, na semana passada; no sector E, os ovos não serão rateados senão daqui a quinze dias e dão cem gramas de salsicha por pessoa, em substituição do peixe. — Quase como aqui — observou Peter Fischer, que limpava a corneta —, mas há qualquer coisa
que não encaixa. A minha mãe mandou-me dizer que vai tudo bem e que tem comida suficiente. Se pudesse, mandava-me um embrulho todas as semanas… — Onde vive a tua mãe? — Em Oldenburg. — Este jornal é de Berlim Leste e faz referência a toda a província de Brandeburgo. — Os russos estão lá! — E em Oldenburg? — Os ingleses. Olharam-se em silêncio. — Estão a gozar connosco! — exclamou Georg. — Porque é que há mais comida no Oeste que no Leste? Disseram-nos que os capitalistas americanos matavam à fome o Ocidente, que os açambarcadores levavam a Alemanha Ocidental à ruína e que temos de nos tornar comunistas para salvar a Alemanha e assegurar a liberdade, a igualdade e a fraternidade, o pão e a justiça para todos! Sauerbrunn pôs o jornal sobre a mesa e gritou: — Tretas. Já ouviram falar num tal Kleist? Peter Fischer fez que sim com a cabeça. — Era um poeta alemão que deu um tiro na cabeça, e fez isso porque ninguém o queria ler nem falar com ele. — Era comunista, por acaso? — Qual quê? Ainda nem havia comunismo! — Mas aqui diz: «O ato de Kleist não foi mais do que uma manifestação de revolta contra o capitalismo dominante, um brado comunista contra os burgueses escravizadores. O seu Michael Kohlhaas é digno de um escrito de Lenine. — Disparates! — Mas, se é assim, porque as publicam? — É propaganda política. — Mas são mentiras! — A política consiste precisamente em enganar os homens e abusar deles. Todos os meios são bons para alcançar o fim. — Então, eu abandono o Partido Comunista! — exclamou Sauerbrunn. — Amanhã irei ter com o comissário. Vou perguntar-lhe porque mentem os jornais e vou mandá-lo dar uma curva, a ele e ao Partido. — Só vais conseguir que te partam o nariz segunda vez — disse Peter Fischer. — Só conta uma coisa: voltar para casa o mais depressa possível. Depois logo veremos. Por agora, basta dizer que sim a tudo e cantar a Internacional quantas vezes quiserem… ainda que nos meta nojo. Nos jornais só se devem ler as notícias e não a política. O que grita mais forte chega a ministro e a chefe de
Estado. Acontece sempre o mesmo, rapazes! Para que matarmos a cabeça? Quando estivermos em casa será diferente. — Qualquer um que te ouça toma-te por comunista convicto — disse Karl Georg. O enfermeiro Emil Pelz entrou no pavilhão. — As coisas vão mal na enfermaria — anunciou. — A Salya tem ataques desde a chegada de Tchurilova. Como vai ser na próxima semana, quando a Kasalinskaya voltar? Além disso, diz-se que virão enfermeiras dos campos de Krasnopol e de Stalino. — Alemãs? — gritou Peter Fischer. — Claro, enfermeiras alemãs. — Ratas conservadas em fenol! — observou Karl Georg. — Vou ficar logo doente… com ciática no alto da virilha. — Porco! — exclama Emil Pelz, sentando-se à mesa. — Isto não é tudo… Vamos uma biblioteca e poderemos formar uma equipa de futebol, disse-me o doutor Kresin. — Devia estar bêbedo. — Não estava. É um novo truque de Moscovo… Como lhe chama ele? Ah, sim! Kulturnaya Zhizhn! — Preferia meio quilo de pão! — grunhiu Sauerbrunn. — Vocês são um monte de parvos! — gritou Karl Georg. — Fiquem-se com o futebol. Isso é uma coisa que vocês percebem. Será divertido jogar na primavera! — Com um litro de sopa no estômago? — retorquiu Peter Fischer. — Meu rapaz, se em Moscovo se ocupam destas coisas, acho que já não podemos contar com uma rápida repatriação. Essas palavras produziram efeito. Fez-se silêncio e todos refletiam. Campos de jogos, uma biblioteca, enfermeiras alemãs? Evidentemente, aquilo significava qualquer coisa: não tinham intenção de libertar os prisioneiros. — Penso que nos estão a preparar alguma sacanice — comentou, finalmente, Karl Georg, expressando a opinião geral. Pensaram em Julius Kerner, que se tinha deitado nu na neve para morrer. A noite invernosa, gélida, implacável, parecia penetrar no pavilhão pelas inúmeras fendas. — Há quatro anos que estamos fechados. Vamos deixar-nos abater agora? — perguntou Emil Pelz, afastando os jornais da mesa, para lá pôr o baralho. — Então! Vai tu, Hans! E se alguém falar de política, dou-lhe um murro! O vendaval rugia lá fora.
Quando Schultheiss entrou, Vorotilov estava a ler o Pravda, sentado em frente do rádio. A lareira, cheia de lenha e carvão, estalava e, o comandante, acalorado, tinha tirado as botas e bebia vinho da
Crimeia. A presença do médico alemão deixou-o boquiaberto. — Passa-se alguma coisa com o tenente Markov? — perguntou, fazendo sinal ao médico para que se aproximasse. — Não. Gostava de lhe falar de questões pessoais, comandante. — Pessoais? — repetiu o russo, com um sorriso cínico. — Não sabia que um plenni podia ter preocupações pessoais ao ponto de querer falar delas ao seu carcereiro russo. — Também se trata da sua vida, comandante. — Essas palavras parecem misteriosas e ameaçadoras. Schultheiss enxugou a testa. O calor perturbava-o e fazia latejar-lhe loucamente o coração. — É um assunto muito grave. Diz respeito a Fräulein Salya. — A Yanina? Sente-se, doutor. Tem más notícias a comunicar-me? — A Fräulein Salya não segue os conselhos dos médicos. Não podemos garantir nem melhoras nem qualquer cura, se continuar a fazer o que lhe está formalmente proibido: levantar-se, andar apenas com vestidos leves, enervar-se, não tomar os medicamentos… — Falarei com ela hoje mesmo. — Não serve de nada. Já tentei todos os argumentos possíveis. Sofre de um complexo. — Como disse? — Tem ciúmes. Schultheiss sentiu que uma sensação de frio se apoderava dele. Pronunciara a terrível palavra, tinha de se explicar e então, entre o comandante e ele, passaria a existir uma hostilidade mortal, conflito no qual ele, um plenni sem qualquer direito, que dependia da boa vontade do seu carcereiro, ficaria na pior posição. — Ciúmes? De quem? — Da nova ajudante, de Terufina Tchurilova. — Mal a conheço. Como pode a Yanina sentir ciúmes dessa mulher? — Porque eu estou muitas vezes perto dela, comandante. Vorotilov baixou os olhos e agarrou no copo. «Vai parti-lo», pensou Schultheiss. As articulações dos dedos do major ficaram brancas. — Sim? — perguntou com voz rouca. — Sim, comandante. — O doutor Böhler sabe isso? — Não. — E o doutor Kresin? — Também não. Ninguém sabe, exceto o senhor, a Yanina e eu. — Porque mo disse? — perguntou Vorotilov, servindo-se, com as mãos trémulas, de um copo de vinho. — Posso esmagá-lo como um inseto, posso vingar-me de si, dando-lhe a morte mais horrível
que se possa imaginar. Nós, os russos… — Eu sei, comandante, e ponho-me inteiramente nas suas mãos. — Quer morrer? — Não, de maneira nenhuma, mas a saúde da Yanina está primeiro que a minha própria vida. Tem de se curar… Nenhum sacrifício pode ser demasiado grande. — Ama a Yanina? — perguntou Vorotilov, com um olhar em que brilhava todo o gelo da Sibéria. — Sim. — E atreve-se a dizer-mo! — Vorotilov levantou-se de um salto, passeando pelo quarto com grandes passadas. — Devia atirá-lo à neve, nu, e também posso simplesmente matá-lo. — Fixou os olhos no coldre pendurado na parede. — Bastaria eu dizer que me quis atacar. — Pode, de facto, mas a Yanina não se calará e contará tudo. — Matá-la-ei a ela depois! Uma russa com um plenni! — O rosto do comandante corou violentamente. — Se você fosse russo, bater-nos-íamos por ela, mas é alemão… E acaba de me ofender não só a mim, como a todo o meu país. Informarei Moscovo. — Como quiser, comandante, mas a Yanina é mais importante que tudo isso. Temos de a salvar, a vida dela corre perigo. Voltou a cuspir sangue… Não deve enervá-la nada. — Você é que a excita, com o seu amor. — O nosso amor é puro, comandante. Basta-nos vermo-nos, agarrarmos as mãos, falar um com o outro, enchermos o olhar de melancolia… — Romantismo alemão! E isso agrada àquela boneca! Do lobo das estepes ao pardal da catedral! — Vorotilov parou na frente de Schultheiss. — Devia partir-lhe os queixos. — A sua paixão, comandante, precipita a morte de Yanina. É uma criatura frágil como a porcelana da China, que se quebra em mãos demasiado brutais… — As suas são mais suaves, não é verdade? Seria capaz de acariciá-la sem fazer mossa! Seria capaz de a beijar sem que lhe sangrassem os lábios! Vá para o diabo com a sua alma alemã! Por que razão ainda está vivo? Porque não o matou o inverno russo? Porque não morreu de fome? Porque temos sido tão humanos consigo? Sinceramente, há vinte milhões de alemães a mais no mundo, e você é um deles. Gostava de lhe fazer mal! — E porque não o faz? Vorotilov continuou a percorrer o quarto com passos rápidos. Fazia esforços sobre-humanos para não olhar para Schultheiss. — Que devemos fazer em relação a Yanina? — perguntou. — Mandá-la embora do campo? — Sim. — Para onde? — Para um sanatório da Crimeia. — E quem pagará?
— O seu Estado progressista, amigo dos trabalhadores, paraíso dos operários. — Porque diz isso? — perguntou, de costas para Schultheiss. — Porque é verdade. — A Rússia alimenta-o há quatro anos. Não se pode queixar dela. — E o senhor, comandante? — Eu sou um soldado deste Estado. Tenho orgulho da minha pátria, da minha Rússia. — Então deixe que a Yanina morra orgulhosamente — respondeu Schultheiss, abrindo a porta. Vorotilov virou-se bruscamente. — Onde vai? — gritou em tom ameaçador. — Para a enfermaria. Tentarei salvar os pulmões de Yanina com um pneumotórax. Recebemos finalmente o material necessário, mas não basta. Deve ir-se embora daqui, afastar-se de si… e de mim. — A menos que seja você a afastar-se… — Seria o mal menor, mas apenas precipitaria o desfecho. Em todo o caso, a escolha está nas suas mãos, comandante. — Fique! Vorotilov dirigiu-se à porta, fechou-a e guardou a chave no bolso. Depois, correu a cortina da janela e virou-se. O coração de Schultheiss parecia prestes a rebentar. — Responda-me com franqueza — disse Vorotilov, com voz dura. — A Yanina podia curar-se se você e ela… — Julgo que sim. — Porque não o faz? — Porque sinto escrúpulos em tirar a amante a um oficial… ainda que se trate de um adversário. Por consideração para consigo, comandante, até agora lutei contra esse amor, mas chegámos a um ponto em que não podia continuar a calar-me. Começo a compreender que fiz um disparate ao confiar em si, porque o senhor sacrificará Yanina ao seu amor, e eu não posso impedi-lo, porque sou apenas um plenni… A única coisa que posso fazer é contar-lhe tudo e deixar que decida. Se conheço bem a alma russa, o senhor irá sacrificar-nos aos dois, a Yanina e a mim, e a honra do oficial enganado… até agora apenas em pensamento… será lavada. Duas vítimas… cairão perto do bosque de cruzes que se estende do mar Branco ao mar Negro. Vorotilov aproximou-se de Schultheiss e, sem dizer nada, esbofeteou-o. — Esta é pelo insulto à minha pátria! — gritou. Depois tirou do bolso um maço de cigarros turcos, abriu-o e ofereceu-o ao médico alemão. — Agora vamos fumar um cigarro, entre homens… Pelo seu valor, doutor Schultheiss. O médico cambaleou, acabou por aceitar o cigarro e deixou que o comandante o acendesse. Ardia-lhe a face. Sentou-se à mesa. Vorotilov encheu um segundo copo, depois estendeu-lho.
— Só uma coisa me interessa — disse o major. — Salvar Yanina. Depois esvaziou o copo de um trago. Schultheiss não bebeu, compreendendo até que ponto o russo amava Yanina, até ao ponto de a libertar dele, para a salvar… Era o sacrifício de um homem que não vê outra solução senão afastarse. Ele, o russo, o vencedor, o todo-poderoso, renunciava voluntariamente aos seus direitos em benefício de um plenni! Schultheiss esmagou o cigarro no cinzeiro. Amargava-lhe. — Sem dúvida é melhor que a Yanina vá para a Crimeia — disse. — Para nós os dois. — Mas não se curará… Você próprio o afirmou. — Pelo menos viverá mais tempo. Vorotilov agitou a sua mão forte. — Não me fale como médico, mas de homem para homem. Estamos sozinhos, a porta está fechada à chave e corri as cortinas das janelas. Ninguém nos pode interromper. Já não somos vencedor e vencido, um comandante e um plenni, mas apenas dois homens que amam a mesma mulher, um dos quais se afasta porque é o melhor. É tudo, doutor Schultheiss. Empurrou o copo de vinho para o médico e levantou o seu. — Bebamos pela centelha de humanidade e honradez que nos tem salvo no decorrer dos séculos. Schultheiss também levantou o copo. — Você é um homem verdadeiramente extraordinário — disse sinceramente. — Durante quatro anos aprendi a temê-lo… Agora admiro-o. Vorotilov não respondeu. Com o copo ainda levantado, seguia com o olhar o fumo do cigarro. A lenha ardia na lareira, cujo metal estava ao rubro. Yanina, pensou o comandante. Yanina! Oh, meu Deus! Se nunca tivesse havido esta guerra cruel e funesta!
O que era apenas um boato transformou-se em sensacional realidade três dias depois. Os plennis reuniram-se, de boca aberta, à frente dos pavilhões, na neve, para verem os camiões que atravessavam o portão do campo e paravam diante de Vorotilov, de Kresin e de Böhler. Quando os taipais caíram, apenas viram, ao princípio, caixas de madeira e de cartão, mas depressa surgiram formas encasacadas, que desceram pela escadinha de trás. Mulheres…! Uma… duas… três…! Três enfermeiras alemãs! Vinham dos campos de Krasnopol e de Stalino. O general comandante de divisão tinha-as pedido, mandando uma longa informação elogiosa sobre a enfermaria modelo, organizada em Estalinegrado por Böhler e pelos seus ajudantes. Ali também se tratavam russos, entre os quais se encontrava o tenente Piotr Markov, que sofria de uma grave septicemia. Böhler salvara-lhe a vida, por assim dizer, graças a várias transfusões de
sangue. Por outro lado, o comissário Kuvakino indicara que o estado de espírito no campo de Estalinegrado era excelente e muito favorável aos comunistas, e foi por isso que Moscovo tomou rapidamente uma decisão favorável. Ao ver as três mulheres, Böhler virou os olhos para Vorotilov. — Comandante, foi o senhor quem pediu enfermeiras alemãs? — Não, foi o doutor Kresin, mas eu já sabia. — Porque o fez? — perguntou Böhler a Kresin. — Para o ajudar. Quero que a nossa enfermaria modelo seja a melhor de todos os campos de prisioneiros. — Mas a chegada destas raparigas provocará um verdadeiro tumulto! Antes de amanhecer, a enfermaria estará totalmente cheia. Virão de todos os lados. — Não, se for eu a escolher os doentes — respondeu Kresin com secura. — Por outro lado, isso não irá acontecer. — Veremos. Böhler aproximou-se das três enfermeiras e estendeu-lhes a mão. — Dou-lhes as boas-vindas ao campo — disse com alguma ironia —, mas teria sido melhor que as mandassem para vossas casas. Sou Böhler, médico-chefe desta enfermaria. — Ingeborg Waiden — apresentou-se uma delas, apertando a mão estendida. — Sou de Kiel; enfermeira diplomada. — Há quanto tempo está na Rússia? — Desde quarenta e três, mas só fui feita prisioneira dois anos depois, em Koenigsberg. — Martha Kreuz — disse outra. — Erna Bordner — murmurou a terceira. — As duas de Stalino — informou Martha Kreuz. — Estamos presas desde quarenta e quatro e já trabalhámos, até agora, em dez campos. O último foi o de Sverdlovsk, perto de Stalino, o campo dos tatuados. — Dos tatuados? — Sim. Estão lá reunidos todos os que trazem a marca do grupo sanguíneo tatuado no braço e aqueles que têm uma cicatriz por terem tentado fazer desaparecer a tatuagem por meio do fogo. Todos são considerados suspeitos e enviados para Sverdlovsk. Muitos deles estão, também, noutro campo mais a sul. Böhler olhou para as raparigas. Pareciam bem alimentadas, apenas as rugas da boca e as olheiras evocavam os duros anos e as espantosas provações que lhes tinham feito sofrer os tártaros, os mongóis, os russos brancos e os soviéticos fanáticos. O oficial que as acompanhava entregou os seus documentos ao comandante Vorotilov, que se voltou para o pequeno grupo, ao qual se acabavam de juntar Kresin e Terufina Tchurilova.
— Ingeborg Waiden? — chamou o comandante. — Presente! — Sou major. — Presente, senhor major! Böhler mordeu os lábios e fitou Kresin, que sorria. Os plennis olhavam de longe. — Erna Bordner? — Presente, senhor major! — Martha Kreuz? — Presente, senhor major! — Irão prestar serviço na enfermaria geral do campo. O camarada doutor Sergei Basov Kresin e o médico alemão irão indicar-lhes as tarefas. Se vier a saber que têm relações com os prisioneiros de guerra ou com os soldados russos, mando-as fuzilar. Compreendido? — Sim, senhor major — responderam as três. Vermelho de ira, Böhler voltou-se para Kresin. — É uma indignidade! — protestou. — Não se tratam enfermeiras desta forma. — Caluda — respondeu grosseiramente Kresin. — Alegre-se por ter estas mulheres aqui. O camarada comandante deve ter as suas razões. — Essas suspeitas são humilhantes para estas jovens, exijo que as tratem decentemente. — O senhor não exige nada, é um prisioneiro, doutor Böhler. Terá, por acaso, esquecido que não passa de um plenni? Ou subiram-lhe os fumos à cabeça? Aqui não exige, limita-se a obedecer. Böhler olhou para Kresin estupefacto e indignado. Aquela mudança espantava-o. Porque apareciam, de repente, aquela brutalidade e aquela altivez? Teriam chegado novas ordens de Moscovo, prescrevendo que se apagassem as amizades passadas? Os russos não conheciam outros deuses senão os pontífices de Moscovo, cuja palavra era para eles a lei e os profetas. O comandante guardou os papéis num bolso interior e voltou-se, com ar sério, para Böhler. — Prepararam alojamento para as enfermeiras? — Sim, no novo pavilhão há um quarto livre. — Muito bem. Eu mesmo irei examinar a forma como ficam instaladas. Ficarão subordinadas à camarada Kasalinskaya e à sua adjunta, a camarada Tchurilova, sob a minha autoridade, como é evidente. Ficam à disposição da sua enfermaria. Para tudo o que lhes disser respeito, o senhor deve dirigir-se a mim. Böhler olhou para ele, sem responder. — Não me ouviu? — perguntou Vorotilov, em tom seco. — Sim… senhor major. Ao ouvir a palavra «senhor», Vorotilov fechou bruscamente os olhos, começando imediatamente a caminhar sobre a neve, em direção ao edifício do comando.
Kresin seguiu-o com o olhar e virou-se para Böhler. — O Vorotilov preocupa-me — disse em voz muito baixa, mostrando inquietação. — Mudou desde ontem… Está calado, amargo, oscilando entre o ódio e a amizade. Jul… — calou-se para ver se alguém o estava a ouvir —, julgo que já não é um bom comunista. — E então? — perguntou Böhler, encolhendo os ombros. — Seria o fim da sua carreira. Vadislav Kuvakino não sentiria o menor escrúpulo em informar Moscovo. Böhler adotou uma expressão pensativa e fez sinal às três raparigas para que o seguissem. A Tchurilova, ao vê-los aproximarem-se da entrada da enfermaria, empalideceu e o rosto crispou-selhe. Já as detestava pelo simples facto de estarem ali à volta de Böhler. Yanina Salya também as observava da janela. Tinha posto um roupão de banho sobre os ombros e os seus olhos examinavam, inquisidores, as três alemãs. Fechou-se uma porta nas suas costas, o que a fez voltar-se assustada. Schultheiss olhava para ela com uma expressão severa. — Estão aqui, Jens — disse, suavemente, quase com lágrimas nos olhos. — Quem? — Três raparigas alemãs. São bonitas, altas, esbeltas, fortes… Muito mais bonitas do que eu! Não passo de um cadáver que respira, apenas um cadáver. Essas raparigas alemãs são muito melhores que eu! Schultheiss abraçou-lhe os ombros trémulos e olhou para a praça nevada, aproximando ternamente o seu rosto do de Yanina. — Ninguém é mais bonito que tu, Yaninachka. — Sou um cadáver que anda, Jens. — Viverás, Yaninachka… Tens de viver, porque eu te amo. Ela procurou-lhe os lábios para um longo beijo. Schultheiss libertou-se muito suavemente dos braços nus e cálidos e, por sua vez, beijou-lhe os olhos. — Deves ser obediente, Yaninachka, e ficar na cama. Deita-te. — Amo-te — murmurou ela, em voz quase apagada. — Morrerei se não me… Atirou-se bruscamente a ele e abraçou-o freneticamente. Com a mão direita agarrou-lhe a camisa no peito, tentando abri-la. Ele impediu-a. — Toma-me — gemeu ela. — Possui-me… Faz qualquer coisa, estrangula-me, tira-me a vida com as tuas mãos… Sem ti não existo. Foi sacudida por um brusco acesso de tosse. Caiu em cima da cama e levou as mãos à boca. A angústia da morte brilhava-lhe nos olhos e um delgado fiozinho vermelho corria-lhe entre os dedos… Schultheiss precipitou-se para um canto do quarto, regressando com uma folha de papel. Separoulhe as mãos da boca, embebendo o sangue.
— Tem calma — disse. — Acalma-te, Yaninachka. Deitou-a, tapando-a até ao pescoço. Depois sentou-se junto da cama, agarrou na pequena mão — de menina, pensou — e brincou com os dedos. Ela olhava para ele a sorrir. — Meu querido louro! — murmurou com ternura. — Volto mais tarde — prometeu ele. — Ficas toda a noite? — perguntou ela, radiante. — Fico, Yaninachka. — Quando formos completamente felizes, abriremos a janela para ouvir o murmúrio dos bosques do Volga… E eu hei de ter-te nos meus braços, muito perto de mim, muito, para que o teu sopro me acaricie… Conheces Hafiz? — O poeta persa? — Sim. — Aproximou dela a cabeça do jovem médico para lhe falar ao ouvido. — Começou um poema que nunca acabou. O mundo é uma concha gigante, com uma pérola maravilhosa: tu… — Não é verdade que é bonito? — Muito bonito, Yaninachka. A rapariga fechou os olhos. — Estou cansada, Jens, tão cansada…! Quando o cansaço a adormeceu, Schultheiss soltou-se suavemente e tapou-lhe os braços. Pôs mais lenha no fogo e saiu em bicos dos pés. No corredor, encontrou Böhler, ainda furioso com Vorotilov. — Chegaram as nossas enfermeiras, Schultheiss. — Vi-as da janela, doutor. — Vorotilov tratou-as de forma indigna. Pergunto-me o que lhe terá acontecido, está completamente transformado desde ontem. Schultheiss não respondeu e nem sequer se perturbou. Não ignorava os sofrimentos de Vorotilov e continuava a pensar no motivo que levara o comandante a não o matar após a dolorosa conversa que tinham tido. Böhler olhou para os papéis que Kresin lhe entregara. — A enfermeira Ingeborg Waiden, diplomada pela Cruz Vermelha, trabalhou durante dois anos em dispensários pulmonares, encarregando-se ela mesma dos pneumotórax. Cedo-lha, Schultheiss, pois aliviará o seu trabalho. As outras duas irão para a cirurgia, não necessitamos de ajuda para os doentes; chega-nos Pelz. Antes de mais, temos de descobrir os fingidores. Podem fingir-se doenças
de estômago, e todos têm debilidade cardíaca… Mas nenhum deles se atreverá a fazer um buraco no corpo, apenas para se aproximar de uma rapariga. Schultheiss agarrou nos papéis de Ingeborg Waiden e examinou-os rapidamente. — É de Kiel? — perguntou. — Sim, da sua terra, Jens — respondeu Böhler, sorrindo e levantando um dedo. — Mas tenha cuidado, não faça asneiras! — Esteja descansado, doutor. — Kasalinskaya regressa depois de amanhã. Pergunto-me como irá tratar estas raparigas. — Seguramente, de uma forma nada agradável. — Sim, é isso que eu temo. Chegaram até eles uns gemidos vindos do quarto do tenente Markov. Böhler olhou para a porta fechada. — Terei sorte se o salvar — confessou em voz baixa. — Kuvakino continua junto dele. Parece que o comissário descobriu que também possui coração. Tem alguma coisa que fazer agora? — Não, doutor. — Então, venha comigo ver o Markov. Quero examinar essa septicemia.
— Depois de amanhã, vou-me embora, Werner — disse Aleksandra, enroscando-se ternamente em Sellnow. — Não voltaremos a ver-nos durante uma longa semana. Melhor, pensou, sentindo-se enojado consigo mesmo. Pela primeira vez, tinha enganado a esposa e as filhas consciente e deliberadamente, desprezando a sua confiança, a sua fé, o seu amor. — Não me dizes nada? — insistiu ela. — A tua partida vai fazer-me sofrer muito — mentiu. — Mas ainda temos duas noites, durante as quais poderei esfrangalhar-te. O seu riso profundo e quente fê-lo estremecer, como sempre. Os dentes de fera brilhavam entre os lábios vermelhos e húmidos. Levantou-se de um salto, estirando ao sol o seu corpo nu; depois, procurou os chinelos com o pé e foi até ao fogão, para fazer café. Sellnow seguia-a com os olhos, vendo aquela mulher selvagem e insaciável, contemplando-a como um quadro que se sabe que nunca mais se voltará a ver. — Pedirei a Böhler e a Kresin que te devolvam ao campo — anunciou Aleksandra pouco depois. — Faço falta aqui — balbuciou ele. — Que pensariam os prisioneiros, se me fosse embora? Já me habituei à fábrica. — Mas não podemos continuar a ver-nos, Werner! Sentou-se para pôr o sutiã e depois calçou as meias. Sellnow desviou os olhos, pois o sangue começava de novo a ferver-lhe. Maldisse-se interiormente e cerrou os punhos contra o cobertor…
Nunca mais voltarei para o campo, disse. Tenho de esquecer Aleksandra, preciso de aprender a odiá-la. Kasalinskaya vestiu-se devagar, depois de se lavar na bacia, perto da porta. — Não te levantas, Werner? Queres que eu examine os homens? Descansa; eu encarrego-me do teu trabalho. — Não, obrigado. Sellnow saltou da cama, vestiu-se rapidamente e, olhando pela janela, viu a longa fila de doentes que esperava na neve. Um enfermeiro andava de um lado para outro, inquirindo as queixas. Alguns perguntavam onde estava o médico, pois o enfermeiro encolheu várias vezes os ombros, apontando para a porta do consultório. De repente, Sellnow lembrou-se de uma conversa que tivera com Böhler, no fim da qual dissera: — A consciência é o vício fundamental da humanidade. Para alcançar o êxito, é preciso desprendermo-nos dela; só triunfam os que não têm escrúpulos. O ideal da bela alma, a honra a qualquer preço, são apenas atoardas antiquadas. Fidelidade à bandeira? Outra atoarda! Antes a morte que a desonra! Outra idiotice. Estou-me nas tintas para isso, desde que viva. A honra de ser oficial? Deus meu! Usamos essa honra como uma condecoração, exibimo-la e, no nosso interior, existe o mesmo porco que nos demais. A honra das associações de estudantes? Ah, sim! Enquanto estivéssemos dispostos a bater-nos, ou bebêssemos pelos sapatos nas farras, éramos os donos do mundo. Contudo, depois de termos sido soltos sobre a humanidade, convertíamo-nos em idiotas iguais aos outros; denunciávamo-nos, boicotávamo-nos, disputávamo-nos ferozmente a clientela. «Os médicos são os maiores glutões», diz um ditado alemão. Quanta razão tem! E a honra, em si, de ser homem? Que atoarda, também! O que distingue o homem da besta? A inteligência? Seja! Mas, e além disso? Bebe, come, ronca, acasala, engendra, morre, apodrece… Não falemos mais. A separar ambos apenas a civilização e um pouco de cultura compulsiva como uma capa atirada sobre a nossa insuficiência. Onde se esconde a alma e a honra absoluta? E a consciência? Sim, atoardas, palavras ribombantes e nada mais, meu querido chefe médico! Böhler tinha ficado a olhar para ele durante muito tempo, sem responder. Depois disse uma coisa que, desde aquele dia, não deixava de perseguir Sellnow: — Você mete-me muita pena, Werner… Falta-lhe o que, na nossa vida, constitui a coisa mais bela e importante: a personalidade. Essas palavras regressavam à mente de Sellnow enquanto contemplava, pela janela, a fila de doentes. Nas suas costas, Kasalinskaya acabava de preparar o pequeno-almoço. Um sobressalto de ódio fê-lo estremecer e sentiu o brusco desejo de estrangular aquela bela mulher para encontrar prazer nisso. «Sou um homem!», queria gritar. «Quero expiar! Sou um homem honrado!» Mas, ao mesmo tempo, sentia que aquelas palavras eram ocas e que se tinha atolado na verdade. Imaginava o alívio que sentiria se pudesse cuspir na cara da amante: «Vai-te, prostituta! Vai-te
embora! Deitei-me doze noites contigo… Não te posso bater, mas digo-te que és uma porca e que vomitaria para cima de ti se tivesse de voltar a tocar-te.» E ao mesmo tempo sentia o ardente desejo daqueles lábios, daqueles seios, daquelas coxas, recordando o áspero gozo que experimentava ao ouvir os gemidos da mulher quando a dominava. Aproximou-se da mesa. O café fumegava. Naquele inverno havia fome na Rússia, mas eles dispunham de pão branco, manteiga, leite, queijo, salsichas e até ovos. — És um enigma para mim — disse acariciando os negros cabelos de Aleksandra. — Que farias se eu te deixasse? — Mataria — respondeu ela imediatamente, a sorrir. — Quem? — Aos dois, Sacha. Chamava-o sempre assim quando desejava mostrar-se particularmente terna e, sem saber porquê, a Sellnow agradava-lhe o som melodioso daquele nome, na garganta da jovem russa. — Matarias mesmo? — Sim, logo a seguir e sem remorsos. Pertences-me… Não és de mais ninguém… De ninguém. Sellnow pôs uma rodela de chouriço sobre uma fatia de pão com manteiga. A morte… Seria uma solução? Fingiu procurar um lenço, para procurar os pedaços do postal no bolso. «Meu querido papá…» Baixou a cabeça. Aleksandra olhou-o com estranheza. — Sentes-te outra vez doente, Sacha querido? Estás com febre? Levantou-se, apalpou a testa do amante e tomou-lhe o pulso. Sellnow deixava-a fazer tudo aquilo, embora soubesse que não tinha febre. — Pareces tão estranho! — murmurou ela. — O que sentes, Werner? — Nada, Aleksandrachka. Absolutamente nada! «Cobarde!», chamava a si mesmo. «Miserável cobarde!» Obrigou-se a comer, sentindo uma opressão na garganta, e depois afastou a cadeira. — Tenho de descer. Esperas por mim aqui? — Vou fazer compras. — Está bem. Beijou-a rapidamente, descendo depois as escadas a quatro e quatro. Tinha a impressão de estar casado com Aleksandra. Era como antigamente, na Alemanha, com a mulher… Ele ia ver os seus doentes, ela saía para fazer compras. Depois ocupava-se dele, cozinhava, cosia; encontravam-se novamente à noite e deitavam-se juntos… Lá, Marika… Aqui, Aleksandra… O que havia de diferente? O local… o país… o corpo… o nome… Mas o que ficava era um homem e uma mulher, sempre a mesma coisa… qualquer que fosse o sítio. O enfermeiro apresentou-lhe a lista de doentes, mas Sellnow nem sequer olhou para ela. Fez um gesto e os plennis começaram a encher a sala. Examinou-os rapidamente.
— Dispensados do trabalho! — gritou com voz dura. — Todos! Não viu os olhares alegres e assombrados dos prisioneiros, nem o gesto de cabeça do enfermeiro. Queria estar sozinho e, durante um momento, os seus olhos fixaram-se no armário onde guardavam as ampolas de morfina. Seria uma morte mais agradável que a que lhe daria Aleksandra, quando soubesse que tinha mulher e filhas. Sentado na frente da secretária, com a mão enfiada no bolso onde se encontrava o postal, contemplou um raio de sol que entrava pela cortina entreaberta. «Esperamos-te…» Ouviu Aleksandra sair e o cumprimento da sentinela. Depois pôs-se a rezar, temendo que Deus, de quem blasfemara, não o ouvisse… No entanto, Deus escutou-o e foi em seu auxílio, enviando-lhe novamente febre. Estranha ajuda, mas que lhe evitava ter de tomar decisões. Concedia-lhe uma pausa… até ao dia seguinte… ou ao outro… até à partida de Aleksandra. O enfermeiro, que entrava naquele momento, viu-o cair e levou-o para a cama. Ao regressar de Estalinegrado, Kasalinskaya encontrou-o delirante. Tirou o enfermeiro do quarto e agarrou na seringa que tinha sempre preparada. Só ela sabia como combater a febre. Só ela… Pálida, sentou-se na beira da cama para observar o doente. Uma recordação obcecava-a. Ainda não havia muito tempo, Sellnow, ao regressar do dispensário pulmonar, jantava sopa de couves, e o forte sabor destas dissimulava o dos pós… «Vingança!», pensava então a mulher. «Vingança, porco alemão! Violaste-me, possuíste-me à força. Morrerás por isso!» Deixou cair a cabeça perto das mãos ardentes de Sellnow. Chorava, selvática, livre, ruidosamente… As sentinelas eram rendidas na muralha. — Alguma novidade, camarada? — Nenhuma, camarada.
TERCEIRA PARTE
Houve muitas novidades naquele inverno, no campo 5110. Não só se reorganizou a enfermaria, como também se recebeu uma biblioteca, enviada de Estalinegrado; deram madeira e cartão ao grupo de arte e, para as decorações, compraram tinta com os rublos ganhos nas fábricas ou nas minas, que foram pagos com religiosidade burocrática. Mas a grande novidade foi, sem dúvida, a nota de Moscovo, autorizando a celebração de serviços religiosos. Kresin, sentado junto de Böhler, admirou-se com aquela nota. A bebida coloria-lhe o rosto… Era o seu aniversário, mas ninguém sabia. — Quantos gemidos haverá! — exclamou. — «Louvamos ao Senhor!» Não lhes falta humor, em Moscovo, e resisti a acreditar nisso até hoje. Haverá sermões, leituras da Bíblia, celebrações de ofícios religiosos! «A religião é o ópio do povo!» Portanto, vamos dar-lhes desse ópio, para que aceitem mais facilmente os longos anos durante os quais devem trabalhar para nós. Não são parvos, os moscovitas. Alguém sofre de saudades da pátria? Pronto, um padre e toca a rezar! — Porque diz isso, doutor Kresin? — perguntou Böhler, abanando a cabeça. — O senhor não pensa assim, também acredita em Deus. — Eu? — exclamou Kresin. — O meu deus é a garrafa. Dantes eram as mulheres, mas agora isso acabou… E qual é o seu? Böhler respondeu simplesmente: — O nosso Pai. — À sua saúde! E que faz ele? — Julgar e perdoar. — Boa pessoa esse seu Deus, doutor, mas deve sofrer da memória, porque se esqueceu completamente dos plennis. — Não, tem-nos ajudado muito, sempre, durante estes anos todos. Conservou-nos a vida, deu-nos uma bonita enfermaria, uma biblioteca, enfermeiras… — Pare! — gritou Kresin, corando violentamente. — Repita isso! Quem lhe deu tudo? Deus? Não. Moscovo! Sim, Moscovo; só com o vosso Deus teriam todos morrido de fome. Quem lhes deu a enfermaria? Eu! O vosso Deus não foi tido nem achado. Eu tive de mendigar como um cão ao general. — Sim, o senhor, doutor — concordou Böhler. — Porque o senhor acredita em Deus.
— Ora! Porque me agradava fazê-lo. — Mas agradava-lhe, como diz, porque Deus o inspirava. O russo olhou fixamente para Böhler, respirou com força e saiu, fechando a porta com um empurrão. O alemão embrenhou-se nos seus papéis, a sorrir. Pouco depois, como que impulsionada por uma mola, Terufina Tchurilova precipitou-se dentro da sala, com os olhos muito abertos de espanto. — Venha depressa! — arquejou. — Ao bloco doze! É horrível! Böhler levantou-se à pressa e olhou pela janela. O grande espaço estava silencioso, sob a neve que caía. Nada indicava que tivesse sucedido o que quer que fosse de importante. — O que foi? — perguntou, com calma. Tchurilova escondeu a cara entre as mãos e gemeu. — Acabam de atentar contra alguém… No bloco doze! — Como? Acabam de…? O major-médico tinha empalidecido. — Mas o homem não morreu. Encontraram-no nas latrinas, quase afogado nos excrementos! O doutor Schultheiss já lá está… Estava por acaso de visita àquele bloco. Agarrando no dólman forrado, Böhler saiu apressadamente. Encontrou Vorotilov, acompanhado por sete guardas. Kresin também saía do seu pavilhão. O comandante olhou para o médico alemão com ar duro. — Isto vai mal, doutor — disse. — Quiseram matar alguém. No meu campo! Vou reduzir as rações durante uma semana… Böhler não respondeu e chegou a correr ao bloco doze, de onde surgiam os prisioneiros, dirigindo-se às latrinas. Os soldados russos afastaram-nos com palavrões e metralhadoras, e rodearam o pequeno edifício, onde, além das latrinas, havia um longo lavabo. Böhler atravessou o cordão sem dificuldade. No pavilhão, Ingeborg Waiden veio para o lado dele, a tremer de medo. — O doutor Schultheiss começou com a respiração artificial — disse. — É horrível… horrível… O médico empurrou a porta das latrinas e um fedor incrível a excrementos e urina cortou-lhe a respiração. Depois, viu Schultheiss, perto de uma mesa, em mangas de camisa e todo sujo. — Quem encontrou esse homem? — perguntou. — Emil Pelz — informou Schultheiss. — Não daria por nada se não tivesse ido despejar um balde de urina. Encontrei-o deitado de costas na fossa, de certeza que alguém o tentou afogar. — Não se tratará de tentativa de suicídio? — Impossível! Existem outras formas mais agradáveis de acabar com a vida. A porta abriu-se violentamente, dando passagem a Vorotilov e a Kresin. O primeiro franzia o
nariz; o outro sorria abertamente. — Uma verdadeira questão de merda, pode-se dizer! — exclamou. Vorotilov olhou para o homem e depois voltou os olhos para Böhler. — Morto? — perguntou com voz apagada. — Não — respondeu Schultheiss —, e ainda podemos salvá-lo. Temos de o levar imediatamente para a enfermaria e pôr-lhe uma máscara de oxigénio. Mandei a enfermeira Waiden buscar uma maca. — Muito bem. Salve esse homem a qualquer custo. Ele tem de falar; é preciso, compreende? Ao dirigir-se para a porta, deu algumas ordens. O rosto de Kresin assumiu uma expressão grave. — Ele mandou reunir todo o bloco — disse a Böhler. — Sim, eu sei. O senhor conhece este homem? — Sim. Chama-se Walter Grosse. Böhler olhou à volta. Com uma colher de lata, Emil Pelz, retirava os excrementos que cobriam a figura estendida. — Walter Grosse — repetiu Böhler. — É um caso muito grave para nós… Para todo o campo. Kresin olhou-o interrogativamente. — O plenni Walter Grosse era espião da MVD, como vocês dizem, doutor Kresin. — Este homem? — Sim. Informava o comissário Kuvakino de tudo o que acontecia no campo. — Böhler virou-se e olhou o homem desmaiado, cujas mandíbulas se agitavam. — Hoje não me apetece ser médico — acrescentou. — Tem de ser! — exclamou Kresin. — Não faça disparates, meu amigo! Compreendo a sua maneira de pensar, mas tem de cerrar os dentes. Diga a si mesmo, simplesmente: é um homem, apenas um homem, sem nome, sem personalidade… Um pobre homem nu! Um homem que precisa de ajuda… da ajuda de um médico. — E é o senhor quem me diz isso, doutor Kresin? O senhor que, ainda não há meia hora, negava a existência de Deus? Dou-lhe os parabéns. A sua grandeza interior é muito superior à minha. — Palerma! — grunhiu o outro, enfadado. — Mais depressa! Mais depressa! — gritou aos dois homens que chegavam com a maca. Lá fora ouviam-se apitos, ruídos de passos na neve, vozes, ordens, palavrões, gritos. O bloco doze estava a reunir-se no pátio e os blocos vizinhos, o dez e o onze também foram alertados: dois mil quatrocentos e trinta e nove homens no total. O comandante Vorotilov batia com a chibata na bota. O seu gorro achatado, corretamente posto na cabeça, tinha o sentido de um aviso, a decisão do homem forte. Os dois mil quatrocentos e trinta e nove homens calaram-se, pois a notícia do atentado tinha corrido todo o campo, como um rastilho de pólvora. Walter Grosse, antigo funcionário político em Estugarda, organizador de células do partido nazi
e, desde há três anos, homem de confiança da MVD, delator dos seus camaradas… Os dois mil quatrocentos e trinta e nove homens olhavam para Vorotilov com uns olhos em que se lia a ameaça, a rebelião interior e a revolta. O comandante compreendeu-o e o seu corpo ficou mais rígido. Uma onda de brutalidade apoderava-se dele; assustou-se, defendeu-se. «É a minha natureza», pensava. «Sou russo, sou o vencedor.» O chicote cortou o ar gélido. — Silêncio! — gritou. O intérprete Jacob Aaron Utchomi chegou furtivamente, pálido e trémulo. Só ele parecia saber o que iria acontecer aos ocupantes dos blocos dez, onze e doze. Quando Vorotilov falava aos prisioneiros, não sabia alemão. O corpo de Walter Grosse foi posto na maca. Schultheiss, coberto de excrementos, tomou-lhe o pulso. — Já não é percetível — disse a Böhler. Os maqueiros desfilaram diante dos dois mil quatrocentos e trinta e nove homens. Böhler seguiuos, enquanto Kresin se colocava atrás de Vorotilov. — Conte até vinte — disse então o comandante a Utchomi. — Aquele a quem calhar o número vinte sairá da fila, e assim sucessivamente. O pequeno judeu obedeceu, a tremer, com a testa húmida de suor, gritando os números com voz aguda. O comandante fez um sinal aos soldados russos, que logo rodeavam os homens saídos da fila, apontando-lhes as metralhadoras. — Estes homens serão fuzilados se Walter Grosse morrer e os culpados não se apresentarem — declarou Vorotilov. — Até lá, os três blocos receberão apenas meia ração. O soldo das equipas de trabalho será reduzido a metade… Dispersar! Utchomi repetiu a ordem. Ninguém se moveu. — Destroçar! — gritou novamente, enfurecido, o comandante. Nem um só dos dois mil quatrocentos e trinta e nove homens se mexeu. Kresin mordeu o lábio. Se Moscovo tomasse conhecimento daquilo…! Pensou no comissário Kuvakino, que continuava no quarto do tenente Markov. Ainda bem que não estava presente! Vorotilov contemplou o muro humano e viu milhares de olhos fixos nele, carregados de ódio, de fome, de medo e de ameaças. — Dispersar! — gritou, desta vez em alemão. Virou-se depois de fazer um sinal aos soldados e afastou-se a passo largo, esmagando a ira contra o solo. Ouviu, nas suas costas, como levavam os prisioneiros tirados das filas, os números vinte, para os fecharem num pavilhão perto do edifício do comando, onde seriam vigiados dia e noite. Os outros nem se mexeram. Firmes como estacas na neve, rígidos, inflexíveis, imóveis. Jacob Utchomi passou pela frente deles e pediu-lhes que voltassem para os pavilhões. Agitava as mãos, quase suplicando. Em vão, apenas uma voz se elevou na última fila.
— Vai-te embora, piolho! Utchomi empalideceu, ainda deu alguns passos e depois regressou ao seu quarto; quase a chorar assomou à janela. Também ele pensava no comissário Kuvakino. No edifício do comando, Vorotilov batia furiosamente na mesa com o chicote. — Vou mandá-los fuzilar a todos! — gritava para Kresin. — A todos! Aos dois mil quatrocentos e trinta e nove! Com quatro metralhadoras… No paredão! Não cederei! São prisioneiros e rebelaram-se. Kresin acendeu um cigarro, com ar pensativo. — Pense em Moscovo, camarada comandante. Vão pedir-lhe contas. — Não cederei! — Tire-lhes os benefícios… Proíba a peça de teatro no Natal; tire os instrumentos à orquestra, reduza a ração para metade, feche a biblioteca, proíba-lhes os jornais alemães, converta o campo numa prisão, mande apagar as luzes às nove da noite, mas não toque nos homens… Nada os pode afetar mais que a extinção de todas as regalias. O comandante olhou para o teto, de onde pendia um candeeiro barato com um horrível quebra-luz verde. — Excelentes ideias, doutor Kresin! Transformarei o campo num deserto habitado até que os assassinos se apresentem. — E que lhes fará? — Irei entregá-los ao camarada comissário. — Seria um erro gravíssimo, camarada comandante — disse Kresin, com os olhos semicerrados. — Todos o estimamos, só tem um inimigo: Kuvakino. Não é um inimigo pessoal… não há razão nenhuma para isso, é sim um inimigo ideológico, o que é pior. Kuvakino é um fanático, procura vítimas para as oferecer ao Politburo. Quer construir um dique de ossos, porque a estrada para Moscovo é pantanosa, enlameada e monótona. Não hesitará em juntar às suas ossadas a do comandante do campo cinco mil cento e dez, incapaz de dominar os seus prisioneiros; do major soviético que tem coração para os alemães, do oficial que não esquece os seus instrutores germânicos, que lê Clausewitz durante a noite, assim como as memórias de Moltke e Hindenburg. — Cale-se, camarada — disse Vorotilov, com voz fraca. — Eu sei… Böhler também o suspeita… Kuvakino observa-o, mas não sabe isso… Ainda não. — Kresin atirou o cigarro para o braseiro. — Quase desejo que esse Walter Grosse não se salve para que não possa falar. — Diga isso ao Böhler, camarada. — Nem pensar, ele é médico como eu. Também tentará salvar o homem, mesmo que tenha de se enterrar nesta história horrível até ao pescoço. Para nós, médicos, só existe o homem em perigo… Tudo o que se possa passar depois não pode ser levado em linha de conta.
— Você devia encarregar-se de pregar o sermão de domingo neste campo! Kresin saiu do edifício do comando sem responder. Walter Grosse estava estendido sobre a mesa, na nova sala de operações. Martha Kreuz e Ema Bordner limpavam-no com álcool e Schultheiss vigiava a passagem do oxigénio que Böhler lhe introduzia na boca através de um tubo de vidro, ao mesmo tempo que exercia pressão sobre os flancos e o peito do doente. — Louvado seja Deus! — exclamou Schultheiss, secando o suor da testa. — Salvou-se — continuou Böhler, entregando o tubo a Emil Pelz e indo depois lavar as mãos na bacia. — Quando voltar a si, chame-me antes que alguém o veja. Nem sequer Vorotilov ou o doutor Kresin. A porta abriu-se naquele instante. — Parece-me que ouvi pronunciar o meu nome… — É verdade. Proibia a entrada a quem quer que fosse para ver o doente. Incluindo ao senhor. — Salvou-o? — perguntou Kresin, olhando para a mesa, onde Emil Pelz começava a massajar Grosse. — Salvou-o mesmo? — Como pode ver. — Nobre ação, querido colega! Há de trazer-lhe muitas dificuldades. — Não o ignoro e por isso quero ser o primeiro a falar-lhe. — Excelente ideia! — exclamou o russo. Ia continuar quando a porta se abriu bruscamente, dando passagem a uma inflamada Kasalinskaya. — Os homens continuam no pátio! — gritou. — Os três blocos? — perguntou Böhler? — Sim, dois mil homens. Estão ali há mais de uma hora, imóveis. Já caíram sete, vencidos pelo frio… Estão no chão, junto das filas… mas os outros não se mexem. — É uma revolta! — exclamou Kresin. — Venha! — gritou Böhler, agarrando no dólman. Saiu a correr da sala, seguido de Kresin e de Kasalinskaya. Viu o muro sombrio ao longe, exatamente igual ao que estava uma hora antes, com os buracos que indicavam o lugar ocupado pelos números vinte. Olhou com amargura. — Regressem aos vossos pavilhões — disse, com calma. — Walter Grosse está salvo. — Então temos de voltar a fazer o mesmo! — gritou alguém. Os soldados russos não sabiam o que fazer. — É um traidor! — exclamou outro. — Espiou-nos. Não nos vamos embora daqui sem que os detidos regressem. — Mas não podem resistir assim horas a fio. — Podemos sim.
— Somos todos culpados, e não um em cada vinte! O comandante Vorotilov, extremamente pálido, saiu do edifício do comando, seguido por quatro grupos de soldados, que levavam, cada um, uma metralhadora pesada. Os grupos repartiram-se pela neve e pousaram as metralhadoras, cujos canos apontavam para o muro humano. Ouviu-se o estalido das armas a serem montadas e Vorotilov colocou-se junto do doutor Böhler. — Dispersar! — gritou. Ninguém se mexeu, os homens esperavam, com os olhos fixos nas armas. Naquele momento, Kresin agiu. Avançou um passo, agarrou Böhler pela gola do dólman, arrastando-o, sem que o outro, estupefacto, sonhasse em resistir, para a frente de uma das metralhadoras. — Regressem imediatamente aos vossos pavilhões — gritou levantando um braço. — Se quando baixar o braço estiver ainda aqui nem que seja um só de vocês, mandarei fuzilar o doutor Böhler. As filas foram percorridas por um arrepio. Böhler olhou para Kresin e leu nos seus olhos que estava a falar a sério, que não era uma ameaça infundada… Vorotilov, inquieto, tremeu ao contemplar os dois médicos. «Não!», quis gritar, mas a emoção impediu-o. Kresin olhou para os dois mil prisioneiros. Esperou alguns segundos e depois baixou lentamente a mão. O encarregado da metralhadora, um mongol, sorriu e apoiou o dedo no gatilho. As primeiras filas começaram a oscilar. A muralha humana desfazia-se devagar. Os homens deslizaram para os pavilhões, voltando-se para ver Kresin, cuja mão continuava levantada. Depois foi a fuga; os últimos levaram os camaradas desmaiados… Vorotilov contemplava fixamente o pátio vazio, mas Kasalinskaya fechara os olhos. Böhler voltou-se para Kresin. O médico russo sorria com um sorriso amargo, desesperado… O pátio estava vazio. Kresin aproximou-se do cano da metralhadora e acabou por deixar cair a mão. Soltou a gola de Böhler, virou-se e afastou-se em silêncio… Ninguém o seguiu, todos esperaram até ele desaparecer entre os blocos. Kasalinskaya foise então embora, evitando olhar para Böhler: parecia envergonhada. Os soldados também se foram embora, ficando apenas o comandante e o médico alemão. O primeiro aproximou-se do segundo. — Perdoe-nos — disse, em voz baixa. — Como? — Estou a agradecer-lhe — continuou Vorotilov, baixando a cabeça. — Salvou a vida a Walter Grosse, ao tenente Markov e a muitos outros. Há uns segundos, salvou a de Kresin e a minha. Fez um gesto para lhe estender a mão, mas recuou, afastando-se com grandes passadas. Uma silhueta saiu da esquina de um pavilhão; uma silhueta pequena, tremendo na neve com a cabeça descoberta, sem casaco, sem luvas, com a cara emoldurada por uns fios louros: Terufina Tchurilova. Soluçava. Böhler nem a viu, já se dirigia à enfermaria.
Walter Grosse recuperou os sentidos durante a noite e olhou, angustiado, à sua volta. Schultheiss estava junto à cama e Ingeborg Waiden preparava ligaduras perto da porta. O prisioneiro tentou erguer-se, mas o médico obrigou-o a ficar deitado. O homem agitou os braços, gritando: — Não! Não! Larga-me! Não quero trair ninguém! Eu conto-lhes tudo! Solta-me! Socorro! Socorro! Na merda, não! Socorro! Piedade! Piedade! Levou as mãos aos olhos. Os lábios estavam cheios de espuma e o corpo agitava-se em convulsões. — Tem calma — disse-lhe quase com ternura. — Aqui estás a salvo. Ao ouvir uma voz feminina, Walter Grosse abriu os olhos, olhou para a enfermeira com incredulidade e virou a cabeça para Schultheiss. — Doutor… doutor… — balbuciou. — Não me vai fazer mal? — Não. Aqui estás em segurança. — Queriam afogar-me nas latrinas. Atiraram-me à merda e afundaram-me nela com paus. Oh, meu Deus! Meu Deus! Chorava como uma criança, a guinchar. Schultheiss fez sinal a Ingeborg Waiden, que saiu em silêncio para avisar Böhler. O médico virou a cabeça de Grosse para si. — Está tudo bem, Walter — disse-lhe. — Salvámos-te; vais viver. — Por quanto tempo? — Até que chegue a tua hora. — A sério que não me vão fazer nada? Não me vão atirar para as latrinas quando eu sair daqui? Tenho tanto medo…! Böhler entrou. Walter Grosse apoiou-se num cotovelo para olhar para ele. — Vem buscar-me! Socorro! Socorro! Quis saltar da cama, mas Ingeborg Waiden entrou no círculo luminoso e a sua aparição tranquilizou Grosse, que voltou a deitar-se. Böhler aproximou-se e Schultheiss levantou-se, saindo depois da sala com a enfermeira. O médico agarrou na mão do doente. — Agora estamos sozinhos, Walter Grosse; completamente sozinhos. Conheces-me? — Sim, senhor doutor. O senhor salvou-me; é bom. — Porque te atiraram para as latrinas? Serás tão imundo que te quiseram afogar? Diz-me a verdade, Walter Grosse. O homem olhou-o como um animal angustiado. — Salvei-te porque sou médico. Agora estás fora de perigo… e interrogo-te na qualidade de plenni, de um dos teus camaradas, feito prisioneiro em Estalinegrado como todos os que há cinco anos esperam regressar à Alemanha. Sou um plenni como tu. Ou será que não o és, Walter Grosse? O homem tremeu, como se um sopro gelado o tivesse ferido. Os seus dentes bateram numa tremura de angústia e medo.
— Responde. — Sim, sim! — disse o outro a chorar. — Sou plenni, mas o comissário… — Vadislav Kuvakino? — Sim. Mostrou-me uma lista chegada da Alemanha. Sabe que eu era organizador de grupos nazis em Estugarda e que fui acusado, pelos americanos, de ter batido nos trabalhadores russos em quarenta e três. — Levantou os braços. — Não é verdade. Juro-o perante Deus. — Continua — disse Böhler secamente. — Então disse-me que eu tinha sido condenado à morte. Bastava-lhe fazer um sinal para que me disparassem um tiro na nuca. Fui-me a baixo, arrastei-me aos pés dele. Sou tão cobarde, um cobarde miserável…! Queria viver. Disse-me que podia salvar-me se acedesse a servir a MVD, espiando os meus camaradas de campo e informando-o de todos os que dissessem mal da Rússia e do Partido Comunista. Beijei-lhe as mãos e assinei tudo quanto ele quis. Estava salvo… Ninguém me disparou um tiro na nuca. Na cozinha, até me davam mais comida do que aos outros. E informei-o de tudo quanto via e ouvia. — Agiste como um sacana miserável. — Tenho quatro filhos. Quero voltar para casa. — E quantos pais de família denunciaste? Não pensaste nisso. Sempre eu! Só eu! No cativeiro deve pensar-se em «nós», esse «nós» que é o grande símbolo da camaradagem. Puseram-te na merda e devias ter morrido nela. Era justo. Compreendes? — Sim — murmurou Walter Grosse, com a voz quase inaudível e a tremer. Böhler afastou a mão que procurava timidamente a sua. — Outra coisa — acrescentou, duramente. — O Vorotilov vai interrogar-te, assim como o doutor Kresin e, sem dúvida, Kasalinskaya. Não sabes quem te atirou para as latrinas. Não reconheceste ninguém. Compreendes? Se deres um só nome, voltas para lá… e desta vez esqueço que sou médico. Não te salvarei, ficarei com o peso de não te socorrer na consciência. Compreendeste bem? — Sim — respondeu Grosse, chorando lágrimas grossas. — Só o fiz por medo… Queriam fuzilar-me… e tenho quatro filhos. A porta abriu-se bruscamente, dando passagem ao comandante Vorotilov. Walter Grosse deixouse cair na cama, a tremer de terror. — A sós com Grosse? — perguntou Vorotilov sarcasticamente. — Posso assistir ao interrogatório, doutor? — Estava só a examinar o doente. — Auscultava-lhe a alma, se não estou em erro. — Consegue aguentar um interrogatório. No entanto, tenho de lhe fazer notar, na qualidade de médico, que sofreu um choque muito forte e que qualquer excitação pode produzir efeitos graves. — Não sei nada de medicina — respondeu Vorotilov com um sorriso ligeiro —, mas não sou tão
estúpido que ignore que isso de choque não significa nada. O Grosse está perfeitamente são. Ainda tem os nervos um pouco abalados, mas depressa ficará bem. Aproximou-se e sentou-se num tamborete. Grosse encolheu-se instintivamente na cama. — Que tal, traidor? — interrogou o comandante. — É pena que não tenhas comido mais merda! Quem te atirou para as latrinas? — Não reconheci ninguém. — Mando-te fuzilar se não mo disseres! — Não sei! — gritou Grosse, agitando-se freneticamente. — Já não está em estado de ser interrogado — avisou Böhler do seu canto. — Os meus parabéns — disse Vorotilov, pondo-se de pé. — Bom trabalho! Um pouco de moral, hem? Mas acredita que resista até ao fim? — Sim. Vorotilov concordou com a cabeça, sorriu abertamente e levantou a mão num gesto de saudação. — Vejo que me compreendeu lindamente — observou com ironia. — A vitória da força! O poder do terror! Não havia necessidade nenhuma de lhe falar no assunto. Enfim! Compreendo que os nossos métodos deem bons resultados quando vocês os aplicam. — Dirigiu-se à porta e abriu-a. — Lembrase da sua estada no campo florestal, no verão passado? Saúdo as minhas ideias em si, doutor. A porta fechou-se. Böhler mordeu o lábio e olhou para Grosse, sacudido pelos soluços. O medo colocara-o ao serviço dos soviéticos e o mesmo medo devolvia-o aos seus camaradas. Entre aqueles dois terrores, a sua vida seria moída, triturada, convertida em pó, que a mais levíssima brisa levaria, transformando-se no espantoso vazio que se encontra por detrás da angústia. — Repugnante! — observou Böhler, a meia-voz, para si próprio. Depois, de repente, também ele sentiu medo. Um homem surgia na sua mente, sobressaltando-o: Vadislav Kuvakino. E se o comissário interrogasse o espião? Böhler surpreendeu-se ao pensar que teria sido seguramente preferível que Walter Grosse nunca tivesse recuperado os sentidos, pois compreendeu que ele não iria resistir à pressão de Kuvakino.
A situação começou a agravar-se naquela mesma noite, quando a orquestra do campo se reuniu para ensaiar a abertura da opereta do Natal. Peter Fischer e os seus camaradas foram à procura dos instrumentos musicais ao grande pavilhão a que os russos chamavam Stolovaya, mas não os encontraram, nem sequer as rudimentares estantes que eles próprios tinham construído. O maestro, antigo diretor da orquestra da Ópera de Krefeld, olhou em redor desesperado. — Levaram os nossos instrumentos! — exclamou. — É a única explicação possível. Karl Georg, encarregado da bateria, entrou naquele instante, a tremer de raiva. — A sentinela disse-me «confiscados!» — gritou. — Por causa do Grosse. Até que os culpados
se apresentem é proibido ensaiar. Já não há bibliotecas, as rações foram reduzidas para metade em todo o campo, os jornais proibidos e a luz será apagada às nove, quer dizer, dentro de vinte minutos… Mete nojo! — O Kerner, com a sua corneta, não teria ficado calmo! — exclamou Peter Fischer. — Ia logo falar com Vorotilov. — Vai lá tu, então, idiota! — replicou Karl Georg. — Queres que te partam o nariz como ao Sauerbrunn? O diretor distribui a partitura pelos músicos. — Vamos ensaiar mesmo assim — disse. — Cada um de vocês conhece o respetivo instrumento… Temos simplesmente de repetir as entradas. Eu indico os grupos. — Levantou a batuta de bétula. — Comecem os cobres. Tatá… tatá… Aqui as cordas… Depois, imediatamente a seguir a sete compassos, as flautas e os clarinetes. Foi uma cena fantasmagórica: trinta e dois homens, mudos, com a partitura na mão, e um chefe de orquestra que dirigia como se, na realidade, o estivesse a fazer a sério. A luz apagou-se às nove, exceto na enfermaria, e os pavilhões adquiriram um aspeto sinistro sob a neve. Peter Fischer foi ao fogão instalado a um canto e acendeu um pedaço de madeira, que levantou acima da cabeça, fazendo bailar sombras fantasmagóricas nas paredes. — Vamos continuar a ensaiar — decidiu o diretor. — Segunda parte, depois do compasso trinta e quatro. Os primeiros-violinos voltam a entrar… golpe de arco alongado… E cuidado com o compasso, pois os violoncelos entram em seguida… Peter Fischer acendeu sucessivamente três tochas. No intervalo, a sentinela avisou o comandante de que os músicos estavam a ensaiar sem luz e sem instrumentos, na Stolovaya. Vorotilov recusou-se a acreditar no soldado, mas, pela janela do pavilhão, viu a orquestra fantasma e a tocha de Peter Fischer. Regressou ao edifício do comando e dirigiu-se ao quadro elétrico. Um gesto e a luz voltaria… Estendeu a mão, mas retirou-a apressadamente. São prisioneiros condenados, os vencedores são os russos. Os alemães que obedeçam! Olhou uma vez mais para o comutador… Depois, foi para o seu quarto a cambalear. No dia seguinte serviu-se apenas meia ração. O cozinheiro não se quis mostrar aos homens encarregados da distribuição, fazendo-se representar por Bacha Tarrasova, e as injúrias caíram sobre ela, mas a mulher não se deixou impressionar. — Ordem do comandante! — explicou Bacha, com um sorriso muito eloquente. — Vai à…! A sopa deslavada foi despejada com violência nas escudelas, caindo muita na neve. O cozinheiro, que observava da janela, disse em russo: — Oh, Bacha! Desconta a que cai senão os tipos vão engordar demais.
— Aí está esse porco sebento! — gritou um dos prisioneiros da fila. — Aproxima-te para eu te partir o nariz. O russo riu-se e fechou a janela, a pensar no excelente assado de carne de vaca que tinha preparado para si. Böhler reunira o seu pessoal — Schultheiss, Ingeborg Waiden, Martha Kreuz, Ema Bordner, Emil Pelz e quatro enfermeiros auxiliares — e o seu rosto denunciava uma profunda preocupação. — Vorotilov mandou distribuir meia ração — disse devagar — e isso significa que, dentro de três semanas, teremos, além da fome e sem falar de outras coisas, problemas cardíacos. Estou determinado a não aceitar semelhante situação. — Que pensa fazer? — perguntou Ingeborg Waiden, estupefacta. — Fechar a enfermaria. — É impossível — replicou Schultheiss, baixando a cabeça. — Neste momento está cheia. Temos o tenente Markov… — O Kresin pode ocupar-se dele. Além disso, os russos têm a Kasalinskaya e a Tchurilova. Se vocês estão dispostos a aceitar as consequências, abandonamos o trabalho hoje e só voltaremos quando se tiverem restabelecido as condições normais no campo. Assumo toda a responsabilidade, vocês limitam-se a obedecer às minhas ordens. — Não o deixaremos sozinho, doutor — garantiu Schultheiss corando. — Então posso anunciar ao comandante que abandonamos o trabalho? — Pode, doutor. Antes de ir falar com Vorotilov, Böhler escreveu uma carta, que entregou a Schultheiss. — Guarde-a bem — disse. — Talvez eu não volte. Nesse caso, conserve-a e entregue-a à minha mulher, quando puder. Algum dia sairá da Rússia… Schultheiss deixou a carta em cima da mesa. Tinha os olhos brilhantes. — Não o deixarei ir sozinho, doutor. Acompanho-o para falar com o Vorotilov. — Fique aqui. Precisamos de alguém que assegure a ordem e leve a carta à minha mulher. Isso conta muito mais para mim do que o seu heroísmo, não o esqueça. Schultheiss vacilou, lutando visivelmente consigo próprio. — Não — disse finalmente. — Não o esquecerei. Acompanhou Böhler à porta da enfermaria e ficou ali, ao vê-lo afastar-se, esbelto, a atravessar a neve até ao edifício do comando. Alguns prisioneiros, que voltavam da padaria, saudaram-no. Ao ver Böhler sacudir as botas à frente da porta e desaparecer no interior do edifício, Schultheiss pensou que ele não voltaria a sair. Uma mão pousou no seu ombro. Ingeborg Waiden, com lágrimas nos olhos, estava atrás dele. — Tenho medo — murmurou em voz muito baixa. — Também eu, enfermeira — respondeu, envolvendo-lhe os ombros com um braço —, mas a vida deve continuar sem o nosso chefe, se necessário. Milhares de pessoas precisam de nós, tanto
como nós precisamos de Fritz Böhler. Enxugou-lhe as lágrimas das faces com as costas da mão, fazendo-a entrar no pavilhão. Yanina Salya, que os observava da janela do pavilhão contíguo, presenciou a cena. Viu Schultheiss rodear os ombros da enfermeira e secar-lhe as lágrimas. Os olhos dela chisparam e surgiram manchas vermelhas, na sua tez pálida. A enfermeira alemã! Maldita mulher! Dirigiu-se à cama e meteu a mão debaixo da almofada, de onde tirou uma pequena pistola, que contemplou, pensativa, antes de a meter no bolso do roupão. Depois, correu para a porta e gritou no corredor: — Digam ao doutor Schultheiss que venha aqui! Uns pés começaram a correr. Yanina fechou os dedos à volta da culatra da arma. Tremia. Jens, pensava. Jens, vais morrer… Mas não sozinho, morrerei contigo… Vou disparar quando a porta se abrir… Primeiro tu, depois eu… Então descansaremos, e o seu amor só me pertencerá a mim. A porta abriu-se bruscamente. Yanina apontou a pistola, mas foi Kresin que apareceu…
Vorotilov olhava fixamente pela janela para os pavilhões gelados. Estava de costas para Böhler, que fumava um dos cigarros turcos do comandante, sentado à mesa. Os dedos do russo tamborilaram sobre o vidro da janela… Não se ouvia nenhum ruído na sala. A voz de Vorotilov quebrou subitamente o silêncio e Böhler baixou os olhos, quase assustado. — Sou obrigado a informar Moscovo da sua insurreição. — Naturalmente. — Será transferido para o campo de Vorkuta, junto ao mar Branco. Terá de abandonar toda e qualquer a esperança de voltar ver Colónia. Já lá sucumbiram trezentos mil condenados. — E os russos orgulham-se disso? Vorotilov não respondeu, tamborilando de novo na janela. — Nada mudará quando o senhor partir — continuou. — Continuarei a reduzir as rações para metade e eliminarei todas as regalias até que os culpados se apresentem. Cá nos arranjaremos, mesmo sem um certo doutor Böhler. — Não me custa a acreditar em nada disso, e é por isso mesmo que tenho vontade de partir. Não quero ser testemunha da morte de milhares de presos, provocada pelas teorias de um comandante de campo que acredita que só o terror e a crueldade conseguem vergar os homens. O senhor é russo, mas também é oficial, não o pode esquecer… esta é a tragédia da sua vida. Tem de ser soviético quando preferia ser soldado, no sentido que Clausewitz lhe dá. — Cale-se! — gritou o comandante. — Já avisei o comissário Kuvakino da sua atitude. Isso
basta-lhe? Será substituído por Von Sellnow, que voltará amanhã de Estalinegrado. Schultheiss e as enfermeiras ficarão aqui. — O doutor Schultheiss, as enfermeiras e todo o pessoal também abandonam o trabalho. — Então irão igualmente para o campo disciplinar! — gritou Vorotilov. — Os médicos russos mantêm a enfermaria em funcionamento até que cheguem médicos alemães vindos de outros campos. Há milhares deles prisioneiros. — Não duvido, mas não reagirão de forma diferente da nossa ao verem o que cá se passa. Afogou-se um delator, um canalha, um traidor. Aos nossos olhos, Walter Grosse é lixo, mesmo que cumpra ordens de Kuvakino. Cedeu por cobardia e, por cobardia, sacrificou milhares de camaradas. Gostaria de saber, comandante, o que se faz na Rússia quando se descobrem homens assim nas fileiras dos soldados soviéticos. Como atuaria o Exército Vermelho? — Porque é que eu hei de falar consigo? — gritou Vorotilov, voltando-se. — Não passa de um plenni! Parece que esqueceu completamente esse facto! Vá-se embora! Böhler levantou-se, esmagou o cigarro e agarrou no gorro que tinha deixado em cima da mesa. — Abandonarei imediatamente a enfermaria e irei à procura de um catre num pavilhão — disse. — Continuará na enfermaria até que o vão buscar. — Mas não exercerei as minhas funções. — Exercerá sim! Vorotilov agarrou no coldre, tirou a arma lentamente e pô-la em cima da mesa, perto de Böhler. — Estarei ao seu lado com esta pistola — afirmou. — Vou obrigá-lo a trabalhar. — Não vai conseguir, é melhor que me mate. — Não hesitarei! — Então estamos de acordo. Às dez e meia tenho de amputar uma mão congelada. Espero-o a essa hora na sala de operações e leve a pistola. Quando me matar, o doutor Kresin poderá continuar a operação. — Não, doutor Böhler. O homem voltará para a sua cama. — Seria a sua morte. A gangrena… — E então? Você não o quer operar. O doutor Kresin não é cirurgião, portanto, o homem vai morrer… E não só ele como todos os que deveriam ser operados depois. E tudo isso será culpa sua, Böhler. O médico baixou os olhos, pois uma onda de rubor subira-lhe à cara. Compreendeu bruscamente, as consequências da sua resolução e lembrou-se do que tinha dito a Schultheiss: «Não é só o heroísmo que conta!» E ele estava prestes a abandonar os seus camaradas, a traí-los, a condená-los à morte, simplesmente porque, por raiva contra a atitude do comandante, renunciava a cumprir a sua missão. Aquela cólera não levava a lado nenhum, pelo contrário, iria piorar tudo, mergulhando ainda mais os plennis no desespero. Pensou que podia obrigar Vorotilov a renunciar às suas represálias,
mas era ele, Böhler, quem se devia humilhar. O russo continuava a ser o mais forte, pois, como vencedor, dispunha da força. Era a sua teoria, alcançava êxito, e esse pensamento provocou a decisão do médico: — Vou operar às dez e meia — disse em voz muito baixa. Naquela noite, às dez, as luzes ainda estavam acesas no campo, e a orquestra ensaiava, na Stolovaya, com os instrumentos. Contudo, as rações continuavam reduzidas a metade. Vorotilov estava muito satisfeito consigo mesmo e com toda a gente.
Três dias mais tarde, o comissário Kuvakino entrou no quarto de Böhler e, nos seus olhos semicerrados, fulgia o brilho do triunfo. Böhler sentiu-se invadido pela angústia, mas aguentou o olhar. Kuvakino uniu as mãos, como para rezar, num gesto grotesco que lhe era habitual, obrigando o médico a conter-se para não se rir, apesar da gravidade da situação. — Ora aqui está o homem que vai para o pântano — disse lentamente o comissário, contemplando o médico com desprezo. — Para o pântano de Kasymsskoye, onde habita a morte. O alemão cerrou os dentes. Acontecia aquilo que nunca julgara possível. Vorotilov tinha-o denunciado, cumprindo a sua ameaça, para provar a si próprio que era um bom russo e não um amigo dos alemães. Sacrificava-o para demonstrar que continuava a ser o patrão. — Haverá doentes, mesmo em Kasymsskoye… — Sim, mas não haverá médico — replicou Kuvakino. — Tu serás trabalhador como os outros, e não médico. Böhler levantou-se, deu uns passos pela sala, seguido pelo olhar astuto do comissário. Quando se aproximou da janela, viu que estavam a descarregar um camião na praça central e, perto dele, avistou Kasalinskaya a falar animadamente com um homem metido num casacão e de gorro caído sobre os olhos. O homem voltou-se, olhando para a enfermaria, e o coração de Böhler deixou de bater: Werner von Sellnow! Sellnow chegava para o substituir! O assunto era grave. Moscovo riscava da sua lista o cirurgião Fritz Böhler. O comissário olhou por cima do ombro do alemão. — O teu sucessor — disse em voz baixa. — Não podia encontrar outro melhor, o doutor Von Sellnow é um grande médico. — E também comunista. — Sim? Böhler virou-se. Sellnow, comunista? Será que Kasalinskaya o atraíra completamente para o seu campo? Fechou a pasta que estava em cima da mesa; tinha a impressão de estar só, abandonado por
todos. Kresin e Vorotilov não se deixavam ver, Schultheiss fazia a visita com as enfermeiras, Kasalinskaya estava ao pé do amante e Tchurilova ficara no laboratório… Sim, estava só, com Kuvakino! — Quando serei transferido? — Na quarta-feira da próxima semana. Sem bagagem — respondeu o comissário, a sorrir. Sem bagagem! O doutor Böhler conhecia a expressão. Queria dizer: «Não precisas dela, pois não voltarás ao mundo dos vivos. Apagaram-te de todas as listas… não passas de um zero.» O comissário saiu da sala, depois de deitar um olhar ao médico. No corredor, tropeçou em Von Sellnow, que seguia Kasalinskaya. O médico tinha o rosto enrubescido e, tremendo de raiva, travou o passo ao pequeno asiático. — Onde está o major-médico, comissário? — gritou. — No quarto. Com a palma da mão, Sellnow afastou Kuvakino para um lado e correu ao longo do corredor. Empurrou a porta no momento em que o comissário dizia a Kasalinskaya, em voz baixa: — Tem de o vigiar. É alemão! Continua a ser perigoso. Talvez chegue depressa a sua vez. Depois afastou-se, enquanto Kasalinskaya o seguia com um olhar indignado. A mão gélida de Moscovo caía sobre o campo 5110. Sellnow entrou, fechou a porta e encostou-se a ela. O gorro caiu-lhe ao chão, quase aos pés de Böhler. — Bom dia, Werner — disse este último, em tom amistoso. — Palerma! — respondeu Sellnow, cerrando os punhos. — Idealista incurável! Estúpido romântico! — É a única coisa que te ocorre dizer-me depois de tão longa separação? — Podia dizer-te mais, tudo o que tenho acumulado em mim, e atirar-to à cara como um monte de lixo… Mas não serviria de nada. — Conheces-me bem. Vá, aperta-me a mão. — É verdade o que me contaram? — perguntou Sellnow, sem se mexer. — Insurgiste-te e eu vou substituir-te na enfermaria? — Sim. — E mandam-te para um campo disciplinar como qualquer plenni? — Sim, para Kasymsskoye, nos pântanos da Sibéria Ocidental. — Já sabes isso? — O Kuvakino acaba de mo dizer. Vou-me embora na quarta-feira e até lá terei tempo de te pôr ao corrente de tudo. Agora temos três enfermeiras alemãs, uma técnica de laboratório russa… — Deixa lá as mulheres! E não tens vergonha de nos abandonar? — Castigam-me por defender os nossos direitos. Agiram mal em relação aos nossos camaradas e
eu não podia permiti-lo. — Os nosso direitos! No cativeiro! Tanta teimosia é assombrosa! Conheces o Kresin e o Vorotilov… boas pessoas, que tantas vezes são obrigados a agir contra a sua vontade. Também têm alguém acima deles que faz estalar a nagaika quando se mexem. Sabes isso muito bem e vens tu, o major-médico Fritz Böhler, envolver-te na tua altivez, dizendo palavras sonoras a propósito dos direitos humanos. — A tua falta de objetividade aumentou desde que foste para Estalinegrado — respondeu Böhler calmamente. — Neste caso, trata-se de uma questão de prestígio. Tentaram… — Eu sei, eu sei! A Aleksandra contou-me tudo. Quiseram afogar o Walter Grosse nas latrinas e o tu salvaste-o, estupidamente. — Sou médico. — Notável! «Sou médico…» Se o Grosse se tivesse afogado, só depois de muito tempo alguém repararia. Alguém responderia por ele, ao ser passada revista, até que o Kuvakino notasse que já não recebia denúncias. Mas nesse momento já todas as pistas estariam emaranhadas, ao passo que agora os russos vão obrigar o Grosse a falar, através da tortura e da «lavagem ao cérebro», ameaçando-o de se vingarem na mulher e nos filhos… Não vai resistir… E depois não serás o único a partir para os pântanos, irão acompanhar-te mais sete. — Sete? — Eu conheço-os! — De repente, Sellnow pareceu perturbado. — Eu não vivia na lua, na Fábrica Outubro Vermelho. Logo no dia seguinte, soube os nomes de todos esses homens. — Através de quem? Böhler avançou um passo e, como Sellnow se tentava esquivar, agarrou-o pela manga e puxou-o para si. — Werner, quero saber quem te deu os nomes. Tenho de proteger esses homens contra o Grosse e o Kuvakino. Correm perigo e precisamos de tratar da sua segurança antes que eu me vá embora, na quarta-feira… Quem me pode dizer os nomes deles? — A Aleksandra — respondeu Sellnow, muito baixo, curvando a cabeça. Böhler soltou-o, estupefacto. — A Kasalinskaya? E cala-se? Ela, a mulher mais temida em todo o sector de Estalinegrado? — Sim, cala-se — respondeu Sellnow, afastando-se de Böhler para ir até à mesa —, mas isso não importa. Aliás, nada importa, exceto uma coisa. Não podes ir para Kasymsskoye. Seria o teu fim em menos de quinze dias. — Eu sei disso, mas não quero pedir nada a ninguém. O Vorotilov entregou-me ao Kuvakino, foi a minha maior desilusão em muitos anos. O Kresin nada pode contra o comissário… Portanto, vou ter de me ir embora. O outro não respondeu, olhava fixamente para a mesa. Um plano espantoso, desesperado,
formava-se-lhe na mente. Böhler olhava para ele, assombrado. Abriu a boca, mas Sellnow adiantouse-lhe. — Aconteça o que acontecer, Fritz, promete-me que vais ficar calmo. — Que queres dizer? O que estás a tramar? — Promete-me que ficas quieto. Dá-me a tua palavra de que nem sequer mexerás o dedo mínimo, que não farás absolutamente nada. Böhler abanou a cabeça. Um pressentimento impedia-o de se comprometer daquela forma. — Primeiro tenho de saber — disse. Sellnow hesitou um momento. Depois atirou o dólman para cima dos ombros, enfiou o gorro e abriu a porta. — Adeus, Fritz — disse suavemente, com uma voz que tremia ligeiramente. — Fui muitas vezes desagradável, insuportável. Causei males a todos e disse muitas coisas que não pensava. Perdoa-me e continua a ser como és. — Que vais fazer, Werner? — perguntou Böhler, subitamente invadido pela angústia. — Estás a pensar nalguma loucura… Werner! Saiu, mas Sellnow já ia no corredor e afastava-se a correr. Böhler intuiu o que o amigo ia fazer. Sentiu-se tomado pelo desespero. — Werner! Anda cá! — gritou. Kasalinskaya saiu naquele momento do extremo do corredor e pôs-se à frente de Sellnow. — Pare-o, Aleksandra! — gritou Böhler. — Quer fazer uma loucura! Detenha-o! Sellnow tropeçou na médica, fê-la cambalear e abriu violentamente a porta da rua. Ingeborg Waiden, que saía do dispensário, não conseguiu detê-lo. Os gritos de Kasalinskaya fizeram-na sair da sua estupefação. Com o dólman a flutuar sobre os ombros, Sellnow atravessava a correr o pátio coberto de neve. O dólman caiu, mas nem sequer reparou. Voava para o edifício do comando, em frente de cuja porta, naquele momento, o comissário Kuvakino sacudia as botas. Kasalinskaya corria atrás do médico e, da janela, Böhler gritava aos soldados que saíam da cozinha: — Detenham-no! Detenham-no! Sellnow alcançou o comissário e, antes que alguém pudesse segurá-lo, atirou-se sobre o asiático, batendo-lhe na cara com os dois punhos. Kuvakino gritou… A sirene de alarme deixou ouvir a sua estridente chamada e os soldados saíram do posto da guarda a correr… Vorotilov assomou à janela… Pálido, incrédulo, contemplava a cena. Kuvakino caiu, mas Sellnow saltou sobre ele e, com os pés juntos, começou a espezinhá-lo. Böhler deixou cair a cabeça, a tremer e debatendo-se para não começar a chorar. É o fim, o fim!, pensava.
Os primeiros soldados chegaram junto do grupo… Uma coronhada atirou Sellnow sobre a neve, ao lado do comissário, e Kasalinskaya caiu, desmaiada, nos braços de Vorotilov, que se precipitara para o exterior. Os enfermeiros chegaram a correr. Colocaram o ensanguentado comissário, que mal respirava, na maca, regressando com ele, sem deixarem de correr, à enfermaria. Kresin apareceu com o cabelo despenteado. — Dinamite! — gritou. — Dinamite para fazer saltar todo o campo. Tranquilamente, como se nada tivesse acontecido, os plennis regressaram aos seus pavilhões. Pouco tinham ligado às ordens gritadas por Vorotilov… Já estavam com meia ração há vários dias. O que era o pior que lhe poderia suceder? Até de madrugada, Kresin, Böhler e duas enfermeiras atarefavam-se à volta de Vadislav Kuvakino na sala de operações. Trataram as fraturas das costelas, as contusões no crânio, efetuaram uma transfusão de sangue e puseram talas nos ossos fraturados. Kasalinskaya estava no quarto, com um ataque de nervos. Ingeborg Waiden tinha-lhe dado uma injeção de morfina e a Tchurilova vigiavaa. Kresin olhou para Böhler, enquanto os dois lavavam as mãos. O russo estava esgotado e ofegava. — Vai perder um olho — disse em voz baixa. — O tacão da bota destruiu-lho. — Eu vi. — É a condenação à morte de Sellnow — afirmou Kresin, como se se tratasse da sua. Böhler saiu em silêncio da sala, mas, ao chegar ao exterior, apoiou a cabeça na parede a soluçar. Assim o encontrou Schultheiss, que o conduziu ao quarto, o obrigou a deitar e apagou a luz. Dois dias mais tarde, um camião da Divisão de Estalinegrado chegou para levar Von Sellnow. Vorotilov, que se encontrava no posto da guarda, mordeu os lábios. O médico apareceu, algemado, de rosto inchado, ensanguentado, entre quatro mongóis. Estremeceu apenas uma vez ao olhar o longo pavilhão da enfermaria. Böhler estava a uma das janelas, pálido, de olhos baixos… Uma coronhada nas costas… Sellnow subiu para o camião. Os quatro mongóis seguiram-no e a porta fechou-se… Kresin, no seu quarto, ouviu o motor rugir. Tapou as orelhas com as mãos e gritou para abafar o ruído. O camião saiu lentamente do campo. Vorotilov, sozinho na entrada, seguiu com os olhos o pesado veículo, que logo desapareceu. Apenas ficava a neve, a extensão infinita, o silêncio da terra do Volga… Naquela mesma noite, Aleksandra Kasalinskaya cortou as veias dos dois pulsos.
Vadislav Kuvakino restabeleceu-se, mas não recuperou a visão do olho esquerdo. Kasalinskaya circulava com os pulsos ligados… Böhler salvara-a graças a uma dúzia de
transfusões, três delas com sangue da enfermeira Martha Kreuz. A jovem russa continuava sob a influência do choque nervoso, que se manifestava em bruscos acessos de delírio e profundas perturbações mentais e dos sentidos. Kresin telefonara para Estalinegrado a fim de conseguir um aparelho de choques elétricos. — Vamos curá-la daquela loucura amorosa — disse a Böhler. — Quando estiver boa, não se reconhecerá e irá apresentar-se a si mesma à frente do espelho: «Dê-me licença, camarada Kasalinskaya…» O tenente Piotr Markov já abandonara a enfermaria. Ainda tinha a cara um bocado azulada, mas já iniciara o combate com o diretor da orquestra, o que provava que já se sentia bem. Evitava falar com Böhler, sabendo que lhe devia a vida, pois era demasiado comunista para expressar o seu agradecimento, apertando a mão a um plenni. No entanto, de vez em quando, parecia sentir alguns remorsos e calava-se perante coisas que antigamente o fariam explodir. Não havia notícias de Sellnow. Depois de recorrer a todas as suas relações em Estalinegrado e no Partido, Kasalinskaya conseguiu que Yanina Salya fizesse averiguações na brigada sanitária, mas ninguém ouvira falar do capitão-médico desde a sua transferência. Kresin julgava-o morto, admitindo que nem tivesse chegado ao acampamento disciplinar. Não voltou a falar-se em transferir Böhler para os pântanos e os camiões que chegaram na quartafeira seguinte para trazer abastecimentos não o transportaram para o campo disciplinar. O fim que Sellnow procurara atingir com a agressão a Kuvakino foi assim alcançado, ele sacrificara-se para impedir a partida do amigo. Ninguém falava disso, nem sequer Markov, mas Böhler caíra num estado depressivo, mostrava-se ainda mais calado do que antes, mais fechado sobre si. Aquele sacrifício continuava contudo inexplicável para ele. Vorotilov evitava-o, para não ter de lhe dar uma explicação e Böhler também não falava a outros russos senão a Kasalinskaya, a Tchurilova, a Kresin e a Yanina Salya. Tinha-se produzido uma grande transformação nesta última desde o dia em que quisera matar Schultheiss: ficara mais calma e mais senhora de si. Kresin não contou a ninguém o que fizera naquela manhã, ao encontrar Yanina na sua frente, com o dedo no gatilho. Fechando depressa a porta, só teve s tempo de agarrar a rapariga, que desmaiava. Depois, esbofeteara-a conscienciosamente, como o pai que corrige a filha. Yanina não protestara, limitando-se a olhar para ele com uns grandes olhos suplicantes. A pistola estava caída no chão, carregada e destravada. — Devia matar-te! — disse ele, depois do castigo. — Velhaca oferecida! Palerma! A Kasalinskaya é ninfomaníaca e agora chega-te a vez a ti! Não há outros homens no mundo além dos alemães, meu Deus? Apanhámos esses tipos, encarcerámo-los porque devastaram a nossa Mãe Rússia, e depois? Só a sua presença basta para fazer perder a cabeça às mulheres russas! Yanina descansava na almofada, de olhos fechados, e grandes lágrimas caíam-lhe pelas faces. — E ainda por cima choras! — grunhiu Kresin.
— O senhor é um bruto, doutor. Eu amo o Jens. — O resultado continua a ser o mesmo. No fim de contas, não passa de… — O senhor nunca foi jovem? — Claro que sim, mas nós éramos diferentes. Vivíamos sob o pai czar e tratávamos por «senhor» o nosso pai. Quando abraçávamos uma rapariga, ficávamos noivos… Agora, com que facilidade e simplicidade chamam e fazem sinais aos homens! Nós nunca conhecemos tal coisa. Tínhamos honra. Quando amávamos era a sério. Para o resto, para descarregar os excessos de energia, não faltavam mulheres em São Petersburgo que por cinco rublos… — O senhor é desprezível… Vá-se embora! — Não me apetece! A lição de moral ainda não acabou. As bofetadas foram só o princípio. Disparar contra o Schultheiss! Que estupidez! Mas porquê? Porquê, parva? — Abraçou e acariciou a enfermeira alemã. — E depois? És casada com ele? — Diante de Deus… sim. Kresin ficou de boca aberta… Olhou para Yanina, que lhe sorria. — Que queres dizer? Vocês…? — Sim. Só pertenço a mim mesma. Estivemos com os lábios unidos, abraçados. Bebemos o sopro um do outro e era como um fogo devorador. — Ora! — exclamou Kresin. — Como uma miúda de dezasseis anos! E passarem uma noite juntos liga-vos para toda a vida? Yanina disse com veemência: — A nós, sim! A mim, sim! Aos dezasseis anos violaram-me na escola do Komsomol e, desde então, odiei os homens. Depois, o Vorotilov forçou-me a ir para a cama com ele, porque era forte e não tolerava resistência, violando-me também todas as vezes que o fazia. Mas o Jens…! — Uma expressão de felicidade cobriu-lhe o rosto. — O Jens foi como o vento primaveril que sopra sobre as espigas, que encrespa as águas, que faz murmurar as árvores e abrir as flores. Kresin olhou de soslaio para Yanina, pois o seu profundo sentido prático impedia-o de seguir as divagações românticas da rapariga. Agarrou na pistola, examinando-a como bom conhecedor. — Modelo americano. Onde a arranjaste? — Armamento de guerrilheira. Deram-ma quando os alemães tomaram Estalinegrado. — E tens essa arma contigo desde então? — Tenho. — O rosto tornou-se sombrio, refletindo as menores variações do seu estado de ânimo. — Queria matar-me quando a tuberculose fosse incurável. Kresin olhou novamente para a pistola, descarregou-a e atirou-a para cima da cama. — Toma. Guarda-a. Eu te direi quando a deves aplicar ao teu lindo colo. — Na boca é mais seguro — respondeu Yanina, sem lhe tocar.
— Está bem. Na boca, mas antes não te esqueças de abraçar mais uma vez o teu Jens. Depois terás um aspeto muito pouco estético. Saiu. — Grande animal! — exclamou Yanina atirando a pistola para um canto. Kresin não falou a ninguém daquela cena, e também nunca falava de Sellnow a Böhler, considerando o capitão-médico já desaparecido do mundo dos vivos. Chegou dezembro. A orquestra, os coros, os solistas ensaiavam na Stolovaya. Pintavam-se os cenários, instalavam-se as luzes, o encenador insultava os atores, o diretor de orquestra aborrecia os músicos com críticas… A agitação era geral, apenas interrompida quando o tenente Markov aparecia de vez em quando no meio da sessão. Nessa altura, ficavam todos imóveis. O oficial passava à frente de cada homem, inspecionava os cenários, cuspia neles e ia-se embora. — E pensar que continua vivo! — observou Hans Sauerbrunn. — Devia ter rebentado de ódio há muito tempo. — Está muito menos duro — objetou Karl Georg. — Dantes teria pisado os nossos instrumentos, agora contenta-se em cuspir nos cenários. É bom sinal. Quatro dias para o Natal… As equipas de trabalho trouxeram abetos do bosque… Vorotilov permitia-lhes isso, embora não tivesse recebido instruções de Moscovo a esse respeito. Reinstituíra os serviços religiosos e o pequeno pastor circulava de pavilhão em pavilhão, com a Bíblia na mão; aos domingos oficiava na Stolovaya, diante de um altar feito de caixas, com um saco em lugar da toalha e um crucifixo toscamente esculpido, comovente. Ignorava que um estudante de arte de Dresden gastava, entretanto, muitas noites a esculpir um muito maior num madeiro trazido do campo oitenta e um. Faltavam quatro dias para o Natal, montavam-se já os cenários, provava-se o guarda-roupa e ensaiava-se a orquestra e as luzes, quando chegou uma notícia que provocou outra crise nervosa em Kasalinskaya. O condutor russo de um camião de abastecimento tivera notícias de Von Sellnow. Não estava morto, como deduzira Kresin, nem sequer fora transferido para os pântanos de Kasymsskoye. Encontrava-se num pequeno campo perdido, ignorado até então, em Nizhni-Balyklei, a norte de Estalinegrado, junto ao Volga, num local onde o rio se alargava, formando grandes bancos de areia entre as margens do mais russo de todos os rios. Sellnow vivia numa pequena barraca, comia batatas e, durante oito horas por dia, quebrava o gelo do Volga, para que os pescadores pudessem lançar as suas redes. Kasalinskaya chorou e riu, gemeu e dançou, tudo ao mesmo tempo. Até beijou Kresin, atirou-se ao pescoço de Böhler e precipitou-se para o seu quarto, onde a ouviram soluçar durante muito tempo. Vorotilov foi ao gabinete de Böhler e, com uma expressão radiante, sentou-se em frente da mesa. — Não conheço Nizhni-Balyklei — disse —, mas não pode ser pior que Kasymsskoye ou
Vorkuta; em todo o caso, fica nos arredores. Vou falar com o general, em Estalinegrado, e talvez possamos fazer-lhe uma visita. — No entanto, ainda se ignora que Kuvakino ficará estropiado, nem sequer ele próprio sabe, mas quando descobrir Sellnow será executado. O que fez para me salvar foi horrível. O senhor denunciou-me, comandante. — Sou russo — respondeu Vorotilov secamente, pondo-se de pé. — Não suporto insubordinações, nem sequer dos homens por quem tenho estima. A disciplina nada tem que ver com os sentimentos, doutor. Certo oficial do seu próprio exército disse: «Quando estou de serviço, sou impecável; e estou sempre de serviço.» Pensava nele quando o denunciei a Kuvakino. — Encolheu os ombros. — A vida é cruel. Olhou pela janela e abanou a cabeça. Kasalinskaya estava perto do camião, em animada conversa com um tenente. Vorotilov tamborilou com os dedos no vidro. — A camarada médica quer ir a Nizhni-Balyklei — comentou, como se falasse consigo mesmo. — Está a tentar seduzir o oficial dos transportes. Reinava viva agitação no posto da guarda, pois o oficial de serviço contava as armas e as munições. Outros três camiões entraram no campo, robustos veículos Ford, de motor V, de oito cilindros, resistentes ao frio e adaptáveis a toda a espécie de terrenos. Levavam as provisões mensais, abastecimentos para a cantina e para a cozinha, vasilhas com vinte litros de vodca, óleo de girassol, carne congelada, enormes quantidades de couves ainda cobertas de orvalho, batatas, farinha e grandes sacos de milho. No campo 5110 tinham de ser alimentados, além dos presos, seiscentos e sessenta e cinco soldados e vinte e um oficiais soviéticos. Do alto das torres, as sentinelas trocavam piadas com os camaradas. Mikhail, o cozinheiro, apareceu com a robusta Bacha para receber pessoalmente diversas mercadorias encomendadas por ele. Alguns plennis transferiam as mercadorias para os armazéns e Peter Fischer, Karl Georg e Hans Sauerbrunn misturaram-se com eles para roubarem o que pudessem: latas de conserva, banha, punhados de milho… Peter Fischer cortou um pedaço de lombo de carneiro, que pesava cerca de três quilos, escondeu-o debaixo do dólman, reprimiu um arrepio provocado pelo contacto com a carne congelada e deslizou para o pavilhão, guardando a carne e duas latas de conserva debaixo do catre de Karl Möller, que trabalhava numa obra em Estalinegrado. Sauerbrunn chegou também com quatro latas de manteiga e os bolsos cheios de milho. Pela sua parte, Karl Georg estudava as possibilidades e, ao ver uma caixa de ovos, deu um pontapé no rabo do camarada que a ia levar para a cozinha, dizendo que aquele trabalho lhe pertencia. Pôs a caixa ao ombro, passou pela frente do piatial, que o olhava com desconfiança, e levou-a para o armazém. Ali, fazendo saltar a tampa interior, encheu os bolsos de ovos. Voltou a passar em frente do cozinheiro, a assobiar e, aproveitando o primeiro momento favorável, voltou ao seu pavilhão. Hans Sauerbrunn vigiava o tesouro, do qual fez uma lista: nove latas de banha, cerca de três
quilos de carne, à volta de três quilos de milho, vinte e sete ovos e um litro de vodca. Peter Fischer ainda conseguiu roubar umas batatas secas. — No Natal teremos que comer — disse. — Vou-me empanturrar até rebentar. Mikhail, o piatial, saiu do armazém, com o rosto vermelho como um tomate. Dera por falta de um pedaço de lombo de carneiro e tremia de raiva. — Quem roubou a carne? — gritava. Os prisioneiros continuaram a trabalhar maquinalmente, sem responder. Transportavam as munições para o posto da guarda, onde trocavam o tabaco roubado por rublos ou manteiga. O cozinheiro estava furioso e pôs Bacha a verificar as listas. — Roubaram como corvos! — gritou a mulher. — Vou mandar revistar todo o campo. A minha carne! Kasalinskaya continuava a falar com o jovem tenente. Os seus olhos negros brilhavam. — É impossível, camarada capitão — disse-lhe o oficial, com pena. — Volto para Estalinegrado, são as ordens que tenho. Além disso, nenhuma das nossas brigadas vai a Nizhni-Balyklei, esse campo é abastecido por um grupo especial. Devia falar com o nosso general. Talvez ele… O seu gesto fez-lhe brilhar as dragonas ao sol. Era um rapaz muito bem-parecido, recém-saído da Escola de Guerra de Moscovo, onde oficiais pertencentes ao Comité Nacional da Alemanha Livre davam cursos de tática e história militar. Estava orgulhoso por pertencer ao Exército Vermelho e estranhava que aquela jovem médica mostrasse tanto interesse pelos alemães, alemães esses cujo propósito tinha sido destruir o comunismo, ideal da juventude soviética. — Que brigada leva, então, os bens alimentares ao campo de Balyklei? — perguntou Kasalinskaya. — Devem ser fornecidos por Estalinegrado. — Só sei que o campo fica junto de um outro de civis, na estrada de Saratov. Lamento, camarada capitão, mas não posso ajudar-te! Kasalinskaya regressou, a correr, ao seu quarto a fim de refletir. Diante dos seus olhos deslizava a larga faixa do Volga, através da planura, tendo numa das margens a pequena povoação de NizhniBalyklei, habitada por pescadores, camponeses pobres e alguns comerciantes, que compravam peles nos bosques. Uma povoação sem rosto, que mais parecia um monte de toupeiras debaixo da neve… E, perto dali, um pequeno campo: oito torres, dez pavilhões, uma cerca dupla de arame farpado e eletrificada. Um tenente e cinquenta e nove homens: calmucos, tártaros, quirguizes, homens do lago Baikal, de olhos amendoados. O vento rugia à volta dos pavilhões, cobrindo-os de neve, o gelo do Volga estalava, os lobos famintos uivavam nos bosques… Durante a noite, iam até ao campo e aqueles que caíam mortos, atingidos pelos disparos feitos das torres, eram prontamente devorados pelos outros. A neve tingia-se de vermelho e, pela manhã, encontravam-se apenas as ossadas limpas… Kasalinskaya estremeceu. Viu Sellnow no gelo, a abrir buracos, com a ajuda de uma pá, e um
calmuco a vigiá-lo sempre, gritando davai!, davai! e acompanhando os gritos com coronhadas. Tapou os olhos com as mãos, incapaz de suportar semelhante espetáculo. Tomara uma decisão: atuar, derrotar todos os obstáculos, pôr de lado as doutrinas do Partido e do Exército… Levantou-se e começou a encher uma maleta: vestidos, roupa interior, sabonete, um conjunto de medicamentos, alguns instrumentos cirúrgicos, duas pequenas ampolas de cianeto de potássio. Kresin entrou naquele momento. Viu a desordem, as roupas atiradas para o chão, a maleta aberta, e sentou-se num tamborete desocupado. Kasalinskaya olhou-o de soslaio, com os cabelos negros caídos sobre a cara. Sentia o perigo, mas não deixou de prosseguir, com mãos trémulas, os seus preparativos. — Não me diga que sou obrigada a ficar aqui, camarada! — De forma nenhuma. Deve saber o que faz. — Kresin agarrou um vestido e contemplou-o. — Excelente lã, como pouco se vê na Rússia. É importada? — Sim, da Turquia. — Muito bem. Fica para a Yanina… Um pouco apertado, talvez, mas com o comprimento certo. Kasalinskaya apoiou-se na maleta. — O senhor não se sente bem, doutor Kresin? — Alguém terá de ficar com estes vestidos quando a capitã-médica Aleksandra Kasalinskaya for condenada à morte como desertora do Exército Vermelho. Aleksandra deixou cair os braços e um grande arrepio percorreu-lhe o corpo. Kresin largou o vestido e olhou para um sutiã de seda. — Será muito grande para a Salya. Que lindos seios ele agora cobre! Os vermes encontrarão aí comida abundante. — Cale-se, sádico! Vou juntar-me a Sellnow, mesmo que depois me condenem à morte. — Arrancou-lhe o sutiã das mãos e atirou-o para dentro da maleta. — O que lhe importa o meu peito? — Tenho o dever de a avisar, camarada Kasalinskaya, que o que projeta é puro suicídio. Nem sequer a deixarão entrar nesse campo, mesmo que aparecesse fardada, pois é preciso autorização do Comité Central de Moscovo. Até para mim seria impossível, e nem mesmo as autoridades locais, que precisam de prisioneiros para o trabalho, lá vão. Escolhem-nos de listas que lhes são apresentadas. Uma médica russa! O seu lugar não é num campo disciplinar. — Tenho de o ver! — O acesso ao campo também está proibido, nem sequer conseguirás chegar aos gelos do Volga, minha pombinha. As sentinelas têm ordem de disparar, sem aviso prévio, contra quem quer que se aproxime. E disparam, minha rosa da taiga, são asiáticos para quem a vida não tem qualquer valor. — Tenho de o ver! — repetiu ela com teimosia infantil. — Há de sair dali. Não fez nada! — Rebentou o olho de um homem, de um comissário do Partido! — O Kuvakino é um corrupto.
— Primeira condição para fazer carreira. Já devias saber, querida Aleksandra, que tudo apodrece à medida que se sobe. Os verdadeiros comunistas são pessoas simples a quem contaram coisas bonitas, em que acreditam, que nunca viram outra coisa além da casita e da lareira junto à qual dormem no inverno. Ignoram o que existe para além da sua aldeia, não conseguem imaginar que, longe dali, tudo pode ser diferente. Se vão a um buraco infeto, como Kislovo, percorrem as ruas num sonho, mas o mundo acaba definitivamente para lá de Kislovo. São os porta-estandartes da ideologia soviética! Os homens dos campos de girassóis, as mulheres a caminho das fontes, as crianças sujas nos terreiros, as raparigas que fornicam no verão nos palheiros. — Kresin fechou a maleta. — Esses são os que seguem o camarada Kuvakino! Talvez ele seja corrupto, mas não é razão para lhe rebentarem um olho. Com a cabeça entre as mãos, Kasalinskaya olhava para os ladrilhos vermelhos do chão. Ainda tinha ligaduras à volta dos pulsos. — Tenho de acabar com tudo — disse ela em surdina. — Para que hei de continuar a viver? — Porque, apesar de tudo, a vida é bela, minha boneca! Não achas? — Só era bela quando tinha o Werner ao pé de mim. — Para ti só existem os homens, meu Deus? — grunhiu Kresin. — Olha para a beleza do bosque sob a neve! Vai até ao Volga, na primavera, e a melodia das suas águas vai fazer-te cantar. Percorre a estepe durante o verão: ali respirarás o sopro da Mãe Rússia. É verde, acre, imortal! As flores brilham ao sol, o céu é vasto como uma infinita savana azul, na qual uma mão invisível tivesse colocado umas rosas brancas… Kasalinskaya levantou a cabeça, e o seu rosto exprimia um assombro profundo. — Doutor Kresin… — disse. — Mas que raio! — praguejou o médico. — O que as mulheres nos obrigam a fazer! Até entoo um cântico à terra, como Pushkin! Levantou-se e empurrou a maleta, que caiu no chão, espalhando o conteúdo. — Chega! — gritou, voltando a encontrar o seu tom habitual. — Ficas aqui, cadela com cio! Daqui a uma hora, tens de fazer a visita aos blocos doze a quinze. O empreiteiro Sergei Kislev precisa de vinte e cinco homens para construir um edifício administrativo em Krasnaya Sloboda: homens robustos e sãos. As obras começam amanhã. Percebes? — Sim — respondeu Kasalinskaya, como que obrigando-se a isso. — Sim… vou examiná-los. Contudo, depois da partida de Kresin, voltou a preparar a maleta.
A festa do Natal no campo 5110 foi o acontecimento mais emocionante de todo o cativeiro. O pequeno pastor, com os olhos cheios de lágrimas, levou o grande crucifixo para o altar erigido no cenário da Stolovaya e permaneceu calado durante um grande bocado. Um coro, acompanhado pelos
violinos da orquestra, cantou o hino do poeta Christian Gellert. Estavam presentes alguns oficiais e soldados russos. O tenente Markov encostara-se a uma janela e o major Vorotilov sentara-se na primeira fila, com Kresin, Kasalinskaya, Tchurilova e Böhler. Na segunda fila encontravam-se o pessoal da enfermaria, Schultheiss e Yanina Salya. O pequeno pastor elevou as mãos maceradas, e a sua voz ecoou pela sala: — Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ámen. Todos se puseram de pé para ouvir a leitura da Bíblia, com exceção de Kresin. Kuvakino também se levantara, mas, ao ver o médico sentado, corou e voltou ao primeiro estado. Kresin sorriu-lhe e o comissário olhou para o crucifixo. Pensava por certo na mãe, fuzilada, durante a revolução, com a cruz ao peito… Os prisioneiros cantaram, uns em voz alta, outros interiormente, mas todos com as mãos postas, enquanto as chamas de quatro velas se elevavam de cada lado do crucifixo. O cozinheiro dera o sebo e um prisioneiro, que era químico, tinha conseguido endurecê-las. Ao fundo da sala, os tártaros descobriram-se também e os oficiais olhavam fixamente para o pastor. Markov mascava sementes de girassol e cuspia as cascas para cima dos prisioneiros, mas, quando o pastor rezou pela saúde de todos, também baixou a cabeça e uniu timidamente os dedos. O sermão foi curto, pois a emoção impedia o pastor de se alongar. Vorotilov viu que Kresin agarrara na mão de Kasalinskaya, acariciando-a com desajeitada ternura, enquanto as lágrimas resvalavam pelas faces da médica. O serviço religioso chegou ao fim… Os condenados de Estalinegrado cantaram uma vez mais e o Louvado sejas, Senhor soou na sala como um clamor. Nos abetos, oscilavam as estrelas e as bolas de papel. Os pensamentos voaram para muito longe da stolovaya, sobre a terra nevada, para além do Volga, a milhares de quilómetros. Uma árvore em Colónia… outra em Giessen… mais uma em Coblença… outra ainda numa pequena cidade da Francónia… Velas trémulas, vozes infantis que cantavam, o milagre do amor todopoderoso, o cheiro a bolos, a maçãs, a nozes e a abeto… As cabeças caíram sobre os peitos, sobre os dólmanes sujos, sobre as camisas esfarrapadas que cheiravam a suor e a sopa de couve. Noite silenciosa… As lágrimas pareciam vacilar debaixo dos olhos dos homens. O pastor benzeu as cabeças inclinadas. — … e dá-nos a paz. Ámen. Silêncio, um silêncio longo, muito longo. Os condenados tinham voltado a encontrar o seu lugar. Os corações falavam com a esposa, os filhos, a mãe, o pai, a noiva… Choravam e evocavam a esperança. Regressaremos todos… acreditem. Sim, acreditem… O vosso amor é a nossa força na solidão.
Dois ou três plennis desmontaram o altar e um painel de tela grossa escondeu o cenário. Os prisioneiros voltaram a sentar-se um a um, mas os seus olhos permaneceram velados e as suas almas muito longe dali. Os instrumentos foram afinados e o chefe de orquestra, nervoso, praguejou. O diretor de cena corria entre os bastidores, dando as suas instruções aos atores para os quadros difíceis. — O que estes homens conseguiram fazer em tão pouco tempo é verdadeiramente assombroso — disse Vorotilov a Böhler. — E depois do trabalho, com as rações reduzidas a metade! Uma opereta, ornamentos, cenários… — É a demonstração da vontade de viver. — Não se esqueça de que essa vontade foi estimulada por Moscovo, com a instrução da Kulturnaya Zhizhn. Não se poderá queixar quando regressar à Alemanha. Eu sei que nos campos alemães os nossos irmãos não levaram uma vida tão branda. Vocês portaram-se como bárbaros. — Vamos discutir por causa disso? — perguntou Böhler. — Sinto-me invadido pela saudade. Se soubesse o que nós pensamos nestes momentos! Vorotilov voltou-se para Kuvakino e achou-o calado e triste. Comovido, o comissário pensava na mãe. A sua carreira no Partido fora notável, mas para ele não havia retomo possível; tinha de continuar a avançar para uma meta que ainda não ousava definir. Quando Vorotilov o empurrou ligeiramente, sobressaltou-se e encolheu-se, como se tivesse recebido uma coronhada na nuca. — O que quer, camarada comandante? — perguntou em voz muito baixa. — Só queria perguntar-lhe se soube alguma coisa do doutor Von Sellnow. Yanina Salya estava sentada ao lado de Schultheiss. Diante dela estendiam-se as costas largas de Vorotilov, mas a rapariga queria esquecer os brutais abraços do comandante. Tinha a mão de Jens entre as suas e olhava para o pano de fundo, que subia misteriosamente. A abertura começou, com música alegre e ligeira, de baile. A corneta de Peter Fischer soou um pouco fora do compasso, mas havia que ser indulgente; Karl Georg ocupava-se cuidadosamente da bateria. O tenente Markov sorriu: a corneta, a sua inimiga! No entanto, aqueles porcos alemães tocavam diabolicamente bem, era uma música que entrava no ouvido e fazia mexer as pernas. «Melodia burguesa», teriam dito na escola política de Moscovo, mas, apesar disso, era bonita. Maldição se não houvesse no mundo mais nada senão o serviço e a doutrina! Os mongóis e os calmucos sorriam, também eles, beatificamente. Atrás de um bar improvisado, Bacha Tarrasova gingava as ancas, projetando para a frente o peito volumoso. O pano de fundo abriu-se, revelando uma paisagem campestre, árvores e um banco, rematada por um bonito cenário. Sentado no banco, um homem esperava, a desenhar com o bastão na areia e a cantar. A opereta, que tinha sete quadros, durou hora e meia. O cómico pôs todo o auditório a rir e foi aplaudido com entusiasmo; o compositor não cabia em si de orgulho; o encenador arrancava os
cabelos porque os atores não se lembravam dos papéis e não havia ponto; e o prisioneiro que representava o papel de estrela esqueceu-se, por um instante, de cantar com voz feminina e, ao fazêlo com a sua, normal, provocou enorme hilaridade. Os aplausos não paravam, os atores tinham de voltar para agradecer repetidas vezes. Vorotilov foi o primeiro a levantar-se. Fez um gesto de cumprimento na direção do palco e depois voltou-se para Böhler. — Foi uma excelente noite, doutor. Não me arrependo do me ter mostrado, talvez, demasiado generoso. — E acrescentou, a olhar para Kuvakino: — Espero que a Central de Moscovo seja informada do êxito desta bonita festa. O comissário olhou-o de soslaio, sem responder, e Kresin riu ironicamente, voltando-se depois para Bacha, que servia o primeiro copo de vodca ao oficial de serviço. — Guarda um pouco para mim! — gritou Kresin. — Venha, camarada comissário. O senhor fazme lembrar um ciclope, só que a estatura deles era cem vezes maior do que a sua. Kuvakino seguiu-o, furioso, prometendo a si mesmo esmagar Sellnow como nunca ninguém fizera. A festa prolongou-se até ao amanhecer. Com os primeiros raios de luz, Markov saiu para ensaiar com a corneta de Peter Fischer. Vorotilov, Kresin e Kuvakino jogavam às cartas num canto da stolovaya e Böhler dançava com Tchurilova e com Ingeborg Waiden. Ninguém reparara no desaparecimento de Schultheiss e de Yanina, nem sequer Vorotilov, mas Karl Georg, que saíra por um momento, viu duas silhuetas na janela do dispensário antes que a luz se apagasse. Markov só conseguiu tirar uns gemidos da corneta, enquanto as sentinelas choravam a rir nas torres. Três jovens tenentes cantaram uma canção cossaca em frente da porta da stolovaya e, no interior, sete tártaros gritavam, enquanto Vorotilov batia as palmas a compasso e Kresin fazia retumbar o ar com a sua voz molhada de vodca. Kuvakino olhava maldosamente a cena, com o seu único olho. Markov voltou a entrar e soprou uma vez mais na corneta. No seu entusiasmo, Mikhail, o cozinheiro, beliscou Bacha. O campo só adormeceu pela manhã, a noite de Natal tinha passado. Nevava em grandes flocos. O céu, cinzento e pesado, parecia esmagar os bosques, cobrindo-os com um enorme manto. O tenente de serviço procurou homens para varrerem as ruas do campo, arrancando os prisioneiros dos catres a pontapé. Natal. No seu quarto, o comissário Kuvakino escrevia para Moscovo. Ao Comité Central do Politburo: «Solicito a reforma…» Natal. Yanina beijou os olhos de Jens, fechou os seus e adormeceu, feliz como uma criança. Kasalinskaya sonhava e debatia-se: — Deixa-me! — gritava. — Deixa-me!
Natal. Ajudado por Martha Kreuz e Emil Pelz, Böhler operava um caso de apendicite. A perfuração tinha-se dado durante a noite, era impossível esperar mais. Natal. A neve era espessa, já não havia nem céu, nem árvores, nem campo, nem pavilhões, nem torres, nem soldados vermelhos, nem plennis. Apenas neve, o mundo dissolvia-se em flocos brancos. — Gaze — dizia Böhler. — Tesoura… Pinças… Algodão… Estique bem a pele, Pelz… Tampão… Onde está a seda…? — Pulso normal — informou Martha Kreuz, da ponta da mesa. Natal. Neve… neve… neve… Paz na Terra…
Entre o Natal e o dia de Ano Novo, chegou uma notícia do campo de Nizhni-Balyklei: Von Sellnow estava na enfermaria com febre muito alta, suspeitando-se de congestão pulmonar. Vorotilov e Kresin fizeram todos os possíveis por evitar complicações: ocultaram a notícia a Kasalinskaya. — Além disso, é tarde demais — disse Kresin. — Não devem usar penicilina nos prisioneiros desse campo. Desde o princípio, tive o pressentimento de que não voltaríamos a ver o Sellnow. Kresin não se enganava quanto à disposição dos colegas no campo de Balyklei, mas estavam lá outros médicos alemães, além de Sellnow: dois médicos das SS, acusados de terem cultivado o micróbio da cólera em Orcha e em Minsk. A sua estada ali tinha como único objetivo prolongar-lhes os sofrimentos antes da inevitável execução, e eles sabiam-no, resignando-se corajosamente com a sua sorte. Tal como Sellnow, trabalhavam durante o dia a abrir buracos no gelo, mas, ao cair da noite, deslizavam de pavilhão para pavilhão, para tentarem, na medida do possível, ajudar os doentes. Conseguiam os medicamentos necessários — entre os quais, facto inexplicável, se encontrava uma dose de penicilina de um sargento enfermeiro russo, que tinha sido capturado pelos alemães em 1943, libertado em 1945 e se conservara no Exército, sendo enviado para aquele lugar perdido. Von Sellnow salvou-se graças à preciosa penicilina. Em meados de janeiro, durante uma tempestade de neve, um carro procedente de Estalinegrado chegou ao campo de Balyklei. Três homens de casacos forrados de pele apearam-se e correram para o posto da guarda, onde se despojaram dos grossos abafos que os cobriam e dos gorros de pele. Eram dois oficiais russos e um alemão, que vestia um elegante uniforme de major, o qual contrastava com a imundície que reinava no campo. Para melhor fazer ressaltar o contraste, o alemão pôs um
monóculo e olhou à volta. O tenente que comandava o campo observou, espantado, a insígnia que adornava o gorro dos oficiais russos: o emblema da MVD! Não se podia sequer pensar em colocar-lhes o menor impedimento. Quando os lobos entram no redil, os cordeiros ficam indefesos… — Comecemos imediatamente — disse o major alemão. — Temos de andar depressa, se queremos ter tempo para visitar os outros campos. — Mande vir os dois médicos das SS, camarada tenente — ordenou um gordo capitão, de barba eriçada e crânio calvo. O alemão tirou uns papéis da pasta e pousou-os em cima da mesa. Os dois médicos entraram, com capotes rotos e os pés enrolados em trapos e, ao verem o major alemão, imobilizaram-se, cerrando os lábios. O outro inclinou-se com delicadeza. — Passadovski. Wilhelm Passadovski. Os dois médicos examinaram o uniforme impecável, o aspeto próspero e as condecorações, entre as quais brilhava a medalha comemorativa da Primeira Guerra Mundial. — O que queres de nós? — perguntou um deles secamente. O major estremeceu, aquele tratamento por tu desconcertava-o. — Queria falar convosco em confidência, cavalheiros — disse. — Cavalheiros? — troçou o médico. — Tu não eras um plenni? Vens de Moscovo e pertences ao grupo Seydlitz. Procuras recrutas para esse chamado movimento antifascista? O major Passadovski olhou para os dois oficiais russos. Ninguém podia adivinhar se sabiam ou não alemão. Fumavam com ar indiferente, contemplando os dois médicos. — Claro que não é verdade — continuou o major — que levaram a efeito, em Minsk, investigações bacteriológicas em seres vivos. É apenas uma acusação… — Enganas-te — interrompeu o outro médico, metendo as mãos aos bolsos. — Cultivámos de facto bacilos de cólera para encontrar um soro contra eles. Devem aceitar-se alguns sacrifícios em prol da ciência… Se as nossas investigações tivessem chegado a bom termo, poderíamos salvar milhares de homens. — É algo inaudito, meus senhores! Confessam um crime que lhes custará a vida. — Não o ignoramos e aceitamos o nosso destino. Não somos como os oficiais do grupo Seydlitz, que se passaram para os russos e conduzem uma campanha de ódio contra os seus irmãos alemães: tornaram-se comunistas para salvar a vida. — Vamos, senhores — replicou Passadovski, levantando as mãos. — Não estão a ser objetivos. Vim para os ajudar. Posso oferecer-lhes lugares na Alemanha, na parte soviética, e vou fazer-lhes uma proposta em nome do Comité Central Pró-Alemanha Livre. Passarão três meses em Moscovo, no Politburo, e logo serão mandados para a Alemanha, após assinarem um compromisso. Também poderão ocupar postos na Polícia Popular da zona oriental… depende de vós.
Os dois médicos olharam um para o outro sem dizer uma palavra, e depois, dando meia volta, dirigiram-se para a porta. Passadovski empalideceu, mas o comandante do campo travou o passo aos prisioneiros e bateu-lhes na cara. Voltaram-se novamente e ficaram em silêncio, enquanto o major levantava as mãos, num pedido de desculpa. — Não quis isto, meus senhores, mas o vencedor é brutal… Vão contudo sentir-se bem entre os nossos camaradas que descobriram uma nova filosofia do mundo. A ideologia comunista contém algo de nobre em si: responde e torna-nos todos em irmãos. Em Moscovo, dispomos de uma grande e linda escola, um casino para oficiais e terrenos para a prática de desportos. Podemos ir ao cinema, ao teatro e visitar exposições. Discutimos muitas vezes com os delegados do Governo da zona oriental, que nos vêm visitar, e também temos oportunidade de falar com grandes personalidades: Malenkov, Beria, Budienny, Vorochilov. Ilya Ehrenburg também é, muitas vezes, nosso anfitrião. O general Von Seydlitz conseguiu que fôssemos muito considerados pelos nossos camaradas soviéticos… recuperou o que o nacional-socialismo tinha destruído, o que o bando de generais hitlerianos arrastou para a lama: a nossa honra de oficiais. Depois da queda de Estalinegrado, compreendemos que a continuação da guerra era um suicídio para o povo alemão, reconhecemos que colocáramos um louco à frente dos destinos do nosso país e que Adolf Hitler se tornara coveiro de uma civilização europeia milenar. Alinhámos então no campo da razão e lutámos por todos os meios possíveis contra essa guerra, convidando os soldados alemães a desertarem, pois só dispúnhamos de uma arma: a alteração do moral das tropas. Se não tivemos êxito completo, isso ficou a dever-se às medidas draconianas tomadas por Hitler e à força do soldado alemão. Não conseguimos quebrar a força da inércia do militarismo, por isso, agora domina-nos a vontade de mostrar aos nossos camaradas prisioneiros o caminho que os salvará da condenação e os levará para uma sociedade melhor. — Acabaste? — perguntou um dos médicos. — Sim, meus senhores. O médico deu um passo em frente. — Nós não pertencemos àqueles que se negam a aprender — começou pausadamente. — Éramos médicos nas SS, para quê negá-lo, e admitimos ter levado a cabo algumas experiências. Era desumano, ignóbil, uma violação do indivíduo, mas havia tantas coisas desumanas e ignóbeis naquela época! Não é desculpa para o que fizemos, e estamos dispostos a pagar, ainda que não compreendamos com que direito pretendem os russos, que são o mais cruel de todos os povos, tornar-se nossos juízes. Mas isso não muda nada, agora trata-se de você nos querer atrair para o campo comunista. Se o escutássemos, haveríamos de nos tornar renegados, apenas par salvar a pele. Temos visto muitas coisas nesta Rússia, pois passámos por Sverdlovsk, Vorkuta, Vladimir, o espantoso cinco mil cento e onze, entre o Ob e o Irtych, e estamos agora aqui; e tudo o que já vimos chega para nos convencer de que é preferível sacrificarmos as nossas vidas a admitir este
abominável sistema de violência, arbitrariedade, coletivização das almas e desprezo por tudo o que a dignidade dá ao homem. Vocês, em Moscovo, vivem à grande; confessou-o. Dispõem de um casino onde se projetam bons filmes, como por exemplo, Pedro, o Grande, mas em Vorkuta, junto ao mar Branco, centenas de prisioneiros morrem todos os dias de esgotamento e por causa das pancadas recebidas dos soldados russos… Em Sverdlovsk caem como tordos nas minas… Posso lembrar-lhe que a nova estrada do mar Branco custou mais de milhão e meio de vidas humanas, prisioneiros alemães e civis russos! E você tenta converter-nos a este sistema! Fala na honra do oficial, quando centenas de milhares de irmãos nossos agonizam nos campos do silêncio, onde reina a fome… Merece que lhe partam essa boca suja de major imbecil e desavergonhado! Wilhelm Passadovski corou, agarrou no seu bem talhado capote e vestiu-o. — Vocês são incorrigíveis — grunhiu. — Lamento, senhores. Queria tirá-los daqui… — E os outros? Que será deles, desses pobres diabos que estão neste momento a abrir covas fundas no gelo do Volga? Porque não tenta também salvá-los a eles? — É impossível ajudar toda a gente. Entre a multidão, só podemos escolher uma pequena elite, composta principalmente por oficiais. Os dois médicos voltaram a trocar um olhar, e logo um deles avançou e cuspiu na cara do major. — Porco asqueroso! — gritou. Depois deu meia volta e retirou-se, seguido do outro. Os dois oficiais da MVD não intervieram, continuando a fumar tranquilamente os seus cigarros, e o comandante do campo também não tentou deter os homens. Wilhelm Passadovski continuou no centro da sala, pálido como um morto: fechara os olhos e o monóculo pendurado balançava na ponta do cordão. Ficou assim uns momentos, voltando-se depois para os oficiais soviéticos. — Há outro médico no campo? — perguntou com voz rouca, em russo. — Há. Está doente e encontra-se na enfermaria. Chama-se Werner von Sellnow. — Posso falar com ele? O tenente encolheu os ombros e chamou um soldado, a quem ordenou que conduzisse o alemão até à enfermaria. Depois entabulou conversa com os oficiais da MVD, como se Passadovski não existisse. O major chegou com dificuldade ao pavilhão dos doentes. O fedor das latrinas e do carvão sufocou-o, e a atmosfera de urinas evaporadas que reinava no local deu-lhe vontade de vomitar. Deitado num catre, ao fundo, Von Sellnow olhava para o teto. Tinha o rosto macerado, os olhos haviam perdido o brilho, era só pele e os ossos. Tinha os dedos cheios de frieiras, a que ninguém prestava atenção, e a febre fazia-lhe arder a cabeça. Quando tossia, o peito parecia rasgar-se. Não tinha qualquer ilusão acerca do seu estado e seguia o seu rápido enfraquecimento com um interesse puramente médico, calculando o momento em que não passaria de uma ruína, na antecâmara da morte. Virou a cabeça para a porta: um soldado apontava a Passadovski o seu catre, logo se retirando.
— O camarada Von Sellnow? — perguntou o major com cortesia. — Sim. Sellnow esperava. Camarada? Teria aquele homem saído de outro mundo? Observou o monóculo, que continuava pendurado no cordão, e, com dificuldade, procurou debaixo da manta, tirando um lenço sujo que estendeu a Passadovski. — Desculpe — disse, com voz rouca. — Infelizmente, não tenho outro melhor. — Que quer que eu faça com isso? — perguntou o major, desconcertado. — É para limpar o seu monóculo. Passadovski corou e escondeu a lente debaixo do capote. Engoliu saliva antes de falar, pois pressagiava a derrota. — Disseram-me que o senhor destruiu o olho a um comissário soviético — começou. Sellnow apoiou-se nos cotovelos, sinceramente perturbado. — Ignorava-o. É certo que o ataquei… Deitei-o ao chão e espezinhei-o… De repente, não vi mais nada… Explodiu tudo o que eu tinha suportado durante quatro anos. Já não tinha consciência dos meus atos, mas lamento sinceramente que Kuvakino perdesse um olho. — Querem levá-lo a conselho de guerra. — Acho perfeitamente lógico — respondeu Sellnow, em tom sarcástico. — Mas terão de andar depressa… de contrário, não poderei estar presente. — É fatalista? — Niilista até, se quiser. O doutor Kresin afirma que estou no bom caminho para me converter em comunista. — Seria uma excelente solução — concordou Passadovski, visivelmente aliviado. — Ou antes, uma parvoíce! — Vamos, vamos, camarada! — Para mim, o comunismo é uma porcaria tão grande como o nacional-socialismo. A ideologia? Não serve de nada falar dela, mas do que fizeram dela…! Sim, na verdade, é pura e simplesmente uma porcaria. — Faltam-lhe cabeças inteligentes, camarada. — Entre as quais inclui a sua, não é verdade? Sellnow riu com dificuldade, mas um acesso de tosse obrigou-o a deitar-se. Levou as mãos ao peito e um suor frio perlava-lhe a testa. — Conhece o Comité Nacional Pró-Alemanha Livre, camarada? — continuou Passadovski. — Claro que sim! Uns tipos aproximavam-se das trincheiras e gritavam muito alto: «Desertem! Em Moscovo esperam-vos boas mulheres e serão bem alimentados!» Você pertence a essa trupe? — Constituímos um corpo de oficiais, onde estão incluídos nomes que pesam na história militar da Alemanha.
Sellnow fez-lhe sinal para que se calasse. — Quer alistar-me nas fileiras comunistas? Onde arranjou coragem para vir a esta pocilga, você, que goza de boa saúde, está bem vestido e bem alimentado, e acaba sem dúvida de deixar o leito de alguma bela prostituta de Saratov? — Herr Von Sellnow! — Senhor major, limpe o monóculo! Parece ter dom de prestidigitador. Gostava de fazer de mim um comunista, como poderia fabricar manteiga de uma diarreia! E agora vá-se embora… mas depressa. Caso contrário, talvez ainda encontre forças para o correr a pontapé. O major deu um salto para trás e desapareceu. Ao chegar lá fora, secou o suor da testa. — Que homem impossível! — murmurou. — E pensar que foi médico e oficial! A guerra apodrece as pessoas. Este pensamento consolou-o. A passos lentos, chegou ao posto da guarda. Os oficiais da MVD bebiam vodca por grandes copos, com o jovem tenente, e o fumo do tabaco escurecia a atmosfera. Ao verem entrar o major, começaram a rir, e Passadovski perguntou-se a que se deveria seria aquele riso… Sem dúvida, percebiam que tinha fracassado de novo. Mordeu os lábios e ficou junto à porta, como um aluno de castigo, pois ninguém o convidou a sentar-se. Sentia que continuava a ser um plenni, um réprobo, um ser desprezível, apesar do seu cartão do Partido e dos poderes concedidos pelo Comité Central. Mantinham-no à parte, a ele, que mandara um regimento para Smolensk… Ficou de rosto duro, sem tirar o capote, apesar do calor que reinava na sala, mas levou o monóculo ao olho. Tudo reside na atitude, pensava, até em cativeiro o oficial alemão representa o seu país. Ficou assim durante uma hora. Os oficiais da MVD puseram-se, finalmente, de pé e passaram na sua frente, sem o convidarem a segui-los, o que o obrigou a andar rapidamente atrás deles, como um cão, na neve. Os dois médicos das SS estavam perto do portão e, ao verem-no, puseram-se em posição de sentido. — Boa viagem, senhor major! — gritaram-lhe. Pálido e envergonhado, subiu para o carro e olhou fixamente ema frente. Viu a imensa planura branca: tornava a nevar. O Volga envolvia-se em véus remoinhantes, numa enorme cinta, numa fundura com blocos amontoados uns sobre os outros e, naqueles montes, algumas silhuetas manobravam com picaretas, abrindo buracos no gelo, despertando ecos no silêncio universal. Duas sentinelas deambulavam pela margem, de metralhadoras apontadas, e o major Wilhelm Passadovski desviou os olhos… Não queria esquecer que era comunista.
Von Sellnow salvou-se uma vez mais. Os cuidados dos médicos das SS condenados à morte fizeram-no recuperar. Dobrado ao meio, como um velho, circulava pelo campo, realizando pequenos
trabalhos. Encarregaram-no de limpar o edifício do comando e de esfregar o chão de madeira com uma pequena escova metálica. À noite, esgotadas todas as forças, caía no seu sujo catre. Mas vivia e respirava o ar gelado do inverno russo, que para ele nada tinha de espantoso, pois conhecia-o de todos os ângulos. Depois da capitulação de Estalinegrado, caminhara sob a neve durante quatro semanas, coberto com um ligeiro capote de verão. A marcha da morte… Os russos fizeram noventa e cinco mil prisioneiros em Estalinegrado, mas apenas dez mil chegaram aos campos. E os outros oitenta e cinco mil? Nitchevo! Tinham desaparecido na neve e nos gelos dos afluentes do Volga. O gelo deixou ver os seus corpos na primavera, e os cadáveres encheram o ar de emanações pestilentas. Nitchevo! Em meados de fevereiro, começaram a soprar as tempestades de leste, as tormentas siberianas que dobravam as árvores dos bosques, na taiga e faziam estalar as ramagens, as tempestades que matam toda a espécie de vida… Então as sentinelas foram tiradas das torres, pois não eram necessárias, nada se mexia no campo, exceto, de vez em quando, uma silhueta que se atirava contra o vento para passar de um pavilhão ao outro: algum encarregado do rancho, um enfermeiro, um médico das SS, chamado para novo interrogatório… No Volga, os blocos batiam uns contra os outros, provocando um barulho infernal. Os lobos uivavam à volta das cercas, cheirando o calor e a carne no interior dos pavilhões de madeira, mas ninguém se ocupava deles, nem sequer tentavam matá-los. Deitavam-se na neve, de focinho ao vento, a uivar. Sellnow completou, então, a sua cura. Recuperou forças, descansou e passou grande parte do tempo debaixo de três mantas sujas, a ler a Bíblia. Sentia necessidade de o fazer, uma necessidade que ele próprio estranhava. Refletiu muito durante as noites de insónia, lembrando-se até de que negara a existência de Deus e certo dia dissera a Böhler: — Quando abro um abdómen e o torno a coser, não vejo nele nada de divino. No entanto, os parentes do doente dizem: «Deus salvou-o!» E Böhler respondera-lhe: — Foi Deus que te deu o poder de abrir ventres, Werner. Von Sellnow rira-se, observando que, na Universidade, ao ouvir a lição de anatomia do velho professor Walter, nunca tivera a impressão de estar em contacto com Deus… Mas agora lia a Bíblia e estava comovido. Todo o mal está feito, pensava, todo. É horrível não se encontrar na vida que passa uma ocasião para nos redimirmos, e, antes de mais, perante Deus! Werner Sellnow estava disposto a confessar a existência de Deus. Em Estalinegrado, durante os dias de vida em comum com Aleksandra Kasalinskaya, compreendera que o seu conceito de vida não era o melhor…
Bruscamente, durante aquela noite decisiva, recordou-se do postal que a mulher lhe escrevera. Levantou-se, procurou em todos os bolsos, mas não o encontrou… Perdera-o! O primeiro e único postal recebido depois de anos de silêncio e, sem dúvida, o último que receberia. Atormentado pelo remorso de não ter conservado aquele tesouro, voltou a deitar-se, falando a meia-voz, no escuro. — Desculpa, Marika. — Que dizes? — perguntou o vizinho, às voltas no enxergão. — Nada. Dorme, Peter. — Então cala-te. Sellnow não pôde evitar um sorriso, apesar da amargura que lhe sufocava a garganta. Aquele vizinho de catre chamava-se Peter Buffschk, nome que era objeto de muitas troças. Pai de uma família numerosa, em Wedding, e pedreiro de profissão, tinha sido apanhado a deitar sal no cimento numa obra em construção, o que poderia provocar a derrocada do edifício alguns anos depois. Moeram-no de pancada e encerraram-no, mais tarde, naquele campo, onde continuava a ser indomável. Não havia nada, no esquema das possibilidades locais, que não tentasse fazer. — Ouve, doutor — perguntou Buffschk. — Estás a dormir? — Não. — Ontem, ao limpar o posto da guarda, gamei um bocado de tabaco e uma folha do Pravda. Queres um cigarro? Também tirei um bocado de pão para ti. — Dá-mos, Peter. Sellnow estendeu o braço, e o outro deu-lhe um cigarro enrolado em papel de jornal e um naco de pão. — Come devagar — recomendou Buffschk, pondo a mão em frente da boca para que os outros não o ouvissem. O homem é um milagre de Deus, pensou. Um milagre que nunca se conseguirá aprofundar. O capitão-médico voltou a deitar-se e, com um sentimento de profunda gratidão para com aquele homem primitivo e rude, mordeu o pão. Lá fora, a tempestade rugia, o Volga gemia debaixo dos gelos e os lobos vagueavam à volta da cerca dupla. Não havia nem céu nem terra… Apenas um uivo imenso. No dia seguinte, Sellnow ardia em febre, gritava, agitando os braços no ar, e a boca espumavalhe. O naco de pão que Buffschk encontrara, destinado aos lobos, estava envenenado.
No campo 5110, o comissário Vadislav Kuvakino preparava-se para regressar a Moscovo. O Politburo aceitara o seu pedido de reforma e chamava-o para ouvir o seu relato sobre o campo de Estalinegrado. Despedia-se de todos com uma certa angústia, pois conhecendo as regras do jogo, não
ignorava que, depois da entrevista com as autoridades de Moscovo, tinha poucas oportunidades de escapar à Lubianka, de onde nunca se sai. Vorotilov apertou-lhe a mão e Kresin esboçou um sorriso. Kuvakino virou-se para Böhler. — Passe bem, doutor — disse. — Não sei se valeu a pena salvar-me a vida. Um carro esperava o comissário, em frente do edifício do comando, e o condutor, que usava um casaco grosso, soprava nas mãos. — Informei Moscovo de que o senhor não teve qualquer responsabilidade nos factos acontecidos no campo — continuou Kuvakino, dirigindo-se a Vorotilov, mas sem olhar para ele, como se falasse consigo mesmo. — A origem foi a insuficiência de comida dada aos prisioneiros, portanto, a responsabilidade recai sobre a direção central de Moscovo. Hão de encontrar-se os culpados… O senhor não é. Vorotilov corou. Deu um passo em frente, como para estender a mão a Kuvakino. — Camarada comissário… — disse em voz apagada. — Porque fez isso? — perguntou Kresin em tom duro. — Eu considerava-o o maior porco que já conheci, mas o senhor obriga-me a desdizer-me. — Sou apenas um homem, camarada Kresin — disse Kuvakino, sorrindo ligeiramente. — Tinha uma mãe que cantava os hinos da Noite Santa comigo, debaixo de uma coroa de pérolas. Fiz mal em ficar até ao Natal… Durante dezassete anos, imitei os membros do Politburo: beber e fornicar no Natal, na Páscoa e no Pentecostes… para esquecer. — Colocou um dedo na venda negra que lhe tapava o olho. — Vocês não acreditam em mim… Não tenho medo da morte… apenas o que vem depois. Kresin voltou-se, a resmungar, e Böhler, levantando a gola do casaco, acompanhou o comissário ao carro. No último instante, reteve Kuvakino. — Que será do doutor Von Sellnow, camarada comissário? — perguntou lentamente. — Será castigado — respondeu o outro, com um estremecimento. — Interceda por ele, junto de Moscovo. — Não! — cuspiu o comissário, com um fulgor no olho são. — Mesmo que seja um pecado que Deus nunca me perdoe! Tem de pagar pelo que me fez! Fico feliz se rebentar como um cão… Será justo. O carro arrancou. Kuvakino virou-se para olhar o campo pela última vez. Apenas a sentinela estava junto à entrada. Esquecido!, pensou. Desprezado, odiado! E o Politburo esperava-o em Moscovo. Desde o Natal, Peter Fischer fazia outro trabalho. Mikhail, o cozinheiro, requisitara-o como ajudante, mas não porque fosse indispensável, pois o piatial dispunha, além de várias mulheres dirigidas por Bacha, de trinta e dois plennis. Devia-se à corneta… Bacha aborrecera tanto o cozinheiro que o homem decidira ter lições com Peter Fischer, apesar de ele mal saber tocar o
instrumento. Mandara vir de Estalinegrado uma magnífica corneta, trazida pela coluna dos abastecimentos e, fechando-se no seu quarto, atrás da cozinha, arrancava dela sons que se assemelhavam vagamente a mugidos. Peter Fischer levava muito a sério o seu papel de professor e, à laia de honorários, Mikhail enchia-lhe os bolsos de víveres quando regressava ao pavilhão, pedindolhe que não dissesse a ninguém. Certo dia, Böhler foi chamado ao edifício do comando. Um jovem tenente, e não um simples soldado, levou-lhe a ordem. No gabinete de Vorotilov encontrava-se Sergei Kislev, empreiteiro de obras em Estalinegrado. Olhou para o médico alemão com curiosidade, mas havia nos seus olhos angústia e medo, facto que não escapou a Böhler. Quando ele entrou, Vorotilov estendeu-lhe a cigarreira e o médico sorriu: Esperam alguma coisa de mim, pensou. Talvez uma centena de plennis aptos para o trabalho… — Este indivíduo bem alimentado chama-se Sergei Kislev — disse Vorotilov em alemão — e não compreende a sua língua. É um dos exploradores mais brutais de prisioneiros, pois dirige a construção dos edifícios administrativos em Estalinegrado. É um bonzo do Partido e um grande lambedor de botas moscovitas. Böhler sorriu. Kislev seguia com atenção as palavras do comandante, fazendo, de vez em quando, enérgicos movimentos afirmativos com a cabeça. — Veio visitar-me — continuou Vorotilov —, porque o seu filho único está muito doente. Creio que se trata de uma doença má de estômago. O rapaz não come há várias semanas, vomita tudo… — Que idade tem o doente? — perguntou Böhler, interessado. — Creio que pouco mais de vinte anos. Em Estalinegrado diz-se que temos aqui médicos excelentes e Kislev veio pedir-me que o deixe ir a Estalinegrado com ele, durante umas semanas, para examinar o filho. O que me diz? — O médico deve ir onde é chamado — respondeu Böhler com um sorriso. — No entanto, nas atuais circunstâncias é diferente. Não sou dono dos meus atos. — Autorizarei a sua ida, naturalmente — respondeu Vorotilov. — Não devia fazê-lo, pois todo o contacto entre os prisioneiros e a população civil está formalmente proibido, por causa da possibilidade de evasão, mas deposito em si toda a confiança, convicto de que não abusará dela. — Enquanto tiver camaradas doentes na enfermaria, nada tema a esse respeito. — Concedo-lhe a autorização de boa vontade. O Kislev encarrega-se também dos trabalhos nos campos disciplinares. Com um pouco de sorte, talvez consiga saber notícias do doutor Von Sellnow. Böhler olhou para Vorotilov, que sorria, como se não passasse de uma brincadeira. — Isso é uma coisa que nunca esquecerei, comandante — disse Böhler, comovido. — Decididamente, o senhor é boa pessoa! É pena que usemos fardas diferentes. — Se insultar a minha pátria, esbofeteio-o — ameaçou Vorotilov, levantando a mão. — Já sei, já sei… A serpente necessita de bastante tempo para mudar de pele.
Sergei Kislev agitava-se na cadeira, enquanto olhava para Vorotilov com olhos suplicantes. — Que diz ele? — perguntou ao comandante. — Que o acompanhará — respondeu Vorotilov, metendo a mão no bolso. E depois continuou em russo: — O médico alemão não pede retribuição, apenas quer saber se conhece o campo de NizhniBalyklei. O rosto de Kislev petrificou-se. — Não conheço. É uma aldeia junto ao Volga, mas não há nenhum campo. Vorotilov concordou com a cabeça, encostou-se à secretária e olhou para Kislev com ar amável. — Entendido — disse. — Não há ali nenhum campo. Nem sequer há um Sacha Kislev doente em Estalinegrado. — Que quer dizer? — balbuciou Kislev, empalidecendo. — Não quer dispensar-me o médico? O meu filho vai morrer. Cospe sangue e não come. — Então devia ter melhor memória, camarada Kislev. — Tenho dezassete homens a trabalhar para mim, em Nizhni-Balyklei — respondeu o empreiteiro, vacilando —, onde estão a construir jangadas para o Volga. Não devo no entanto falar nisto, camarada, ficarei em maus lençóis se se souber que disse alguma coisa… O médico vem? — Sim, mas tem de o devolver esta tarde ao campo. Se houver uma inesperada visita de fiscalização, seria terrível. Não sei nada sobre este «empréstimo». — Mas é claro, comandante — disse Kislev, inclinando-se várias vezes, com a velha deferência eslava. — Mas como o meu Sacha está tão doente… Vorotilov voltou-se para Böhler e falou de novo em alemão. — Pode ir já, doutor? Ou tem alguma coisa urgente para fazer? — Posso ir já. O doutor Schultheiss irá encarregar-se dos doentes. — Se salvar o filho de Kislev, poderá obter dele tudo o que desejar. Sobretudo melhores condições de trabalho para os seus camaradas. — Não me vou esquecer disso, comandante. Quando Böhler saiu do edifício do comando, Vorotilov olhou para ele e mordeu os lábios. — Estes alemães! — resmungou. — Devíamos tê-los eliminado. Böhler foi conduzido ao hospital militar, onde se encontrava o doente, sendo levado até junto dele sem qualquer formalidade. As apreensões de Kislev eram fundadas. Sacha, soldado de vinte e um anos, padecia do estômago há mais de um. Declarado apto para todo o serviço, não fora submetido a uma inspeção posterior, até que uma tarde sentiu vertigens e vomitou sangue, pelo que o levaram para a enfermaria, desmaiado, isto três semanas antes. Estas informações foram prestadas a Böhler por um jovem médico russo, muito lacónico, que recebera ordens para se pôr à disposição do alemão e lhe obedecer. — Tratamento? — perguntou Böhler, igualmente lacónico.
— Transfusão de sangue de dois em dois dias. Cerca de quatro litros desde a sua admissão. — E quando o admitiram? — Quinhentos centímetros cúbicos de sangue do mesmo grupo. Recuperou a consciência — respondeu o russo, lendo a ficha do doente. — Não lhe deram mais nada? — Trata-se de uma hemorragia interna. A transfusão fê-la parar. Era o melhor método, que já provou ser eficaz em muitos casos. — Com certeza, só queria informar-me. Qual foi o resultado das análises ao sangue? — Na admissão — continuou o russo —, cinquenta por cento de hemoglobina e três milhões de glóbulos vermelhos. Uma semana depois, quarenta por cento de hemoglobina e dois milhões e meio de glóbulos vermelhos. Passados mais oito dias, trinta por cento de hemoglobina e dois milhões de glóbulos. Atualmente, vinte por cento de hemoglobina e um milhão e cem mil glóbulos. Böhler não respondeu, mas reprimia a indignação com dificuldade. Vinte por cento de hemoglobina, um quinto do normal! Um milhão de eritrócitos por milímetro cúbico, em lugar de cinco. O doente perdera praticamente todo o sangue, e nada tinham feito! Voltou-se para o rapaz, que olhava para ele sem o ver, com os olhos amarelos num rosto macerado, pálido como os lençóis da cama onde estava deitado. Böhler tomou-lhe o pulso, que calculou em cento e vinte. A respiração era apenas mais rápida que o normal, pouco profunda, e não se lhe via cor nos lábios. Böhler também quis ver os outros exames clínicos. Muita albumina na urina, corpúsculos vermelhos no sedimento, numerosos resíduos, células nervosas, depósitos um pouco negros, sintoma que indicava claramente uma forte hemorragia interna, que, claramente, as transfusões não tinham conseguido conter. Böhler apalpou o corpo do doente e, quando pressionou determinado ponto, perto do umbigo, o rapaz gemeu e esboçou um gesto de defesa. Tem o destino traçado!, pensou logo Böhler. Lembrou-se do velho professor Sandtmann, que proibia operar uma úlcera no estômago ou no intestino se não se conhecia a sua localização exata e se o doente sofria de forte hemorragia interna. E aquele rapaz não tinha sido radiografado. Via-se muito bem que tinha uma úlcera no duodeno. Böhler levantou-se da beira da cama, onde se tinha sentado, e olhou para Sergei Kislev, que esperava, crispado, com os olhos ardentes. Evidentemente, os médicos só tinham chamado o pai depois de terem condenado o filho. — Como está, gaspodin doutor? — perguntou. O médico russo sobressaltou-se. Gaspodin significa «senhor», palavra formalmente proibida na URSS, onde se diz apenas «camarada doutor». O major-médico não respondeu. Foi ao lavatório, lavou as mãos com cuidado e voltou-se depois para o empreiteiro. Kislev continuava a interrogá-lo com os olhos.
— Está mal? — balbuciou. — Sim, está mal — concordou Böhler. Sergei Kislev levou a mão aos olhos e encostou-se à parede. Böhler não compreendeu o que o homem dizia, mas, pelos movimentos dos lábios, percebeu que o comunista Kislev estava a rezar… Saiu do quarto. Kislev alcançou-o junto às escadas e, por entre um jorro de palavras, Böhler compreendeu que o russo queria que ele o acompanhasse. Teve pena do homem e seguiu-o. Um carro particular, com motorista, esperava na rua, e poucos minutos depois desciam em frente da casa de Kislev, uma linda vivenda rodeada por um jardim bem cuidado. Böhler sentou-se num sofá cómodo, na espaçosa varanda envidraçada, e o outro afastou-se, depois de lhe ter pedido, com grandes e repetidos gestos, que esperasse por ele. Um sofá! Um sofá acolchoado! Paredes forradas de quadros e tapetes. Portas de madeira fina, uma mesa redonda, com pés trabalhados. Cristais nas vitrinas. Um ligeiro perfume no ar… O alemão fechou os olhos. Colónia-Lidenthal… Uma pequena vivenda no meio dos prados, não longe do parque municipal. Uma mesa de pingue-pongue na relva… Jogava ali com Margot, a mulher, que era muito rápida e o obrigava a correr. O riso dela era claro e cristalino, a juventude, a alegria de viver, brilhavam-lhe nos olhos… Depois estendiam-se numas cadeiras de jardim para tomarem uma laranjada… Laranjada, meu Deus! No parque trotavam alguns cavalos; ouviam-se vozes alegres… a brisa estival levava os risos até eles… Böhler sobressaltou-se e levantou-se. Sergei Kislev, envelhecido, quase a cambalear, descia a escada. — Tu curar Sacha — disse o russo em tom suplicante. — É impossível. Como sabia que o outro não o entendia, o médico deu intencionalmente às suas palavras um tom de consolo. Nos olhos de Kislev apareceu uma centelha de esperança, que o cirurgião via sempre quando minimizava a gravidade de um caso. — Eu podia operá-lo, mas não aqui… Não no hospital militar nem no campo. Não estão preparados como é necessário. O doente morreria na mesa de operações. Precisaria de uma sala mais bem equipada, com instalações mais modernas. Só nessas condições ousaria operar. — Tu curar ele? — repetiu Sergei Kislev, com expressão esperançada. — Nunca se consentiria que um médico prisioneiro operasse numa clínica russa, é absolutamente impossível. Seria um sacrilégio, pois a URSS possui os melhores cirurgiões do mundo… Pelo menos, é o que se diz… Nada posso fazer por ti, Sergei Kislev. Ao ouvir o seu nome, o empreiteiro interpretou-o como um sinal favorável. Agarrou Böhler por um braço, levou-o para a cozinha, onde trabalhava uma rapariga e obrigou-o a sentar-se numa cadeira, colocando em frente dele um salpicão, manteiga fresca, pão branco, fruta — em pleno inverno! — e uma lata de conserva americana. A rapariga levou-lhe um prato e uma faca.
Os olhos de Böhler abriram-se de espanto. Salpicão! Boa manteiga, amarela e cremosa! Quase maquinalmente, cobriu com ela uma fatia de pão, colocando em cima uma rodela de salpicão. Atrás dele, Sergei Kislev riu, agarrou noutras rodelas e pôs sete no pão. Cinco anos de sopa de couves, cinco anos de pão duro; seiscentos gramas… duzentos, de feijões engordurados…! Böhler comeu o pão com manteiga e os oito pedaços de salpicão, melhor dizendo, não comeu, devorou, como a faminta ave de rapina que acaba de filar uma presa. Uma fatia de pão com manteiga… duas… três… O estômago pesava-lhe como se fosse chumbo… Viu Kislev deitar vinho da Crimeia num copo… Bebeu… O líquido queimava-lhe a garganta, o estômago, as veias… Ganhava uma vida nova. Olhou para a mesa. A lata de conserva não tinha sido aberta… só usara uma parte da manteiga. Sobrava um bocado de pão e de salpicão. O alemão levantou-se, passeou os olhos à volta, viu um jornal numa janela, agarrou nele, enrolou o salpicão, a manteiga e a lata. Sergei Kislev contemplavao, a rir e batendo-lhe amigavelmente no ombro. — Curar Sacha! — exclamou. — Grrran médico! Böhler cerrou os dentes. «Se desse todos os dias aos meus doentes em estado mais grave uma rodela de salpicão, podia alimentá-los durante uma semana, e isso vale bem uma mentira, que Deus me perdoará. No campo, chegámos ao fim das forças. Cinco anos de alimentação deficiente, e agora a meia ração, porque a seca destruiu as colheitas…!» Kislev levou pontualmente Böhler ao campo, antes de ser passada revista. O major Vorotilov ficou calado enquanto o médico lhe contou a verdade, na presença do empreiteiro, que fumava calmamente. — Não sabe de nada? — perguntou, depois, o comandante. — Era-me impossível dizer-lhe a verdade. — Devo…? — Não, peço-lhe. Vai sabê-lo e depressa. Ah, se eu tivesse uma clínica moderna, com tudo o que isto implica! — Operaria? — Sim. Agarrar-me-ia à mínima esperança, por mais débil que fosse. A operação em si não seria muito difícil em alguém menos doente, como é natural. Temos de procurar o local da hemorragia e travá-la. Não existe doença sem esperança… e quando se acredita em milagres… — O senhor acredita? — Sucedem tantas coisas estranhas, tantas curas que pareciam impossíveis do ponto de vista humano! O Céu é grande, comandante, e perante ele o homem não passa de um grão de areia. — Não quer, portanto, operar o Sacha Kislev? — Por preço nenhum, nem aqui nem no hospital militar. Seria um homicídio. — Só o professor Pavlovich opera no Hospital do Estado, em Estalinegrado. — Então cumpre-lhe a ele realizara intervenção.
— Já se negou, sem sequer ver o doente. Bastou-lhe a informação clínica. — De facto, é suficiente — concordou Böhler. — Logicamente, o professor não se quer expor a um fracasso, operando o filho de um homem importante, compreendo-o perfeitamente. Mas que tenham pensado em mim! Se a intervenção correr mal, quem paga as favas sou eu, serei até condenado… a dez anos de trabalhos forçados, a vinte… Não lhes falta generosidade neste aspeto! — Mas, no Hospital do Estado, operaria o doente, não é verdade? — Pelo menos, tentaria… Ainda que seja inútil falar nisso. Volto para a minha enfermaria. Kislev viu-o ir-se embora, sem perceber nada. Por que razão se retirava o médico? E Sacha, o seu filho? O russo precipitou-se sobre Vorotilov. Duas horas mais tarde chamaram de novo Böhler e um carro sanitário da divisão levou-o. Um capitão-médico russo, antigo colega de faculdade de Kresin, acompanhava-o. — O doente foi transferido para o Hospital do Estado — disse a Böhler, em excelente alemão. — O camarada professor sente grande impaciência em ver a sua forma de operar. Böhler ficou surpreendido. — Deixam-me operar? — perguntou. — Foi essa a razão por que o vim buscar. — No Hospital do Estado, de Estalinegrado? Mas é absolutamente impossível… — Porquê, caro colega? — Sou um plenni alemão! — E então? Na clínica há três comissários e o senhor será libertado temporariamente. — Temporariamente? Que significa isso? — perguntou Böhler, com uma voz que a emoção tornava trémula. — Depois da operação voltará a ser prisioneiro, os três comissários estão lá por esse motivo, e irão detê-lo imediatamente. Trata-se apenas de nos autorizarmos perante Moscovo, concedendo-lhe a qualidade de médico particular, que lhe permite operar no Hospital do Estado. Por outro lado, Sergei Kislev prometeu cinquenta mil rublos ao hospital, se a operação tiver êxito. Isto, claro, ainda tem maior importância. — E estamos num Estado pretensamente popular, num país sem classes sociais, no paraíso dos trabalhadores! — exclamou Böhler com ironia. — Os vossos métodos são verdadeiramente dignos de ficarem registados pela História. — Ficarão, caro colega — respondeu o russo, devolvendo-lhe o sorriso. — Começámos já a escrevê-la ao entrar em Berlim, em quarenta e cinco, e continuaremos sozinhos! Os Estados Unidos ou a Inglaterra podem julgar-se poderosos e obter vitórias diplomáticas, mas nós trabalhamos em silêncio, com o intuito de ganharmos o coração dos povos, com os mesmos métodos que farão hoje de si, durante todo o dia, um homem completamente livre, o cirurgião Fritz Böhler, de Colónia, a quem se concede a honra de operar em Estalinegrado. Logo à noite voltará a ser um plenni, assim o
quer a história. O imenso Hospital do Estado, silencioso e branco, situava-se nos arredores da cidade, no meio de um parque. Era uma construção monumental, tipicamente russa, como as que se mostram aos turistas estrangeiros e que serão o testemunho do desafogo económico e cultural da União Soviética. Uma mistura de arquitetura americana e neoclássica russa, que recorda os projetos de Hitler para o Reich milenário… No gigantesco vestíbulo, onde Böhler penetrou depois de algumas formalidades, esperava-o um homenzinho magro, de barba branca cortada ao estilo tártaro e olhos ligeiramente amendoados num rosto enrugado. Quando a porta giratória girou sobre o eixo, inclinou-se e deu uns passos em frente. — Professor Tai Pavlovich. Estendeu ao médico alemão uma mão de velho e Böhler ficou surpreendido e inquieto ao pensar que o professor operava com uma mão tão débil. O capitão-médico trocou com Pavlovich algumas palavras que Böhler não percebeu, em russo ou em dialeto mongol, acrescentando depois em alemão: — O professor preparou tudo. O doente encontra-se na sala de operações e já foi lavado. Dentro de dez minutos vão começar a anestesiá-lo. — Vão dar-lhe anestesia geral? — perguntou Böhler, num tom que surpreendeu os dois russos. — Porque não? — perguntou o professor. — Só se pode fazer anestesia local — explicou Böhler com firmeza —, caso contrário, mataremos o doente. Eu próprio tratarei disso: Oxigénio e transfusão de sangue numa veia do tornozelo, durante toda a operação. Peço-lhe que tome imediatamente as disposições convenientes e que mande preparar o plasma necessário. Como Böhler falara com autoridade, os russos olharam-no assombrados, mas não protestaram, e o capitão-médico foi imediatamente cumprir as instruções. — Eu vou ajudá-lo — anunciou o professor em tom condescendente. — Sinto-me muito impaciente… «Com esses impotentes dedos de ancião!», pensou Böhler, que, no entanto, respondeu: — Agradeço-lhe muito. O capitão-médico voltou. — Desde este momento — anunciou —, considere-se um homem livre. — Os senhores são deveras amáveis! — comentou Böhler, com evidente tom sarcástico. No vestíbulo, viu três oficiais com o emblema da MVD: os três comissários. — Vamos — disse, depois de um profundo suspiro. O professor Pavlovich encabeçou a marcha e os enfermeiros empurraram as grandes portas de vidro. Um grande corredor branco; uma sala branca, com torneiras brilhantes, grandes colunas de mármore, dez enfermeiras com uniformes brancos, avental de borracha, touca e máscara. Uma delas
estendeu-lhe o sabão e uma escova e Böhler lavou as mãos e os antebraços, com água quente, como num sonho… Depois estendeu as mãos para lhe deitarem álcool nas palmas… Uma enfermeira calçou-lhe as luvas… Puseram-lhe a máscara e alguém lhe enfiou um avental de borracha, cobrindolhe depois a cabeça com um gorro. Um médico jovem, alto e bronzeado, com aspeto de arménio, entrou então. — O doente está preparado — anunciou, laconicamente. O professor Pavlovich olhou para Böhler, que também já estava preparado. O alemão concordou com a cabeça e o professor precedeu-o através de uma pequena porta. Deslumbrado, emocionado, Böhler deteve-se: uma sala de cirurgia gigantesca, aquecida, iluminada por duas dúzias de globos de vidro. Atrás da mesa de operações, um anfiteatro onde se apinhava mais de uma centena de estudantes de ambos os sexos; à volta da mesa, um enxame de ajudantes, enfermeiros e enfermeiras. Na primeira fila do anfiteatro, Kresin, e ao seu lado um rosto emoldurado por caracóis negros — Aleksandra Kasalinskaya — junto do qual se encontrava, pálido como ela, o major Vorotilov, de mandíbulas cerradas. Böhler aproximou-se da mesa com passo firme. O corpo do jovem estava tapado com panos quentes, só a zona a ser operada, o abdómen, ficava a descoberto. — Vou preparar a anestesia — anunciou Böhler. O professor transmitiu a indicação a uma enfermeira, que colocou uma agulha numa grande seringa, aspirando com ela o líquido de um recipiente. Depois, estendeu-a ao cirurgião, antes de preparar uma segunda seringa, e Böhler espetou-a na pele do ventre, pintada com tintura de iodo. A injeção ia anestesiar toda a zona operatória, desde as costelas até debaixo do umbigo, e, de lado, quase até às costas. O doente não apercebeu. Administravam-lhe oxigénio através da máscara e a enfermeira, sentada perto dele, dizia-lhe baixinho palavras de encorajamento que não se percebiam. Uma tela em jeito de tenda, colocada à frente das duas cabeças, isolava-as do operador. A enfermeira vigiava, igualmente, o pulso e um médico ajudante controlava a passagem do oxigénio. Böhler deu a anestesia por terminada e pediu a uma enfermeira que lhe esticasse as luvas, enquanto esperava que o anestésico fizesse efeito. Não tinha sido administrado qualquer analgésico ao doente, pois Böhler não queria correr o risco de provocar dificuldades respiratórias. Com toda a prudência, ordenou que começassem a injeção de plasma pela veia do tornozelo, com o intuito de aguentar o coração e a circulação, mas aquele sangue também se derramou no intestino, através da úlcera. Era um poço sem fundo… a morte certa, se a hemorragia não pudesse ser contida rapidamente. Por outro lado, será que o doente aguentaria a operação? Estava tão fraco… Para correr aquele risco era precisa a audácia do desespero. — Vamos começar — disse Böhler, fazendo sinal ao professor.
O russo disse algumas palavras aos seus colaboradores, e a extraordinária tentativa começou… Böhler fez a incisão exatamente no centro do abdómen, do esterno até debaixo do umbigo, e o professor estranhou: — Nós fazemos a incisão atravessada sobre o estômago, da direita, em cima, até à esquerda, em baixo — observou. Böhler concordou e respondeu, sem interromper o seu trabalho: — Preciso de muito espaço, pois vamos ter algumas surpresas. Não quero ter de aumentar, depois, o corte. Os bordos da incisão foram cuidadosamente separados e alguns vasos sanguíneos ligados. Quando o sangue parou, Böhler introduziu rapidamente o espéculo ventral, para manter aberta a ferida, e cortou o peritoneu. Era a fase que podia ser mais dolorosa, apesar da anestesia local, mas o doente só gemeu muito debilmente. Parecia demasiado exausto até para sentir dor. Böhler apalpou o fígado. — Fígado muito inchado — disse ao professor — e cicatrização na zona do epíploo. Observou, satisfeito, que se tinha enganado ao temer alguma debilidade no professor: Pavlovich operava de forma muito eficaz. Durante alguns minutos, Böhler tentou descobrir, na cavidade abdominal, a artéria de onde podia jorrar a hemorragia do duodeno, mas não a encontrou. — Vou fazer uma incisão Billroth no estômago — explicou, sem se preocupar com a expressão de estranheza do professor, acrescentando, à laia de explicação: — Não encontro a úlcera. — O doente não vai resistir — murmurou o cirurgião russo. Böhler encolheu os ombros. A equipa operatória funcionava muito bem: os instrumentos chegavam à mão de Böhler sem ter de os pedir expressamente, e o professor previa as suas intenções no momento certo. O alemão soltou rapidamente o estômago e cortou-o, poupando apenas um terço do órgão, que ligou a uma prega do intestino, ficando assim a digestão restabelecida. Efetuou uma incisão na parede interior do duodeno, agarrando e separando os bordos com pinças, e então viu uma úlcera em forma de cratera, com alguns centímetros e com uma pequena abertura ao centro, da qual saía continuamente sangue. Böhler apontou-a ao professor. — Isto devia ter sido tapado há semanas — observou em voz baixa. O outro concordou, deu umas pancadinhas na cratera com uma gaze e logo um coágulo se desprendeu, deixando à vista uma pequena fonte de sangue. — Fio! — gritou Böhler, colocando o indicador esquerdo naquele lugar. Uma enfermeira estendeu-lhe uma agulha já enfiada. O médico efetuou uma sutura em ziguezague e a hemorragia foi travada. O buraco da artéria, através do qual saía o sangue, estava tapado. O doente suportara a operação melhor do que seria de esperar até então, mas as coisas
agravaram-se no momento decisivo em que a hemorragia foi descoberta e contida. — A pressão arterial está a descer — anunciou o médico que vigiava o pulso. — Já não consigo medi-la… a pulsação também desapareceu… Böhler largou o instrumento que tinha na mão e arrancou as luvas, enquanto o professor o olhava sem ocultar uma expressão de triunfo. — Acabava de lhe dizer que o doente não resistiria — anunciou num tom muito sereno. — O rapaz morreu. Böhler não o ouvia. — Não está a ver que a transfusão foi interrompida? — gritou para o ajudante que devia encarregar-se dela. Não passara mais sangue para as artérias do doente durante os últimos minutos, a circulação estava paralisada. — Dê-me uma agulha comprida e uma seringa de punção, com uma solução salina e um estimulante circulatório… O que tiver — pediu Böhler à enfermeira. — Inclinem a mesa, a cabeça deve ficar muito baixa. Falava com voz abafada e o seu rosto refletia a raiva que sentia, pois era-lhe muito difícil dominar-se. — O que quer fazer? — perguntou o professor, quase com angústia. — Uma transfusão intracardíaca — respondeu Böhler, enquanto pintava a zona do coração com tintura de iodo. — Prepare uma agulha com plasma — continuou, dirigindo-se à enfermeira. — Mas este homem está morto! — insistiu o professor. — É tarde demais, não respira. — O coração está são, mas não tem sangue — replicou Böhler, irritado. — Continuem a dar-lhe oxigénio e façam-lhe respiração artificial. Enquanto as suas ordens eram prontamente executadas, o cirurgião alemão colocou a seringa à altura da quinta costela e mergulhou a agulha. A sua mão sentiu a resistência dos tecidos: a agulha atravessava os músculos cardíacos para penetrar no ventrículo direito. Todos os olhos viram que o sangue subia na seringa, sangue que vinha do coração… — A agulha redonda e o plasma — ordenou. A ira continuava a invadi-lo. Estava irritado não por os seus ajudantes não terem prestado atenção suficiente, mas porque a morte lhe queria arrancar um dos seus doentes. Com grande rapidez, mas sem o mínimo movimento em falso, ligou a seringa, através da torneira de duas passagens, à agulha que estava no ventrículo direito e vibrava ligeiramente. O professor Pavlovich seguia aqueles movimentos seguros e precisos, sem dizer uma palavra. Böhler puxou o êmbolo da seringa e pressionou-o, bombeando assim devagar o sangue para o coração, uma e outra vez. O recipiente que continha o plasma estava meio vazio quando o ajudante anunciou:
— Há novamente pulso. O cirurgião alemão não deixou que a emoção se apoderasse dele e continuou a bombear o sangue. O peito do doente elevou-se, impercetivelmente ao princípio, mais depressa depois: a respiração voltava. Böhler afastou-se, sem fazer caso do rumor que enchia a sala de operações. Estava íntima e profundamente satisfeito, pois tinha visto os russos abrirem a boca de assombro e a estupefação retratar-se nos olhos do professor e dos ajudantes. Regressou à mesa e terminou a operação, repondo o peritoneu sobre a úlcera… Iria cicatrizar totalmente. Fechou a cavidade abdominal, suturou, desinfetou e foi à cabeceira da mesa, para examinar o doente, que tinha já os lábios rosados… O médico alemão fez um sinal com a cabeça aos seus colaboradores, inclinou-se ligeiramente e saiu.
Böhler foi devolvido ao campo naquela noite… Voltava a ser um woienno-plenni, um simples número. Depois de um último exame ao doente ter revelado que o perigo imediato tinha desaparecido, os três comissários detiveram de novo o cirurgião. Despiu a bata e os sapatos brancos e os comissários entregaram-no a um jovem tenente. No grande vestíbulo, Böhler cruzou-se com o professor Pavlovich, que passou a seu lado sem sequer voltar a cabeça. Um plenni! O capitão-médico, que tão amistoso se mostrara e que se encontrava na portaria, virou costas sem o cumprimentar. Um plenni! Böhler cerrou os dentes. Era assim a URSS. Contudo, Kresin, que o esperava em frente da porta monumental, estendeu-lhe as duas mãos. — Não consigo dizer nada — exclamou. — Estou fora de mim! Nunca vi nada assim. Meu filho… Quase o abraçou, e Böhler compreendeu: no campo estava em casa… Regressou quase feliz. No seu quarto, deixou-se cair em cima da cama, descuidado, e acendeu um cigarro. Kresin foi felicitá-lo outra vez, injuriando os colegas de Estalinegrado, e Vorotilov levou-lhe uma garrafa de vinho, muito bem disfarçada; ele, o comandante! Kasalinskaya e a Tchurilova também lá foram, tal como Schultheiss e Yanina Salya. Böhler comprovou então, admirado, que pertencia àquela gente, que era parte integrante do campo 5110. — Tenho de festejar este êxito consigo — comentou Vorotilov cordialmente —, mesmo que Moscovo venha a saber cem vezes! Gostaria de ser seu amigo, doutor. Cinco dias mais tarde, apareceu Sergei Kislev. Estava muito satisfeito com o que o professor Pavlovich lhe tinha dito. Só vira Sacha em duas ocasiões: logo a seguir à operação, quando o doente
parecia ainda um cadáver, e três dias depois, no seu quarto particular, onde o encontrou fraco, mas cheio de esperança. estava tudo bem, dissera o professor, o médico alemão levara até ao fim uma operação sem precedentes nos anais da medicina russa. Sergei Kislev vinha, pois, para lhe agradecer. Não trazia víveres, nem dinheiro, que de nada serviriam a um plenni, mas chegava com notícias de Von Sellnow. Lembrando-se das palavras de Vorotilov, telefonara para o campo de Nizhni-Balyklei e fora atendido pelo próprio comandante, que declarara que o prisioneiro estava bem, já curado da congestão pulmonar, e que executava, desde então, pequenos trabalhos no campo. Sergei Kislev vinha comunicar tudo aquilo a Böhler. — Quando recomeçarem as construções, na primavera, vou levá-lo e alimentá-lo bem — disse o empreiteiro a Vorotilov. — Talvez possa continuar a tratar o meu Sacha… O professor diz que vai ser preciso muito tempo para que o meu filho volte a ser o que era. — O doutor Von Sellnow é um médico notável. Era diretor de uma clínica na Alemanha. — Então porque está num campo disciplinar? — Rebentou um olho a um comissário. — A um comissário? — balbuciou Kislev. — E esse médico ainda vive? — Você telefonou para lá ontem, camarada Kislev — respondeu Vorotilov, encolhendo os ombros. — Quanto a saber se está vivo, tudo é possível naquele campo, mas espero que assim seja. — É espantoso… Mas, se rebentou o olho a um camarada, não passa de um porco alemão! — Foi um porco alemão que salvou a vida ao seu Sacha — respondeu, calmamente, o major. — O doutor Böhler é uma exceção! — exclamou Kislev. Apetecia-lhe voltar depressa para Estalinegrado. — Diga-lhe que o camarada dele continua bem e que, quando chegar a primavera, tentarei metê-lo na minha equipa… Tentarei… Até à vista, camarada comandante. Vorotilov viu Kislev pela janela, que subia para o carro e se afastava velozmente. Naquele momento, Sauerbrunn passava em frente do edifício do comando. — Piolhoso nojento! — exclamou Vorotilov em alemão, para o carro que partia. Sauerbrunn ouviu-o e, à noite, aquelas palavras passaram de boca em boca, de pavilhão em pavilhão, de bloco em bloco. Desde aquele dia, Sergei Kislev passou a ser chamado «piolhoso nojento».
EXCERTO DO DIÁRIO DO CAPITÃO-MÉDICO SCHULTHEISS
Posso finalmente voltar ao meu diário. Sucederam tantas coisas, sobretudo depois do Natal, que não tive um único momento para traduzir os meus sentimentos em palavras. O amor da Yanina preenche-me completamente. Vivemos aqui como numa ilha… como num sonho que nos tivesse transportado a um país espantoso, mas que não pode destruir o nosso amor. O campo, os camaradas prisioneiros, a má alimentação, a saudade da pátria, tudo subsiste, mas como por detrás de um véu. Anteontem recebemos correio… Todos, e não só os «candidatos ao Partido». Eu também… Da minha mãe. A sua letra trémula cobre todo o postal, inclusindo as margens e também a face do lado da direção. É um milagre que a censura tenha deixado passar esta mensagem. Meu querido filho: O Natal vai chegar em breve e penso ainda mais em ti que de costume. Aqui está tudo bem. O Franz voltou há três anos dos campos ingleses e agora é advogado numa companhia. O filho da Melitta tem dois anos. Falo-lhe muitas vezes do tio Jens, que está longe, muito longe, na Rússia. Todos esperamos o teu breve regresso. O professor Höffkens veio ver-me recentemente e perguntou-me por ti. Vai empregar-te na sua clínica, logo que regresses. Toda a gente te manda saudades. O nosso amor é todo teu, Jens, meu filho, meu menino. Continua bem e volta para nós. Quero voltar a ver-te e beijo-te com todo o meu carinho. A tua mãe À noite, Yanina veio ao meu quarto… Li-lhe o postal. «Hei de conhecê-la um dia», disse ela. «Vou contigo quando te libertarem.» Depois encostou a cabeça ao meu ombro e tocou no postal com um dedo. «Como é a tua mãe, Jens? É como tu, alta e loura?», perguntou-me. Falei-lhe da minha mãe a noite inteira, retrocedendo o máximo no passado que a memória me
permite. Via-me a brincar num caixote cheio de areia e a minha mãe, sentada ao meu lado, a ajudarme a construir um castelo, com um balde de água à mão, para humedecer a areia. Franz disparava flechas com o arco, atrás da casa, e Melitta estava na escola. A minha mãe construiu um verdadeiro castelo, com fossos e várias torres, mas o Franz destruiu-o com as suas flechas. Eu chorava e a mamã consolava-me… Yanina escutou-me ansiosa. «A tua mãe deve ser uma mulher maravilhosa», comentou por fim. Dois dias depois da chegada do correio, o campo voltou a adquirir o aspeto habitual. Antes disso, todos meditavam, pensando na pátria, fechando-se em si mesmos. Sem dúvida que muitos se lembravam de Julius Kerner, o indomável, que nem sequer o tenente Markov conseguira vergar e que, com as suas piadas, assegurava a moral de todos. Um dia, duas pobres linhas, chegadas da Alemanha, levaram o desgraçado a deitar-se nu, na neve, para morrer. Havia também um postal para Sellnow, que Vorotilov guardou, não sabendo o que fazer com ele. Quer dizer que Moscovo ignora a transferência de Sellnow para um campo disciplinar, o que confere um aspeto completamente diferente à questão. Se a decisão tem um carácter meramente local, pertence à divisão de Estalinegrado e podemos ter esperança de ver novamente Von Sellnow. Caso ainda esteja vivo… Vorotilov parece ser da mesma opinião, porque não devolveu o postal, limitando-se a prevenir Kresin… Pediu-nos também a todos que não falássemos no assunto à Kasalinskaya, porque de certeza que se tentaria suicidar outra vez ao saber que Sellnow tem mulher e duas filhas na Alemanha — uma esposa que o espera com toda a força do seu coração apaixonado… Aleksandra não o suportaria, sacrificaria Sellnow e a si própria à sua paixão. Todos têm consciência disso, pelo que não devemos deixar que ela saiba.
Uma semana depois, Sergei Kislev voltou ao campo. O filho estava relativamente bem. A operação não teve consequências desagradáveis e o professor Pavlovich, entusiasmado, deu uma conferência sobre o caso, com projeções. — Acho que está a pensar publicar a conferência no jornal O Médico Soviético, apresentando a operação como tendo sido efetuada por ele — disse Kislev, a sorrir.. — E os estudantes que viram o doutor Böhler operar? — Ora! Dependem completamente do professor, em especial nos exames… Além disso, nenhum poderia intervir neste acaso, pois seria acusado de sabotagem. — É sempre a mesma história — suspirou Vorotilov. — Mas que é que o traz aqui, camarada Kislev? — O médico do campo de Nizhni-Balyklei. — O Sellnow? — perguntou o comandante, levantando-se muito depressa. — Tem notícias dele?
— Sim, mas, infelizmente, são más. Vai morrer. — Não! Vorotilov correu para a porta e ordenou a uma sentinela que fosse depressa chamar Böhler. — Como é possível? Foi uma recaída da congestão? — Não. Foi envenenado. — Envenenado! — Sim. Ninguém sabe com quê. Parece ter perdido a lucidez. Um alemão chamado Buffschk trata dele, pois o comandante do campo não quer chamar o médico. «Ele que rebente!», disse. Dois médicos das SS, que estão no campo, fizeram-lhe lavagens ao estômago. — Que repulsa! — exclamou Vorotilov, dando um soco na mesa. — Vou imediatamente a Estalinegrado e eu próprio pregarei dois tiros nesse tenente. Böhler entrou, com a respiração agitada, viu Kislev e pensou que o filho dele tinha morrido. Mas reparou na ira de Vorotilov e fechou logo a porta. — O Sellnow foi envenenado! — gritou o comandante. — Pela segunda vez! Primeiro, na Fábrica Outubro Vermelho e agora no campo disciplinar… Está a morrer. — Era disso que eu tinha medo — observou Böhler, com voz fraca. Todos os esforços eram, portanto, em vão: envenenava-se quem incomodava, era mais discreto que uma bala na nuca ou a lenta destruição sobre os gelos do Volga. A indignação apoderou-se dele. — Desconfiava de que não o tornaríamos a ver — exclamou. — A Kasalinskaya sabe? — Não, nem deve saber! — exclamou Vorotilov, levantando as mãos num gesto de esconjuro. — Tentaria de novo o suicídio. Esperemos que o Sellnow tenha mesmo morrido. O tenente que manda no campo recusa-se a chamar o médico. «Ele que morra!», disse ele. — Esperava qualquer coisa diferente, comandante? — perguntou Böhler, com um nó na garganta. — O senhor não é partidário da força a qualquer preço? Mesmo que se trate de torturar um doente indefeso… — A emoção está a fazê-lo divagar — interrompeu-o Vorotilov, num tom frio. — Não se lhe devia ter dado esta notícia. — O que vai ser do Sellnow? — Provavelmente vai rebentar. Não digo morrer, mas rebentar, que é a palavra que corresponde exatamente à situação. — E ninguém pode intervir? Só há cabeças que se baixam, que aceitam ordens, e lambe-botas? Entre os famosos soldados do Exército Vermelho, entre os seus valentes oficiais, não existe um único que seja capaz de pronunciar uma palavra contra a iniquidade? — Vocês poderiam fazê-lo no tempo de Hitler? — E não derrubaram Hitler para que o pudéssemos fazer? Não era essa a justificação oficial da guerra: a libertação do povo alemão e a morte do seu tirano?
— Foram vocês, os alemães, que começaram a guerra. Não fomos nós! Vocês invadiram a Polónia, a Bélgica, a Holanda, a França, a Noruega, a Dinamarca, a Itália, o Norte de África, os Balcãs. E a nossa Mãe Rússia, apesar de um pacto de amizade! Não se esqueça! O Sellnow é meramente uma vítima do vosso sistema. Não foi a Rússia que o matou, mas sim a Alemanha. Böhler não respondeu. Olhava para Sergei Kislev, que assistia à discussão sem perceber uma só palavra. Finalmente, Vorotilov calou-se. — Socorri o filho dele — disse Böhler, em tom duro. — Não há em toda a Rússia uma única pessoa que ajude o meu amigo? Vorotilov estremeceu, pois um pensamento acabava de lhe ocorrer, um lampejo de esperança. — Tragam já o carro! — gritou, entreabrindo a porta. Depois voltou-se para Böhler e apontou para ele com um dedo. — O senhor acaba de mo lembrar — continuou. — É a única possibilidade. Vou intervir junto de Pavlovich, que é um Prémio Estaline e um Herói da Nação, e cujos desejos são quase ordens. Vou a Estalinegrado. Talvez ainda seja possível salvar o Sellnow. Empurrou Kislev, gritou-lhe qualquer coisa e saiu a correr, agarrando no capote. Kresin vinha dos blocos, de péssimo humor. O estado dos prisioneiros era mau e todos os temores provocados pelo inverno tinham-se confirmado com acréscimos. Viu Vorotilov e Kislev a correrem para o carro, e Böhler a sair do edifício do comando. — Vão participar nalguma corrida de automóveis? — perguntou. — Sim. — Enlouqueceram? — Não… Correm para salvar uma vida: o Sellnow está às portas da morte. — Só faltava mais essa! Foi atingido? — Foi envenenado. — Com os diabos! Se não fosse russo, havia de lhes gritar: «Estou-me a cagar para o vosso Estado!», mas infelizmente sou. — Olhou para Böhler com um ar desesperado. — Muitas vezes me envergonho da minha mãe — acrescentou em voz baixa. — Você é um homem digno, Kresin — comentou Böhler, apoiando a mão no braço do russo. — O facto de, na Rússia, haver alguém como você já compensa muitas coisas. — Ora! E onde vão aqueles? — A Estalinegrado, falar com o professor Pavlovich. Talvez ele consiga salvar o Sellnow. — Esse super-russo? Nunca! Só o deixou ir ao Hospital do Estado para aprender consigo. O senhor operou e ele fica com os louros. Havemos de ouvir falar do professor Tai Pavlovich, Prémio Estaline, o maior cirurgião da Rússia! — É-me completamente indiferente — respondeu Böhler, enquanto seguia com o olhar o carro que desaparecia na neve. — A única coisa que importa é salvar o Sellnow.
Vorotilov foi diretamente para o Hospital do Estado, fazendo-se anunciar a Pavlovich. No entanto, sabendo que o seu nome e o seu posto não produziriam nenhum efeito no professor, acrescentou: — Sou o comandante do campo onde está o doutor Böhler. Dez minutos depois foi recebido por Pavlovich, que estava sentado atrás de uma enorme secretária cheia de boletins clínicos e radiografias. Vorotilov cumprimentou-o com respeito e faloulhe diretamente do assunto que ali o levava. — Camarada professor — disse, sem que o outro tivesse tempo de abrir a boca —, venho não só por causa do nosso doutor Böhler, mas também por imperativo da minha consciência. Pavlovich franziu a testa. A consciência… num major do Exército Vermelho…? Sorriu e debruçou-se para a frente. — Sofre de algum mal psiquiátrico, camarada major? — Sim, se o senhor não me ajudar, hei de sofrer! O doutor Böhler realizou com êxito, e diante dos vossos olhos, uma operação de importância capital para a cirurgia russa. Como comandante do plenni Böhler, venho rogar-lhe que recompense essa boa ação com um ato humanitário. — Tudo isso me parece muito misterioso — observou Pavlovich, tentando compreender o sentido oculto daquelas palavras. — De que se trata, exatamente? — Outro médico, o doutor Von Sellnow, amigo do doutor Böhler, encontra-se no campo disciplinar de Nizhni-Balyklei há algumas semanas. Acabámos de saber que Sellnow foi envenenado e que o comandante do campo, um tenente, se recusa a chamar um médico para o salvar. Sendo o senhor o maior cirurgião da Rússia — Pavlovich corou de orgulho —, tem a possibilidade de entrar nesse campo para socorrer o doutor Von Sellnow. Seria a melhor forma de agradecer ao doutor Böhler. — Agradecer? — repetiu o professor, erguendo o corpo franzino. — Porque tenho eu de agradecer ao alemão? Pela operação? Eu teria podido realizá-la sem ele, só nos interessava averiguar até que ponto os médicos alemães estão adiantados na prática dos nossos próprios métodos… Por isso o deixei operar. Julga-me incapaz? Vorotilov mordeu os lábios, mas, conhecendo a reputação do professor, não esperava outra resposta. Não se mexeu, contudo, nem sequer quando Pavlovich foi à estante buscar um livro, como se o major não estivesse ali. — Não quer ajudar o médico alemão? — perguntou o comandante num tom seco. — Não vejo razão nenhuma para o fazer. — Permita-me lembrar-lhe que o doutor Böhler também tratou russos na sua enfermaria: o tenente Markov, que, se não tivesse sido operado por ele, já estaria morto; o comissário Kuvakino, que sucumbiria por causa dos ferimentos; e a camarada Yanina Salya, diretora da brigada sanitária de Estalinegrado, que continua internada no nosso dispensário, porque nenhum médico russo consegue
fazer nada por ela. — Aconselhei-lhe que fosse para uma estância na Crimeia. — De que serviria, se ninguém lhe tratasse dos pulmões? Os médicos alemães esforçam-se por salvar a camarada. Agora fez um pneumotórax e está a recuperar lentamente. O professor atirou o livro para cima da secretária, entre as radiografias. — Não posso permitir-me ir a um campo disciplinar apenas para tratar um prisioneiro alemão. — E também não se podia permitir introduzir um prisioneiro no Hospital do Estado para operar um russo na presença de trezentos estudantes. — Vou mandar que o ponham na rua! — gritou o velho, a tremer de raiva. — Não tenho de lhe dar justificações. Vorotilov também gritou: — O senhor é médico, camarada Pavlovich, pelo menos, considera-se assim, mas um médico não é apenas um serrador de ossos ou um receituário de comprimidos. Deve acudir onde a sua ajuda for solicitada. Noblesse oblige… não só na aparência, mas também no mais fundo de si próprio, e tanto mais quanto maior for essa nobreza. — Saia! Uma palavra mais e mando-o fuzilar, camarada major! O pequeno asiático tremia, a sua cabeça pontiaguda apontava para a frente, como a de um abutre a descamar a presa. Vorotilov saiu sem acrescentar nada, ouvindo nas suas costas como Pavlovich atirava uns livros ao chão e gritava ao telefone, mas, quando a porta se fechou, deixou de saber o que dizia o cirurgião… O carro de Vorotilov dispunha-se a deixar a estrada de Estalinegrado para enveredar pela que levava ao campo, quando um grande veículo negro, do tipo oficial, o ultrapassou. Por trás dos vidros, à prova de balas, via-se o professor Pavlovich, um coronel e um capitão. Um sorriso surgiu nos lábios de Vorotilov, que seguiu com o olhar o grande automóvel que voava em direção a Saratov, ou seja, o caminho para Nizhni-Balyklei…
Quando Pavlovich chegou ao campo, Werner von Sellnow estava em coma. O jovem tenente, admirado por um alemão imundo despertar tantas atenções, pôs-se em sentido quando o coronel, chefe do Estado-Maior da Divisão de Estalinegrado, e o capitão, chefe dos campos disciplinares, entraram pela pequena porta e começaram a insultá-lo. Deixou passar a tormenta, prestando cuidadosa atenção a certas expressões que ignorava, prometendo aplicá-las aos subordinados. O coronel não se limitou aos discursos: ajudou o velho professor a apear-se do carro e levou-lhe a maleta. Depois chamou uns soldados e ordenou-lhes que trouxessem a maca que se encontrava no veículo. O professor Pavlovich olhou à volta. Os pavilhões, a neve espessa, a tempestade que rugia sobre
o campo… As latrinas descobertas… Alguns plennis, que passavam como espectros… Com os lábios cerrados, o cirurgião voltou-se para o coronel. — Estas condições são indignas — disse em voz muito alta. — Devíamos ter vergonha. — Nós bem o sabemos, camarada professor — respondeu o coronel, encolhendo os ombros, num gesto de desculpa. — Mas não podemos mudar nada. — Onde está o alemão? O coronel agarrou um soldado pela manga. — Onde está o médico alemão, o doente? O soldado correu e Pavlovich e o coronel seguiram-no. Atrás deles, o capitão continuou a insultar o tenente, enquanto, nas torres, as sentinelas se alegravam por estarem ao abrigo daquela tempestade. Ao dar os primeiros passos no interior do pavilhão, Pavlovich deteve-se por causa do fedor a urina. Na semiobscuridade distinguiu os catres, dispostos em três andares, com os lençóis sujos, e respirou os vapores de suor e de excrementos. Depois virou-se para o coronel. — É asqueroso! — exclamou. — Envergonho-me de ser russo! — Camarada professor! Pavlovich aproximou-se da cama de Sellnow, a quem Buffschk acabava de secar o suor da testa com um trapo sujo. Ao ver os oficiais soviéticos, pôs-se em sentido. O professor não lhe prestou atenção. Inclinou-se para Sellnow, levantou-lhe uma pálpebra, tomou-lhe o pulso, tirou o estetoscópio da maleta e auscultou-lhe o coração. Depois, agarrou numa ampola e numa seringa, mas teve de picar três vezes para encontrar a veia. Depois baixou a cabeça branca, aferiu os reflexos do braço e da perna do doente e voltou a levantar-lhe as pálpebras, iluminando-lhe as pupilas. Por fim, endireitou-se e afastou-se com o coronel. — É grave, muito grave — disse. — O envenenamento não é a principal causa, temo que exista um tumor no cérebro, pois assim o indicam muitos dos sintomas. É grave, muito grave. Terá de chamar-se o médico alemão, esse estranho «médico de Estalinegrado». Pavlovich saiu do pavilhão e, lutando contra a neve, chegou ao edifício, onde o tenente olhava ansiosamente para o capitão, que fiscalizava os livros e as informações. — Pode-se telefonar? — perguntou o cirurgião. O tenente agarrou no telefone, colocou-o em cima da mesa e perguntou: — Qual é o número? — O do campo cinco mil cento e dez, em Estalinegrado. — Não sei qual é. — É o cinco, seis, dois, nove, pela Divisão de Estalinegrado, posto quarenta e cinco — resmungou o capitão, levantando a cabeça.
Fez-se a chamada. — Aqui, Divisão de Estalinegrado. — Ligue-me ao posto quarenta e cinco, por favor — Quem fala? — O camarada Tai Pavlovich. — Não o conheço… Desconcertado, o professor olhou para o coronel. — Não me conhece! Que um russo não conhecesse Tai Pavlovich era algo que não conseguia compreender. O coronel agarrou no telefone. — Aqui fala o coronel Vadislav Sikolovich… Ligue-me imediatamente ao posto quarenta e cinco, animal! Passaram uns minutos e depois ouviu-se uma voz. — Aqui campo cinco mil cento e dez, tenente Markov. — Coronel Sikolovich, do Estado-Maior. Ligue-me imediatamente ao comandante. Markov tapou o bocal do aparelho e voltou-se para Vorotilov, que estava ao pé do aquecedor. — Um coronel quer falar consigo, comandante. É do Estado-Maior. Vorotilov reconheceu a voz de Pavlovich. Estava comovida e abafada, mas compreendeu as palavras. Fitou Markov com olhos acusadores e desligou, depois de ter dito: — Tratarei de tudo. Olhou novamente para o tenente. — O Sellnow tem um tumor no cérebro — disse em voz baixa. — O Pavlovich vai operá-lo no campo de Nizhni-Balyklei, porque não pode ser transportado. Chama o doutor Böhler. — No campo disciplinar? — comentou Markov, acariciando a barbicha. — Quando souberem em Moscovo! — Bastará que você se cale! — replicou Vorotilov, voltando a vestir o seu capote ainda molhado. — Onde está o camarada Kresin? — A fazer as visitas com a camarada Kasalinskaya. — E o doutor Böhler? — Nos tratamentos. Acabo de ver doentes a sair da sua enfermaria. — A notícia vai abalá-lo muito. — A ele? — replicou Markov, sorrindo. — Não! É preciso muito mais para isso. É mais duro que a carne que nos dão ao almoço. Três horas depois, a seguir a uma longa conversa entre Vorotilov e Pavlovich, saíram do campo vários carros em direção a Saratov. No primeiro viajavam Vorotilov, Kresin e Böhler; no segundo, Emil Pelz, Martha Kreuz, Erna Bordner e um tenente russo; o terceiro transportava uma maca, uma
grande caixa com instrumentos cirúrgicos e material para tratamento. Da porta, o doutor Schultheiss contemplou os veículos que se afastavam por entre a tempestade que vergava as árvores. Atrás dele, no edifício do comando, Kasalinskaya chorava, enquanto batia com os punhos na parede da sala onde fora encerrada por ordem de Kresin. Quisera destruir tudo o que estava à sua volta quando o médico-chefe lhe ordenara que permanecesse no campo. A mulher tinha rogado, implorado, gritado como uma louca, partido tudo o que estava à sua mão, esbofeteado o médico, caindo depois numa crise nervosa. Contudo, Kresin, inflexível, mandara-a fechar até que os automóveis tivessem partido. À volta do campo rugia a tempestade e foram obrigados novamente a evacuar as torres. A natureza, enfurecida, engolia toda a Rússia. A estepe uivava… Neve, neve por toda a parte! Os três carros tiveram de lutar contra a neve, o piso gelado e o vento… O Volga continuava escondido, à esquerda. Só se via massas cinzentas a vaguear, a solidão, a imensidade de uma paisagem implacável. De súbito, o terceiro carro caiu numa cova e, apesar de o condutor e os soldados que escoltavam as caixas o tentarem desenterrar com paus, a neve foi mais forte do que eles, afogando-os com o seu peso e cobrindo o veículo e os homens. Os dois primeiros automóveis, que nada tinham visto, atravessaram um bosque que ia até ao rio, mas várias árvores arrancadas pela raiz obstruíam a estrada e tiveram de dar a volta. A travessia do bosque durou cinco horas, até que, finalmente, viram as seis torres de madeira do campo de NizhniBalyklei. Depois de comprovarem a inutilidade dos seus esforços, os homens do terceiro carro encerraram-se no seu interior, a fumar makhorka, esperando que a tempestade acalmasse. Os salvadores de Sellnow chegaram, pois, sem medicamentos, sem instrumentos cirúrgicos, sem nada, mas os homens estavam ali: Kresin, Böhler, Vorotilov, Pelz, duas enfermeiras… para lutar contra a morte de mãos nuas. O professor Pavlovich que vigiava a chegada deles, soltou um suspiro de alívio ao vê-los, sem suspeitar da crueldade do destino. Quando Böhler desceu do carro, o professor correu na neve, direito ao alemão…
QUARTA PARTE
Com olhos enevoados, Vorotilov fitava Sellnow, a quem o enfermeiro Pelz lavava com neve derretida… O seu peito, antes robusto, estava reduzido a pele esticada sobre os ossos, como uma película de couro. Sentado em segundo plano, Pavlovich, tal como Böhler, estava invadido pela cólera. Ameaçava fazer comparecer perante um conselho de guerra o condutor do terceiro carro e injuriava o jovem comandante do campo. — Vão procurá-lo! — gritava. — Mande homens. Preciso desse carro. Encontram-se nele todos os instrumentos cirúrgicos e os medicamentos. Preciso dele. — É impossível, com esta ventania — respondeu o tenente. — Morreríamos todos, camarada professor. Envolvendo-se com o frio no seu grosso capote, Kresin encostou-se à parede de madeira, porque a neve se infiltrava pelos buracos mais pequenos. — Que merda de vida! — exclamou, com a sua habitual liberdade de expressão. — Pensar que temos de assistir, impotentes, à morte de um colega, vê-la ser provocada por um tumor cerebral. Só temos as nossas mãos nuas! Melhor seria que não viéssemos. Que animal, débil, presunçoso e imbecil é, no fundo, o homem. Baixou a voz, comovido, a olhar para Sellnow, e acrescentou: — Não o esquecerei enquanto viver! Nunca, camaradas. — O senhor está de acordo com o meu diagnóstico? — perguntou o asiático a Böhler. — Sim. Trata-se, com certeza, de um tumor ou de um abcesso, não posso dizer mais nada. Os sintomas são indiscutíveis. Se o pudéssemos operar, talvez o salvássemos. — Denunciarei, para Moscovo, os homens do terceiro carro! Cometeram um homicídio! — A natureza foi mais forte — comentou Vorotilov. — Nós tivemos mais sorte. Se calhar partiuse um semieixo ou caíram num buraco oculto pela neve. Ninguém tem culpa. O destino está contra nós. — O destino! — gritou Pavlovich, fazendo um gesto com a mão. — Eu só me inclino perante a morte, e tenho-a defrontado muitas vezes! — Levantou-se. — Vamos, camaradas, saiamos. Não posso suportar ver a morte de um homem, sem fazer o que quer que seja para o impedir. Agarrara já o puxador da porta, quando um relâmpago atravessou o pavilhão. A luz elétrica
tremeluziu e apagou-se, mergulhando o interior na mais profunda escuridão. Só o fogão projetava uma luz débil para o chão. — O que se passa? — gritou Kresin. — Falhou a luz — respondeu o tenente, acendendo um fósforo. — A tempestade deve ter derrubado algum poste de alta tensão. Temos para quinze dias. Não é a primeira vez que isso acontece. — Só faltava mais isto! — grunhiu Vorotilov. — Mande imediatamente alguns homens localizarem esta avaria, tenente. — A linha é aérea e tem setenta quilómetros — explicou o oficial. — Como poderemos saber onde é o corte? — Mas não é possível ficarmos sem luz! — exclamou Pavlovich. — Temos candeias a petróleo e, quando ele acabar, iluminamo-nos com tochas. Kresin observou: — Voltamos à Idade Média! — Estamos na Rússia — respondeu o tenente. Três soldados trouxeram candeeiros antiquados, do tempo dos czares, que deitavam muito fumo e mau cheiro, e penduraram-nos do teto do pavilhão. A tempestade continuava a ressoar, imperturbável, lá fora. — Nunca odiei tanto o inverno como hoje — disse Vorotilov a Kresin em voz baixa. Sentado no catre de Sellnow, Böhler não tirava os olhos dele, iluminando-o com um candeeiro que Emil Pelz agarrava. Os seus dedos deslizavam continuamente sobre a testa do moribundo e Vorotilov seguia-lhe os movimentos, como se estivesse hipnotizado. Pavlovich mordia os lábios. — Vou operar de qualquer maneira — declarou Böhler, em voz muito baixa. — Apenas uma intervenção para aliviar. Pavlovich levantou-se. — O senhor está louco? Com que fará isso? — Com as minhas mãos. Kresin deitou o capote para trás. — Não sabe o que diz, doutor Böhler! — exclamou. — É uma loucura. Não temos luz, nem instrumentos, nem anestésicos. — Não precisamos de anestésicos… Não sentirá nada… Temos luz… O Pelz aproximará o candeeiro… Isso basta-nos… — Ora essa! Não pode abrir o crânio — balbuciou Pavlovich, passando nervosamente a mão pelos cabelos brancos. — É preciso. Não temos alternativa. Böhler olhou para um dos médicos das SS, que continuavam deitados nos seus catres e nada
tinham dito até então. — Têm uma faca, um buril pequeno? Ou então uma broca, o mais fina possível? Um deles disse que sim e falou, com voz quase balbuciante por causa da mágoa que lhe causava tudo quanto via. — Na oficina temos formões e berbequins de carpinteiro. — Isso basta. Traga-me um formão e um martelo, cordel, simples guita de sapateiro, e também uma agulha. — Está bem, doutor. O médico das SS saiu, dobrado ao meio, como se lhe tivessem batido, enquanto Kresin desabotoava o capote com um gesto brusco. — É uma loucura — exclamou. Böhler ajoelhou-se sobre a cama. No outro lado, Emil Pelz segurava no candeeiro. Tremia-lhe a mão. — Tens medo, Emil? — perguntou-lhe o médico. — Tenho, doutor. — Acalma-te e prepara uma «mesa de operações»… Agarra num catre e cobre-o com tábuas. Voltou-se para os outros prisioneiros, que contemplavam a cena com olhos incrédulos. Buffschk, caído em cima do enxergão, chorava como uma criança. — Têm cordas ou correias? — perguntou. Estenderam-lhe, hesitantes, os cinturões. Emil Pelz agarrou neles e começou a arranjar a «mesa de operações». Pavlovich, ainda nervoso, levou uma mão ao colarinho. — O senhor quer mesmo…? — murmurou. — É preciso, professor — respondeu Böhler. Os seus olhos tinham perdido todo o brilho, como se nenhuma força lhe tivesse ficado no corpo. — Quer servir-me de ajudante, ou tenho de pedir isso ao doutor Kresin? — A mim, não! — balbuciou este. — Não me seria possível. O médico das SS voltou, coberto de neve, com as orelhas roxas por causa do frio. Trazia um formão, um martelo e um novelo de cordel. Além disto, arranjara quatro maços de ligaduras, um de algodão e três placas de celulose. — É tudo o que há na enfermaria — disse em voz muito baixa. — É mais do que eu esperava — respondeu Böhler. Pelz pôs em cima do fogão uma panela de neve, para ferver os instrumentos primitivos. Pavlovich, por seu turno, despiu o casaco, arregaçou as mangas e, com um pedaço de sabão barato, que cheirava a peixe, lavou as mãos numa bacia de lata, que um soldado segurava. Ao mesmo tempo, o médico das SS e Emil Pelz tinham transportado o doente para a mesa improvisada e estavam a prendê-lo, na posição de sentado, com os cinturões. Böhler meteu então na panela de água a ferver,
onde já estavam os outros «instrumentos», um bisturi e duas pinças, tirados da maleta de Pavlovich. Pelz rapou depois a cabeça de Sellnow, lavou-lhe o couro cabeludo com água e sabão e pintou a zona a operar com tintura de iodo, também obtida na maleta de Pavlovich. Sem hesitar, Böhler praticou algumas incisões até ao osso, arregaçando a pele, após o que pediu o berbequim, que Pavlovich já tinha montado, e, apoiando a ponta no osso nu, começou a manobrá-lo muito devagar. Admirou-se da facilidade com que manejava aquele instrumento rudimentar, e depressa abriu meia dúzia de buracos no crânio de Sellnow, ao longo da incisão previamente efetuada. Depois tirou o formão da bainha — o professor secava com algodão o pouco sangue que corria — e Pelz estendeu-lhe o martelo. Colocou, em seguida, a parte afiada do formão verticalmente num buraco, mergulhou-o e, com golpes muito suaves, o mais leves possível, abriu vários sulcos, de forma a ligar os buracos uns aos outros. Quando o formão chegou ao osso, o major Vorotilov virou-se para a parede e fechou os olhos, enquanto, a tremer, Kresin se agarrava a um catre, sem tirar os olhos das mãos de Böhler. Os dois médicos das SS ajudavam a agarrar o doente e Emil Pelz iluminava-o com uma candeia, cuja luz não conseguia evitar que tremesse. Lentamente, milímetro a milímetro, o formão mergulhava no osso, mas, de vez em quando, Böhler parava para examinar atentamente o rosto de Sellnow. Um dos médicos alemães ia-lhe dando, a intervalos regulares, a pulsação do paciente, e Pavlovich tirava, com a água de uma seringa, os fragmentos ósseos que ficavam na ferida, secando depois, cuidadosamente, essa água. No pavilhão não se ouvia qualquer ruído, apenas as pancadas do martelo no formão, ou talvez um gemido do doente, que estava em coma. Assim se fez o milagre de uma trepanação que ficou famosa em todos os campos de prisioneiros alemães na Rússia. O rumor chegou a Moscovo, ao Kremlin e também à Alemanha, ligando indissoluvelmente o nome de Böhler à história dos prisioneiros de Estalinegrado. Passado apenas um quarto de hora, o cirurgião largou o martelo: tinha cortado um pequeno quadrado, que se mantinha ligado ao crânio por um dos bordos. Com o maior dos cuidados, mergulhou o formão por baixo de um dos bordos para o levantar e apoiou-o sobre uma compressa de algodão, repetindo esta operação em vários lugares, até o pedaço cortado sobressair ligeiramente. Lavou então de novo e cuidadosamente as mãos e, voltando à «mesa de operações», agarrou na pequena placa óssea e puxou-a suavemente, até um ligeiro estalido o avisar de que se tinha desprendido do quarto lado, com o couro cabeludo que ainda tinha agarrado. Uma abertura do tamanho de um maço de cigarros dava acesso ao cérebro, que latejava ligeiramente, inchado, na abertura. — Temos morfina? — perguntou Böhler ao professor. — Corremos o risco de que Sellnow recupere os sentidos quando se aliviar a pressão interior.
— Não teme dificuldades respiratórias? — Não temos outro remédio senão arriscar — respondeu Böhler, encolhendo os ombros. — Sim, tenho morfina — respondeu Pavlovich. — Tire uma ampola da minha maleta, Pelz. — Depois voltou-se para um dos médicos das SS. — Talvez pudesse dar-lhe a injeção. — Intravenosa — recomendou Böhler. — E muito lenta, por favor. O médico das SS deu a injeção numa veia do braço, enquanto Böhler apalpava ligeiramente a superfície do cérebro. — Encontro aqui uma saliência — disse, dirigindo-se aos restantes —, que deve ser um abcesso. Vou fazer-lhe uma punção. Dê-me uma seringa, a maior que tivermos. Pelz entregou-lha, ao mesmo tempo que lhe passava umas pinças. Böhler mergulhou a agulha no cérebro e logo saiu um pus amarelo e espesso. — Vou tirar este abcesso — disse Böhler, com voz tranquila. Todos o olharam, cheios de assombro. Como esperaria realizar uma intervenção tão dedicada, com os poucos instrumentos de que dispunha? O que tinha já feito parecia pertencer ao domínio do inverosímil, mas extrair um abcesso do cérebro, naquelas condições, era absolutamente impossível. No entanto, ninguém fez qualquer objeção. Böhler cortou com o formão e tirou o abcesso com uma colher de lata, conseguindo evitar uma hemorragia. Depois colocou a pele sobre o «alçapão» ósseo e coseu. Estava terminado. O doente respirava tranquilamente e o seu pulso já estava melhor do que no início da intervenção. Ao fim de uma hora — a operação tinha durado esse tempo —, encontrava-se outra vez no seu catre. Pelz, os dois médicos das SS e Buffschk rendiam-se para o vigiar, sem o perderem de vista um só segundo. Perto da porta, o professor Pavlovich secava com o antebraço o suor da testa; Kresin, de olhos brilhantes, não conseguia falar; Vorotilov, pálido, continuava encostado à parede do pavilhão; Böhler lavava as mãos e os braços, perto do fogão, com o sabão que cheirava a peixe; e as duas enfermeiras, a quem Pavlovich tinha proibido, até então, a entrada, limparam as vigas e o chão com neve. A tempestade continuava a rugir sobre a planura do Volga, sobre a aldeia de Nizhni-Balyklei, sobre o campo, sobre todo o vale de Saratov. Vergava as árvores, matava os lobos dispersos, arrancava o gelo nos cursos de água, acumulando-o em montanhas, e depois varria a terra, arrastando os homens e os animais. O inverno junto ao Volga. O professor Pavlovich estava acocorado junto ao fogão, no pequeno posto da guarda, a aquecer as mãos. — Quando a tempestade acalmar — disse —, o prisioneiro irá para Estalinegrado… As torres estavam vazias, a neve cobria os pavilhões… Junto ao rio, os lobos uivavam e muitos morriam de frio, mas os sobreviventes não podiam devorá-los, pois estavam duros como o ferro…
No mundo inteiro só havia a tempestade. O episódio da noz de coco ocorreu três semanas depois. Quando a tempestade acabou, restabeleceram-se os transportes entre Estalinegrado e o campo. Os camiões, conduzidos por plennis envoltos em peles de carneiro, levavam os abastecimentos normais, e também, algo extraordinário, encomendas. Encomendas chegadas da Alemanha! As primeiras, depois de tantos anos! Vorotilov não sabia o que fazer. Nem Moscovo nem Estalinegrado lhe tinham ordenado que distribuísse aquelas encomendas, e sobretudo não lhe tinham prescrito as medidas de precaução e segurança que erma, sem dúvida, indispensáveis… Como nenhum soldado russo atua sem receber ordens, as encomendas foram guardadas no edifício do comando depois de terem sido cuidadosamente contadas e registadas por Hans Möller, sob a vigilância do tenente Markov. A notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora: tinham chegado quatrocentas e oitenta e duas, de uns dez quilos cada uma, contendo alimentos e objetos de que tinham estado privados durante tantos anos… Quatrocentas e oitenta e duas encomendas de dez quilos — quatro mil oitocentos e vinte quilos! O campo foi sacudido por uma forte emoção. Não nos esqueceram! Pensam em nós! Ainda gostam de nós, dos miseráveis plennis do Volga! Ainda fazemos parte da humanidade! O comandante telefonou para a Divisão de Estalinegrado. Moscovo permitira a ida das encomendas, portanto, era preciso distribuí-las, responderam, mas, claro que tinha de se ver o conteúdo de cada uma com toda a atenção. O comandante desligou o telefone e disse a Kresin, que tomava chá, ao seu lado: — As encomendas vão começar a ser distribuídas amanhã. Markov, acompanhado por dez homens, vai fiscalizar o conteúdo. Os nomes dos destinatários foram lidos quando se passou revista ao meio-dia, sendo-lhes dada ordem para, no dia seguinte, se apresentarem em grupos de dez. O campo foi inundado por uma onda de júbilo, e os contemplados portaram-se como crianças na véspera de Natal: não dormiram naquela noite, vagueando pelos pavimentos, falando nos pais ou absortos numa espera silenciosa. No dia seguinte pela manhã, depois da revista, formaram-se filas diante do edifício do comando, sob os gritos de Markov. Os dez primeiros foram finalmente admitidos e, ao verem as encomendas colocadas em cima de uma longa mesa, na frente de dez soldados soviéticos, esbugalharam os olhos. O papel fora rasgado… Apareceu o cartão… Depois cortaram os cordéis… A tampa abriu-se… Caixas, caixinhas, encomendas enroladas em celofane ou em papel forte… Os soldados ficaram de boca aberta, pois para eles, aquilo era verdadeira fantasmagoria. Deram volta às caixas, bateram-lhes com os dedos… Os plennis ficaram cheios de satisfação só de olhar, suando de excitação. As conservas foram abertas com as baionetas e com as próprias chaves das latas que as tinham:
carne de vaca com molho, banha de porco, feijões com manteiga, compota de maçã, doce de morango, geleia de damasco… Os soldados, quase todos siberianos, olhavam, incrédulos, descobrindo um mundo novo, um mundo desconhecido, de bem-estar, de prosperidade… Cheiravam tudo, apalpavam tudo, estupefactos. — Dou cem copeques por uma caixa — disse um deles. — Vai à m… cem vezes…! Não se zangavam… Os alemães eram ricos, os plennis eram muito ricos… Alimentavam-se melhor do que o camarada Estaline, no Kremlin, e do que o camarada comissário em Estalinegrado. Aqueles plennis… O tenente Markov examinou as dez encomendas abertas e deteve-se, de repente, à frente de uma dirigida a Peter Fischer. Entre as caixas e as encomendas havia uma coisa redonda, escura, peluda e leve, parecida com a madeira. Uma noz de coco. O oficial enrugou a testa e esticou o lábio inferior. Como podia um tenente russo, saído da estepe, saber o que era uma noz de coco? Agarrou no estranho objeto, sacudiu-o e ouviu um ruído suave, como de água; sim, como de água. Aquilo era oco e tinha um líquido lá dentro… — O que é isso? — gritou Markov a Peter Fischer. — Um ovo de elefante — respondeu o outro, a sorrir amavelmente. — O quê? — Um ovo de elefante. Os outros nove plennis riram-se, divertidos, e Markov corou. — Abre-o! Davai! Peter Fischer encolheu os ombros e deu uma pancada na noz. — Não posso — disse, com um ar contristado. Markov agarrou na baioneta de um dos soldados e apoiou a ponta contra a casca, mas a arma resvalou e foi cravar-se na mesa, a um milímetro da mão que sustinha a noz. O sorriso dos plennis ampliou-se. — Ai! — gemeu Peter Fischer. O rosto do tenente tornou-se cor de cinza. Viu que também alguns soldados estavam a rir e a ira apoderou-se dele. — Traz-me um machado! — gritou. — Um machado! Trouxeram-lhe um da cozinha. Markov agarrou nele e perguntou uma vez mais: — O que é isso? Mas, sem esperar resposta, bateu com toda a força. A noz estalou e o leite de coco espalhou-se pela mesa. Assombrado, Markov examinou o interior: uma polpa branca, rija, perfumada… que ele olhou, tocou…
— Isto come-se? — perguntou, cada vez mais admirado. — Claro — respondeu Peter Fischer. — Porque não disseste logo? O tenente atirou o machado para um canto, empurrou a encomenda para Peter Fischer e gritou: — O seguinte! Depois tudo se desenrolou muito depressa, porque a noz de coco engasgou Markov, se assim se pode dizer, e o homem não voltou a falar do que não conhecia, para evitar ser ridicularizado em público. Deixou até passar um frasco de compota sem o mandar inspecionar com uma longa faca, o que foi uma sorte, porque no fundo estava uma cápsula com uma carta, cuja descoberta teria certamente interrompido a distribuição das encomendas. Uma vez terminada a distribuição, o campo parecia estar em festa. Nos pavilhões, os plennis mascavam ou fumavam e as trocas eram numerosas: cigarros por café, cacau por manteiga, doce por leite condensado… As transações eram particularmente ativas perto da entrada do campo, onde os soldados soviéticos disputavam uns aos outros os produtos alemães: bolachas, doce, chocolate… Mãe Santa de Kazan! Chocolate…! Aquele acontecimento assinalou igualmente o começo de uma nova era, porque, como só uma minoria recebeu encomendas, Böhler fez um apelo à generosidade para com os doentes e os feridos, começando por distribuir as suas pelos mais necessitados. O apelo foi ouvido e os donativos afluíram à enfermaria. A maior parte da encomenda de Schultheiss foi parar às mãos de Yanina Salya, mas ele teve de fazer valer toda a sua autoridade de médico para a obrigar a aceitar. Materialmente, aquelas encomendas eram apenas uma gota de água no oceano, mas moralmente produziram um enorme efeito, fazendo crescer desmesuradamente a esperança, e, como resultado suplementar, aumentando o rendimento dos plennis. Vorotilov teve assim uma magnífica oportunidade para chamar a atenção do alto-comando para essa feliz consequência, com a finalidade de fomentar a distribuição de novas encomendas. De todos os campos chegaram informações parecidas a Moscovo, onde foram estudadas, traçando-se um novo plano com o intuito de modificar o estatuto dos prisioneiros, que iriam tornar-se presos de delito comum. Seriam assim condenados a longas penas de prisão, o que acarretaria o direito legal de os conservar na Rússia como criminosos, mas concedendo-lhes todas as regalias que merecem os detidos que trabalham para o bem-estar da União Soviética. Este foi o plano de 1950, contrário ao direito internacional, mediante o qual se prendiam na URSS alguns milhares de prisioneiros alemães. O plano arrancou com uma onda de interrogatórios e uma imensidão de agentes da MVD caiu sobre os campos, condenando todos os que os médicos declaravam aptos para o trabalho e capazes de prestar serviços à Rússia durante longos anos. Realizou-se depois uma ação abstrata: «a incorporação» dos plennis na estrutura da República Soviética. Ninguém podia prever aquele extraordinário acontecimento, nem sequer o major Vorotilov
quando redigiu a sua informação para requerer o envio de novas encomendas. Böhler melhorou a situação da sua enfermaria, enviando Schultheiss a Estalinegrado, a fim de obter medicamentos numa farmácia, em troca de latas de conserva. O negócio tinha de ser feito em segredo, pois tratava-se, nada mais nada menos, de uma «sabotagem à propriedade do Estado», mas o diretor da farmácia não conseguiu resistir à tentação das conservas. Depois da operação realizada no campo de Nizhni-Balyklei, Kasalinskaya encontrava-se em estado de angústia. Sem receber notícias de Sellnow e sem que ninguém em Estalinegrado lhe respondesse às perguntas acerca do estado do capitão-médico, imaginava o pior, chegando até a afirmar que Böhler tinha morto o amigo. — Não o devia ter operado — gemia. — Com um formão de carpinteiro! Era morte certa. — Estava já moribundo! O próprio Böhler estava contudo inquieto, atormentado pela incerteza, ainda que a não expressasse com a mesma violência que Kasalinskaya, que, desde o dia da operação, se negava a visitar os prisioneiros. — Não voltarei a fazê-lo! — tinha gritado a Kresin. — Não posso. Durante anos, maltratei esses homens, oprimi-os e precipitei-os na desgraça… Já não posso mais. Não quero ver nem um. Kresin não respondera, mas não se queixou de Kasalinskaya às autoridades. Ocultou o incidente e assinava todos os dias, em nome da médica, metade dos boletins de visita, para que em Moscovo ninguém suspeitasse. Também no campo, todos ignoravam o caso, incluindo o comandante Vorotilov. Tudo quanto se sabia era que Sellnow já não estava no campo. Quatro dias depois da operação, uma ambulância tinha ido buscá-lo, sem que ele recuperasse os sentidos. Segundo dizia Buffschk, o carro não se dirigira para sul, mas para norte, pelo que se deduzia que Sellnow fora levado para Saratov, em lugar de Estalinegrado, o que não deixava de ser curioso e dava azo a múltiplas suposições. — O estado-maior da MVD está em Saratov — disse Vorotilov ao saber a notícia. — Nessa cidade, Pavlovich não tem qualquer poder sobre Sellnow. — Vou a Saratov! — exclamou Kasalinskaya. — Hei de encontrá-lo, nem que tenha de forçar a entrada em todas as clínicas! Quero estar perto dele! Kresin consultou a lista dos médicos militares no sector do Grupo de Exércitos do Sul. — O Hospital do Estado de Saratov é dirigido por um tal Sedovkovich — murmurou, inclinando a cabeça. — Não o conheço. Deve ser algum médico novo. — Pertence ao Partido? — perguntou Böhler. — Em princípio sim, caso contrário não estaria num hospital público. — E será que o próprio professor Pavlovich ignora para onde levaram Sellnow? — O Pavlovich guarda silêncio — respondeu Kresin —, porta-se como uma múmia. Se se telefona para se perguntar por Sellnow, desliga logo. Deve ter acontecido algum imprevisto.
Kasalinskaya olhava atentamente pela janela. Diante dela estendia-se a estepe nevada e os bosques que iam até ao Volga. As sentinelas fumavam nas torres. Para além da estrada, colunas de plennis avançavam com dificuldade na neve profunda: eram os grupos encarregados de procurar lenha. O tenente Markov fumava o seu cachimbo em frente do edifício do comando, sendo alvo de divertidos olhares, pois o cachimbo era de origem alemã, tinha trocado uma faca de cozinha por ele. Markov com um cachimbo alemão! — Vou-me embora se o Sellnow não voltar — disse em voz baixa Kasalinskaya. — Embora? Para onde? — Para o Ocidente… para a liberdade. — Enlouqueceu, camarada! — repreendeu Kresin. — Nunca conseguiria passar a fronteira. — Hei de atravessá-la — respondeu ela, com segurança. — E depois? — Depois, gritarei aos quatro ventos o que se passa na nossa Mãe Rússia e odiarei como nunca ninguém odiou. O major Vorotilov levantou-se. Estava pálido e parecia doente. — Desde 1919, têm tratado de nos matar a alma — disse ele —, de nos transformar em máquinas à disposição do Partido, em engrenagens da maquinaria da República, mas a alma russa continua viva, embora com um terrível aspeto, pois temos vivido para nada. Uma vida sem qualquer sentido… Saiu, dirigindo-se para o edifício do comando, seguido pelo olhar de Kresin, que abanava a cabeça. — Também ele acaba de se trair. Maldição! Que contente ficarei quando o último alemão tiver saído da Rússia! Kasalinskaya virou-se para a parede a chorar; fazia-o frequentemente; não passava de uma sombra da médica altiva que, com a sua farda de capitão, percorria o campo, furiosa, declarando apto para o trabalho todo e qualquer doente que conseguisse arrastar-se. A neve voltou a cair no bosque.
Um pequeno quarto de doente; uma cama de ferro; uma grande janela velada por uma cortina espessa; o chão de linóleo; medicamentos numa mesa; um biombo diante da cama; e, junto à cabeceira, uma cadeira branca de esmalte. Sentada numa cadeira, uma jovem enfermeira, de cabelo negro, olhos verdes e rosto de feições quase mongólicas, lia, levantando os olhos de vez em quando, logo que o doente se agitava ou puxava os lençóis com as mãos terrosas. O quarto de Sellnow, no Hospital do Estado de Estalinegrado, na secção reservada especialmente ao professor Tai Pavlovich… Ninguém sabia da presença do prisioneiro alemão naquele lugar, exceto alguns «iniciados»; a
enfermeira mongol, o médico de serviço, o médico-chefe e um enfermeiro. O quarto encontrava-se no extremo de um pequeno patamar, para o qual davam apenas os laboratórios, como um sacrário onde ninguém se aventurava. Pavlovich acabava de auscultar o coração a Sellnow. Mediu-lhe a tensão arterial, tomou-lhe o pulso, observou o gráfico da temperatura e deu-lhe uma injeção de coramina. O jovem médico ajudante tirou-lhe depois uma radiografia à cabeça, com um aparelho de raios X portátil, enquanto o professor se sentava perto da cama, com ar pensativo. — A operação parece ter tido êxito — disse ao médico-chefe, que estava encostado à porta. — Com um formão e um berbequim de carpinteiro! Os alemães atrevem-se a tudo. Eu nunca teria ousado fazê-lo. — O alemão não tinha nada a perder — respondeu o médico-chefe, espantado por ouvir o professor rebaixar-se. — Teve sorte. Se se apresentasse outro caso semelhante, com certeza iria suceder tudo ao contrário. Apenas sorte, gaspodin professor. Pavlovich concordou pensativamente. O médico ajudante acabou de tirar a radiografia e entregou-a à enfermeira para que fosse revelado sem perda de tempo. Depois, inclinando-se, o professor tapou Sellnow até ao pescoço. — Ainda não sabemos como o cérebro reagirá, mas o corpo não demonstra qualquer reflexo que permita determinar se os centros nervosos foram ou não destruídos. Se o doente recuperasse a consciência! Se falasse! Partindo do princípio de que poderia fazê-lo… Este sono indefinido inquieta-me. O médico-chefe encolheu os ombros, aproximando-se em seguida do biombo. — Voltaram a telefonar do campo cinco mil cento e dez a perguntar pelo Sellnow — disse. — Era a camarada Kasalinskaya. — O que respondeu? — Desliguei, como sempre. — Continue a fazê-lo — disse Pavlovich, levantando-se e deitando um último olhar ao doente. — Preciso deste homem… Quero estudá-lo e voltar a abrir-lhe o crânio para ver o que ali se passa. Brilhavam-lhe os olhos com um fulgor fanático. Ergueu o corpo franzino e saiu do quarto. A enfermeira seguiu-o com os olhos, nos quais se refletia uma expressão de horror, e depois colocou o biombo na frente da cama, encarando o médico-chefe. — Não sabe como tratá-lo — disse ela em voz baixa. — Qualquer outro resolveria o problema. — Nenhum de nós conseguiria fazê-lo. — Então, o doente vai morrer? — Todos os dias morrem milhares de pessoas na Rússia — respondeu o médico-chefe, abotoando o casaco. — Quando o Sellnow falecer, avise-nos imediatamente. Iremos levá-lo, sem perda de tempo, ao anfiteatro. O professor arde em desejos de lhe fazer a autópsia o mais depressa
possível. A porta fechou-se. A pequena enfermeira mongol e o plenni alemão Werner von Sellnow ficaram a sós. O coração do doente continuava a bater lentamente, vacilando, como se se interrogasse se aquilo valia a pena. As mãos tremiam sobre a cama. A enfermeira voltou a agarrar no livro. Um romance: Os Pescadores das Lofoten, escrito por um verdadeiro comunista. Tinha uma chancela na capa: «Biblioteca do Exército Soviético.» Os olhos da rapariga percorriam as páginas, mas o seu cérebro não compreendia o conteúdo. Estava ocupado por um só pensamento: «Vai morrer. Pavlovich está à espera de que morra, para despedaçá-lo como um abutre da estepe…»
Os interrogatórios levados a cabo pela MVD começaram pouco depois da chegada das primeiras encomendas. Os comissários apareceram subitamente. Vorotilov cumprimentou-os, vagamente receoso, e até Kasalinskaya e Kresin tiveram de se apresentar aos doze homens, que esperavam na frente do edifício do comando, altos, bem alimentados, com uniformes imaculados e o gorros achatado inclinados nas cabeças redondas. Böhler viu-os da janela da enfermaria e virou-se para Schultheiss. — A morte acaba de entrar no campo — disse em voz baixa. Schultheiss estremeceu e aproximou-se do vidro. — A MVD! — murmurou. A porta abriu-se com violência, dando passagem a Kresin, que riu amargamente ao encontrar-se ali com os colegas alemães. — Bons tipos, hem? — comentou, fechando a porta com violência. — Vieram diretamente de Moscovo. Serão feitos exames médicos completos, julgamentos sumários e depois será a partida. — A partida? Para onde? — perguntou Böhler, empalidecendo ao pressentir algo inaudito, incrível. — Para onde? Diga-nos, doutor Kresin. — Para o vosso país! — Para o nosso país — balbuciou Schultheiss, voltando-se bruscamente com os olhos cheios de lágrimas ardentes. Muito emocionado também, Böhler encostou-se à parede. — Para o nosso país — repetiu com voz desfalecida. — Isso é verdade, doutor Kresin? — É. Primeiro, uma parte dos oficiais e todos os inválidos, sempre que possam ser transportados. O primeiro comboio sairá do campo especial de Moscovo no princípio da primavera, quando a neve deixar as estradas desimpedidas. — Ao cabo de sete anos, não, oito — retificou Böhler com os lábios a tremer —, vamos mesmo
regressar à Alemanha? — Sim — exclamou Kresin. — Vão-se todos embora e nós ficaremos finalmente sozinhos, sem ninguém sensato com quem falar… Haveremos de apodrecer na nossa Mãe Rússia! Estamos tão habituados a vocês, alemães imundos, que nos faltará alguma coisa quando partirem. Raios vos partam! Böhler pôs-lhe a mão no ombro, sabendo o que o colega sentia. — Venha connosco, Kresin — disse em voz baixa. — Para a Alemanha? Não! Sou russo e amo o meu país. Sou bolchevique. Quando se é velho, não se muda com a mesma facilidade que na juventude, a quem a fanfarra mais barulhenta parece sempre ser a mais digna de ser seguida. Eu apodrecerei aqui, junto ao Volga, ou na Sibéria, na estepe, na taiga, na tundra ou no mar Branco. Quem sabe, exceto Moscovo? É o meu destino. O seu é a liberdade… A vida é uma merda! — acrescentou grosseiramente, precipitando-se para a porta. — Seremos libertados! — balbuciou Schultheiss, depois da saída de Kresin. — Doutor, vou voltar a ver a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos… Doutor! Vou voltar a vê-los todos! Começou a soluçar e apoiou a cabeça no ombro de Böhler, que lhe acariciou o cabelo. — Vamos, meu amigo! Ânimo! Esperámos por este momento durante tanto tempo e… — Hesitou. — Nem sequer sabemos se é verdade. Ninguém o sabia no campo 5110, nem sequer o comandante Vorotilov, que, à noite, reunia os comissários no seu gabinete para fumar, beber vodca e examinar as listas de prisioneiros. Depois de refletir longamente, assinalava os números daqueles que pensava propor para serem libertados. O tenente Markov fazia entretanto comentários irónicos, que o major não ouvia, mas que um dos comissários anotava discretamente. — Devemos pôr em liberdade trezentos e sessenta e dois homens do seu campo, camarada major — disse o coronel da MVD, resumindo. — Só? — Temos de ter em conta os outros campos. Além disso, é preciso sermos prudentes, pois necessitamos de mão-de-obra para o novo plano quinquenal. Os alemães são excelentes operários qualificados, cuja partida poderia prejudicar-nos muito. Os quatro comboios da primavera dirigemse à zona soviética da Alemanha e espera-se tirar grande efeito desse acontecimento. O ministro americano dos Assuntos Exteriores está a arranjar-nos problemas e na ONU já fizeram perguntas sobre o estatuto dos prisioneiros. A libertação irá realizar-se em Frankfurt e nós declararemos: «Aqui estão os últimos plennis. Só ficam na Rússia os criminosos.» — Os criminosos? — perguntou Vorotilov. — Mas os milhares que aqui ficarem não fizeram nada de mal! — Isso é o que vamos ver — respondeu o coronel, com um grande sorriso. Era um ucraniano que se esforçava, com o rigor da sua atitude, por apagar a suspeita de que são alvo todos os camponeses
na Rússia. — Iremos encarregar-nos de todos os criminosos que ficarem. Vorotilov emudeceu, olhou para os outros oficiais, viu o riso de satisfação de Markov e voltou a assinalar números. Böhler, Schultheiss, Von Sellnow, que continuava a fazer parte dos efetivos do campo, Emil Pelz… Vorotilov esvaziou a enfermaria. Queria libertar todos os prisioneiros, não tinha vontade de tomar parte na má ação decidida por Moscovo. Na primavera pediria a sua transferência para qualquer outro posto, preferivelmente para uma unidade de combate, mas nunca para outro campo. Nunca mais voltaria a mandar num cemitério rodeado de cercas de arame farpado, nunca mais se sentiria responsável, em parte, por milhares de mortes!
Dois dias depois, o major Vorotilov entrou na sala de cirurgia da enfermaria. Atrás dele, via-se a silhueta magra de um comissário da MVD, ladeado pelo tenente Markov e por uma elegante intérprete loura. Schultheiss, que se encontrava perto do esterilizador, levantou-se, assustado. Com a precisão habitual, Böhler tratava um doente estendido em cima da mesa. Esperou até colocar o alfinete de segurança que Pelz lhe estendia e só depois se voltou para olhar interrogativamente os russos. — A MVD interessa-se pelo seu trabalho, doutor — disse Vorotilov, com ar entediado. — Os camaradas quiseram visitar a enfermaria do campo cinco mil cento e dez… e o seu famoso médico. Entraram mais seis comissários. A intérprete voltou-se para Böhler. — O camarada tenente contou-nos a forma milagrosa como o salvou — disse. — Moscovo foi informada. Agora… — olhou interrogativamente para o comissário magro, que fez um gesto de consentimento — o nosso trabalho está concluído. As listas estão preparadas e serão enviadas para Moscovo esta noite, para aprovação. Trezentos e sessenta e dois prisioneiros abandonarão o campo cinco mil cento e dez em direção à Alemanha. Estou autorizada a informá-lo de que o senhor faz parte desse lote, tal como o doutor Schultheiss. Moscovo sabe a dívida que tem para com um médico do seu valor. Böhler sentiu que o invadia uma onda de calor. Livre!, pensou. Vorotilov propôs-me. Voltarei a ver a minha mulher, a cidade de Colónia, a minha pátria. Ficarei livre da crueldade russa, da solidão, da espera… Não voltarei a ver os bosques do Volga, as cruzes debaixo das quais são enterrados os nossos camaradas, as torres, os soldados vermelhos, os gorros chatos, o pão duro, o punhado de milho… Tudo o que foi a minha vida durante oito anos desaparecerá. Voltarei finalmente a ser um homem livre! Um dos comissários aproximou-se da mesa de operações. Emil Pelz repunha no ficheiro a ficha individual do doente a quem acabavam de tratar. O russo agarrou nela e trocou algumas palavras com um dos colegas, mostrando-lhe um determinado ponto do cartão. Depois virou-se para Böhler e fez-
lhe uma pergunta que o médico não compreendeu, mas cujo tom ameaçador era evidente. — Que significam estas duas letras? — traduziu a intérprete. Böhler olhou para o lugar indicado pelo comissário e o coração pareceu que se lhe gelava. Virou-se rapidamente para o doente e tentou iludir a resposta. — Não têm qualquer ligação com a doença — respondeu precipitadamente. Intrigado, Vorotilov aproximou-se, examinou a ficha e mordeu os lábios. Porque era que aquele estúpido comissário tinha de meter o nariz no ficheiro? — Eu vou dizer-lhe o que elas significam — interveio a intérprete com um sorriso sarcástico. — SS! O homem a quem acaba de tratar pertence ao bando de assassinos de Himmler. — É um plenni — respondeu Böhler com firmeza. — Um plenni como os outros, um homem que precisa de ser socorrido. Vorotilov racicionava depressa. Tinha de salvar o que ainda podia ser salvo. — Como se atreveu a tratar um SS? — gritou brutalmente a Böhler. — E com um material precioso, propriedade da União Soviética! O comissário apontou a cabeça ligada do doente. — Arranquem imediatamente estas ligaduras! — ordenou, revelando de repente que falava alemão. — Porquê? — perguntou Böhler, altivo. — Não faça perguntas — gritou Vorotilov, tão desesperado que lhe apetecia chorar. — Obedece já, porco alemão! — Schultheiss aproximou-se de Böhler e apoiou a mão no braço dele. — Doutor… — começou a dizer. Vorotilov não o deixou continuar. — Saia! — gritou-lhe. — Não tem nada a fazer aqui! E você também, Pelz! Por amor de Deus!, pensava. Tenho de afastar todas as testemunhas. Intimidados, Schultheiss e Pelz saíram da sala de operações. Antes que alguém pudesse intervir, Vorotilov virou-se para Böhler. — Tire imediatamente essas ligaduras! — ordenou em tom ameaçador, enquanto os seus lábios pronunciavam em silêncio: «Rogo-lhe.» Mas Böhler nem sequer olhava para o comandante. — Tenha a bondade de comunicar ao senhor comissário — disse — que a responsabilidade por este doente me pertence a mim, e não a ele. Esta ligadura é de importância vital… Ficará onde está. Os olhos do comissário brilharam de raiva. Deu um salto para a mesa de operações e estendeu a mão para arrancar as ligaduras, mas Böhler colocou-se-lhe muito depressa à frente para o impedir. — Não, enquanto eu continuar a ser o responsável por esta enfermaria — disse com firmeza. Durante alguns segundos, o russo e ele olharam um para o outro e olhos nos olhos. Depois, o comissário sorriu, cheio de ódio.
— Com que então é o responsável! — repetiu lentamente o russo. — Está bem, já que dá tanta importância a esta função, poderá exercê-la durante muito tempo. — Virou-se e encolheu os ombros. — Vamos substituí-lo por outro na lista — disse a Vorotilov, com uma satisfação que não escapou a ninguém. — Não podemos deixar sem cuidados médicos os assassinos de Hitler. Pouco depois, o major Vorotilov entrou, sozinho, no quarto de Böhler. Pigarreou antes de falar. — Desculpe-me — disse —, mas quis ir em seu auxílio. Era a única forma de assegurar a sua libertação. — Eu sei — respondeu Böhler, em voz baixa. Depois levantou-se de um salto e deu vários passos rápidos pelo quarto. — No entanto, não podia permitir que se torturasse e matasse um homem apenas porque… Não, assim não pode ser, comandante! É absolutamente impossível. Parou, voltado para a parede, e um estremecimento sacudiu-lhe o corpo. — Não posso trair um doente — continuou com voz que mal se ouvia —, não posso fazê-lo pagar o preço da minha partida. Além disso — o sentimento da responsabilidade invadiu-o bruscamente —, tenho casos graves na enfermaria… Nos blocos há setenta e três doentes que não conseguem andar. Que pensariam eles se me fosse embora tranquilamente, abandonando-os à sua sorte? — Serão igualmente libertados, depois de curados. — Pode garantir isso, comandante? — Não — respondeu Vorotilov, abanando a cabeça e olhando para o chão. — Tanto quanto sei, esta libertação é um ato de propaganda destinado ao Ocidente. Ignoro quando se realizará a seguinte. — Olhou para Böhler. — Tinha pensado que o senhor choraria de alegria ao saber que ia regressar para junto dos seus… — Ontem tê-lo-ia feito, mas o comissário deu-me uma ordem que eu não podia cumprir. Todas as minhas esperanças de regresso se desvaneceram abruptamente. Sei contudo, no fundo do coração, que deve ser assim, uma vez que sou responsável pelos pobres diabos que aqui sofrem… Tenho doze casos delicados de cirurgia: uma perfuração de estômago, uma ressecção da vesícula biliar, dois casos intestinais graves, sete furunculoses. E esse SS, com uma fratura de crânio… Posso abandonálos? — Porquê tudo isso? — gritou Vorotilov, encolerizado. — Quer continuar aqui? Quer permanecer como voluntário na Rússia, ser um plenni, porque alguns camaradas precisam de si? Não sabe o que vai acontecer? Todos os que aqui ficarem serão condenados por toda a vida! Perderão o estatuto e os direitos de prisioneiro, para serem marcados com o selo dos criminosos. Não existirão plennis, mas sim presos de delito comum. Pense bem Terão mais falta de proteção que qualquer outro homem no mundo. Böhler, ofegante, apoiou-se na parede e olhou pela janela para o pátio coberto de neve e as torres. O tenente Markov percorria o recinto, vigiando os prisioneiros que limpavam as passagens. — Veja que não acontece nada de mal ao Schultheiss — disse em voz baixa. — É jovem,
roubaram-lhe os melhores anos de vida e precisa de liberdade para os compensar e realizar tudo o que nele existe. É muito bom médico, a Alemanha precisa dele. — E de si, não? — gritou Vorotilov. — Pare já com essa ladainha do dever! Desprezá-lo-ia se ficasse aqui. Seria uma traição à sua pátria, à sua mulher e à sua filha. Não age de forma heroica, mas sim irresponsável para com os seus, que o esperam há oito anos, dizendo a si mesmos, com confiança: «Voltará.» Irão à fronteira, à chegada dos primeiros comboios, para perguntar: «Onde está o doutor Böhler? Algum de vocês o conhece?» E haverão de lhes responder: «Sim, conhecemos; é o médico de Estalinegrado. Ficou lá, no inferno soviético, na estepe do Volga… Diz que quer cumprir o seu dever. Estava na lista dos repatriados, mas quis ficar… Por isso, não o esperem na fronteira; voltem para Colónia. Não sabemos se regressará… A sua consciência não lho permite…» Böhler encostou a testa ardente ao vidro gelado. — Esquece que os dados estão lançados, comandante — balbuciou. Vorotilov abriu a porta bruscamente, depois virou-se com o rosto pálido. — O senhor assim o quis — disse. — Seja feliz… É um herói! Saiu, fechando a porta com força, enquanto Böhler continuou com a testa encostada ao vidro mais um momento. Depois rodou sobre si mesmo, caiu na cadeira junto à mesa, deixou cair a cabeça e chorou com grandes soluços… Schultheiss fez todas as visitas, pois Böhler tinha-se fechado no seu quarto e não abria a porta a ninguém. Kresin percorria o seu quarto com grandes passadas, sob o olhar de Vorotilov. — Vou arrombar a porta dele — repetia o médico russo. — Vou arrastá-lo pelos colarinhos, conduzi-lo à fronteira e correr com ele a pontapé. Não foi o único que naquela noite perdeu o domínio de si mesmo. Yanina Salya chorava há horas, pois Ingeborg Waiden tinha-lhe explicado o motivo da chegada dos comissários e, transbordante de alegria, exclamara: — Vamos ser libertados! Todos! Vamos para a Alemanha! Para a Alemanha! A excitação fazia dançar, rir e chorar, tudo ao mesmo tempo, a pequena enfermeira. Yanina demorou algum tempo a compreender o significado daquela alegria. Ia ser hora de perder Jens para sempre, pois entre Estalinegrado e a Alemanha havia maior distância que a que separa as estrelas… Uma distância infinita, que desejo algum, amor, ou vontade conseguia vencer. Ouviu os passos de Jens, que passava revista à enfermaria. Ia entrar, dizia a si mesma, mas não, Jens não se deteve. Passou em frente da porta sem a abrir. Yanina deu um grito e atirou-se para cima da cama. — Não sobreviverei! — soluçava. — Não posso suportar isto. É demais! Naquela noite, Böhler redigiu um dos seus postais mensais, dirigido à esposa e à filha. Numerosos prisioneiros alemães iriam ser libertados na primavera, escreveu, e ele devia ter feito parte do contingente. «Devia», sublinhou, explicando porque tinham eliminado o seu nome da lista.
«Ser médico é dar o exemplo. Existe algo superior ao interesse pessoal: o dever de ser homem.» Apertou as letras o mais possível para ter espaço, mas, no fim, ao reler o que tinha escrito, compreendeu que eram só palavras e rasgou o postal. É melhor calar-me, pensou. Quando os comboios chegarem, elas estarão à espera e, depois de ouvirem os nomes, voltarão a esperar. Porque hei de enfraquecer a sua coragem? Haverá outros comboios, durante os meses e os anos seguintes, e num deles irei eu. Então, terei o resto da minha vida para tentar fazer-me perdoar, para comprovar que elas me entenderam. Olhou para as fichas dos doentes que se amontoavam sobre a mesa. Os que sofriam, os abandonados, substituí-lo-iam no caminho para a pátria… Ouviram-se passos no corredor. Emil Pelz ia ao quarto número quatro dar uma injeção ao SS que tinha sido operado naquela manhã.
Os interrogatórios começaram passados dois dias. As grandes salas do edifício do comando tinham sido evacuadas. Vorotilov refugiou-se nos aposentos de Kresin, que observava os preparativos a resmungar e quase não falava aos comissários. Também tinham despejado o silo situado fora do campo, onde durante todo o ano eram conservadas as batatas e as couves, e que tinha aquecimento. Vorotilov observou isto inquieto. — Mais parece um conselho de guerra, camarada — disse a Kresin. — Até preparam um calabouço. O sol deu bruscamente lugar à neve; um sol pálido, quase branco, que transformava a estepe gelada num campo de brilhantes, mas que levantou o moral dos plennis. Que os julgassem! Já estavam habituados. Quantos interrogatórios tinham suportado durante aqueles anos, a intervalos irregulares? Não lhes tinham arrancado senão ondas de injúrias, com exceção do incidente com Sauerbrunn… Certo dia, ao passar revista pela manhã, Markov leu os cento e vinte e cinco primeiros nomes da lista, ordenando aos interessados que saíssem das filas. Entre eles estavam Peter Fischer, Karl Georg e o enfermeiro Emil Pelz. O último nome lido por Markov foi o de Schultheiss. Yanina, que estava a olhar pela janela da enfermaria, virou-se e correu a cortina. Um dos comissários apareceu à porta do edifício do comando e gritou qualquer coisa a Markov, que fez um gesto de concordância, agarrou na lista e conduziu o grupo para lá, ao mesmo tempo que mandava um dos prisioneiros procurar Schultheiss na enfermaria. Vorotilov estendeu outra lista ao presidente da comissão da MVD, lista essa de onde fora cortado um nome: o de Fritz Böhler. Ao longo da parede havia uma grande mesa. O coronel da MVD, três comissários e a intérprete sentaram-se atrás dela e Jacob Aaron Utchomi deslizou para um canto, com a ingrata missão de verificar a tradução e redigir as atas dos julgamentos orais. O papel de Vorotilov era de simples
espectador, estava no extremo do pavilhão, com Kresin e Kasalinskaya. O tenente Markov introduzia os prisioneiros, esmagando-os com juramentos, e entregava os que lhe eram indicados a cerca de trinta soldados armados com pistolas-metralhadoras, oriundos, todos eles, das estepes asiáticas. Os interrogatórios foram realizados mais depressa do que se esperava, pois nenhum durou mais de cinco minutos. Quando saíam, os presos ficavam separados dos outros, para que não pudessem comunicar aos camaradas o que se passava lá dentro, e vários não voltaram. Conduzidos a uma pequena sala, eram depois levados, em pequenos grupos, para a antiga cadeia, e brutalmente espancados pelos soldados, cena que se podia observar do outro lado das cercas. De facto, não se tratava de um verdadeiro interrogatório. Os comissários estavam calados e era a bonita intérprete que lia simplesmente os papéis que lhe eram entregues, traduzia a resposta e, após olhar para o silencioso coronel, pronunciava a sentença. Um jovem aspirante alemão chegou à frente da mesa. Estava pálido, macerado e as suas mãos calosas testemunhavam os duros trabalhos a que tinha sido submetido. Esperou, a olhar para os caracóis que caíam nos ombros da intérprete. — Estava encarregado do material da sua companhia? — perguntou a mulher. — Sim. — Inclusive no momento da entrada na Rússia? — Sim, era um posto normal em qualquer unidade. A intérprete concordou e tirou uma folha da pasta. — É condenado à morte por isso — disse com voz indiferente. — Contribuiu fortemente para que as tropas alemãs pudessem matar cidadãos russos, portanto, é culpado de homicídio, pois os cuidados que tinha com o armamento permitiriam aos seus soldados avançar pelo nosso território. No entanto, comuta-se a pena na de trabalhos forçados perpétuos. Vá-se embora. O aspirante entrou, a cambalear, na sala ao lado. Markov sorriu e apresentou o seguinte: um sargento alto, de ombros largos, um bávaro, camponês e tratador de vacas. A intérprete agarrou noutro papel. — Fazia parte de uma unidade de transportes? Que quer isto dizer? — Estava encarregado das provisões. — Muito bem. É condenado à morte porque a sua ação facultou aos alemães meios para destruírem a Rússia. Esta pena é comutada na de vinte e cinco anos de trabalhos forçados. O seguinte. Kresin tocou no braço de Vorotilov, que, à sua frente, olhava obstinadamente para o chão. — Só nos resta tirarmos os uniformes — disse em voz baixa. — Ao atuarmos com humanidade, permitimos que os prisioneiros alemães vivessem, e isto é uma sabotagem às represálias russas. Vorotilov, condeno-o ao desterro perpétuo na Sibéria.
— Cale-se, estou envergonhado. No entanto, a maior parte dos plennis não foram condenados, eram pobres diabos que só tinham feito o que lhes tinham ordenado, e que tinham ido para o cativeiro como cordeiros. Nem sequer os interrogaram, deram-lhes um número e mandaram-nos embora. Só os que tinham cumprido alguma função no exército — escriturário, cozinheiro, radiotelegrafista, instrutor — foram condenados pelo motivo estereotipado: tinham contribuído para dar ao exército alemão a possibilidade de atacar a Rússia e cometer ali assassínios. Eram condenados à morte e a pena era comutada em vinte e cinco anos de trabalhos forçados, ou em trabalhos forçados perpétuos. Schultheiss teve sorte. Não o censuraram por, mediante os seus cuidados, ter posto soldados em estado de combater na frente russa. Respeitaram o título de médico, que é muito considerado na União Soviética, e a intérprete até sorriu. Recebeu um número, sendo, depois, mandado embora. Os interrogatórios duraram quinze dias, de manhã e de tarde, e o silo recebeu sessenta e sete condenados à morte, indultados para serem convertidos em presidiários. Ficavam ali apenas uma noite, no dia seguinte eram levados para um pavilhão isolado, rodeado de uma cerca de arame farpado muito alta e vigiado dia e noite por uma forte guarda. Von Sellnow também figurava na lista dos libertados. Declararam-no doente, provisoriamente destacado em Estalinegrado, embora ninguém soubesse, na realidade, onde se encontrava. Tal como Schultheiss, recebeu um número, e Vorotilov respondeu por ele. Portanto, não havia necessidade de interrogatório. — Incapacitado para o trabalho? — perguntou a intérprete. — Incapacidade total. Foi operado ao cérebro. — Categoria I… O seguinte. Depois, de repente, tudo aquilo acabou. Os dias voltaram a passar monotonamente. Após os dias de sol, chegou um vendaval, vindo de leste, fazendo novamente vergar as árvores. O conteúdo das encomendas tinha-se esgotado e tiveram de voltar à sopa de couve e ao pão bolorento. Mikhail, o cozinheiro, tornou a soprar na sua corneta, sob a direção de Peter Fischer, e Bacha deixava-se beliscar pelos ajudantes de cozinha. Contudo, os plennis tinham outros apetites, depois de terem recobrado forças com o conteúdo das encomendas e uma noite, no armazém, um jovem camponês teve oportunidade de violar Bacha sobre um monte de batatas. A vida continuava. Certa noite, Böhler operou uma vesícula biliar, tendo Kresin e Kasalinskaya como ajudantes. Schultheiss estava com a sua Yanina, mas todos esperavam a primavera em silêncio. Os olhos e os ouvidos estavam alertas, os detidos eram forçados a escutar a noite e o bosque, deslizando para junto dos carros de abastecimento, para perto do edifício do comando escutando o latejar do coração do campo, ansiosos por conhecerem o seu destino… A primavera não tardaria a chegar e, com ela, o sol, o quente sol, a neve iria derreter, os rios
transbordariam e as árvores voltariam a ficar verdes. Ao princípio só haveria um imenso lodaçal, onde se atolariam homens e animais… Depois, as estradas secariam, nascendo flores na estepe e nos campos… A primavera! Os trabalhadores dos kolkhozes reapareceriam na campina, as raparigas iriam pelos caminhos, cantando, com o ancinho ou a forquilha ao ombro. Para a frente, as equipas! Dez, vinte, cem, mil plennis, para os campos! Lavrar, semear, cavar, plantar. Batem as lagartas, os tratores revolvem a pesada terra… Os cavaleiros virão da estepe fazer compras em Estalinegrado e Saratov; os descendentes de Átila e de Gengis Khan… Erguerão as suas tendas junto ao Volga e acenderão as fogueiras de campo. A primavera! A primavera à beira do Volga! E as primeiras partidas na primavera de 1950… Ainda neva, mas o que são três ou quatro meses quando a espera já dura há tantos anos? Um sopro… nada… um instante… Mas que venham mais encomendas! Que não nos esqueçam na Alemanha.
No Hospital do Estado, em Estalinegrado, os médicos ajudantes, reunidos em grupo, sussurravam entre eles. O professor estava sentado, pálido, no seu gabinete, e sob o queixo tártaro tremia-lhe a barba branca. No quarto adjacente, um homem gritava, com gritos agudos, desgarrados, insensatos. Batia na porta com os punhos, atirava-se de cabeça contra as paredes e rugia como um touro. Era Sergei Kislev. O filho fora novamente transferido para a clínica: cura impossível, cancro, decretara o professor. Ao ouvir isto, o homem tinha-se atirado a ele, batendo-lhe na cara, querendo estrangulá-lo, e só a intervenção dos médicos ajudantes salvou a vida ao professor Pavlovich. O homem possesso teve de ser encarcerado numa cela acolchoada. O médico-chefe assomou à janela para contemplar o professor, sentado no seu sofá. «Uma múmia!», pensou. «Não passa de uma múmia com um nome famoso, mas o homem já não vive.» — O estado de Sacha Kislev é muito grave — disse. — Achamos que talvez uma operação ao estômago fosse útil. — Imbecil! — exclamou o professor, furioso. — O médico alemão já a fez. Não podemos tirarlhe o estômago todo. O doente está condenado. — E se chamássemos novamente esse alemão, o doutor Böhler? — Não! — retorquiu duramente o velho professor. — Ele realizou a primeira operação e, se o jovem Kislev morrer, podemos sempre dizer que foi por culpa do alemão. No caso de operar segunda vez, ainda menos poderia negar a sua
responsabilidade. O pequeno asiático refletiu durante um longo momento. — A ideia não é má, camarada — concordou, finalmente. — Com efeito, precisamos de um responsável. O camarada Kislev ocupa um lugar muito importante no Conselho da Indústria Pesada e tem muitos amigos no Kremlin. É um velho comunista com muita influência. Precisamos de um responsável pela morte do filho. O médico-chefe deu um suspiro de alívio. Não compreendeu a armadilha, pensava. Era a única forma de mandar vir o alemão para salvar o rapaz. Caso contrário, esse tártaro, esse macaco amarelo, não o teria consentido. Já está velho, não serve para nada… — Devo mandar buscar o doutor Böhler? — perguntou em voz alta. — Ainda não — respondeu o professor Pavlovich, que se levantou a gemer, pois sofria de reumatismo. — Como está o Sellnow? — Bem. Está consciente durante algumas horas por dia e fala com a enfermeira. Ontem até disse um palavrão porque se enganaram na comida que lhe levaram. — Como foi isso? — Esqueceram-se de que está a dieta — disse o médico-chefe, empalidecendo — e serviram-lhe comida normal. — Quem? — O enfermeiro da terceira secção. — Mande-o prender por sabotagem! — Professor… foi apenas um engano… Pavlovich levantou as duas mãos. — Ordeno-lhe! — gritou. — Num hospital, os enganos provocam a morte. Conheço um caso em que se deu cozido de couves a um doente acabado de ser operado aos intestinos e ele morreu entre dores horríveis. Mande prender esse homem. Quero ordem no meu hospital, pelo menos ordem, mesmo que tudo o resto falhe … O médico-chefe saiu para cumprir aquela ordem. Falhar!, pensou. Tu, sim, falhas, Prémio Estaline, aranha dissecada, verme venenoso! Chamou a MVD pelo telefone. — Sim. Venham prender o enfermeiro Pavel Semioyev, da terceira secção, por sabotagem. Imediatamente. Obrigado. O que é um homem nesta Rússia, onde o próprio Sol tem dificuldade em dar toda a sua luz? Não passamos de mais outros Semioyev, cujo desaparecimento não importa a ninguém, pensou o médico-chefe. Sacha Kislev tinha sido instalado no pequeno quarto número nove, no extremo do corredor, reservado aos moribundos.
O jovem médico arménio e uma enfermeira estavam a examiná-lo. Interromperam-se e adotaram uma atitude respeitosa, pois o professor Tai Pavlovich acabava de entrar. — Não há esperança — disse o médico. — Tem o estômago perfurado e o seu conteúdo derramado na cavidade abdominal. A hemorragia interna não tardará a provocar a morte. Pavlovich olhou para o médico-chefe. «Tarde demais!», dizia aquele olhar. «Vai morrer antes da chegada do alemão… A menos que esperemos por ele para anunciarmos a morte… Guardaremos segredo a todo o custo! Na Rússia, até os mortos vivem quando se quer!» — Mande imediatamente um carro buscar o médico alemão. E quanto a si — dirigia-se ao arménio —, vá ter com o camarada Kislev e diga-lhe que vamos mandar vir Böhler, único responsável pelo filho. Não fui eu quem o operou, toda a responsabilidade recai sobre ele. Diga-lho assim. — Sim, senhor professor. O médico mais jovem saiu com o médico-chefe e no corredor deteve-se para falar com o colega. — É uma sujeira perversa por parte do professor. — Não pense nisso, meu filho — disse o outro. — Se quiser tornar-se bom médico, faça exatamente o que lhe disserem, sem querer aprofundar. Assim distinguimo-nos dos médicos dos outros países, que são muito retrógrados. — Bateu amistosamente no ombro do arménio e a sua voz vibrava com amarga ironia. — Faça o que o chefe acaba de lhe dizer, pois os seus escrúpulos morais haverão de comprometer a carreira. Afastou-se, enquanto o jovem, com o rosto corado de vergonha, olhava para ele. Obedeceu, contudo, pois teria sido demasiado perigoso não o fazer! Sacha Kislev morreu seis horas antes de o doutor Böhler chegar a Estalinegrado no carro particular de Pavlovich, o qual tinha precipitado a morte do doente ao dar-lhe uma injeção de morfina, que o coração debilitado do rapaz não conseguiu suportar. Portanto, o jovem Kislev não morreu de cancro, mas sim de colapso cardíaco, provocado por um espasmo. O professor só compreendeu o erro quando era tarde demais. Arrancou os cabelos, bateu na cara com o punho e, como estava sozinho no quarto, destruiu a ampola e deitou fora a seringa. Depois, tapou o corpo e massajou-o, a fim de espalhar na cavidade abdominal a hemorragia interna e o conteúdo do estômago, dando a impressão na autópsia de que residia ali a causa da morte súbita. Depois dessa verificação, seguramente não examinariam o coração. O médico-chefe entrou e bastou-lhe um simples olhar. — Morto? — Não! Um tumor! — murmurou Pavlovich. — Ainda não deve estar morto. Faça correr o boato de que consegui um estado estacionário e que talvez vá fazer uma nova operação. — Mas isso é impossível! — exclamou o médico-chefe. — Não podemos pedir ao médico alemão que…
— Saia! — gritou o professor. A sua cara asiática estava descomposta. Parecia um macaco furioso. Os seus olhos não passavam de fendas estreitas e oblíquas num rosto cor de tijolo. O médico saiu, pálido. No corredor, encostouse à parede e fechou os olhos. — Virgenzinha de Kazan! — disse em voz baixa. — Perdoa-me… Não posso fazer outra coisa. Foi à sala dos médicos e anunciou, a gaguejar, que o professor iria salvar o jovem Kislev. Quando Böhler, acompanhado por Martha Kreuz, chegou à clínica, encontrou Pavlovich tranquilo e afável. No entanto, o professor olhou com desagrado para a enfermeira, que não mandara vir. O médico-chefe deu-se conta daquele olhar. — Venha, enfermeira — disse cordialmente, apesar de ter um nó na garganta. — Nem você nem eu compreenderíamos nada. É preciso ser um grande cientista. Vamos tomar um pouco de vodca. — Como está o doente? — perguntou Böhler. Despiu o casaco e vestiu a bata branca que lhe era oferecida, abotoando-a por cima do seu uniforme de plenni. — Tem espasmos violentos? — De vez em quando — respondeu Pavlovich. — O seu estado é muito grave. — Quando o trouxeram? — Esta manhã. — E porque não antes? — perguntou Böhler, olhando com reprovação para o professor. — O senhor certamente estava ao corrente do seu estado: não o manteve em observação depois de sair do hospital? Foi submetido a uma dieta completa? Tai Pavlovich olhou de soslaio para o médico. Não esperas pela demora, porco alemão!, pensava. Dentro de instantes serás como um verme que esmagarei, com nojo, com o meu tacão. Um Prémio Estaline de Cirurgia não aprende com um plenni imundo como se opera um cancro de estômago. E, se as coisas correm mal, tanto pior! Nós somos os senhores do mundo. Não toleramos ninguém acima de nós, nem sequer Deus. Abatemo-lo, a esse velho de barba branca. É antiquado. Somos os senhores do mundo, nós, os russos, os asiáticos! — Fizemos tudo — respondeu a sorrir. — Talvez a sua ressecção tivesse sido um pouco brutal. Böhler virou bruscamente a cabeça. Num abrir e fechar de olhos compreendeu a armadilha que lhe preparavam e o imenso perigo em que caíra, mas não se assustou… Pelo contrário, esse pensamento devolvia-lhe toda a calma, todo o domínio de si mesmo. — Onde está o doente? — perguntou em tom frio. — No quarto número nove. Irá já vê-lo, vou até deixá-lo a sós com ele. — O sorriso era agora irónico. — Poderá atuar completamente à vontade. Böhler deteve-se, embora o professor o puxasse por um braço. — Antes de ver o doente — disse —, gostava de consultar a ficha clínica. Deduzo que tenha
todos os dados necessários, senhor professor. — Mas é claro. O doente foi submetido a vigilância permanente e os papéis estão no gabinete do meu médico-chefe. Vou mandar uma enfermeira buscá-los, mas, entretanto, pode examiná-lo. Parou diante de uma porta branca esmaltada, que ostentava o número nove, no extremo do corredor. Böhler observou esse facto e mordeu os lábios. Pavlovich apoiou uma mão, que não tremia, no puxador da porta. — Com certeza está a dormir — disse em voz baixa. Apesar de tudo, Böhler comoveu-se. No fim de contas, é médico, pensou. Também quer socorrer um semelhante. Olhou através da porta entreaberta e compreendeu imediatamente o que o esperava ali. O professor Pavlovich, subitamente muito apressado, virou-se rapidamente, inclinando uma ou duas vezes a cabeça. — Eu próprio vou buscar a informação clínica, caro colega — disse com cortesia. — Entretanto, terá tempo de fazer o seu próprio diagnóstico. Depois afastou-se tão rapidamente quanto lho permitiam as pequenas pernas, deixando o médico alemão diante da porta. Durante um momento, Böhler hesitou em abri-la, mas sobrepôs-se a essa fraqueza e entrou com passo resoluto.
Naquele preciso instante, Kresin atravessava a correr a enfermaria do campo 5110, para tirar Kasalinskaya da cama, onde dormia a sesta. Ao mesmo tempo, Vorotilov precipitava-se para o interior do pavilhão. Erna Bordner e Ingeborg Waiden atarefavam-se com uma máscara de oxigénio à volta de Yanina Salya e Schultheiss preparava-se para fazer uma lavagem ao estômago. Kresin voltou, ofegante, trazendo uma seringa de glicose e estrofantina. — Como é possível? — repetia sem cessar. — Yanina… minha querida… Que disparate fizeste? Acariciou as faces maceradas e levantou-lhe as pálpebras. — Mas já está morta! — exclamou. Schultheiss largou o que tinha nas mãos para correr até junto da cama. Aplicou-lhe o estetoscópio com mão trémula. — O coração ainda bate… Muito fraco… Dê-lhe já a injeção. Kresin injetava a estrofantina numa veia. O pequeno corpo de Yanina empinou-se… O peito começou a elevar-se e o coração bateu claramente. Vorotilov, pálido, olhava da janela.. — O que se passou? — repetia ele também. — Que fez ela? — Envenenou-se — respondeu Kresin, deixando-se cair à beira da cama. — Vinte comprimidos de soporífero. Já estava tão fraca! — Arrancou bruscamente o tubo das mãos de Schultheiss, quando este se inclinou para Yanina. — Não atormente a minha pombinha! — gritou. — Saia daqui com esse
tubo idiota! Como se isso a pudesse salvar! — O único recurso é despejar o estômago — gritou Schultheiss, escondendo desesperadamente a cara entre as mãos. — Se ao menos soubéssemos quando tomou esses comprimidos! — Há várias horas — respondeu Ingeborg Waiden, a soluçar. — Ninguém daria conta se eu não tivesse por acaso olhado para dentro do quarto. Estava tão calma, tão tranquila! — Mas porquê? Porquê? — gritava o desesperado Vorotilov. Todos baixaram os olhos. Cada um deles conhecia o motivo, mas ninguém queria dizê-lo. Kresin assistira à crise de lágrimas de Yanina, quando ela soube que Schultheiss se encontrava nas listas dos repatriados. Tentara consolá-la durante toda a noite, falando-lhe da estepe, dos bosques, das casas brancas da Crimeia, junto ao mar, e, quando a deixou, julgava ter-lhe devolvido a coragem de viver, mas, afinal, sucedera aquilo… — Se, pelo menos, estivesse aqui o doutor Böhler — disse Vorotilov em voz baixa. — Nem sequer ele poderia fazer nada — respondeu Kasalinskaya. — O pulso mal se percebe… Dorme docemente… Tão docemente como viveu. Vorotilov voltou-se para a janela, com os ombros a tremer, e Schultheiss sentou-se à beira da cama, agarrando as mãos brancas de Yanina para as acariciar. Sentia-se responsável por aquela morte e dizia a si mesmo que ela lhe pesaria para sempre na consciência. Sentado numa cadeira, junto à cama, Kresin não tirava os olhos da cara da rapariga. Kasalinskaya, de pé no outro extremo, revia mentalmente quantos medicamentos conhecia contra um envenenamento por narcóticos. A lista era longa, pois, na Rússia, a morte toma outras formas para além de vinte pequenos comprimidos brancos. Os soporíferos são um privilégio do Ocidente decadente, a Rússia de sangue jovem não necessita deles. O pulso enfraqueceu mais, as grandes olheiras da rapariga tornaram-se cada vez fundas, a vida fugia-lhe rapidamente. Vorotilov soluçava de costas para a cama, enquanto a mão de Kresin acariciava o cobertor. — Yaninachka — murmurava. — Não nos abandones, Yaninachka… porque te cansaste do Volga tão cedo? Fica connosco, rapariga. Yanina Salya morreu uma hora mais tarde: o coração deixou simplesmente de bater, as pálpebras vibraram muito ligeiramente, exalou um suspiro mal percetível e ficou imóvel. Os seus traços distenderam-se e adquiriu uma beleza como nunca tivera: a beleza celestial do corpo que a vida abandonou. Kresin uniu as mãos, orando em silêncio, e Schultheiss e as duas enfermeiras também rezaram. O major Vorotilov saiu. Viram-no atravessar a praça, curvado como que sob o peso de um grande fardo, sem ver as sentinelas que o saudaram, nem Markov, que lhe falava, continuando a caminhar como um sonâmbulo até ao edifício do comando. Kasalinskaya tapou Yanina até ao pescoço e fechou-lhe as pálpebras entreabertas. Depois,
agarrou nalgumas flores — as pequenas primaveras que antes tinham estado no quarto de Sellnow — e pô-las entre os seus dedos. Kresin abriu os olhos como se acordasse de um sonho. — Vou pedir transferência — disse em surdina. — Não posso ficar aqui mais tempo. Não quero voltar a ver campos de plennis, cercas, torres… Nem médicos alemães… Vou para o Sul, para o mar Negro… Nunca mais quero contemplar o Volga… Nunca, nunca mais! Levantou-se pesadamente e abraçou Schultheiss contra o peito. — Jens, tu foste o único homem que amou verdadeiramente a Yanina — continuou devagar, enquanto as lágrimas se perdiam na sua espessa barba. — Morreu por esse amor… Maldito sejas se alguma vez esqueceres a minha pombinha. — Nunca a esquecerei, doutor Kresin. Amei-a muito. — Se eu não fosse russo — prosseguiu Kresin, passando-lhe um braço pelo ombro —, iria para a Alemanha contigo, mas tenho de ficar aqui, com a minha mãe. Que seria dela se todos a abandonássemos? Escreves-me da Alemanha? — Prometo. — Era bolchevique — interveio suavemente Kasalinskaya —, mas sempre foi crente. Não devíamos chamar um sacerdote para a benzer, camaradas? Kresin fez um gesto de acordo.
A tremer, o professor Tai Pavlovich colocou-se à frente de Böhler. O médico-chefe, o jovem arménio, outros quatro médicos e sete enfermeiras acabavam de chegar ao pequeno quarto. Sacha Kislev repousava, inerte, sobre a cama. — Matou-o! — gritou o asiático, com uma indignação admiravelmente fingida. — Assassinou um camarada! Böhler encarou-o com calma, depois virou os olhos para o morto e o seu rosto adquiriu uma expressão pesarosa. — Estava vivo quando lho entreguei, há um quarto de hora, o médico-chefe pode testemunhá-lo. Vivia ainda, camarada Iyanev? — Sim — disse em voz muito baixa, com um gesto de cabeça. — Ah! — exclamou o asiático. — Confessa agora ter matado o camarada Kislev, que a sua operação, em que cortou excessivamente o estômago, foi completamente errada? Confesse-o, miserável carniceiro! Tai Pavlovich estava radiante e Böhler estranhou a força da voz que saía daquele corpo pequeno e seco. — Vou mandá-lo prender por homicídio. Acaba de dar uma injeção a esse homem.
— Quase não lhe toquei, mas foi o suficiente para perceber que a morte ocorreu há várias horas. — Böhler olhou para os outros médicos. — Os senhores sabem, pela anatomia e pela patologia celular, que se pode determinar a hora da morte não só pelo conteúdo do estômago, como também pelas manchas do corpo e pelas alterações das células internas. Portanto, vou fazer a autópsia. — Não! Proíbo-o — gritou o professor. — As testemunhas confirmam que o doente estava vivo há um quarto de hora. Não vou deixar que um porco alemão dilacere um camarada. Um porco sujo nazi! Böhler olhou sucessivamente para todos os presentes, que, um após outro, foram baixando a cabeça, e compreendeu: estava diante de um poder que não se preocupava com o direito, mas apenas com a opinião arbitrária de um só. A palavra do professor Tai Pavlovich, Prémio Estaline de Cirurgia, era lei. O arménio também baixou a cabeça face ao olhar do alemão, mas a sua palidez era visível sob o bronzeado natural da pele. — O paciente morreu devido a uma dose excessiva de morfina — declarou Böhler com firmeza. — Posso mostrar-lhes o lugar onde foi dada a injeção. Quis ir até ao corpo, mas Pavlovich, com os olhos brilhantes de ódio, travou-lhe o passo. — Não volta a tocar no camarada Kislev! — gritou selvaticamente. — Não quero que um cão alemão ponha as mãos num russo. Mando detê-lo imediatamente, assassino! Aconteceu então algo de que Böhler se arrependeu sinceramente alguns segundos depois e que feriu profundamente a sua dignidade de médico. Olhou para o rosto enrugado e amarelecido, para os olhos estreitos e para a boca maldosa e bateu de repente com o punho em cheio naquela cara horrível. O velho, projetado como uma catapulta, foi cair num canto do quarto. Nenhum dos médicos se mexeu, nenhum fez o mais simples gesto para levantar o professor desmaiado. Ficaram ali, como uma muralha viva, de olhos brilhantes. Foi isso que devolveu a razão a Böhler e que o emocionou profundamente e encheu de vergonha. Avançou um passo… A muralha de batas brancas abriu-se e ele saiu, por aquele corredor, do quarto número nove. Ao fechar a porta, viu o médico-chefe levantar o professor e levá-lo para uma cadeira. No vestíbulo, junto da porta, Böhler deteve-se para esperar por Martha Kreuz, que descia as escadas. Tinham-na feito beber um vinho forte da Crimeia, que lhe corava as faces. Atrás dela, o jovem arménio descia as escadas de quatro em quatro. Estendeu a mão a Böhler e empurrou-o para a rua, ao mesmo tempo que a enfermeira. Nevava. O carro de Tai Pavlovich continuava à espera. — Saia daqui, colega — disse o arménio em mau alemão. — No campo, fica a salvo. Vou telefonar ao seu comandante, mas saia daqui já, antes da vingança do professor. Voltou a entrar no vestíbulo a correr, agarrou no casaco grosso de Böhler e regressou para lho pousar sobre os ombros. O condutor tinha aberto a porta do carro. Böhler subiu e Martha Kreuz instalou-se no assento da frente. O arménio fechou a porta.
— Todos sabemos que o jovem Kislev morreu há sete horas! — gritou ao médico alemão, através do vidro, com gestos. — E agora, bom regresso. O veículo começou a andar entre um remoinho de neve e meteu pela estrada que acompanhava o Volga. Böhler olhou pela janelinha de trás. O jovem arménio, sozinho na frente da entrada, seguia-o com o olhar. Outra pessoa, com uma bata branca, apareceu então no vestíbulo: o médico-chefe. — Venha — disse ao ajudante. — Falta fazer o mais difícil. O professor fechou-se e temos de contar a verdade a Sergei Kislev. — Nós? — perguntou o arménio, agora pálido. — É preciso. Há dez horas que Kislev está à espera na cela acolchoada. Vamos, camarada. Quando abriram a porta da cela, Kislev estava a chorar, sentado na cama, pois dera-se finalmente conta de tudo o que não lhe tinham dito. Sem vontade, com um abandono de criança, deixou-se conduzir pelo corredor que levava ao quarto número nove.
O enterro de Yanina Salya foi muito discreto, pois nem Böhler, nem Schultheiss, nem Tchurilova, nem Kasalinskaya, nem o próprio Vorotilov arranjaram coragem para seguir o caixão de abeto, encomendado ao melhor carpinteiro. Quatro soldados levaram aos ombros o leve caixão e Kresin foi o único a permanecer junto ao túmulo, a rezar, após ter mandado embora os soldados. Depois abriu os olhos e olhou em redor. Viu o Volga, amplo, majestoso, cujas águas corriam lentamente. Viu os bosques escuros e impenetráveis, profundos, estendendo-se por várias centenas de quilómetros, domínio de lobos e de ursos errantes, que, durante a noite, perturbam o silêncio com os seus uivos e rugidos. Viu o túmulo de Yanina Salya, a filha do Volga, a rapariga dos grandes olhos, nos quais se refletia toda a imensidade da Rússia. Kresin voltou devagar para o carro, deslizou no assento e olhou para o outro lado, rio abaixo, de onde tinham vindo. — Tapem a cova — disse aos soldados que esperavam a alguma distância. — E depressa… O vento vai soprar, voltará a cair neve na estepe… Depressa, irmãozinhos. Em breve se ouviu o ruído das pás e da terra a cair. Cobriu as orelhas para não ouvir mais, com o rosto contraído num esgar de dor. Parecia-lhe que estavam a enterrar o mundo em que vivera até então. Encontrava-se só, nu, sem esperança, condenado a continuar a existir. Em Estalinegrado, Von Sellnow tentava dar os primeiros passos, apoiado no braço de uma enfermeira. Da sua janela, Pavlovich viu-o avançar, cambaleando, pelos trilhos do jardim. O pequeno asiático estava contente. A trepanação levada a cabo pelo médico alemão com um formão de carpinteiro tivera êxito… A princípio, julgara que Sellnow não sobrevivesse, mas, mal comprovou o contrário, não poupou meios, mandando vir de Moscovo produtos especiais: medicamentos para fortalecer o coração; estreptomicina para acabar com as inflamações; hormonas para dar vigor ao
organismo. Naquela luta contra a morte, Pavlovich tinha vencido, ressarcindo-se assim da derrota sofrida com o jovem Kislev. O professor queria apresentar-se ao mundo soviético como um médico capaz de curar uma doença aparentemente incurável e de com devolver a saúde a alguém com uma intervenção cirúrgica. Esse orgulho salvou a vida de Von Sellnow e valeu-lhe a simpatia do tártaro. Pavlovich seguia pessoalmente os progressos do médico alemão, fazendo o diário da doença com exemplar exatidão. Tal como o próprio Sellnow, ignorava que este estava inscrito na lista de repatriação, na qual o Comité Central de Moscovo o tinha confirmado, assinalando o seu nome com um traço grosso de lápis vermelho. Sellnow tinha sido libertado, ainda não fisicamente, mas administrativamente, só faltava uma ordem do Kremlin. Logo que os comboios partissem em direção ao Ocidente, os jornais da zona soviética fariam soar a enorme caixa de propaganda, cobrindo de bandeiras o local onde a receção estava a ser preparada. «Que chegue depressa a primavera! Que o Sol abra passagem por entre as nuvens cinzentas para derreter a neve! A sujidade, o lodo, o imenso lamaçal desaparecerão… Os camiões virão buscarnos… dois, quatro, cinco veículos… Vão levar-nos para a liberdade… a ti e a mim…! É o fim da sopa de couve, do pão bolorento, dos vinte gramas de massa e do minúsculo pedaço de carne, encontrado uma vez por semana no caldo… Come batatas geladas, camarada! Fazem engordar… Vai tudo acabar depressa, Emil… A tua mãe espera-te… Recuperarás as forças e esquecerás os malditos anos passados na estepe. E as noites, Emil, meu amigo! As noites!» Em meados de Março recomeçaram a receber encomendas, setecentas e oitenta e duas, desta vez, e os plennis estavam felizes. Vorotilov e Kresin também ficaram contentes e tudo foi distribuído em quarenta e oito horas, sem demasiadas fiscalizações. Os contemplados não esqueceram os seus camaradas mais desfavorecidos e os donativos afluíram à enfermaria. Os padeiros fizeram bolos para festejarem o aniversário de Schultheiss e convidaram o major Vorotilov a prová-los, assim como Kresin, Kasalinskaya, a Tchurilova e todo o pessoal médico. A esperança era grande, apesar de o futuro ainda estar cheio de incertezas. No seu armário, Vorotilov tinha três encomendas e quatro postais dirigidos a Von Sellnow. — Espero mais algum tempo — disse em voz alta, como que falando consigo próprio. — Talvez Sellnow volte. Se tivesse morrido, seríamos informados de que deveríamos riscá-lo da lista… Uma vez que nada nos disseram, está vivo. Portanto, podemos esperar voltar a vê-lo, e é isso que faz resistir Kasalinskaya. Meu Deus, se ela soubesse que o mandamos para casa e que é casado! Não mexas em nada, camarada comandante. A chegada das encomendas reanimou as trocas com os soldados. Tabacos e caixas mudaram de mãos e as ferramentas seguiram o caminho inverso. Nas oficinas dos pavilhões viam-se turqueses, martelos, formões, plainas… Os alfaiates até arranjaram tecidos; papel e cartão, os encadernadores; tintas e pincéis, os pintores; novas partituras, os músicos, incluindo música clássica: Tchaikovski,
Borodin, Beethoven, Schubert… Uma onda de vida parecia ter-se derramado sobre os pavilhões nevados, o campo agitava-se, a maldição dos anos passados retrocedia. Quando o Sol lançou os seus primeiros raios, Kresin foi colocar flores na sepultura da Yanina Salya, as primeiras que conseguiu obter em Estalinegrado. Eram grandes rosas vermelhas da Crimeia, que, sobre a neve, pareciam manchas de sangue. No Hospital do Estado, Sellnow já andava sozinho, agarrado a uma bengala. Aquecia-se ao sol, eram-lhe servidos os melhores alimentos e circulava livremente, tendo, até ajudado a uma operação. Pavlovich estava orgulhoso do seu doente. Apresentava-o aos estudantes, mostrava as radiografias, explicava a trepanação, ficando com os louros, e expunha o tratamento que seguira… Contudo, não tocava no doente, não tentou substituir o grosseiro fio dos pontos da sutura por seda ou categute, nem sequer experimentou qualquer plástica do crânio, contentando-se em ver, com mágoa, que metade se afundava, formando uma depressão. De resto, não dava muita importância a isso, pois não trazia consequências para as funções corporais ou mentais. Sellnow notou tudo isso, mas calou-se; sabia que seria necessária uma plástica, que só produziria efeito alguns anos depois. No entanto, preferia não chamar as atenções e, mantendo os olhos bem abertos, observava a vida do hospital. Falava com as enfermeiras e com o médico-chefe, conversava longamente com o jovem arménio e soube que ia haver repatriações, que vários prisioneiros abandonariam o campo 5110, mas nem por um momento lhe ocorreu que pudesse encontrar-se entre aqueles privilegiados, pois, ao pensar no olho cego do comissário Kuvakino, convencia-se de que não teria tal sorte. No entanto, certo dia ousou pedir ao arménio que fizesse sair fraudulentamente do hospital umas palavras dirigidas à médica Aleksandra Kasalinskaya. A carta, levada por um camionista, chegou três dias depois ao campo 5110. Aleksandra riu, chorou, dançou e atirou-se ao pescoço de Vorotilov e de Kresin. — Está vivo! Está vivo! Está em Estalinegrado! Depois foi sacudida por um riso histérico, enquanto Kresin lia a carta por cima do ombro do comandante. A seguir, o médico pegou no casaco e no gorro de pelo. — Vou a Estalinegrado. Tenho de falar com o Sellnow, nem que tenha de esmagar o piolho do Pavlovich! Acompanha-me, camarada comandante? — Naturalmente. — Leve-me também a mim! — suplicou Kasalinskaya, juntando as mãos. — Peço-lhe. Ele pensa em mim, precisa de mim; eu sei. — Vais amanhã, Aleksandra — respondeu Kresin. — Alguém tem de ficar no campo. Mandamoslhe um abraço teu. Precipitou-se para o exterior, a fim de pedir o jipe, enquanto Vorotilov vestia o capote. Kasalinskaya agarrou-o por um braço. — Diga-lhe que o amo — pediu-lhe. — Que o espero, que a minha vida só fará sentido quando
ele regressar. — Dir-lhe-ei, Aleksandra — garantiu Vorotilov. Pensava nos postais e nas encomendas mandados pela esposa de Sellnow, que também esperava o regresso do prisioneiro; pensava no número de repatriados, nos comboios que partiriam na primavera, numa viagem ordenada por Moscovo, que ninguém podia impedir, nem ele, nem Kresin, nem o general de Estalinegrado, nem mesmo Aleksandra. Só a morte podia ser mais forte que uma ordem de Moscovo, e aquela fora vencida por Böhler e pelo professor Pavlovich. — Também lhe digo que vais lá amanhã. — Vai ficar feliz, Ivanov. — Acredito que sim. Vorotilov subiu para o jipe, onde o esperava Kresin. Fez um último gesto à médica. — Ela julga que ele vai ficar na Rússia — disse em voz baixa ao médico. — Se chega a saber que o vamos buscar porque foi libertado… — Absolutamente impossível — objetou Kresin, com os lábios crispados. — Mata-nos a todos com cianeto. Em Estalinegrado, aconteceu tudo muito depressa. Vorotilov, que já não tinha consideração nenhuma pela reputação do velho professor interpelou-o violentamente, antes que o outro pudesse defender-se, enquanto Kresin corria pelos corredores, afastando os médicos aos encontrões e abrindo as portas uma atrás da outra. Sellnow estava a ler no seu quarto, muito soalheiro, com uma varanda que dava para o jardim, e virou-se, admirado. A porta tinha-se aberto bruscamente e Kresin abria-lhe os braços. — Werner! — gritou, radiante de alegria. — Meu filho! Aqui estamos! Correram um para o outro e abraçaram-se, o russo e o alemão, agarrando-se como se estivessem ébrios, batendo nas costas um do outro. — Kresin — balbuciou Sellnow, emocionado. — Está aqui! Julguei que nunca mais o tornaria a ver! — Vorotilov também veio! — gritou Kresin empurrando Sellnow para uma cadeira. — Está a insultar o macaco velho… Já aí vem! Já o ouço! Correu para a porta. — Aqui, Ivanov — gritou. — Está aqui! Vem, meu irmão! Larga esse macaco e anda cá! O major entrou no quarto, ergueu Sellnow e beijou-o nas duas faces. Menos loquaz que Kresin, limitou-se a apertar-lhe a mão em silêncio, tentando dizer daquele modo tudo quanto a emoção o impedia de expressar. Naquele momento, Tai Pavlovich apareceu à porta. O professor, com o rosto mais amarelo que nunca e descomposto pela fúria, empunhava uma pistola. — Fora! — gritou. — Estes domínios são meus! É um Hospital do Estado! Mandei chamar a
MVD. Refugos humanos! Porcos soldados! Filhos da puta! Vorotilov soltou uma gargalhada, virou-se e, com uma pancada seca no braço, desarmou o velho. O professor desapareceu, e depois ouviram-no no corredor a chamar os médicos. Kresin também saiu, agarrou no primeiro telefone que encontrou e pediu ligação para o comandante da Divisão de Estalinegrado. Enquanto Pavlovich esperava a chegada dos funcionários do serviço secreto, Kresin comunicou o que se estava a passar no hospital. — O médico alemão é prisioneiro do nosso campo — declarou. — De Moscovo ordenaram o seu repatriamento, já lhe deram até um número de transporte e se souberem que foi detido e escondido por um médico russo, vai haver um drama em Estalinegrado. Além disso, se eu informar Moscovo de que… — Leve o homem — disse o general. «Informar Moscovo…» era uma fórmula mágica, temida por todos, qualquer que fosse o seu posto ou cargo. Satisfeito, Kresin desligou, regressou ao quarto e abraçou Sellnow. — Levamos-te connosco, rapaz — disse ele. — Acabo de telefonar ao general. No campo esperam-te quatro postais da tua mulher, algumas encomendas e tudo o que possas desejar. A bagagem de Sellnow não constituiu problema, uma vez que só tinha a roupa do corpo. — A Aleksandra sabe? — perguntou. — Do teu regresso? Não. Vai ficar louca quando te vir chegar. — E das cartas e das encomendas? E da minha mulher? — Não. Vorotilov não disse nada a ninguém. — Terá de saber. — Sim, mas depois de partires. — Depois de eu partir? — perguntou Sellnow, olhando de um para outro. O que viu nos olhos deles fê-lo tremer. — Mas o que se passa? Falem! — Vais-te embora na primavera, Werner… Para a tua pátria… Já tens número de transporte. Sellnow empalideceu, fechou os olhos, cambaleou e teve de se encostar a uma cadeira. — Para a Alemanha! — balbuciou. — Vamos ser libertados! É verdade? Depois de oito anos! — É. — E o doutor Böhler? Kresin olhou para Vorotilov. — Também — mentiu. — Então, vamos todos? — Sim. — O Schultheiss também? — Também.
Sellnow limpou os olhos. — Não consigo acreditar — balbuciou de novo. — Vou voltar a ver a minha mulher, as minhas filhas? Sair deste inferno? — Já começa outra vez a ser insolente! — observou Kresin a rir. — Diz que a nossa mãe é um inferno, o que indica que está curado. Que diabo! Vai fazer-me bem ter alguém no campo com quem possa praguejar. Aquilo é muito aborrecido sem si, Sellnow. Sempre a rir, saíram para o corredor, onde quase chocaram com o professor Pavlovich, que olhou a muralha de batas brancas que tapava a passagem, um pouco mais longe, para se tranquilizar. Todos os médicos do hospital se tinham reunido e seguiam os acontecimentos, assombrados, — Detenham-nos! — gritou Pavlovich, proferindo em seguida ameaças e maldições numa língua asiática desconhecida. O médico-chefe deu um passo para Kresin e olhou-o de cima a baixo, tentando manter um tom cortês. — Um momento, por favor — disse, inclinando ligeiramente a cabeça. — Só um general-médico pode permitir a saída deste doente, e não recebemos nenhumas instruções. Kresin riu ameaçadoramente. As suas gargalhadas soaram no corredor e fizeram Pavlovich retroceder dois passos. — Camarada médico-chefe — replicou, de bom humor —, se tens cabeça e desejas conservá-la deixa-nos passar, meu irmão. Informa-te com o general… e só por isso receberás uma boa repreensão. Ou preferes que informe Moscovo de que o médico-chefe de Estalinegrado ousa deter um homem que já recebeu o seu número de transporte para a Alemanha? Queres que faça isso, meu irmão? Vão mandar-te para os pântanos, com um bom chuto no rabo. Quanto ao professor, hão de bater-lhe tanto na cabeçorra que julgará que é uma bigorna. Sê razoável, camarada, e deixa-nos sair! Caso contrário, vais-me perdoar, meu irmão, mas parto-te a cara… Ninguém me vai impedir, nem criticar mais tarde. E Kresin continuou a avançar… O médico-chefe afastou-se, a muralha de batas abriu-se… Vorotilov e Sellnow passaram sem dificuldade e chegaram à porta, mas Kresin ainda se virou para estender a mão ao médico-chefe, que continuava embasbacado. — És um tipo inteligente — disse-lhe com amabilidade. — Tens boa cabeça e melhor coração. Um dia serás um excelente médico. Lembra-te de mim, meu irmão. Os gritos histéricos do velho tártaro ainda se ouviam quando a porta se fechou atrás deles. Refletia-se na neve um sol que cegava. Passavam trenós, fazendo tilintar os sinos no ar frio. Passavam camponeses chegados dos kolkhozes do Volga, com o gorro de peles caído sobre os olhos, levando penduradas na ponta do cajado as compras feitas na cidade. A estrela dourada dos sovietes brilhava no alto da torre e as estátuas de gesso de Lenine e de Estaline contemplavam a praça com dignidade.
— Como se não tivesse havido guerra nenhuma! — observou Sellnow, pensativamente. — Também nós gostaríamos de a esquecer — respondeu Vorotilov, puxando, com um gesto cansado, o gorro de peles para os olhos. — Mas será que é isso que querem em Moscovo? Acho que não pensamos suficientemente no homem.
Ao reencontrarem-se, os dois médicos alemães não se entregaram a grandes demonstrações. Böhler estendeu as mãos a Sellnow e apertou as do camarada com emoção. — Estou muito feliz, Werner — disse, com voz algo trémula. Depois examinou o amigo demoradamente. Os cabelos não tinham crescido em toda a parte, vendo-se claramente o sítio onde tinha sido feita a trepanação. — Obrigado, Fritz — disse Sellnow, em voz muito baixa —, obrigado por tudo. Nunca te esquecerei. Alegra-me a alma saber que vamos regressar todos à pátria. — Sim, Werner. Böhler olhou rapidamente para Vorotilov, que abanou negativamente a cabeça. Portanto, Sellnow ignorava a verdade, mas era preferível deixá-lo naquele erro. Schultheiss, que estava ali de olhos brilhantes, reparou naquele olhar e ficou inquieto. — Sinto-me muito bem, Fritz — continuou Sellnow. — Até já digo palavrões. Só ainda tenho este buraco na cabeça. — Soltou um riso forçado. — A pouco e pouco, vou perdendo toda a minha viril beleza. — Na Alemanha, fazem-te uma plástica — consolou-o Böhler, batendo-lhe no ombro — e depois até vai parecer que desceste do Olimpo. Sellnow foi depois ao quarto de Aleksandra Kasalinskaya. Depois das naturais manifestações de efusão, sentou-se na cama dela e acariciou-lhe o rosto e os ombros, pensando nos quatro postais escritos pela mulher e nas encomendas, tudo em poder de Vorotilov, o que consistia a sua última salvação. A sua paixão pela médica esmorecera muito, depois da última vez que tinham estado juntos, da operação e da lenta convalescença. Ao acariciar aquelas formas antes amadas, era como se reencontrasse uma bonita recordação, misturada contudo com uma réstia de desejo. Os pensamentos que alimentara na Fábrica Outubro Vermelho, numa sucessão de vertigens, estavam muito longe do ideal. Sellnow sabia que conheceria de novo momentos parecidos, que não havia maneira de escapar àquele amor senão esperar o dia da partida para a Alemanha, mas nem sequer ousava pensar no que aconteceria então a Aleksandra. Para aquela criatura apaixonada, seria o golpe fatal, o último eco da tragédia mundial. Mais tarde Aleksandra contou-lhe a morte de Yanina. — Morreu de amor — concluiu, tristemente.
— O que farias tu se eu partisse? — Matava-te… mas não me suicidava depois. — Que loucura, Aleksandrachka! Se me matasses, é que me perderias de vez. — Exatamente — respondeu com um sorriso que pareceu, a Sellnow, o de uma fera insaciável. — Mas ninguém teria mais nada de ti, nenhuma mulher, nem Alemanha nem aqui. Tu és meu e só meu, Sacha… Só meu. — Beijou-lhe os olhos. — Mas não te deixarão partir… Ainda estás doente e ficarás muito tempo ao meu lado, Sacha… Sempre. Sellnow calou-se. No dia seguinte de manhã, Kresin chamou Vorotilov e Kasalinskaya. Sentado no seu cadeirão, como um deus vingador, nada fez para dissimular os estalidos da sua voz. — Trabalhar com mulheres é pior do que guardar pulgas num saco! — gritou. — Esse porco do Mikhail acaba de me suplicar que faça abortar Bacha. Está grávida de quatro meses! Com todos os diabos do inferno! Interroguei-a. «O Mikhail é o pai?» E sabem o que a porca me respondeu? «Não sei, meu irmão. Tive relações com muitos plennis. Com o Mikhail também, mas é um molengão que não presta para nada… Ao passo que os alemães…» Foi o que me disse aquela cabra! Dei-lhe uma bofetada! Depois pedi-lhe todos os nomes. «Oh, camarada médico-chefe! Vou precisar de uma tarde inteira para preparar a lista.» Um escândalo. Isto não é um campo de prisioneiros, é um bordel! — O tenente Markov está na lista? — perguntou Vorotilov. — Há muito tempo. — Como? Também ele? — E o que pensa dos soldados da guarda? Acho que todos conhecem a Bacha. — Um bordel militar — troçou Kresin. — Fora com as mulheres! — Eu também sou mulher — observou Kasalinskaya. — Tal como a Tchurilova. — Fora também! — gritou o médico. — O que tem feito com o Sellnow é punível. — Doutor Kresin, proíbo-o…! — Acalme-se, Aleksandra — interveio Vorotilov. — Não vamos discutir coisas que são do conhecimento de todos. Neste momento, trata-se da Bacha. O Kresin recusou-se a provocar o aborto. — Antes me transformava em porco! — gritou Kresin. — A Bacha deve trazer o filho ao mundo, e Mikhail terá de casar com ela. Assim vai vigiá-la melhor! Quanto a esses porcos — bateu com o punho na lista dada por Bacha —, vão ter notícias minhas. Gostava de os castrar. — Alto! — exclamou Kasalinskaya a rir. — Porque há de castigar as mulheres, meu irmão? Kresin ficou desconcertado e depois bateu na coxa. — Maldita mulher! — exclamou. — Então, o que se há de fazer? — Vou falar com a Bacha — concluiu Kasalinskaya, levantando-se. — Não lhe vais fazer um aborto? — Não, acalme-se. Vou pedir que a transfiram.
— E se o pai for alemão? Isso pode trazer-nos complicações em Moscovo. — Quem poderá provar que se trata de um alemão? Não diz o camarada comandante que a lista inclui oficiais…? Kresin levantou-se e empurrou a lista com as costas da mão. — Comer, beber e fornicar são as únicas coisas que aqui se podem fazer! Resolvam as vossas porcarias a sós… Não vi nada nem sei nada. Saiu, fechando a porta com violência. A notícia correu como rastilho de pólvora e todo o campo veio a saber que Bacha estava grávida. O cozinheiro não voltou a sair, para evitar as troças de que era alvo, mas Hans Sauerbrunn conseguiu falar-lhe e transmitir-lhe as felicitações coletivas dos outros pais. Mikhail atirou-lhe uma panela à cabeça, jurando que estrangularia Bacha antes que ela desse à luz um filho. Era uma ameaça horrível, da qual melhor teria feito em abster-se, porque depressa se converteu em realidade. Naquela mesma noite, encontraram Bacha debaixo da escada que ligava a cozinha à cave. O vestido estava roto nas costas e manchado de sangue, e na virilha esquerda tinha uma enorme ferida feita com uma grande faca. Quando Kresin a encontrou, a desgraçada já estava morta. Tratava-se sem dúvida de um assassínio, puro e simples. O major Vorotilov não hesitou: fechou o campo, dobrou a guarda e telefonou para Estalinegrado, a fim de obter ajuda da MVD. Naquela mesma noite, todos os plennis cujos nomes apareciam na lista de Bacha foram arrancados dos respetivos catres e encerrados no pavilhão disciplinar, então vazio. Todas as regalias foram eliminadas, o campo retrocedia vários anos. Ninguém voltou a falar de repatriação. Böhler e Sellnow fizeram logo a autópsia, estabelecendo que o crime devia ter sido precedido por uma luta encarniçada. Kresin olhou para Vorotilov com os olhos raiados de sangue. — Não se trata só de Bacha — disse-lhe em voz tão baixa que todo o mundo percebeu que eram coisas perigosas —, trata-se também da honra russa… Uma mulher do nosso povo foi violada e assassinada e o culpado, quer seja um dos nossos, quer um plenni, deve ser enforcado. Böhler tirou as luvas enquanto Sellnow fazia uma sutura rápida. Lavou as mãos e voltou-se para Kresin. — Como pretende agir? — perguntou. — Se alguém conhecer o assassino, não o trairá. Por onde quer começar as investigações? Pelos homens da lista? Quem lhe diz que não se trata de um homem da guarda? Como e onde poderiam os prisioneiros encontrar uma faca tão grande? — Encontrarei o assassino — afirmou Kresin, obstinado —, nem que tenha de vergar essa gente com medidas rigorosas, até ao ponto de estarem dispostos a denunciar o próprio pai. Durante a noite, chegaram ao campo três comissários da MVD. O cadáver foi novamente
examinado e os prisioneiros do pavilhão disciplinar interrogados. Contudo, assim que se soube que Bacha se metia na cave ou no armazém das batatas e se oferecia a todos, gritando: «o próximo», os comissários encerraram as investigações e mandaram os plennis para os seus pavilhões. — A pequena Bacha era, de facto, uma porca — concordou Kresin, encolhendo os ombros —, mas quem a matou? Acusaram Mikhail, mas o cozinheiro atirou-se ao chão, suplicando à Virgem de Kazan e ao arcanjo São Miguel, ao mesmo tempo que gritava a sua inocência. — Eu disse aquilo só por dizer, meu irmão! Nunca pensei matá-la. Acreditem em mim, camaradas! Eu gostava da minha pequena Bachachka! Antes me teria morto a mim, meus irmãos! Os comissários voltaram para Estalinegrado, todas as restrições foram levantadas e a vida voltou à normalidade. Bacha foi sepultada com solenidade e tiveram de fazer um enorme esforço para que Mikhail não se atirasse para a sepultura. Markov agarrou-o com força, mas depois deu-lhe um pontapé no rabo. Do chão, o homem via três plennis encherem a cova de terra. O homicídio de Bacha nunca chegou a ser esclarecido, apenas se conseguiu estabelecer que não se tratava de um plenni, pois efetuaram-se interrogatórios minuciosos nos pavilhões, seguidos de investigações. O assassino devia ser um dos mongóis ou quirguizes que guardavam o campo, e talvez se tratasse de um crime passional, ou então o culpado temia ser indicado entre os amantes. Correu o rumor de que fora tenente Markov, o que, sem dúvida, era uma abominável calúnia. Oito dias depois estava tudo esquecido e a vida continuava. Depressa o sol sairia de entre as nuvens para derreter a neve. A primavera chegaria e, com ela, a partida para a pátria! Vorotilov recebeu finalmente novas ordens de Moscovo, o que o fez soltar um suspiro de alívio. Ordem número um: preparar novas listas de repatriação, incluindo os prisioneiros que tivessem sido distinguidos por serviços não especializados, mas homens bem alimentados, que pudessem dar na Alemanha a impressão de que os prisioneiros eram bem tratados; proporção: três quartas partes de plennis domiciliados na zona soviética. Dois dias depois da chegada desta ordem, o tenente Markov introduziu no escritório do comandante o plenni Walter Grosse e voltou a sair apressadamente. — Que queres? — perguntou Vorotilov, admirado. Grosse aproximou-se da mesa. Estava pálido, envelhecido e o seu corpo seco não parava de tremer. — Conhece-me, senhor comandante? — Sim, tu eras o nosso informador, não é verdade? Aquele que quiseram afogar nas latrinas. — Sim. O antigo dirigente político de Estugarda baixou os olhos, agitando as mãos ao falar. — O que queres, Grosse?
— Perguntar-lhe se também vou ser repatriado. — Não te posso dizer. Os teus camaradas também não sabem. Estão todos à espera… espera tu também com eles. — Prometeram-me que seria um dos primeiros — balbuciou. — Disseram-me: «Serás logo mandado para casa, se aceitares ser nosso informador farás parte do primeiro grupo; caso contrário, não nos esqueceremos de que foste dirigente político e encostamos-te à parede, assim como à tua família. Não duvides disso.» Foi o que me disseram, senhor comandante. Tenho mulher e quatro filhos e, por isso, tornei-me informador, até que me deitaram às latrinas. O doutor Böhler salvoume… E agora que começam as repatriações, já não aguento mais! É injusto! E ignóbil! Prometeramme todos, senhor comandante. Disseram-me: «Serás logo mandado para casa, se aceitares ser nosso informador. E…» — Já disseste isso. — Repetiram-no cem vezes e apanharam-me ali, no campo de Poltovichi… Os oficiais bateramme na cabeça com os chicotes, depois amarraram-me ao estribo de um cavalo e fizeram-me dar a volta ao pátio até me obrigarem a dizer que sim. E eu disse, tenho mulher e quatro filhos na Alemanha… Prometeram-me… E agora não me mandam? — Não te posso dizer nada — disse Vorotilov, levantando-se. — As listas serão aprovadas definitivamente em Moscovo. — Então recomende-me a Moscovo! — Cambaleou e encostou-se à parede. — Cumpri a minha palavra… Traí os meus camaradas, entregando-os ao carrasco… Tornei-me lixo, um cão maldito, porque acreditei nas promessas, porque queria voltar para a minha mulher e para os meus quatro filhos. Fiz tudo o que quiseram… e vocês não cumprem as promessas, quando eu cumpri as minhas? São uns porcos! Começou a dar socos na mesa, enquanto Vorotilov o contemplava, impassível. — Quero voltar para casa! — gritava. — Quero o que me pertence! — Já to deram — respondeu Vorotilov, friamente. — Comeste merda. Que mais queres? — Senhor comandante… — Grosse caiu de joelhos, batendo na mesa com a cabeça. — Fiz tudo isto porque tinha medo e queria viver. Era tão cobarde, tão cobarde! Traí os meus camaradas e vendi-me para voltar para casa. E vocês deixam-me aqui? Vão-se todos embora e fico eu? Não vou sobreviver! Farei como o Kerner. Mato-me. Vorotilov olhou pensativamente para o homem caído. Sem dúvida, Walter Grosse estava no fim das suas forças, preferia a morte a ver prolongado o cativeiro, ainda que fosse um ou dois anos. O comandante sabia que aquele homem não estava na lista, tinha sido ele próprio a tirá-lo de lá, mas um novo suicídio teria mau efeito em Moscovo. O do cabo Julius Kerner já atraíra as atenções para o campo. — Vou falar com Moscovo — disse evasivamente. — Vai-te agora, Grosse. Vou intervir a teu
favor, mas és um cão e sabes isso. Para nós, o informador é um ser tão vil, sobretudo o que cumpriu a sua tarefa, que apenas serve para morrer. Lembra-te disto, Grosse, e se voltares à Alemanha trabalha como um animal. Tens muito de que ser perdoado. Walter Grosse levantou-se devagar e saiu sem olhar para o comandante. Percorreu o corredor a cambalear, saiu e chegou à grande praça onde estavam a passar revista. De repente parou, voltou-se com ar admirado, como se alguém lhe tivesse tocado nas costas, e despenhou-se de cabeça na neve. Uns plennis que passavam por ali levantaram-no. O seu corpo estava rígido como um madeiro, os olhos vidrados e a boca aberta como se quisesse formular uma pergunta. Levaram-no para a enfermaria. Sellnow foi o primeiro a examiná-lo e enrugou o semblante. — Caiu para a frente, sem mais nem menos. Ali, na praça — disseram os plennis, deixando sobre a cama o homem inanimado. — É um porco que nos denunciava. Deixe-o morrer em paz. Böhler e Schultheiss chegaram. — Apoplexia — disse o primeiro, depois de um breve exame. — Paralisia de todos os centros, é um milagre estar vivo… Ainda respira, mas todas as outras funções estão paralisadas. Temos algum meio de ação, Schultheiss? — Não, doutor. Só temos medicamentos correntes: cânfora, estrofantina, cardiazol. Quase não se encontra nada na farmácia de Estalinegrado, ou então especialidades americanas, cujo uso clínico desconhecemos. Böhler olhou com pena para Walter Grosse. Sabia que o homem conseguia ouvir e compreendia o que se dizia à sua volta, mas não era capaz de se expressar, exceto pelo sentimento de pavor que se lhe lia nos olhos. — Vamos safá-lo — disse para o consolar. — Voltarás a andar antes de o comboio partir. Deixou-o aos cuidados de Martha Kreuz e, ao sair, perguntou a Sellnow: — Que acha, Werner? — Não há nenhuma esperança. — E você, Schultheiss? — Não temos meios de fazer alguma coisa. Também julgo que não há esperança. — Em dez anos, é a primeira vez que não podemos socorrer um camarada — observou Böhler, em tom grave. — E logo ele, que tanto precisa de se redimir! Deus bate depressa e forte, devemos procurar que continue connosco e não nos esqueça. — Vamos dar-lhe injeções de glicose para reforçar a resistência interna — disse Schultheiss. Sellnow não respondeu. Pensava nas noites de Nizhni-Balyklei e na velha Bíblia na qual tentara encontrar Deus, no mais fundo da sua miséria. Ele, o trocista, o que negava, descobrira o caminho que conduz à verdade, embora não o tivesse seguido durante os últimos meses no Hospital do Estado de Estalinegrado. Depois, agarrou de repente o médico jovem pelo braço. — Também regressas à Alemanha, Schultheiss?
— Espero que sim. — Não vamos perder o contacto nunca, pois não, rapaz? O que vamos lá encontrar? Muitas coisas devem ter sido destruídas durante os últimos meses da guerra. Não sei o que te espera, mas, se tiveres as dificuldades que nunca deixam de surgir a um médico jovem, como eu muito bem sei, vem ter comigo quando quiseres. A minha mulher escreveu-me e diz que continua tudo como dantes na minha casa. Tive sorte na Alemanha, e ainda mais aqui. — Muitíssimo obrigado, Herr Von Sellnow — disse Schultheiss, estendendo-lhe a mão, mas o outro fugiu com a sua e respondeu: — Deixa-te de sentimentalismos. Na vida só avança o que não hesita em afastar os outros a pontapé. Lembra-te disto. Entrou no quarto, onde Kasalinskaya lhe passajava as peúgas. Viu nisso uma humilhação para ela, mas nada disse, compreendendo que Aleksandra tinha prazer em fazer aquilo. Já imagina que é minha mulher, pensou, assustado. O que vai acontecer quando eu subir para o camião que me levará daqui para sempre? — Sacha — disse Kasalinskaya a sorrir. — Falei com o general, em Estalinegrado. Vou a Moscovo pedir que te deixem aqui. Deve haver alguma forma… se aceitares tomar conta de uma clínica russa. Aceitas, não é verdade, Sacha? Sellnow sentiu que se lhe formava um nó na garganta, e fez um gesto de concordância com a cabeça. — Sim — disse finalmente —, aceito. Vai a Moscovo. Viu o brilho de felicidade nos olhos da mulher. Senhor, ajuda-me, rogou em silêncio. Que devo fazer? Mentir-lhe? Oxalá a primavera venha depressa, muito depressa. Não tenho coragem para a enganar durante muito tempo. Chegaram novas ordens de Moscovo: o número de repatriações devia ser aumentado em duzentos e cinquenta e nove homens, sem interrogatórios, mediante simples proposta do comandante, e Vorotilov aproveitou para inscrever o nome de Walter Grosse, apenas um corpo que respirava, mas apesar disso, um pai de quatro filhos. Quando o sol chegou finalmente, o correio ficou interrompido e os postais reexpedidos para a central de Moscovo. Seiscentos e oitenta e três plennis receberam roupa interior, calças e casacos, reunindo-se depois, num enorme quadrado, na praça onde se passava revista. Seiscentos e oitenta e três plennis, vestidos com roupas novas… Vorotilov, Markov e outros sete oficiais; colocados no centro, leram novamente as listas. Cada «presente!» subia ao céu azul como um grito de liberdade. O sol brilhava e a neve, já branda, colava-se como argila aos sapatos e às rodas dos carros. No Volga, o gelo derretia, com grande ruído, e sete equipas de trabalhadores abriam um canal, com varapaus e explosivos. Era a primavera… Apenas se sentia um sopro vindo da estepe, mas as
árvores voltavam a erguer-se, a terra despertava, nos kolkhozes preparavam-se os tratores, as mulheres cosiam sacos… Depois de ter gritado o seu «presente!», o plenni já não via Vorotilov. Estava na sua casa, para além de onde a estepe beija o céu, onde o Volga se perde no azul, para além de Estalinegrado, longe, muito longe, no Ocidente. Gritaria ao ver a primeira casa alemã? Será que iria balbuciar a primeira inscrição alemã, em qualquer lugar, numa tabuleta, numa estação, num campo…? Que fariam quando as mulheres alemãs corressem para receber o comboio? Mulheres! Depois de oito anos! Vorotilov entregou as listas a Markov depois de as ter lido e olhou para os homens que o rodeavam. Viu rostos ossudos, marcados pela fome e pela miséria, alguns demasiado inchados… Edema da fome…, pensou. Bastaria empurrá-los para caírem. As colunas dos camiões esperavam à frente do campo, junto aos montes de bagagens: sacos, improvisados na maior parte, caixas de cartão obtidas na cozinha e até doze cantis. Um capitão aproximou-se de Vorotilov. — Já acabou, comandante? — perguntou. — Os homens devem sair hoje de Estalinegrado, para chegarem a Moscovo com os plennis dos outros campos. Não temos tempo a perder. — Sim, já está tudo pronto. Uma vez mais, Vorotilov olhou para as filas: Peter Fischer… Emil Pelz, o enfermeiro… Hans Sauerbrunn… Karl Georg, o jardineiro… Schultheiss, o médico alto e louro, por quem Yanina dormia o sono eterno à beira do grande bosque… Von Sellnow, pequeno, nervoso, inquieto, olhando, assustado, à volta, como se procurasse algo… Todos partiam e o campo ficaria muito triste sem eles. O comandante teve a impressão de que perdia irmãos, que se afastavam para sempre. — Adeus! — gritou com a voz um pouco embargada. — E não se esqueçam, ao regressarem às vossas casas, de que devem a vossa liberdade ao grande Estaline, pai de todos os povos! Os plennis baixaram os olhos, sem responder. Vorotilov voltou-se. — Levem-nos para os camiões em grupos de cinquenta e afastem-se do campo, para que nenhum deles contacte com os que ficam. Depois foi a passo rápido para o edifício do comando. Acabava de tirar o gorro quando a porta se abriu violentamente e Sellnow apareceu, muito pálido. — Onde está o Fritz? — perguntou. — Qual Fritz? — perguntou Vorotilov, para ganhar tempo. — O doutor Böhler. — Na enfermaria, imagino eu. — Porque não está connosco? Também é repatriado, não é verdade? — Não — disse o comandante, em voz muito baixa. Sellnow não compreendeu logo. Era algo tão espantoso, tão brutal, tão inimaginável, que ficou imóvel durante um longo momento, antes de recuperar, como se tivesse sofrido um choque.
— Tinha-me dito que o Böhler partia connosco! — exclamou num tom desesperado. — Enganoume, Vorotilov! Sabia que ele ficava! E eu tenho de ir, de o abandonar… E o Schultheiss também vai… Ele também achava que o Böhler vinha connosco… Miserável! Canalha asiático! Vorotilov inclinou-se para saltar, mas conteve-se. Olhando fixamente Sellnow nos olhos, falou com lentidão: — O doutor Böhler foi um dos primeiros inscritos na lista, mas a sua obstinação incompreensível, a sua exagerada ideia do dever, obrigaram-me a cortá-lo. E por causa de quem? De um nazi, de um porco, de um assassino das SS! Sellnow estremeceu. — Fica na Rússia! Porquê logo o Böhler, quando eu… eu…? — Deu rapidamente uns passos em frente, agarrou Vorotilov pelo dólman e gritou: — Eu também fico! Não vou antes dele! Esperarei! — É impossível, Sellnow — respondeu Vorotilov, soltando-se. — Todos os que estão na lista têm de partir, quer queiram quer não. — Então vou matar alguém, e vai ser obrigado a reter-me. — Engana-se, será levado na mesma para Moscovo… São essas as ordens. Mesmo que matasse cem pessoas, iria, porque o seu nome está na lista e querem vê-lo lá, independentemente do que lhe possa suceder. — Eu resisto. — Então será atirado à força para o camião. Irá para a Alemanha, mesmo que não queira, é a ordem de Moscovo. Ninguém pode infringi-la, temos de lhe obedecer. Sellnow saiu à pressa. Já andavam à procura dele junto aos camiões e, naquele preciso instante, Markov perguntava a Schultheiss onde estava o outro médico. Ao vê-lo sair do edifício do comando, o oficial saltou sobre ele e agarrou-o por um braço. — Davai! — gritou. — Davai! — Não me vou embora sem o doutor Böhler — gritou Sellnow; libertou-se e foi a correr para Schultheiss, que tinha empalidecido. — Ele fica! — soluçou. — Não vem connosco, abandona-nos. O nosso chefe, o nosso Fritz! Fica na Rússia, junto ao Volga…! Depois desmaiou e dois plennis levaram-no para o camião. Schultheiss subiu para o camião como um sonâmbulo, enquanto um oficial russo, sentado na cabina do condutor, resmungava por causa do atraso. O tenente Markov correu ao longo da coluna, para mandar carregar os volumes. Apinhados contra as cercas, os que ficavam contemplavam os camaradas e faziam-lhes os últimos gestos. Pareciam desesperados, abandonados na orla da estepe… Emil Pelz e Karl Georg chegaram, arrastando entre ambos Walter Grosse, que chorava lágrimas gordas. Umas mãos calosas estenderam-se para os ajudar a subir. Walter Grosse era para sempre um dos seus, um plenni que voltava para casa para se juntar à mulher e aos filhos, um homem que saía do inferno e entrava numa vida nova.
Kresin estava na enfermaria, pálido, e parecia cansado: há horas que não dizia uma só palavra. Terufina Tchurilova, Ema Bordner e um novo enfermeiro agarravam Kasalinskaya, que acabou por ter de ser amarrada à cama com cordas fortes, ficando apenas com as pernas livres, que agitava fortemente. — Soltem-me! — gritava. — Soltem-me! Vou matá-lo e depois mato-me! Vou matar o Vorotilov, e a ti também, Kresin, embusteiro, porco! Enganaram-me todos! Todos sabiam! Werner, Werner, não vás! Não me deixes sozinha, Werner, Werner! Espumava da boca e o seu corpo vigoroso agitava-se em espasmos violentos. Kresin agarrou numa seringa e inclinou-se para o braço atado. O Evipan ia fazê-la dormir e esquecer durante várias horas… Quando tirou a agulha, viu que grandes lágrimas corriam pelas faces de Aleksandra. Respirou: Está a chorar, pensou. O sofrimento maior já passou. A recordação de Yanina e do túmulo solitário, à volta do qual uivavam os lobos, vinha-lhe à memória. Deixou a seringa na mesa e saiu. Um pouco mais tarde, contemplou da sua janela a coluna de camiões. Também ele se sentia invadido por um extraordinário sentimento de abandono e de solidão. «Vou para o Sul», disse. «Porque me terá dado Deus uma sensibilidade russa?» Os primeiros motores roncaram, cobrindo com o seu ruído os gritos dirigidos aos prisioneiros que ficavam atrás das cercas. Centenas de braços se agitaram… Da sua janela, Vorotilov respondia e o próprio Markov levantou o braço em saudação quando Karl Georg, o inimigo, passou à sua frente. — Diz olá por mim às flores da Alemanha — gritou. Uma brisa cálida soprava nos bosques, fazendo com que as últimas neves caíssem dos ramos e os abetos erguiam-se, verdes, para o céu azul. Nas torres, as sentinelas também faziam gestos de despedida. Poderia até pensar-se que se tratava da separação de velhos amigos, ligados por extraordinárias provações vividas em comum. Os primeiros camiões enveredaram pela estrada de Estalinegrado e desapareceram atrás do bosque. Von Sellnow estava agachado na traseira de um deles, firmemente dominado por Schultheiss e Peter Fischer. Tentara saltar para o chão, com o camião já em marcha, e naquele momento via como o campo se afastava. Uma cerca alta de arame farpado, tão comprida que parecia circundar toda a estepe. As torres eram como manchas negras, com projetores, metralhadoras… O edifício do comando, a grande cozinha, a enorme porta de entrada com o número do campo e uma frase de Estaline. Os aposentos dos soldados; depois, os pavilhões dos plennis, bloco atrás de bloco… A nova enfermaria, com a base de pedra… A quarta janela da direita pertencia ao quarto de Von Sellnow; a seguinte, ao de Schultheiss; as outras três à sala de operações. E a janela onde havia flores? Ao de Aleksandra Kasalinskaya, monstro, uma mulher ímpar, gata selvagem… Que cobarde e miserável fui! Abandonei-te sem te dizer adeus, como um ladrão, a ti, que me amaste com todas as forças…
Perdão, Aleksandra, perdão… Tenho mulher e duas filhas… Esperam-me há oito anos… Marika, alta, loura, aristocrática. Pertenço-lhe para sempre. Não posso mudar. Esquece-me… Também te esquecerei… Sellnow continuava a olhar. Ali, atrás daquela janela, cujas cortinas eram feitas com gaze para tratamentos, estava o quarto de Böhler. O quarto onde terá de permanecer, durante anos, na estepe, entre os seus plennis doentes, que o amam como a um pai… E escreverá aos seus: «Paciência. Também eu hei de regressar. Não percam a coragem nem a fé… Deus há de devolver-me àqueles que amo.» E partiria connosco se tivesse podido esquecer, por uma vez na vida, que é médico e não se tivesse oposto à ordem do comissário! — Fritz! — gritou Sellnow, estendendo os braços na direção da enfermaria. — Fritz! Schultheiss e Fischer agarraram-no com mais força. Chorando como uma criança, viu o campo desaparecer na neve, na estepe, no bosque, no azul do firmamento, reanimado pela primavera. Sobre o gelo do Volga, os trabalhadores deixaram um instante a sua tarefa para saudarem os que partiam. — Boa viagem, camaradas! — Saúdem a Alemanha por nós! — Mandem-nos encomendas, camaradas! Viveremos se nos alimentarem! — Não nos esqueçam, camaradas! Não nos esqueçam! Dos camiões, os seiscentos e oitenta e três homens respondiam, incluindo os guardas. — É primavera, camaradas! Vamos para a Alemanha! Cantaram, com lágrimas nos olhos. Um oficial quis mandá-los calar, mas ofereceram-lhe cem cigarros alemães, e então pôs-se a rir. — Cantem, então! — disse-lhes. — Também nós cantámos ao voltar dos campos alemães. Pusemos um retrato de Estaline no capô e enfeitámos os camiões com bandeiras vermelhas. Deixemo-los cantar, camarada tenente. Schultheiss olhava para a estrada. Junto ao bosque, ao pé dos abetos gigantescos, encontrava-se a sepultura de Yanina, que morrera por amor. Jazia para sempre na imensidão russa, pobre corpo gelado, tão quente e suave quando amava! Schultheiss sabia que a sua juventude e o seu coração ficavam naquele pequeno túmulo, perto do bosque. — Chegamos à Alemanha dentro de quatro semanas, se tudo correr bem — informou um plenni. — Quatro semanas? — Ou seis. Aqui, estamos no outro extremo do mundo, e ainda temos de passar por Moscovo. Digamos, seis semanas, camaradas. O que eram seis semanas?
Quando o último camião se afastou, o major Vorotilov voltou à sala de cirurgia. Martha Kreuz e Ingeborg Waiden ajudavam Böhler, que estava inclinado sobre um doente. O médico olhou de relance para o comandante e continuou o seu trabalho. Estupefacto, Vorotilov deteve-se um momento, avançando depois devagar, como sempre atordoado pelos vapores do éter e pelo cheiro a sangue e a pus. Entre panos ensanguentados, viu uma barriga aberta. Com uma grande pinça, Böhler extraía o núcleo de um tumor dos tecidos musculares. Vorotilov pigarreou. — Já se foram embora — anunciou em voz muito baixa. Böhler levantou os olhos. — Foi muito difícil para o Werner? — perguntou. — Muito. Tivemos de usar a força. — Agradeço-lhe, Vorotilov. — O senhor não se despediu de ninguém? Böhler inclinou-se de novo para o doente. — Este abcesso na barriga era mais importante. O homem torcia-se com dores, tinha de o ajudar. — Ajudá-lo! Quando vai pensar em si? — perguntou Vorotilov, agarrando o médico pela manga. — À noite… Todas as noites regresso a casa, à Alemanha… O dia é apenas uma interrupção dos meus sonhos. Vorotilov saiu sem falar. Quando já tinha fechado a porta, Böhler parou por um instante: pela primeira vez, o instrumento tremia-lhe na mão.
Três anos depois, numa estrelada noite de inverno, Böhler atravessou, por sua vez, o limite da Zona Oriental. Pisava de novo terra da sua pátria, era um dos últimos a regressar das margens do Volga. Emocionado, disse umas palavras de gratidão. Na noite fria brilhavam alguns archotes, as aclamações de mil peitos acolheram os que regressavam… Böhler, pálido, com o cabelo ralo, os lábios cerrados, só aspirava ao repouso, ao sonho, ao esquecimento, ao amor, a novos dias de trabalho silencioso e fecundo. Quando desceu do comboio, Sellnow caiu-lhe nos braços, a soluçar de alegria. Depois, Böhler abraçou a mulher e a filha, sem dizer nada, porque nada teria saído da sua garganta embargada. Deixou-se rodear, como privado de vida, e conduzir ao acampamento, onde estava Schultheiss, o homem alto e louro, de olhos infantis, que pareciam olhar sempre para longe, como se procurassem, ao pé dos abetos do Volga, a sepultura de Yanina. Apertou em silêncio a mão do chefe. «Estamos novamente reunidos», pensou. «Toda a enfermaria.» Emil Pelz esperava-o na secretaria do acampamento. Não queria sair porque temia explodir em pranto. — Tem bom ar, Jens — disse Böhler com carinho.
Depois calou-se, incapaz de pronunciar outras palavras. O seu pensamento continuava no campo 5110, perto dos bosques onde uivavam os lobos, nas noites de inverno, para acabarem por se atirar contra as cercas, obrigando as sentinelas a matá-los. «Hoje, como ontem e como amanhã», pensava, «enquanto a Terra girar, o vento da estepe soprará sobre a planura do Volga, a neve cairá sobre as árvores, os lobos uivarão, o gelo irá quebrar-se ruidosamente no grande rio que atravessa eternamente a Mãe Rússia. Os machados dos lenhadores irão ouvir-se nos bosques; os caçadores, vestidos de peles, montarão as armadilhas; os camponeses conduzirão os tratores pelos campos e semearão a semente que dá vida. E o sol continuará a alternar com a neve, sobre um espaço da estepe onde um dia estiveram grandes cercas de arame, interrompidas por torres de madeira, atrás das quais havia grandes pavilhões, bloco atrás de bloco… O campo de Estalinegrado… O campo 5110.» Werner von Sellnow olhou para Frau Böhler, que fixava no marido os olhos cheios de felicidade. — Beije-o mais uma vez — disse-lhe. — Acho que ainda não compreendeu que já está em casa.