João Paulo Borges Coelho - Água - Uma Novela Rural PT (2016)

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Ficha Técnica Título: Água Autor: João Paulo Borges Coelho Capa: Rui Garrido ISBN: 9789722128100 Editorial Caminho, SA uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © Editorial Caminho, 2016 Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.caminho.leya.com www.leya.pt


Onde hei-de esperar Que os rios transbordantes, Outra vez sensatos, Repartam a paisagem Por margens complacentes? Rainer Maria Rilke

Como grilos enlouquecidos, os telefones celulares devoram o que resta de silĂŞncio. George Steiner


1 Um conselho: nunca confiem na água. Enrolam-se os cães perto das cinzas, crescem as árvores mesmo se lhes secam as folhas, os humanos fazem as suas obras e ingenuamente se deixam enlevar. Mas a água tem o horror do vazio, o afã de esbater diferenças, o atávico asco à orografia que procura alisar com a sua substância informe. De nada nos vale medir a hidra: onde andará a cabeça da água, aquela que urde o perverso plano? Os longos braços que o implementam? Alguém viu a alma à água? Maara é ingénua, diverte-se com a frescura da água correndo-lhe pelos ágeis dedos (se queimasse, não pensava assim). Acha-a domesticada só porque a vê passar transportando docemente a panóplia de coisas leves que a natureza dotou sem raízes, interpreta mal o marulhar, o halo de silêncio que se cria à flor do rio. É sempre avisado desconfiar destes sinais pois não detemos a chave da sua leitura. Cabe aos humanos, bem sei, continuar a tentar lê-los; cabe-lhes o regozijo das aparentes vitórias e o espanto no descalabro, ingredientes que os ajudam na curta mas difícil passagem. Maara distrai-se com o frescor, com o viço do canavial e a paralela torrente da sua privada melodia. Até com o fardo do trabalho. Bate a roupa com o mesmo vigor com que amassaria o pão, de costas viradas para o canavial e para as penumbras que ali se insinuam. Faz as suas contas e os seus gestos e os seus sons (canta), enquanto amassa na água esse pão. Costas desnudas.


2 As canas são como mastros das bandeiras que porventura Maara arreou para lavar e tornar alvas como a intenção de toda a aldeia; são flautas espetadas no lamaçal para que da matéria informe, do seu desordenado respirar, resulte sempre uma música cristalina. Não esqueçamos que das rochas mais sizudas rebentam frágeis e frementes flores! O espaço que as canas ocupam é limpo, apesar de misterioso. Elas são varas cujo doce crescer é periodicamente interrompido pela dor e o conflito dos nós dos anos, cada nó o resumo de um sofrimento. Ryo e Laama são quem sonda e sabe ler. Ou dizem que sabem e o povo acredita. ‘Por alturas deste nó morreu o meu pai’, diz Laama. Infinita perplexidade, indescritível tristeza que lhe levou o nome, a carne da sua carne, para os confins! ‘Por alturas daquele outro partiu a minha filha mais velha, aquela que acabava de casar’, diz Ryo. Laama anui (lembra-se dela). Maara ri das rotinas que ocupam os dias destes velhos trôpegos, embora os pares de olhos que têm sejam agudos como os do milhafre que ronda no alto. Agudos a ponto de discernir as pequenas manchas na pele das canas, registo da intenção das águas e de muitos outros pequenos incidentes historiáveis. Também os barcos, de o terem sempre mergulhado, escondem um calado mais escuro que o resto do casco. Cada mancha, uma viagem. A água lava ou escurece conforme as circunstâncias. A água revela ou cala. Maara ri do costume que os dois áugures têm de passar o dia a esventrar a natureza para lhe ler, nas entranhas, os sinais. Tivessem eles tanta roupa para lavar como ela e os seus gestos trôpegos bem se agilizavam! ‘E de que morreu a tua filha mais velha, aquela que acabava de casar?’, pergunta Maara a Ryo, aquele dos dois que lhe agrada mais, sem deixar por isso de bater a roupa com violência.


Foi há muito tempo, Maara é jovem, o tempo também ele uma lavagem. E Ryo, sempre disponível para debater o conhecimento como se fosse pela primeira vez, responde: ‘Desprendeu-se, perdeu as raízes e deixou-se ir pelo rio fora até esse lugar a que chamam foz.’ E sorri. Não da lembrança, que é em si um infortúnio, mas porque Maara deixou escapar o pano em que batia, um pano agora célere e sem raízes, de duas cores (também o pano tem agora o seu calado), cujo destino será o de agasalhar a filha de Ryo se ela estiver ainda à espera e tiver frio. Maara desta vez não ri, pragueja. Por ter perdido o pano e porque passou uma nuvem por um fugaz momento. Seria a sombra da filha de Ryo, aquela que acabava de casar? Há sombras assim gerais, que não esfriam um só objecto ou território mas a alma toda inteira das pessoas. Escureceu a alma a Maara, é certo, houve até indícios de um ligeiro aperto no peito da rapariga, mas não nos preocupemos que foi um aperto passageiro. Ei-la que recolhe célere a roupa lavada e cheirosa e, Oops!, põe a cesta à cabeça antes que os dois velhos esbocem sequer o gesto de a ajudar. ‘Oops!’ E retoma a canção que antes lhe passeava nos lábios como um queixume, uma espécie de eco interior que saía e se espalhava. Metade do segredo das canções reside nelas próprias, a outra metade na maneira como as cantamos. Maara vira costas ao olhar terno e guloso dos dois áugures, levando consigo as duas metades. Cesto à cabeça, costas desnudas e dentes brancos.


3 É importantíssimo que a tibieza das águas não nos adormeça a atenção. Por isso se optou por uma sugestão de desconfiança, entre tantas outras possibilidades. Não há nada mais triste que a visão de um corpo solitário progredindo sem raízes, um afogado. Ninguém caminha sobre o rio: são necessárias frágeis e custosas pontes, pequenos barcos, juntas de bois com o seu calado de quatro patas tocando às cegas as pedras do fundo, ou mesmo olhares lançados à outra margem numa ansiosa indagação. São necessárias tantas coisas! Mas nós somos valentes, sempre prontos a retesar o arco e a aspirar à descendência (é até essa a base do entusiasmo, da alegria e da luxúria). Maara sente, pousados em si, os olhos dos dois velhos milhafres ardendo como um brando lume. Sente também o pano húmido refrescando como a orvalhada pele ao fruto, os pés tocando a terra firme a cada passada que dá, a terra do caminho. Inunda-a o contentamento de se sentir inteira. Caminhar é sentir na planta dos pés a plenitude do chão, é auscultar com eles o pulsar da terra. Mas é preciso prudência. É preciso contar com o tempo e com a geografia, com esses dois eixos principais, pois não há como o correr dos anos para transformar carnudas vivências no pó amarelo de lembranças guardadas em velhas e ressequidas cestas de palha esquecidas pelos cantos. Pequenas pedras e cordéis, sementes, descoloridas conchas, pétalas secas com um profundo significado, recordações desfazendo-se num pó amarelo igual a este pó do caminho que enfarinha os pés de Maara e lhes rouba toda a sensualidade em que os velhos há pouco reparavam. Uma ou outra fotografia até, que um destino caprichoso trouxe da cidade até aqui para que a lembrança de quem partiu não caia num esquecimento também ele sem raízes. A rapariga amaldiçoa a falta de lembrança que teve, os sapatos repousam alinhados ao lado um do outro, num canto da casa, quando deviam ter vindo e estar regressando com ela do rio. Os pés sofrem as sevícias da poeira que se adensa.


‘Críí! Críí!’ Procura febrilmente no cesto, perdido entre a roupa, o telefone celular. Atende. ‘Maara?’, diz a voz do outro lado. ‘Ervio!’ A rapariga sorri ao proferir este nome. Depois, espalha em volta um olhar impaciente e só serena quando diz a Ervio que a mancha verde que no ano passado subia e descia as encostas, engolia as casas, cercava a escola e o posto de saúde – uma mancha de cortar a respiração! – está agora muito envelhecida. ‘Onde estou, também reparei’, responde Ervio. Maara alegra-se com a sintonia. Alegra-se quando Ervio lhe diz que o que ouve dela é precisamente aquilo em que estava pensando e se preparava para lhe dizer. Animada por estes sinais, a rapariga prossegue. Diz-lhe que quando lava no rio tem de se esticar muito mais até chegar à água limpa. Tem de fazê-lo por cima de pedras e toda a sorte de elementos sólidos e pontiagudos que antes não havia, elementos que são como a ossatura de um rio magro e arquejante, um rio doente. ‘Compreendo’, diz Ervio. Aquilo que ela descobre lavando no rio ou escutando os velhos milhafres e o próprio instinto que não a larga nunca, lê ele à distância na observação dos aparelhos colocados em lugares estratégicos para medir as intenções da natureza. Ambos concluem: o ano que passou foi um ano verde. Ambos lastimam como o tempo embota as cores.


4 Ryo e Laama passam metade do tempo a sondar as entranhas da natureza, a outra metade a discutir a interpretação dos resultados. A ciência é uma esforçada leitura paralela, as coisas seguem o seu curso cego imunes às interpelações. A natureza é um misterioso veículo em movimento deixando sacerdotes e cientistas em terra, ocupados ainda assim na tentativa de determinar o rumo da viagem! Volúvel até mais não, Ryo é a favor da deriva (concluída uma interpretação, apresta-se a abraçar uma outra). Isso exaspera Laama, mais consistente na obsessão de desnudar os fumos primordiais. ‘Não é no princípio que está o segredo!’, diz Ryo. ‘Tão-pouco no crescimento ou na viagem!’, responde Laama, para quem os dados desde há muito estão lançados. ‘Para ti o homem sábio repete o que dizia quando era criança!’, resmunga Ryo. ‘Para ti o homem sábio é uma criança!’, retorque Laama. Discutem, hoje, a água. Ou melhor, a falta dela, que aquilo que outrora era um pesado e líquido cordão não passa hoje de um tortuoso arabesco, um ralo e frágil cabelo de velho. No fundo, repetem sempre a mesma discussão. Também as aves se transformam em pequenos novelos de ossos e pele e penugem se lhes falta o grão que comer. Apoiado neste sagaz paralelismo, Laama pergunta-se qual o segredo primordial que retirou ao rio o alimento, o segredo que fez dele um novelo assim desfiado e retorcido, prestes a romper-se. Para Ryo, pelo contrário, o fenómeno traz em si todos os sintomas de um capricho. Olha mesmo para cima, para as nuvens, e sorri. Pois bem, veremos quem tem e não tem razão!, dizem um e outro enquanto as canas assobiam um vento rouco, um som de raspagem.


5 Os camiões passam na estrada da aldeia e o seu som é, também ele, um som de raspagem. Uns para pernoitar neste avançado redil, outros para percorrer o caminho de regresso. Uns e outros não passam contudo sem os respectivos roncos nem o levantar de pó. ‘Vrrrrrr! Vrrrrrr!’, fazem eles. Os camiões são laboriosos fios da teia que liga o mundo à aldeia. A todos Maara amaldiçoa enquanto tosse e se sacode. Não são apenas os pés, é o seu corpo todo outrora belo. Se o ano que passou foi verde, este agora é amarelo. Salva-a do mau-humor o elaborado chilreio do telefone celular. ‘Críí! Críí!’ Procura-o (está sempre a perdê-lo). Encontra-o e o seu semblante ilumina-se quando torna a ler no mostrador: Ervio! ‘Estava mesmo a pensar em ti, meu amor!’, exclama. ‘Espera, não fales!’, responde ele do outro lado. ‘Não fales antes que te diga que... amzzrll...o!’ ‘Repete o que disseste’, diz Maara na extremidade de cá da invisível onda. E a preciosa voz da rapariga soa aos ouvidos atentos de Ervio trémula e ansiosa. Preocupa-se. Será que desta vez falhou a sintonia? O que mudou nela? Hesita antes de repetir, agora mais tenso. Como sempre, é a serenidade da cândida Maara que incute nele a coragem necessária. Diz-lhe que repita, que não o ouviu por causa de um camião. Nem tudo está perdido afinal, pensa Ervio. Talvez a voz tenha soado estranha por causa da qualidade da ligação, o ruído de fundo foi sem dúvida o motor de um camião. ‘O que estava a querer dizer-te’, diz, ‘é que, se o ano passado foi verde este agora é amarelo.’ É a vez de Maara sorrir. Diz-lhe que era nisso mesmo que estava pensando quando ele lhe ligou. Afinal a sintonia continua perfeita, pesem embora as misteriosas


interferências. De entre elas a maior, a distância. Maara desliga, atira o aparelho para o cesto (onde se vai perder no meio da roupa fresca), e prossegue a caminhada. Agora quase imune ao passar dos camiões e à sedenta poeira que se lhe agarra aos pés. Ervio também desliga, pousando o telefone celular em cima da mesa. Gostou do que ouviu, claro (ama Maara), mas não do som que lhe chegou vacilante, como se Maara hesitasse ou padecesse. Culpa a qualidade da ligação, o ruído de fundo foi sem dúvida o motor de um camião. Mas não há sentido em continuar com o aparelho colado ao ouvido se não está ninguém do outro lado. Seria como se falássemos connosco próprios, e Ervio abomina a introspecção. É um homem de acção, aproveita cada parcela do ar que respira e nunca, mas nunca perde o seu telefone celular. Contudo, se se dá o caso de hesitar, apesar do seu feitio, devemos ficar atentos. Para saber a razão.


6 O alcance dos dois áugures é ilimitado, tudo pode tornar-se em refresco para a sede que têm de saber. Sejam os segredos do nascimento e da vida em geral, ou a rabujice de alguém que passou e não cumprimentou, sejam ainda pequenos pormenores de grandes obras de engenharia que a vontade dos urbanos aqui vai fazendo edificar – em qualquer coisa descobrem um motivo de reflexão e de debate. Ontem, por esta hora, eram os esforços colectivos das formigas, os desmesurados volumes que conseguem transportar como se amanhã fosse já tarde (não deixaram de ler, nesta minúscula actividade, um preocupante presságio). Hoje é Maara, que acaba de virar costas e desaparecer com um menear de ancas e a volumosa trouxa à cabeça. É Ryo quem primeiro a ela se refere, deixando escapar um suspiro que, mais do que o som de uma constatação é a saudade de uma antiga condição. Gostou da rapariga, da firmeza com que os pés dela pisavam o chão. Laama dá-se um tempo, precisa de preparar a resposta. Para ele nada há de extraordinário nos pés que a rapariga hoje trazia uma vez que os tem assim desde o dia em que nasceu. Ryo levanta o braço magro e retorque prontamente que não, que são a vida e o tempo que os vão fazendo assim. Que Laama esteja mais atento e repare como os pés de Maara mudam de forma consoante o ângulo em que lhes bate a luz, ou se o corpo que carregam, e a posição, os obrigam a um esforço suplementar. ‘Também a água não tem forma fixa, tem a forma que os objectos que abraça lhe quiserem dar. Os pés da bela Maara têm a forma que o nosso olhar, e os dias e trabalhos que passam, lhes vão dando’, conclui Ryo voltando a suspirar. Vêm-lhe à memória os tempos antigos em que ele próprio, jovem ainda, lavava preguiçosamente os musculados braços num rio que corria cheio. O companheiro ri das pregas de pele que hoje pendem desses mesmos braços, lassas como a pele do rio que lhes passa perto. Os velhos braços de Ryo têm hoje a forma que o tempo lhes quis dar!


Esgota-se-lhes a imaginação tal como se vai esgotando a água. Laama desiste. ‘És um velho casmurro’, diz. E por uma vez põem-se os dois de acordo, num uníssono e nostálgico suspirar. Põem-se os dois de acordo olhando as pegadas que a rapariga deixou na poeirenta terra do caminho, antes que as leve a rabanada de vento que aí vem, súbita e seca. Depois, decidem virar a página e voltar a debater aquilo que os preocupa: a água. Ou melhor, a falta dela. ‘Quando a água se esgotar descobriremos finalmente o que há em baixo dela’, diz Laama. Para ele o rio é como um manto que dissimula uma miríade de actividades e segredos. ‘Não é em baixo que estão os segredos’, replica Ryo, para quem a água nada esconde, apenas transporta. ‘Foi ela que me levou a filha, o bem mais precioso que tive, acabada de casar; é ela que assinala, na pele das canas, o ano em que te levaram o pai.’


7 Por cada camião que passa, um assobio: ‘Fiúúú!’ Assobios dos que chegam e assobios dos que partem. No ano passado Maara devolvia os assobios com sorrisos e adeuses, hoje nem sequer os ouve para não ter de responder-lhes. Afinal, são eles que levantam a poeira que mancha a roupa recém-lavada e lhe dificulta o respirar. São eles, os malditos assobios dos malditos camiões! Caminhasse ela com Ervio e queria ver se lhe assobiavam assim! No ano passado eram assobios cheios – de milho para a moagem ou pedras e terra para a estrada em construção, mercadorias para a loja do português ou fardos de roupa dinamarquesa em segunda mão, grandes varões de ferro para os trabalhos do Engenheiro Waasser ou gado pronto para o matadouro da cidade, barro para a cerâmica ou frutas dos sul-africanos, madeiras para a serração ou gasolina para a estação de serviço, velhos trabalhadores da cana ou jovens emigrantes, e mulheres cantoras a caminho da cooperativa com os seus lenços da mesma cor – assobios cheios, assobios cheios para um lado e para o outro. Assobios de quem ia trabalhar ou vinha da colheita, de quem se vestia de fresco ou ia emigrar, de quem tinha feito qualquer coisa ou se limitava a sonhar, de quem recebia ordens ou gostava de mandar. Mas hoje só serão assobios se os suspiros puderem, também eles, ser assim considerados. Assobiados suspiros de quem parte para a cidade transportando um mudo pedido de socorro, um modesto novelo de palavras magras de quem não sabe já o que pedir; suspirados assobios de quem regressa enviado por quem não entendeu bem e pede que repitam, que desfiem esse novelo. Esse apelo. Os magros assobios que passam não são mais que uma lembrança dos antigos tempos verdes, ou então uma expressão destes novos tempos amarelos. ‘Fiúúú!’ Maara nem lhes responde.


8 Ervio chama o chefe, excitado. Os aparelhos que vigia dizem-lhe de uma chuva distante apenas descortinável à escala 1:2 500 000 que abarca a região. Nos monitores há manchas escuras, sucessivas linhas de números enigmáticos, frenéticas luzes, parcelas do esforço da ciência na sua ingénua tentativa de pôr trelas à natureza. Só quem, como Ervio, saiba estabelecer paralelos abstractos, ler amplas regiões molhadas em secas folhas de papel e secos monitores, consegue inferir de tudo isto que há uma chuva distante ensopando os campos de um país estrangeiro. Chama o chefe, diz-lhe que venha ver: ‘Eles lá esbanjando e nós aqui sem nada!’ Conferem os dois, debruçados sobre um monitor: lá a mancha escura pairando, aqui um extenso vazio branco (há muito que se esgotou, na impressora, o amarelo). Debalde digitam nos teclados para apurar altas e baixas pressões, debalde clicam no rato para saber da direcção dos ventos e calcular equações: o que os satélites transmitem, lá no alto, é que a obstinada natureza segue apenas, e somente, o curso que escolheu. Ervio deixa o chefe entretido com essa chuva virtual e estrangeira, e vem cá fora respirar. Pega no telefone celular e compõe o número apropriado. ‘Bip! Bip! Tzz! Tzz!’ Maara atende. ‘Maara?’ ‘Ervio!’ E Ervio fala: ‘Mapas, planos, listas de números – as malditas máquinas vão alinhavando um mundo paralelo sem necessitarem de nós. Agora, até a chuva se entretém em deixar-se cair noutros lugares!’ É este o desabafo de Ervio, ao telefone celular. Confundindo ciência e natureza, culpando a primeira das urdiduras da outra; encostado a um dos aparelhos que medem uma chuva que não cai, que medem quanto não caiu. Ervio estudou para acreditar. Pede-lhe desculpa, não quer preocupá-la mas não


pôde deixar de lho dizer. O chefe ficou lá dentro manipulando aparelhos, pensando sabe-se lá em quê. Quiçá também invejando a chuva dos outros. Maara discorda. A água não se divide assim. A chuva de que ele fala está longe de ser uma chuva estrangeira, é apenas uma chuva alheia que não fica bem invejar. ‘Um dia chegará a nossa vez, é preciso paciência.’ E Ervio, atónito, fica sem entender essa paciência aldeã. A chuva, numa aldeia, é tudo ou quase tudo. Se fosse na cidade, faria sentido esse quase alheamento. Na cidade as torneiras pingam sempre ou quando se calam não é por causa dos humores da natureza: uma conta por pagar, um tubo roto ou coisa assim. ‘Desculpa, meu amor!’, diz Ervio envergonhado. ‘A impaciência que deixei transparecer é a impaciência que seria mais justo seres tu a ter!’ Hoje, Ervio levantou-se, tomou banho, deixou até a água correr enquanto cantarolava e se ensaboava. Maara tem os pés empoeirados. Hoje, Ervio levantou-se e cercou-se de humidades, todas as que quis. E ela? ‘Desculpa, meu amor!’, repete embaraçado. A água, para ele, acaba por não ser um problema assim tão importante. De dentro do seu pequeno mundo sedento Maara volta a discordar. Diz-lhe que a água é tudo, ou quase tudo, para ele. Ervio estudou anos a fio para tratar dela, primeiro aqui, depois com essa bolsa de estudos lá no estrangeiro. Se deixa de haver água Ervio deixa de ter sonhos e profissão, deixa de haver um sentido para a sua vida. Mas Ervio retorque que a sua vida terá sempre um sentido enquanto Maara estiver a seu lado, enquanto ela olhar para ele e mais ninguém, enquanto lhe telefonar a ele e a mais ninguém. Enquanto for assim, ele não se perderá. Maara agradece, intimamente lisonjeada. Despede-se e desliga, de coração preenchido. Todavia, com alguma inquietação.


9 Ryo concorda com Maara, Laama perfila-se do lado de Ervio. Foi uma diminuta desavença, logo resolvida, mas de qualquer pretexto retiram os dois áugures matéria para as suas discussões. Ryo acha que se choveu lá no estrangeiro cedo ou tarde acabará por chover também aqui. Para ele a natureza é dotada de caminhos que lhe ligam as partes, de humores em permanente movimento. Sabe bem quanto a água, essa hidra fria e calculista, tem horror ao vazio; quanto, sempre que com ele depara, se apressa a preenchê-lo. Dentro do corpo humano também o sangue chega a toda a parte. Faz-se um golpe no pé com a enxada e, se não se trata, escorre por ele todo o sangue que temos dentro. O mesmo acontece com a água: alguma da que se acumula no estrangeiro acabará por escorrer para aqui! Laama põe-se a pensar. Aceitaria de bom grado o que diz o companheiro não fosse a dor que sente nas pernas, sobretudo nos dias de frio. Sabe quanto o sangue custa a chegar-lhe aos dedos dos pés disformes; não pode por isso receber as palavras de Ryo senão com um grande cepticismo. Doi-lhe o corpo todo, às vezes nem sabe se os membros são ainda dele ou já velhos pedaços de madeira que traz agarrados. Se fosse como Ryo diz, se o sangue chegasse a toda a parte, ele não teria as pernas no estado em que estão. E o que quer dizer é que se a água chegasse a toda a parte a aldeia não estaria no estado em que está – amarela. ‘Alguns humores hão-de aqui chegar, ou então a natureza teria apodrecido’, contrapõe Ryo pensativo. ‘Alguma coisa ainda funciona em nós, tal como alguma coisa ainda funciona por aqui.’ Mas Laama, agora que encontrou um caminho, é implacável no seu raciocínio. ‘E o que acontece a um braço ou a uma perna quando o sangue deixa de lhes chegar?’, pergunta. ‘Apodrece e amputa-se tal como se faz aos ramos de um limoeiro’, responde Ryo prontamente. ‘Amputa-se para que o resto da árvore possa continuar a dar


limões; para que o resto do corpo possa continuar a funcionar.’ Amputa-se como se faz aos anos passados que queremos esquecer, aqueles que o infortúnio nos deu a viver, é o que Ryo quis dizer. ‘É isso, amputa-se...’, concorda Laama reflectindo. Sangue, seiva ou chuva (até anos), tanto faz. Talvez a aldeia esteja prestes a ser amputada para que o resto do mundo possa continuar a funcionar. Ryo cala-se, derrotado. E Laama fica com a amarga consolação de ter vencido, uma vez mais, o interminável debate. Os pássaros levantam voo, perturbados pelo sentido dos diálogos.


10 Do outro lado da estrada avança um grupo de mulheres. Algumas com crianças amarradas ao corpo por pardas capulanas, pequenas orquídeas silvestres penduradas, ávidas dos sucos que ainda houver nos troncos ressequidos. Nos tempos que correm, onde mais buscar a humidade que nos alenta se não for na ascendência, na sua sombra e paciência? Mais uma vez caminharam em grupo até às machambas para afagar pequenas plantas com as enxadas delicadas, magras gazelas iludidas que com ligeiras pressões de focinho quisessem espevitar crias já mortas (se algumas ainda não morreram é porque o tempo passa devagar, tem o seu modo próprio de se espraiar). Encontraram ali sementes já sem força para deixar de ser sementes, sementes desistentes. As machambas não passam hoje de espaços lembrados, memoriais pespontados por minúsculas gotas de palha amarela; projectos que, pese embora o olhar esperançado de quem os acalenta, em nada darão. Maara lembra-se desta mulher que se destaca do grupo e atravessa a estrada poeirenta para a vir cumprimentar. Andaram juntas na escola, no tempo em que não fazia diferença andar na escola ou cirandar pelo quintal mordiscando a fruta e cuspindo cascas e caroços, modelando pequenas bonecas de barro para amarrar às costas como fazem as mães de verdade. Aqui, a verdadeira escola é mais uma atitude do que um lugar; a infância, um mero treino para se vir a ser adulto. Aprenderam as duas a escrever o nome e a cantar sílabas e números como se esse artifício as tornasse incólumes. Mas o destino é um conjunto de obrigações, e chegou a esta mulher a obrigação de buscar água, de apanhar lenha, de acarinhar plantas pequenas e decepar cruelmente as grandes sempre que conseguisse vê-las vingadas; enfim, de assoprar fogueiras, com isso assoprando também o futuro para longe. Cumprira a sua parte nas estatísticas, espremera o nome trémulo e torto na linha apropriada do bilhete de identidade, e portanto chegara a altura de se deixar encher nas noites de lua cheia em que os rapazes da aldeia se mostravam inflamados, ou então quando os camionistas assobiadores precisavam de deixar descansar uns motores e fazer outros, mais privados,


funcionar. Ela encheu-se, é certo, mas para logo voltar a esvaziar-se, à mercê que estava do arbítrio insondável de quem escolhe as plantas que vingam e as que acabam por mirrar. Assim mesmo, numa noite sem lua mas prenhe desta surpresa má. Depois de tantas promessas, voltava a ficar só. O que resta quando a escola deixa de ser uma condescendência? Quando nos enchemos de vida para logo em seguida nos esvaziarmos? Resta esta cumplicidade calada, esta troca de olhares que leva a pequena mulher, tendo visto Maara, a atravessar a estrada para a vir cumprimentar. Maara lembra-se dela, claro, chama-se Heera. Até porque o corpo permaneceu tão infantil como nesses tempos era, salvo a barriga e a face, uma oca e a outra cheia de rugas. Nas canas do rio cada ano é um nó; na face desta mulher cada ano é uma ruga. Maara tem a Ervio; a quem tem Heera? A pequena mulher atravessa a rua enquanto as outras esperam e cochicham, e entretêm esse milagre da inocência que é conseguir rir sem ter de quê. ‘Como estás, Maara?’ ‘Estou bem, Heera. E tu?’ O que significa estar bem? Estar bem é não ter em casa morrido alguém, não ter ardido o tecto da palhota, de uma faúlha transviada ou coisa assim. Estar bem é poder prosseguir a caminhada até vir a estar-se mal. Estás bem? Ainda estás bem? Ainda não estás mal? As outras, do outro lado, cochicham e riem. Em seguida, Maara ouve o desfiar do monótono rol. As mulheres regressam do campo com as enxadas empoeiradas do exercício vão quando deviam vir sujas de terra molhada. Cumpriram com o quotidiano rito sem que colhessem o costumeiro resultado. A machamba de Heera, mais alta, secou. ‘A minha machamba secou’, diz ela em surdina, com o embaraço com que revelaria a Maara uma feia intimidade. As machambas das outras mulheres, mais baixas e perto do rio, demorarão ainda uns dias a secar. Fosse no final do mês, não hoje, e todas corroborariam a história de Heera com histórias idênticas, não com o riso nervoso que agora ostentam, cavado pelo frio que provoca o testemunho de uma miséria próxima mas ainda assim alheia. De qualquer maneira, está no feitio de Maara: ouve uma história assim e vemlhe logo o impulso de pegar no telefone e falar a Ervio pelo método conhecido. Pressiona nas teclas o número do namorado, deixa tocar três vezes e desliga. ‘Bip! Bip! Tzz! Tzz! Tzz! Tchup!’ Passado um pouco o telefone de Maara inexoravelmente tocará.


‘Críí! Críí!’ ‘Ervio?’ ‘Sim. Ligaste?’ ‘Liguei.’ ‘Que me querias?’ Estranho uso do tempo do verbo, como se há pouco Maara quisesse alguma coisa e agora já não. Mas entretanto, no curto espaço de tempo em que Maara deu o sinal e esperou que Ervio ligasse, não choveu. Maara continua portanto a querer o que queria. E o que queria, e quer, é apenas dizer que nos está secando a terra depois de nos terem secado os rios. ‘Agora mesmo Heera mo confirmou: já não há pé de milho que resista’, diz. ‘Heera?’ ‘Sim, Heera. Lembras-te dela?’ ‘Não, não me lembro dela.’ Ervio não se lembra desta anunciadora da desgraça.


11 Ervio é um compenetrado profissional. É preciso, por isso, que o impulso recorrente de pegar no telefone não leve a melhor. Abre a gaveta da secretária, atira-o lá para dentro, fecha-a à chave com resolução. Mais do que nunca é necessário que ponha o telefone de parte, que dedique toda a atenção à ciência que traduz o comportamento actual da natureza. Não há espaço para divagações, temos de estar prontos a agir em qualquer circunstância, mesmo que seja uma circunstância amarela como a deste ano que vivemos. No ano passado a circunstância era verde, o telefone celular um hábito recente, Maara um fresco golpe de ar anunciando a chuva regeneradora. Neste ano, não. Mantém-se muita coisa, é certo, mas o ano é amarelo. E Maara? Ervio debruça-se sobre as ondas verticais de luz dos monitores, sobre essa monótona cascata. Segue o zunir das plotters, rasga folhas pelo picotado, observa atentamente as fiadas de números que povoam o papel, todos eles traduzindo o presente capricho da natureza, quase todos rondando o zero ou para lá perto declinando. Laama indaga os deuses, Ryo pergunta aos ventos. Ervio lê as folhas de papel, e o que lê deixa-lhe uma funda ruga na fronte. O telefone é um vício, Maara uma febre. Por este andar, o ano que aí vem será um ano branco.


12 ‘A seca é um vício’, diz Laama. ‘Como, um vício?!’, duvida Ryo cuspindo para o lado a palha castanha do tabaco. Estão na penumbra das canas. Um vício como aquele que Ervio tem do telefone, um vício que a natureza traz dentro de si e que de vez em quando não consegue reprimir. Basta ver como ela chega: nunca se pode dizer com certeza quando a seca começou. Pode dizer-se da chuva, claro, pode dizer-se até do frio (pode dizer-se que hoje começou o tempo do frio, por um certo ar que começa a soprar, uns certos cheiros que a ele vêm agarrados...). Ryo interrompe o amigo: isso até uma criança sabe! Justamente. Mas o que Laama quis dizer é que da seca não se pode afirmar tal coisa. Só quando ela cá está se começa a falar nela. É portanto um vício como o do telefone de Ervio, um vício como o do tabaco. Desde quando podemos dizer que deixámos de poder passar sem o tabaco? Ryo ri-se, um meio como outro qualquer de deixar transparecer descrença nas palavras do amigo. Acha pouco fundamentado este paralelismo que Laama estabelece entre as pessoas e os fenómenos da natureza. Qual vício, qual quê! Ryo vê antes a seca como um enxame de abelhas zangadas voando de um lado para o outro, ferrando aqui e ali. Se ferram aqui é porque deixaram de castigar um outro qualquer lugar. Mas não será este seu paralelismo também duvidoso? Qual a diferença entre relacionar a natureza com as pessoas ou relacioná-la com as abelhas? Sentindo que perde terreno, Ryo recorre a argumentos estapafúrdios. ‘Será que homens e abelhas são a mesma coisa?’, pergunta. Mas Laama, agora que filou a presa não vai deixá-la escapar assim tão facilmente. Não é de homens e abelhas que falam, mas da seca e da sua essência. Laama dizia que a seca é um vício, Ryo que é antes um enxame de abelhas. Ao enxame vêmo-lo chegar, e com que alarido! Até Laama, com as pernas no estado


em que estão, se poria a correr para dentro do rio se visse chegar esse tal enxame furioso e, claro, se o rio ainda carregasse água! A seca não chega assim, até porque quando chega deixou de haver rio que nos proteja das abelhas! Não há nada que nos salve desse a que Ryo chama o grande enxame! Só resta pois ao amigo reconhecer que não há relação entre a seca e as abelhas. Já quanto ao vício (e Laama abre um sorriso de triunfo), dizemos que ele chegou quando é já tarde, quando já nada podemos fazer que nos liberte dele. A seca chega com esse mesmo silêncio do vício, um silêncio de quem não sabe como tudo começou. Nem, portanto, como irá terminar! E, para frisar o argumento, Laama atira uma pedra que bate no dorso do rio e levanta uma nuvem de poeira. ‘Tup!’ Agora, silêncio é o de Ryo que, sombrio, nada tem a responder.


13 Todos reparam em Maara, não há como não reparar nela. O Engenheiro Waasser repara em Maara perdida na poeira amarela da berma da estrada. É preciso que a água volte quanto antes para a lavar desse pó, pensa ele na sua língua estrangeira. É preciso que a água volte com urgência, para esse fim e para correr debaixo da ponte, justificando assim a presença deste estrangeiro e dos seus trabalhos. Por isso os dois gestos paralelos do Engenheiro Waasser: um deles é uma ordem, que os seus homens apressem os furos para descobrir a água lá onde quer que se esconda!; o outro, um leve cumprimento, dir-se-ia que apenas vago sorriso dirigido à rapariga. O Engenheiro Waasser estudou muito nas longínquas escolas da sua terra, detém os secretos números que conduzem às explicações. Falta-lhe porém um certo número, precioso porque capaz de projectar uma invisível onda que desembocasse no ouvido da rapariga que passa. Nesse caso, além de sorrir também lhe diria qualquer coisa, embora não saiba exactamente o que seria. Maara, claro, há muito que notou essa emoção estrangeira, essa vontade que o Engenheiro tem de lhe descobrir o número particular. Sorri também. Mas não quer isso dizer que se iluda: passaram já por ela inúmeros camiões, inúmeros assobios nas idas e vindas das lavagens! Permanece muda, embora a referida emoção, por tortuosos caminhos difíceis de explicar, lhe faça bem. Permanece muda porque há muito deu o coração a Ervio, só para ele o seu telefone celular fala nas cores dos anos: foi verde o ano que passou, este agora é amarelo. Subitamente, chilreia o telefone dentro do cesto, o conhecido e elaborado chilreio. ‘Críí! Críí!’ A praga surda no ar, o cesto no chão poeirento, as mãos de Maara dentro dele com uma ânsia de olhos cegos, os olhos do Engenheiro Waasser sorvendo tudo isto, ela perturbada pelo facto enquanto afasta a roupa lavada e cheirosa, ansiosa por chegar ao aparelho antes que este se cale.


Cala-se. Mas felizmente volta a chilrear: ‘Críí! Críí!’ E o som guia o caminho das mãos por entre a roupa até que estas, numa atrapalhação, o possam encontrar. Lê no mostrador: Ervio! ‘Ervio?’ ‘Sim, sou eu!’ ‘Porque ligas?’ ‘Ligo porque senti que sorrias. Para quem sorrias?’ ‘Sorria comigo própria, os restos desse sorriso eram portanto para toda a gente’, diz Maara. ‘E, ao sorrir para toda a gente, sorria para ti também.’ Do outro lado fica um silêncio fundo, o silêncio da alma de Ervio mastigando. ‘Ainda aí estás, Ervio?’ ‘Estou.’ ‘Porque não falas?’ ‘Porque quero antes ouvir a tua voz. A falar, seria para dizer-te que não gosto que sorrias para toda a gente. Prometeste-me o teu sorriso, não quero que o esbanjes por aí!’ ‘Falaremos nisso mais tarde, ainda estou a caminho de casa’, diz ela. ‘Está bem, falamos nisso mais tarde’, concede Ervio antes de desligar.


14 Os trabalhadores do Engenheiro Waasser perfuram o mundo com as suas improvisadas sondas, embora preferissem estar erguendo em vez de escavar. Por agora as pontes e estradas têm de esperar. É esta a complexidade da técnica: apesar de se fundar na inércia e na repetição, só tem realmente valor quando é capaz de inventar novas respostas para os desafios que vão surgindo. É necessário mudar? Mude-se então! Apontam teodolitos, esticam fios, tiram medidas ao rio e à natureza em geral. É com este artifício que pretendem achar e espremer a água do chão como quem espreme o leite da teta da natureza. Esta lança mugidos de dor e eles riem. Motiva-os o som. Apertam com mais força, furam mais fundo. A ciência é também esta específica crueldade. Maara passa por eles a caminho de casa. Acena-lhes. Conhece quase todos, quase todos são nados e criados na aldeia. Viu-os crescer, tornarem-se naquilo que são. Enquanto os trabalhadores acenam a Maara e trocam comentários entre si, o Engenheiro Waasser compenetra-se no trabalho que levam a cabo. Olha intensamente uma curva do rio, mostra-se interessado no resultado da medição efectuada por uma das maquinetas. Tudo menos levantar a mão para acenar à rapariga um cumprimento. Mas não nos iludamos: além de aturados estudos, o Engenheiro Waasser tem também uns olhos de milhafre. Malgrado a distância, notou logo aquele sorriso iluminado assim que Maara tirou o telefone do cesto e o encostou ao ouvido. Sabe que as palavras que a rapariga sopra no aparelho não são para si (o telefone que tem no bolso não tocou). Mesmo assim faz o que pode para se apropriar daquele sorriso. Procura os olhos dela com os seus e Maara cai na armadilha. ‘Oops!’ Os olhares já estão cravados um no outro, é assim que o Engenheiro Waasser pesca nas águas cálidas daqueles olhos o suculento sorriso que reflectem. Maara, surpreendida, fica sem saber o que fazer. Fala com Ervio e olha o Engenheiro. Deixou de sorrir.


‘Que aconteceu?’, pergunta Ervio do outro lado. ‘Notei uma sombra escurecendo a tua voz.’ Há pouco Ervio preocupava-se com o pródigo sorriso de Maara, agora é o contrário que o preocupa. ‘Por que se fechou a tua expressão?’, pergunta inquieto. Maara volta a sorrir para o serenar. Sorri e olha o Engenheiro Waasser que, notando o renascer do sorriso da rapariga, sorri também. Pensará ele que é para si que ela sorri? ‘Impressão tua’, responde Maara. ‘Estou igualzinha ao que era há pouco.’ ‘Oops!’ O Engenheiro Waasser está atento. Apesar da distância que os separa, notou a diferença. Para ele foi uma nuvem que tapou o sol por um momento, uma nuvem passageira. Para Ervio foi o contrário: o sol espreitou por entre nuvens carregadas mas logo voltou a esconder-se. ‘Está? Maara? Ainda aí estás?’ ‘Estou sim, meu amor. Mas tenho de desligar. A carga do meu telefone está quase a acabar!’


15 O Engenheiro Waasser trabalha com a água, embora hoje fosse mais acertado dizer que trabalha com a falta dela. Pobre Engenheiro Waasser a quem a natureza sobressaltou com esta viva contradição! Normalmente o Engenheiro Waasser olha a água como quem olha um obstáculo que é preciso transpor: constrói estradas que lhe interrompam o curso ou pontes que a atravessem, tubos e canos que a confinem ou conduzam. Foi para fazer tudo isso que aqui chegou. Hoje, porém, é forçado a fazer furos para descobrir onde se esconde o objecto do seu trabalho. De outro modo não teria por onde começar, não teria por que aqui estar. ‘Posso ajudar-te, rapariga?’, pergunta ele finalmente, dando alguns passos em frente que não são mais do que o esboço do projecto de uma arriscada ponte. ‘Não, obrigada, senhor.’ ‘É que te vi com o cesto no chão, mexendo-lhe dentro. Pensei que precisasses de ajuda...’ ‘Guardava apenas o meu telefone, ia-me já embora.’ O Engenheiro Waasser cala-se, por não ter por onde prosseguir. Há pontes quase impossíveis, pela distância que têm de transpor. Pela ausência de pilares que sustentem o ambicioso vão. Os trabalhadores param por um momento de perfurar o chão. Olham de longe, é até possível que comentem a atitude do patrão. ‘Bonita moça, não é, patrão?’ ‘Nem reparei, perguntava-lhe apenas se tinha alguma coisa para vender dentro do cesto. Fiquei com fome, nem sei porquê.’ Não fossem os rios cortar os caminhos e ninguém levaria a sério os projectos do Engenheiro Waasser. Para ele a água não é mais que um pretexto, uma justificação para as suas delirantes edificações. Se o curso de água que encontra na frente é pequeno, ignora-o ou redirecciona-o com sobranceria. Se é de respeito, inspira com prazer e apressa-se a desenhar na prancheta uma ousada ponte que o vença. Riscos febris da criação! O rio segue o seu curso, é certo,


mas irá humilhado por algo que lhe passa por cima e onde não consegue chegar. Para o Engenheiro Waasser o mundo será perfeito quando os caminhos dos rios forem todos rectos como as fronteiras de África. Não há perfídia nem ironia nesta sua aspiração, apenas racionalidade. As coisas perfeitas são as que seguem a direito evitando desnecessários gastos de energia. A distância mais curta entre dois pontos é, evidentemente, uma linha recta. A que se deve então esta atitude? ‘Nem sei porquê...’, sussurra para eles e para si próprio, como se quisesse convencer-se. ‘Fome? A nós dá-nos antes sede este pó rodopiando-nos por cima das cabeças, secando-nos a respiração. Este calor amarelo.’ ‘Têm sede?’ ‘Temos sim, patrão.’ ‘Então tomem umas moedas, comprem cervejas, que por hoje chega. Não são vocês que dizem que por mais que se trabalhe o trabalho não há meio de acabar? Pois então chega por hoje! Amanhã continuaremos a cavar!’ Findo este diálogo, que demorou mais do que gostaria, o Engenheiro Waasser vira-se na esperança de ainda ir a tempo. Mas Maara é já um ponto na distância, um ponto para quem um dos últimos camiões que passam assobia. ‘Fiúúú!’ Distraída e agitada, Maara nem lhe responde.


16 À distância – observando as réguas e teodolitos do Engenheiro Waasser, os cordéis esticados entre pequenos marcos dispostos a intervalos regulares – o velho Laama levanta a bengala que sempre o acompanha, aponta e diz que as estradas são riscos que os homens traçam na natureza como se fossem riscos naturais; as estradas são falsos riscos naturais que cortam e maltratam os riscos verdadeiros. ‘Como assim, como se fossem riscos naturais?’, duvida Ryo. Mais moderno, não consegue relacionar desta maneira a natureza e a verdade. Para ele, o que está marcado na carne da terra, seja o que for, passou já a ser natural. Está atento ao que se diz por aí, sobretudo os camionistas, gente viajada que conhece do assunto. Laama aprofunda o seu raciocínio: linhas naturais só as cordilheiras, as árvores que a natureza caprichosamente dispôs em filas, e, evidentemente, os rios (Ryo, que os preza tanto, devia sabê-lo melhor do que ninguém!) Ryo, que já descobriu o ponto frágil no argumento do oponente, tem um brilho malicioso no olhar. O caminho que as formigas percorrem até chegar à migalha, o carreiro que o povo abre para ir de casa à machamba, a fila que esse mesmo povo faz à porta da loja do português, não serão também eles linhas naturais? Laama responde prontamente que não, com um agastamento na voz. Sentiu desta vez a fragilidade do seu próprio argumento. Vai ter de recorrer a uma sofisticada retórica para que Ryo não saia vencedor. Para Laama a natureza é imóvel, desconfia de tudo o que a faz mexer. Ryo insiste: ‘Nós, homens, que plantamos e abrimos caminhos, não fazemos parte da natureza? As estradas que esse estrangeiro abre não são também elas estradas naturais?’ ‘Não!’, gagueja Laama. Ryo dá uma gargalhada triunfante. ‘E as águas do rio, quando correm furiosas, não se mexem? Desconfio, irmão,


que estás a cegar se não consegues descortinar tais evidências!’ ‘Sim, ou sou eu que fiquei cego ou então és tu que deliras’, diz Laama de mau humor. ‘Eu olho o rio e não consigo ver águas em movimento. Vejo-as raras e paradas, portanto águas naturais num rio natural.’ ‘O teu argumento é desonesto, sabes bem disso!’, exclama Ryo furioso. ‘Falas assim porque o rio vai magro!’ Laama sorri, orgulhoso. Apanhou uma ponta, não a vai largar. ‘O rio não vai magro, o rio é magro!’, exclama. Ainda domina a retórica como ninguém, foi ela que o fez famoso na sua terra. Ryo, por sua vez, procura novas munições para a refrega que os dois mantêm há anos. ‘Tens razão quanto ao ano que vivemos, que é amarelo’, diz, simulando um ar conformado que não é mais do que um artifício para levar o oponente a baixar a guarda. ‘Mas então, pela tua lógica, no ano passado, que foi verde, o rio não fazia parte da natureza, não é verdade? É que as suas águas corriam tão ágeis, tão distantes da imobilidade...’ Laama masca e reflecte durante um momento. A atenção que estes colóquios exigem deixa-o exausto. Por fim, descobre o argumento apropriado e apressa-se a enunciá-lo: ‘Não és tu que dizes que tudo é movimento? Que o que já passou deixou de existir? Como queres apoiar um argumento em algo que passou, num pretenso ano verde que já deixou de existir? Não sei de que ano verde falas, só sei do ano presente, que é amarelo!’ Ryo enfurece-se: ‘Para ti, o ano verde que passou já não existe sei eu bem porquê: porque estás senil, perdeste a memória!’ E ficam os dois de costas viradas, um olhando as amarelas canas e o outro o rio quase seco. Os dois mascando e remoendo, cuspindo sucos amarelos.


17 Maara prossegue a caminhada em direcção a casa. O suor escorre-lhe pelas costas. As coisas que a cercam – árvores e pássaros, casas e crianças – são nítidas e brilhantes. O cesto da roupa, apesar de bem-cheiroso, é um pesado fardo. Por este andar corre o risco de chegar com a roupa empoeirada. A aceitar qualquer coisa do estrangeiro seria que lhe levasse o cesto! Dentro do cesto, o telefone celular. Calado. Passa ainda um camião atrasado, com a sua cauda de poeira e assobios. ‘Fiúúú!’ Maara tosse e pragueja. Por este andar terá de voltar ao rio a conversar com os velhos e a amassar a roupa contra as rochas com a violência de quem quer sacudir o mundo para que este volte a funcionar. Lavar e conversar, ir e vir num vaivém sem fim até que se acabem os camiões ou a roupa ou a água do rio. No cesto, o telefone celular que Ervio lhe ofereceu no dia de anos, no verde ano que passou. Dia de anos verdes. Prenda de anos, doce rede, fio invisível para a prender. Onde estás? O que fazes? Porque ris? Quem te acompanha? Maara sorri e abana a cabeça: é esta a maneira que Ervio tem de amar, imaginando e soprando o resultado impaciente para dentro do telefone. Sorri e lembra-se: não pode esquecer-se, depois de largar o cesto em casa, de ir à loja do português pôr o telefone a carregar; de ir lá renovar a teia que a tem presa, a doce regra a que se submete. Não pode esquecer-se de o fazer, de outro modo é a angústia de Ervio que, na cidade, se renova. Ervio ligando e tornando a ligar para deparar com um vazio silêncio; ou, pior ainda, com a voz metálica de uma secretária electrónica que gentilmente lhe irá solicitar que ligue mais tarde porque Maara, a rebelde, está de momento inacessível. Com quem estavas? Com ninguém, estava só. Porquê, então, a voz de mulher que atendeu no teu telefone pedindo-me que ligasse mais tarde? Quem era essa mulher?


18 ‘A falta de água é um castigo dos deuses’, diz Laama. ‘A falta de água é um castigo do vento’, diz Ryo. Estão portanto de acordo, ambos concluem que a falta de água é um castigo. E chegar ao castigo é chegar ao início da resposta, ao início do caminho que é preciso percorrer para atingir a explicação. Reconhecido o castigo, é só retroceder um pouco até chegar à culpa, culpa de algo que havemos de ter feito. Que fizémos nós? A quem desobedecemos? Esmiúçam, um a um, os passos que o povo deu desde o início da memória até às pequenas lembranças de todos os dias. Que passos terão sido trocados? Que sinais mal interpretados? Sem dúvida houve uma cobra que se atravessou no carreiro sem que o caminhante se esforçasse por matá-la, com isso comprometendo o povo inteiro; ou então uma criança que nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço sem que quem a tirou do ventre da mãe se tenha preocupado em anular esse sinal; uma nuvem de cor estranha que entrou e saiu do nosso céu sem ter sido esconjurada; um morto que a distracção da dor deixou ser enterrado de olhos abertos, sendo a terra que lhe secou as lágrimas a mesma que agora nos seca os rios. Uma dessas muitas coisas de certeza aconteceu. Pior que não saber ler letras escritas é não saber ler as letras da vida! Longe daqui, Ervio nem sequer chegou ainda à culpa (se não sente na pele o castigo, como poderia ter chegado?). Das suas torneiras, já se sabe, escorre a água toda que quiser a não ser que se dê o caso de uma avaria, um tubo roto ou então uma conta por pagar. Tem as máquinas ligadas, sonda os sonhos da natureza, os segredos que esses sonhos calam. Ryo e Laama, pelo contrário, inspeccionam-lhe o corpo em cada árvore seca, em cada pedra cinzenta, em cada uma das nuvens raras e exangues que nos sobrevoam, nos riscos agitados que os pássaros deixam no céu. E em cada uma destas cicatrizes descobrem uma multitude de sinais. A Ervio revolta a falta da verdadeira e única explicação, enquanto aos dois áugures, embora impotentes, sobram as explicações. Com que suor regará o


povo os pés de milho se os quiser ver crescer? Cada grão é uma criança que há que amamentar, não tenhamos dúvidas acerca disso! Os deuses operam na sombra, afadigados; o vento também não cessa de soprar secando célere os charcos raros, as tímidas bolsas de humidade. Os dois – Ryo e Laama – têm razão, embora tal não lhes sirva de muito. Não tarda, os conhecimentos que possuem não serão sequer suficientes para humedecer o pensamento. Acabaremos então todos por depender dos esforços dos homens do Engenheiro Waasser, que escavam com afinco o chão. Encontrarão eles aquilo que tanto procuram? Que tanto procuramos? Ou será que nos espera apenas uma tossidela, uma sarcástica gargalhada saindo das profundezas aos borbotões? Ao som do agoirento uivo do vento, guiados pelo Engenheiro Waasser, os homens têm fé e escavam sempre. Mas, ai de nós que o Engenheiro Waasser se perde!, ai de nós que ele desvia os olhos dos furos promissores para os pousar num pequeno ponto que desaparece na distância, na berma da estrada por onde circulam ainda os camiões mais atrasados!


19 Eis que passa um desses camiões recolhendo à aldeia. ‘Vrrrrrr! Fiúúú!’ Põe travões a fundo e Maara inquieta-se (desta vez é mais que um assobio). Ao lado do condutor, um segundo homem espreita e diz: ‘Queres boleia, moça?’ Os pássaros levantam voo, espavoridos. ‘Não quero não, obrigada. Moro aqui perto’, diz. E estuga o passo, o cesto de roupa à cabeça. Deste nosso inferno, nos tempos que correm, migraram quase todas as boas intenções. Olha para trás, ali onde estava o Engenheiro Waasser ainda há pouco. Talvez agora ele lhe fosse útil. Há secretas intuições que nos levam a escolher, de dois desconhecidos, aquele que o parece menos num determinado instante. Que diria o Engenheiro Waasser, vindo de paragens tão distantes, sendo tão diferente, se soubesse que neste instante é, de dois desconhecidos, o mais familiar? Mas o Engenheiro Waasser já se perdeu na distância, talvez tenha mesmo seguido os seus homens à procura de beber com eles uma cerveja que lhe afogue o sobressalto que sentiu. ‘Queres boleia, moça?’, torna o homem, da janela do camião. Maara não lhe responde. Caminha. Os pássaros são agora minúsculos pontos negros evoluindo ao largo. ‘Então, ela vem ou não vem?’, diz o condutor. ‘Não tenho o dia todo!’ ‘Tu não és a filha da velha Caana?’, grita da janela o outro, aquele que primeiro falou. Maara surpreende-se. ‘Sim, sou’, diz. ‘Então?’, torna o condutor. ‘Já disse que não tenho o dia todo!’ ‘Fico aqui!’, acaba por dizer o outro, abrindo a porta e saltando para a estrada com o saco a tiracolo. ‘Fico e acompanho a rapariga!’. E, para Maara: ‘Deixa-me acompanhar-te. Tranquiliza-te, conheço-te desde pequena.’


‘Como me conheces?’, pergunta ela. Não se lembra dele. Apesar da menção à velha Caana não lhe parece mais que um forasteiro com um elaborado discurso. ‘Como te chamas?’, pergunta-lhe. Os nomes são quase tudo: Laama diria que é através dos nomes que se chega ao conhecimento das intenções que os homens têm; Ryo, que nos é possível ter um novo nome em cada dia. ‘Chamo-me Laago.’ Laago? Nome tranquilo. Mas Maara não se lembra de ter ouvido este nome em dias da sua vida. ‘Havias de me conhecer melhor se eu não tivesse deixado a aldeia. Se não a tivesse deixado de certeza que me conhecerias melhor!’, e pisca um olho, o direito. Maara não gosta daquele piscar de olhos nem do andar gingão do homem que, alegando ser daqui, é neste momento mais desconhecido ainda que o Engenheiro Waasser. Não gosta daquele sorriso, um sorriso de quem tivesse um segredo escondido para utilizar no momento que lhe fosse mais conveniente. Mas, por outro lado, não será que todos, incluindo ela própria, utilizamos assim os sorrisos que temos? Não será que viver é assim fazer? ‘Deixa-me levar-te o cesto’, diz ele. ‘Posso bem com ele’, responde ela. ‘Tens o teu próprio saco, que por sinal parece bem pesado.’ ‘Sim, de facto está pesado. Cheio de coisas boas, algumas das quais posso bem vir a oferecer-te’, e torna a piscar o olho. Maara torna a não gostar daquele piscar. Não gosta do homem nem sente curiosidade das coisas boas que ele terá dentro do saco. ‘Não preciso que me dês prendas. Passo bem sem elas.’ ‘Desculpa, não quis ofender-te.’ Caminham mais um bocado, ele perfurando o ar com as suas perguntas e ela deixando sair respostas curtas, arrancadas. ‘Tranquiliza-te’, vai dizendo o forasteiro. ‘Sou de bem.’ Falam de pessoas e acontecimentos. Mais ele, que quer com isso dar provas de ser deste lugar e assim tranquilizar a rapariga. É inevitável que apareçam nomes que os lábios dos dois já tenham proferido, uma vez que o lugar é pequeno, o número de habitantes limitado. O nome de Ervio é mencionado, não se sabe se pelos lábios dele se pelos dela. Se foi ela, enunciava um nome que a protegesse mesmo que assim à distância; se foi ele, um feliz acaso abriu brecha funda na


reserva da rapariga. ‘Ervio é meu namorado!’, diz Maara. ‘Ervio é meu amigo do peito!’, diz Laago. ‘Que saudade!’, dizem um e outro.


20 No departamento de Ervio vive-se uma febril actividade. Os funcionários chegam cedo, partem tarde. Alguns passam mesmo ali as noites ignorando os mornos contextos que têm em casa, em que marido significa a fugaz sombra que deixa os lençóis em desalinho, pai um destraído afago na cabeça. Esquecem tudo o resto, prosseguem com os trabalhos, despenteados e com os olhos em fogo. Já foste a casa?, pergunta um deles. Irei mais tarde. E tu? Passei por lá, está tudo bem. Dizem estas coisas sem desviar os olhos dos monitores, das máquinas que operam sem cessar. Os gabinetes são jaulas de néon, cubos de luz onde ronronam os processadores dos CPUs dando conta da incessante entrada dos dados e das leituras, misturando tudo em complexos cálculos que traduzem o mal-estar do monstro para folhas de papel arrancadas com impaciência, passadas de mão em mão. Crepitam as impressoras de jacto de tinta, zunem as plotters, gemem as impressoras a laser, e as folhas de papel são cuspidas para o ar e espalham-se pelo chão em desajeitados ziguezagues. Todos os aparelhos – embora cada um à sua maneira – transmitem a mesma mensagem, e é essa coerência que assusta os funcionários. Lá fora, mais aparelhos espalhados no pátio corroboram. Um deles, que tipicamente deveria debitar uma lágrima por hora, está sereno e seco, chorou tudo o que havia para chorar. A rosa-dos-ventos está também imóvel e exangue, a haver incoerência estaria apenas na absurda direcção para onde aponta a sua flecha. O chefe do departamento de Ervio é, por tudo isto, um homem derrotado. Leu e releu os mapas, certificou-se da secura dos aparelhos, voltou a cruzar os dados, exigiu confirmações à medida que os superiores hierárquicos colocavam perguntas a que não sabia como dar boas respostas. Como ousa a água ausentarse quando convocada por quem foi eleito pelo voto popular?, perguntavam. Que tem a dizer quem, por mandato, a deveria domar?, queriam saber. Por tudo isto o pobre homem já não se diria um verdadeiro chefe de


departamento. O ar e o tom que tem são os de alguém perdido e assustado. Nas impressoras a cores que dirige, esgotaram-e o amarelo da realidade e o vermelho dos alertas. Apenas as outras cores permanecem intactas nos seus tinteiros. Desesperado, o chefe do departamento tenta um último recurso. Convoca à sua presença todos os funcionários e diz: ‘Preciso de um voluntário capaz de ir ao campo confirmar tudo aquilo que sabemos!’ Di-lo movido por um irracional fio de esperança, o fio que nos resta depois de nos ter sido arrancado tudo aquilo que nos havia sido acrescentado desde a nascença. Di-lo também por não querer ser surpreendido pela inevitável pergunta que vai seguir-se: se vêm só das máquinas as preocupantes notícias que transmite ou se foi ao campo procurar confirmações. Os funcionários hesitam, presos a um comprometedor silêncio. Têm as suas rotinas urbanas, custa-lhes deixá-las apenas para ir buscar uma resposta que conhecem de antemão. Só Ervio dá um passo em frente: ‘Estou pronto a partir!’ Por fora é o funcionário zeloso e empenhado, pronto a ir até ao fim em prol da causa a que dedica a vida. Por dentro, o amante dedicado que necessita de saber se os inquietantes sinais se devem a deficiências na rede dos telefones celulares ou a uma outra razão qualquer; o amante que quer saber se o sorriso de Maara é um pertence que é só seu ou se é algo mais geral. ‘Eu sim, estou pronto!’, repete. E o chefe do departamento de Ervio suspira aliviado. Ditoso o chefe de departamento que tem por funcionários homens assim valorosos!


21 Maara atravessa a sebe de micaias e entra no pequeno pátio onde murmuram e debicam as aves. Vai de olhos abertos mas podia bem tê-los fechados, tantas vezes passou por ali. Custou-lhe desprender-se de Laago, sacudiu-o como quem sacode um adesivo preso às solas dos sapatos que deviam ter ido com ela ao rio e estar agora regressando. Conseguiu deixá-lo numa curva do caminho, antes de aqui chegar. Pesa-lhe o cesto, sente a capulana colada ao corpo. As micaias estão viçosas, só mesmo elas para passar assim pela seca. Bebem sabe-se lá onde. ‘Mãe!’, chama. ‘Mãe!’ Ninguém lhe responde. A casa está vazia, imersa num som de estalidos de paus e fervilhar da palha como se dentro dela houvesse nuvens de insectos fritando, mesmo que este sol seja um sol de fim do dia. A noite não será a costumeira sombra que nos refresca, antes um cobertor escuro e espesso que nos vai tapar. Um cobertor salpicado de grilos arquejantes. Ao redor, as aves arrastam-se de penas caídas, molengonas. Não tarda estarão a dormir, não tarda começarão a morrer. ‘Mãe!’, torna. ‘A velha Caana não está!’, diz-lhe uma vizinha de trás das micaias. Passa os dias escondida nas micaias, esta vizinha. De olhos muito abertos, a ver o que fazem os outros. ‘A velha Caana saiu para a reunião e levou com ela a tua filha’, acrescenta. Dá as informações para que as coisas possam continuar a acontecer. E ela, furtivamente, a testemunhá-las. Maara atira o cesto para um canto, irritada. Disse à mãe, vezes sem conta, que esperasse. Não quer que a filha ande na rua a estas horas, quase noite; ainda apanha uma doença. Tira a roupa do cesto com brusquidão, pendura-a no arame para que acabe de secar. Secará depressa, mais seco o ar não poderia estar. Vai junto da lata de água, despe-se, mergulha lá a concha e despeja água por cima. A água desenha cordões brilhantes na sua pela baça e acinzentada pela poeira. O líquido som


atrai as galinhas. Sacode-as com os pés poeirentos, espalhando um rumor de cacarejares despeitados. Repara nos pés, vai buscar os sapatos e volta para acabar de lavar-se. Olha ao redor. A fogueira está acesa. Torna a irritar-se. Tantas vezes disse à velha Caana que é perigoso deixar a fogueira assim, quando não está ninguém por perto! Filha, é que depois leva muito tempo a tornar a acendêla, vai dizer-lhe a velha Caana quando ela protestar. Abana a cabeça. Com este calor ainda lhes arde tudo um dia. Deita-lhe terra em cima. Regressa para junto do balde, torna a esvaziar uma concha de água pelo corpo. O golpe refresca, mas rapidamente tudo se escoa pelos poros ávidos. A água está quase no fim mas não lhe apetece ir agora ao fontanário. Fá-lo-á amanhã bem cedo. Enrola-se numa capulana limpa, veste uma blusa, calça finalmente os sapatos. Abre a boca e espreme-lhe dentro umas gotas de água morna da moringa. ‘Vais sair, Maara?’ ‘Vou sim, vizinha’, diz para as micaias. ‘Vou às aulas.’


22 Há dias assim, em que me apetece, mais que morrer, nunca sequer ter existido. Dias em que visto uma blusa de olhos fechados sem saber qual delas é. Dias que podiam não ser dias, que podiam também eles não existir, nunca sequer ter existido. Dias que podiam ser outra coisa qualquer. Não te esqueças de que ainda tens de ir à água!, diz-me a velha Caana. A moringa está vazia! A tua criança está cheia de sede! Quando fores ao rio não te esqueças de levar a minha capulana, aquela com o retrato do Presidente, que já está bem suja!, e eu: Sim mãe! Sim mãe! Há dias que cruzo sem dizer outra coisa: Sim mãe! Não te esqueças de que é só para mim o teu Sim mãe!, e eu: Sim mãe! Não te esqueças de que é só para mim o teu sorriso!, e eu: Sim Ervio! Para quem rias? Sim Ervio! Com quem estavas? Sim Ervio! Quanta água trouxeste? Sim mãe! Para quem telefonavas? Sim Ervio! Sim mãe! Ervio! Mãe!, e é nesses dias, como agora, que não me apetece respirar. Que será de nós quando a velha Caana não puder sequer falar-me assim? Que será de mim quando Ervio deixar de telefonar? Quando nem sequer tiver de dizer Sim mãe!, Sim Ervio!, quando chegar ao rio com a trouxa à cabeça e o encontrar vazio? Quando, ao regressar, não ouvir sequer um assobio? Há dias em que se não fosse a pequena Floor me atirava para esse mundo cheio de caminhos. Bem diz o velho Ryo que somos os dois da mesma raça!


23 Há dias assim, em que a angústia das crianças parece inaplacável. Floor não se calava. A velha Caana, experiente, perguntou-se se a criança não sentiria falta da mãe. Apalpou a fralda de capulana e confirmou que estava seca, afora a humidade que os nossos corpos inventam sabe-se lá a partir de quê para compensar a secura do ar. Fome também não tinha, apesar da boca aberta e do olhar perdido. Com as crianças é assim: a gente chega-lhes o chá morno à boca, bem açucarado, e parece que se irritam ainda mais. Espalha-se o líquido pelo ar, rola a caneca com um ruído surdo pela areia escura do chão. Caana apalpou-lhe os braços e as pernas, pressionou levemente a barriga e, pelo chorar, soube que também não era dali. Chegou os lábios frouxos à testa da criança e não havia febre, afora a febre que nos castiga a todos neste tempo. Floor continuava a chorar, apesar destes trabalhos e destas atenções. A dor era outra. Como podem seres tão pequenos ter dores já tão imensas, inextinguíveis? E que pode uma velha avó ante uma dor assim? Deixámos já de ser mães, secou-nos o leite nestas pregas moles que antes foram seios, nos tempos em que as dores que havia eram agudas, mas também, sabemo-lo agora, dores verdadeiras, e por isso de alguma maneira dores felizes. Não estas dores difusas e atenuadas que são também mais secas e sem propósito, as dores dos velhos. Meteu a criança à anca, atou a capulana por cima para a segurar e pôs-se a caminhar em círculos e ziguezagues pelo terreiro, alvoroçando patos e galinhas. Assim calara Maara no passado, simulando um andar de coxa, sacolejando a anca ao mesmo tempo que cantava baixinho uma privada toada. Assim procura agora acalmar Floor antes de seguir pela estrada fora a caminho da reunião. Deixando para trás a casa num desmazelo, a porta escancarada, a fogueira acesa, as galinhas espalhadas e a vizinha atrás das micaias, espreitando. Querendo ver tudo aquilo que fazem os outros. Pendurada vai a criança, orquídea silvestre adormecida pelo esforçado sacolejo da anca magra da velha Caana.


24 A sala de aulas está vazia, penumbra de palha morna assente numa peanha de terra quente. Tudo estalando e fervendo. O conhecimento, quanto a esse, está em silêncio, adormecido. O único vestígio que dele existe, assim ao fim do dia, está no quadro de ardósia e é uma palavra trémula e difícil, interrompida antes de chegar ao fim. Como se esta seca violenta tivesse também calado, entre tantas coisas, a aula que ali tinha lugar. Porque será que não está ninguém? Maara vagueia por entre as velhas e desirmanadas carteiras, passeia as mãos pelos seus bordos. Aqui sento-me eu, a meu lado sentava-se Heera no tempo em que ela ainda estudava, no tempo em que ainda não anunciava a desgraça. Hoje senta-se uma fulana de tal. Antes sentou-se aqui tanta gente! Uns partiram para lugares distantes, outros ficaram por cá, o conhecimento não fez qualquer diferença no curso de suas vidas. Os que aprenderam a escrever o nome escrevem-no na terra, imprevisível semente que na maioria dos casos não chegará a dar em nada. Aqui sento-me eu, a meu lado sentou-se Heera, minha amiga, a anunciadora. A escola é como uma curva do rio, por essa curva passam gerações como passava a água da corrente no tempo em que a havia; no tempo em que tudo o que estava na frente podia ainda acontecer. Por aqui hão-de ter passado Ervio e Laago (diz Laago que os dois foram amigos). Talvez tenha sido nesta mesma carteira que se sentou Ervio, no seu tempo de aprendiz. A seu lado, quem sabe!, talvez Laago. Passa a mão pelo tampo da pequena carteira e nota-lhe as rugosidades, nervuras da madeira, pequenas imperfeições do trabalho modesto que fez quem a aplainou, nomes entalhados a canivete. Ao lusco-fusco consegue ler, ou apenas sentir com a ponta dos dedos, os nomes de quem sabia escrever de fresco e ensaiou ali a novidade. Este sou eu, não já apenas quem sou mas quem deixo no tampo desta mesa quando me ausentar. Quem aqui deixo enquanto me leva o tempo por esses caminhos afora, em direcção àquilo que virei a ser. O nome que aqui fica será uma pequenina âncora quando eu estiver à deriva por outros


lugares, um minúsculo farol para me alumiar o caminho do regresso. Maara sorri enquanto passa os dedos por esses nomes trémulos e trôpegos e tortos, essas âncoras e faróis enterrados num imperfeito mar de madeira. De repente, um nome que queima como fogo: Ervinho! Assim mesmo: pequeno, diminuído, mas luzindo ao lusco-fusco de hoje como uma jóia esquecida. Riscado com a ponta do canivete enquanto o professor, de costas, riscava uma qualquer conta de somar no grande quadro de ardósia. Primeiro uma metade, Erv..., interrompida quando o professor interrompeu por sua vez a conta para se virar para trás e dizer: Ervinho, estás atento? Estou sim, camarada professor. Depois, quando o professor voltou ao quadro para concluir a soma colectiva, a metade restante: ...inho! Ervinho!, nome fresco e completo, nome de um pequeno eu que ele ali deixou para mais tarde lhe poder alumiar o caminho de regresso a este lugar. Invade-a o impulso de pegar no telefone para perguntar a Ervio onde se sentou no tempo em que aqui estudava, e se escreveu um certo nome com a ponta do canivete. Se tinha um pequeno canivete afiado e o enterrou na madeira macia para aqui deixar uma semente de si próprio, desconfiado já de que ia partir para longe. Semente de um outro Ervio que não chegou a ser porque partiu. Fosse esse outro, o seu Ervio, e seria tudo tão mais fácil!, tão mais difícil! Repara então que se esqueceu do telefone em casa. Nem sequer o poderá deixar na loja do português a carregar a bateria! Continua a passar os dedos pelo tampo, desta vez à procura de um Laagozinho infantil, amigo de Ervinho, para ela uma estranha novidade. Não o encontra. Quem será Laago? E também, porque será que não está hoje aqui ninguém? ‘Foram todos para a reunião’, responde-lhe a voz de Laago de dentro do escuro.


25 ‘Será que o escuro da noite vai arrefecer-nos?’ Ryo é assim, não perde nunca a esperança. Quanto a Laama, está seguro de que se o companheiro pergunta é porque não sabe. ‘Qual nada! A noite é um espesso cobertor que nos tapa a todos!’ Mas Ryo tem fé no movimento e na mudança: é este sol pesado e fervente que nos aquece, não a noite. A noite significa que ele vai aquecer outro lugar. Tira-se a panela do fogo e esfria a comida que tem dentro! Laama sorri, condescendente. Para onde vai o sol quando desaparece? Quais outros lugares, qual quê! Parece-lhe evidente que o sol mergulha dentro da terra que pisamos, basta ter olhos, olhar o horizonte e ver. E se assim é, significa que nos vai aquecer ainda mais. Ryo empertiga-se. O calor pô-lo de mau humor. Desta vez não vai deixar passar assim. Insiste que à sombra se está muito melhor do que ao sol, que a terra da sombra é muito mais fresca que a do sol. Laama pergunta-lhe então por que será que, mesmo estando à sombra das canas, continuam os dois a derreter. Já não há sombras verdadeiras, já não há noite que refresque. A terra é uma grande mancha branca.


26 Maara caminha apressada, é já escuro. De luz sobra apenas uma caprichosa pincelada para os lados do poente, atrás da bazófia de grossas nuvens que prometem muito mas se sabe que em nada darão. ‘Tenho pressa!’, diz, como quem se desprende. ‘Eu tenho a mesma pressa, vamos para o mesmo lugar’, responde Laago brincalhão. Agarra-se. ‘Também eu vou para a reunião.’ Maara estuga o passo como se não quisesse perder pitada do que lá se vai dizer e decidir. Mais do que isso, no entanto, é a vontade de sair dali, de esquecer a tristeza que a escola assim vazia lhe desperta; e sobretudo a vontade de deixar para trás aquela companhia. Enquanto caminham, Laago olha para cima e vê o céu perdendo camadas de pele iluminada (sorri); para a rapariga é o contrário, são pregas sinistras e escuras que vão cobrindo o imenso corpo celestial (preocupa-se). No fundo, assusta-a o apagar da claridade ao passo que ele perscruta atento, habituado a ver no escuro. Desde criança que a minha Maara é uma rapariga muito intuitiva, costuma dizer a velha Caana para a vizinha das micaias quando se compadece da sede permanente que esta tem de saber coisas. Desde criança que a minha Maara sabe o que lhe faz bem e o que lhe faz mal. Laago agarra-se. Pergunta-lhe pelo número do telefone de Ervio. Tem saudades do seu velho amigo. Maara não abranda apesar do caminho ter deixado de ser claro, dissolvido em sombras várias que são outras tantas falsas pistas que vão dar a inesperadas paragens. Só o profundo conhecimento do lugar, o resto de palidez do céu atrás da colina e alguma concentração, fazem com que a rapariga não se perca. Reflecte e diz que não traz o telefone consigo e não sabe o número dele de cor. Sabe-o no entanto como se o tivesse gravado dentro desde que nasceu, da mesma maneira como percorreria estes carreiros de olhos fechados. Mente porque precisa de saber muito mais acerca de quem pergunta antes de entregar


desta maneira as respostas que tem. Aprendeu já a esperar dos outros qualquer coisa. Coisas piores à medida que a água se vai escoando do mundo. ‘Esqueceu o telefone!’, murmura Laago. ‘Que disseste?’ ‘Nada, nada.’ Depois da curva, a loja do português. Apagada, com as portadas cerradas. Apenas o cheiro do seu funcionar pairando ainda por ali, dissolvendo-se lentamente no ar: farinhas bichadas e vinho barato, a goma dos panos e o eco das vozes, o suor de quem assoma às portas, fermentações. Mesmo que o telefone estivesse consigo, e não dentro de um certo cesto num canto escuro do quarto, seria já tarde para o largar ali a carregar a bateria. Terá de se lembrar disso amanhã, quando for ao fontanário. Morde o lábio inferior. Sempre que algo a contraria castiga o lábio com os dentes desta maneira. ‘Dás-mo amanhã, não há pressa’, diz Laago. ‘A saudade que tenho do meu amigo pode esperar’. E sorri.


27 Pela milésima vez Ervio interrompe a rotina das leituras. Que arrepio é este que me tomou? Qual a razão desta tontura, deste frio que chegou e partiu? Vem cá fora premir o número de Maara nos botões do telefone celular. ‘Bip! Bip! Tzz! Tzz!’ O amor vê perigos e urgências em qualquer momento, em qualquer lugar. Ervio sentiu a noite descendo sobre a aldeia como um espesso cobertor. É isto que quer dizer-lhe, avisá-la. Pela milésima vez atenderá a monocórdica secretária anunciando num tom falsamente educado que Maara não está, neste momento, disponível. Ervio que ligue mais tarde. A um canto de uma certa casa jaz um cesto vazio. A roupa lavada que ele continha está agora pendurada, secando ao calor dividido do resto de luz do dia e do quarto minguante lunar. Quem disse que a lua é fria? A lua ferve! A noite, diz Laama, é um escuro cobertor de estopa que chega para nos abafar. Dentro do cesto o telefone de Maara, indiferente a todos os chamados de Ervio. Inerte.


28 Maara preocupa-se, no escuro do caminho. Não quer chegar à reunião trazendo Laago, carregando consigo essa sombra embaraçosa. Conhece o povo da aldeia, não quer pôr galhos secos na fogueira do falatório. ‘Namoras há muito tempo com Ervio?’, pergunta-lhe a insidiosa sombra. ‘É coisa para durar?’ ‘Temos os nossos planos’, acaba ela por responder. ‘Planos...’, suspira ele. ‘Nem imaginas os planos que já tive e dos quais fui forçado a abdicar.’ ‘Que dizes?’ ‘Nada, falava comigo próprio.’ Maara pensa rápido, enquanto caminha. Numa bifurcação, já perto do local da reunião, resolve seguir pela esquerda. Ouvem-se os murmúrios do povo, estão já perto. ‘Segue tu para a reunião’, diz para Laago, apontando o caminho da direita. ‘Eu tenho ainda de passar por um certo sítio a fazer uma certa coisa.’ ‘Vou contigo, não é aconselhável que uma jovem ande sozinha de noite por estes caminhos.’ ‘Que sabes tu destes caminhos?!’, diz ela irritada. ‘Estiveste muito tempo fora, já não conheces o lugar. Eu, pelo contrário, passo aqui os dias, passo aqui a vida. Sei muito bem onde piso. Insisto, deixa-me só que o que tenho a fazer é para fazer sozinha!’ De modo que Laago encolhe os ombros e se vê forçado a ficar para trás, tomando a direcção da direita. Maara prossegue durante um bocado por esse descaminho que é cada vez mais escuro, visando libertar-se: não pensa para onde vai, pensa apenas no que deixa para trás. O murmúrio da multidão deixou já de fazer-se ouvir, a não ser quando chegam a um uníssono, uma anuência colectiva. Quando o Secretário, inseguro, lhes pede que reiterem em voz alta que estão com ele, que não está só. Senta-se numa pedra e olha a noite estrelada. No meio das estrelas, a lua em


quarto minguante; a mesma que estará acabando de secar a roupa que deixou em casa. ‘Quanto caminhei hoje, meu Deus!’, suspira. Foi e veio do rio, seguiu para a escola, veio de lá para aqui, ainda por cima inventando uma desnecessária distância que a separasse da desagradável sombra. O calor não abrandou com a noite. O céu, mais que cobertor, é uma fogueira encarniçada; as estrelas, dispersas brasas. A blusa, acabada de vestir, já se cola ao corpo. Esperará mais um pouco, o tempo necessário para que Laago chegue à reunião e se misture com os outros. Só então irá lá ter. Sozinha, vinda da escola e ainda surpresa de não ter achado lá ninguém. Os trabalhos terão então começado. Irrita-se com esta propensão que tem para inventar algo de que possa culparse; para, logo em seguida, inventar outro tanto que a ajude a libertar-se dessa culpa. Ou então a propensão é do povo, sempre pronto a culpar. Suspira ainda uma vez. Suspira também a folhagem: ‘Shhhhhh!’ Como, suspirar a folhagem se nem réstia de vento há no ar? Torna a suspirar a folhagem: ‘Shhhhhh!’ ‘Quem está aí?’, pergunta Maara. Ninguém lhe responde. Será alguém que se esqueceu há muito do andar silencioso com que os camponeses andam no mato, alguém que ganhou já um modo todo urbano de andar? ‘Shhhhhh!’ ‘Quem está aí?’, repete Maara. Ninguém lhe responde.


29 O povo vem chegando, senta-se em pequenos bancos de madeira, nas pedras e pelo chão. A imensa mole tem os olhos fixos no círculo de luz que a lâmpada do candeeiro projecta, os tentáculos perdidos na escuridão. Um lago de gente ansiosa querendo saber da água que falta. Se não fosse vê-lo assim agora junto, ninguém diria que há na aldeia tanto povo! Por onde andará ele nos dias em que noites como esta deixam os caminhos desertos, povoados só de grilos e suspiros misteriosos? Por onde andará a água nestes nossos dias? O Secretário e o Engenheiro Waasser estão sentados lado a lado, no centro da luz, atrás de uma pequena mesa coberta por uma capulana. Não existem as costumeiras flores para alegrar a cerimónia, também elas secaram. Há apenas uns papéis para reforçar os argumentos e anotar aquilo que for dito. Aguardam. O Secretário tem uma orelha encostada ao telefone celular, a outra tapada pela palma da mão que lhe sobra, tentando que não o perturbem as conversas dos pequenos grupos, ilhas de opinião salpicando este mar de murmúrios. Querem dar o palpite do que há a fazer, querem saber o que vai ser feito. O Secretário está agitado. Sabe que na moringa que o seu discurso vai fornecer não cabe a água toda com que o povo sonha. De facto, não cabe lá água nenhuma. Fala com Ervio, aperta a orelha contra o telefone para conseguir ouvir o que Ervio tem a responder. Diz-lhe que ele é filho desta terra, que não se esqueça de que deve muito a este lugar. Pede-lhe que não os abandone, agora que não têm mais a quem chamar. Também os dois andaram juntos na escola, em alguma carteira, junto à carteira de Ervio, estará escrito Secretariozinho pela ponta de um canivete. Mais tarde cada qual seguiu o seu caminho: Ervio para a cidade, o Secretário para esta local responsabilidade, a responsabilidade de ver secar o pequeno mundo que está à sua guarda. ‘Que me dizes?’, insiste. ‘Acalma-te, estou a chegar’, responde Ervio. ‘Como, a chegar?’


Ervio ri-se: ‘Estou a caminho, acorro ao teu chamado antes mesmo de tu o formulares!’ E, casualmente: ‘Maara está aí?’ O Secretário olha em volta: conhece toda a gente, cada família, mesmo os ainda solteiros e as já viúvas, mulheres ímpares como Heera, sem fios que a liguem e perdurem. Vê a velha Caana com Floor ao colo, agora mais serena. Mas não vê Maara. ‘Não, não vejo Maara’, diz para o telefone. ‘Queres que pergunte por ela?’ ‘Não, não é necessário. Eu próprio perguntarei!’, diz Ervio. E desliga bruscamente o telefone. O Secretário inquieta-se. Será que a Ervio aborreceu alguma coisa? Será que foi a linha que caiu? Tantos são os problemas que o telefone resolve quantos os equívocos que cria! Vira-se para o lado, para o Engenheiro Waasser, e faz-lhe sinal de que os trabalhos vão começar. ‘Povo!’, grita, ‘vamos começar! A ajuda está quase a chegar!’


30 A velha Caana não sabe se a ajuda de que precisa está ou não para chegar. Pisca o olhos, repuxa a boca do lado direito. Faz assim sempre que se preocupa (Maara morde o lábio). Por ora Floor dorme tranquila no seu colo, as duas no chão. Mas, como será se a criança acorda e se põe outra vez a chorar? É já escuro, ninguém lava roupa no rio a esta hora. Maara há-de ter regressado, há-de ter passado por casa, há-de ter resmungado quando viu a porta aberta, a fogueira acesa, as galinhas espalhadas (só agora a velha Caana se lembra desses seus inúmeros esquecimentos, provocados pela pressa e por uma cabeça que não é a mesma de outrora). A seca também lhe doi, é certo, mais a mais por vir de par com uma seca interior. Como todos os velhos, também por dentro a velha Caana está secando. Mas, porque será que Maara não vem? Que será que a prende a outro lugar? E que tempos são estes em que os filhos se perdem pelos matos como gado tresmalhado? Perguntas a que a velha Caana não sabe como dar boas respostas.


31 Ryo e Laama já viveram muitos anos, conhecem o cansaço que Caana está sentindo. Laama diz que a natureza seca porque, tal como nós, também ela está ficando velha. ‘Qual quê!’, reage prontamente Ryo. Acusa-o de voltar ao mesmo erro de sempre, de querer medir a idade da natureza como se mede a idade dos homens. Que ingenuidade! Laama riposta, o cajado no ar. Claro que quer! Ryo que veja como o capim cresce e morre; ele que olhe as árvores e os animais. Tudo isso são partes da natureza. Se essas partes envelhecem está claro que a natureza também vai envelhecendo! Ryo ri-se. Se assim fosse, o que dizer das secas passadas? Será que a natureza envelhece e morre várias vezes? Será que nós morremos várias vezes? Laama matuta. Acaba por dizer que essas secas passadas eram uma espécie de doença, um aviso daquilo que estava por vir. ‘Esta não, esta seca é a seca definitiva! Depois dela só a morte!’, e inspira, satisfeito com a tirada. Entretanto, Ryo teve tempo de pensar, de afinar o argumento. Sorri. ‘Qual doença, qual morte!? As secas passadas eram exactamente como esta seca que hoje nos fustiga. Se as outras passaram também esta passará!’ Ryo abomina a lentidão, a imobilidade, os estados definitivos. Se esta fosse a seca derradeira como poderia continuar a haver mudança? Para ele, seja nos homens ou na natureza, depois da dor vem sempre a renovação.


32 ‘Olhámos a água mansa e achámos que era inesgotável. Víamo-la descer o rio e passar em frente à nossa aldeia sempre igual, todos os dias. É certo que por vezes descia mais rala, mas em compensação havia outras em que crescia mais até do que o necessário, alagando campos que se queriam apenas húmidos para que o que lá puséssemos pudesse despontar. Se foi assim com nossos pais, com nossos avós, porque não haveria de ser assim connosco? Raras vezes pensámos na água, nos preocupámos com ela. Afinal, de que serviria fazer de outro modo? O que pode o camponês face à imensa força da natureza? Se nos puséssemos a discutir as razões, tanto nos dias de míngua como nos de excesso, estaríamos delirando. Se, pior do que isso, nos puséssemos a contrariar a natureza, seria sem dúvida sinal de um pacto com forças que são malditas. Ocorriam-nos portanto outras ideias mais modestas: plantar isto aqui, aquilo ali, não plantar aqui o que achávamos que não viria a dar em coisa alguma. Por vezes simplesmente não plantávamos, passando os dias a trançar cestos, a enrolar o barro ou a escrever histórias de risos e gritos e corpos com a ponta da navalha na madeira escura, uma forma de nos vingarmos do tempo e de assegurarmos os significados, uma forma de ter saudades do tempo em que éramos crianças, deixando a nossa marca na escola da vida; quanto aos dias em que a alma nos escurecia, afogávamo-los em aguardente ou procurávamos o carinho das mulheres. É esta a natureza do homem, acordar tantas vezes sem suspeitar do que vai acontecer, daquilo que vai fazer! É a vontade, essa misteriosa coisa parecida com a água, embora não tão cristalina. Umas vezes inundando-nos num excesso, outras secando-nos numa gretada escassez. Muitas outras coisas nos aconteceram para além destas, algumas delas sem qualquer sentido ou explicação. Todavia, nunca nos ocorreu dizer à água que viesse ou que ficasse. Limitávamo-nos a esperar. Se o céu vinha branco deixávamo-nos encher de modorra e paciência. Se escurecia partíamos com as sementes para, assim que a água caísse, agir em conformidade. Somos assim, herdámos esta maneira de ser e não há como mudá-la. Se a planta despontava soprávamos-lhe como quem sopra as brasas de uma pequena


fogueira na mira de a fazer crescer. Se não, lamentávamos a nossa sorte e esperávamos a chuva seguinte.’ É isto que diz um homem enquanto os outros ouvem atentos, assentindo com a cabeça. Depois torna a sentar-se. Disse o que tinha a dizer, não há por que continuar de pé. O Secretário olha em volta. ‘Alguém mais quer falar?’, pergunta. ‘Estou espantado!’, diz outra voz. ‘Conheço estes campos como ninguém, é neles que vivo desde pequeno (já os lavrava a minha mãe). Concordo com uma parte do que disse o meu irmão; lamento, porém, que ele não tenha dito tudo. Espanta-me que ele tenha esquecido o resto, que é quase o principal. Não é de qualquer maneira que a água vem e vai, nem nós nos limitamos a esperar. Ela vem e vai de maneira organizada, há meses em que vem e há meses em que vai. E nós, sabendo que isso acontece, há meses em que agimos de uma maneira e outros em que agimos de outra. Só plantamos quando chove, é certo, mas sabemos mais ou menos quando vai chover. Sabemos quando vamos ter um dia trabalhoso!’ Ri-se o primeiro homem, despeitado com o desacordo deste que falou. Se ele sabe assim tanto porque não nos diz então se vai ou não chover? ‘Não foi isso que eu disse!’, responde o segundo. ‘Se o irmão não entendeu é melhor que me peça para esclarecer, não que me ponha na boca palavras que eu não proferi!’ ‘Se não disse, então devem ser estes meus ouvidos que já andam mal’, torna o despeitado homem com um sorriso escarninho. ‘Deve ser isso, os ouvidos do irmão que já andam mal!’, responde o outro. ‘Basta!’, corta o Secretário. A seca está dividindo o povo, criando conflitos. ‘Há mais alguém que queira falar?’, pergunta. Levanta-se um pastor, chama-se Praado. ‘Concordo com o segundo irmão’, diz. ‘Apascento o gado desde pequeno, primeiro o de meu pai e agora o meu. Concordo com ele, todos nós sabemos que há meses em que a água faz um capim viçoso, outros em que a falta dela o torna fraco e amarelo, incomestível. Mas concordo também com o primeiro irmão: aquilo a que assistimos hoje está muito além desse vaivém. A água desceu tão fundo, tão dentro do chão, que não me parece possível que de lá torne a subir. É o fim, irmãos. Tenho já bois que estão a morrer; e aquilo que morre não volta a nascer!’


O pastor Praado diz apenas isto e volta a sentar-se. Habituados a passar os dias com os animais, os pastores são homens de poucas falas. ‘O pastor tem razão’, diz ainda uma voz, sem mesmo se levantar. ‘É o fim!’ ‘Alguém mais quer falar?’, pergunta o Secretário. Não, ninguém mais quer falar.


33 Ervio apressa-se. O Land Rover cinzento avança velozmente pela estrada poeirenta, salta lombas, geme nos buracos, faz fugir as pequenas criaturas que há ainda no mato, levanta uma nuvem de poeira cor de palha que sobe até ao céu, manchando-lhe o azul. A que se deve esta pressa uma vez que não é de crer que seja para alimentar o relatório que lhe cumpre redigir? A seca é lenta a instalarse e a crescer, será também lenta a partir. A sua cura não depende de algo que Ervio possa fazer urgentemente. Um solavanco e entra no leito de um riacho, novo solavanco e sai dele para retomar o caminho sem sequer se ter molhado. Leva as mãos fincadas no volante, os olhos fixos na frente, lacrimejantes da poeira. Todos os seus sentidos se unem para levar a cabo aquilo o que se propôs fazer. Apenas o pensamento – o único sentido que é rebelde e indomável – diverge e deambula. Sente em volta, sem sequer ter de os olhar, troncos mortos de pé, pedras acinzentadas, alvíssimos ossos, poeiras e areias, palhas que são vestígios de culturas que não deram em nada – tudo da mesma cor. Sente o mundo embalsamado e lento, esfarelando-se, tão indiferente à sua chegada como o era à sua ausência. Novo par de solavancos para atravessar novo riacho já morto. Custa-lhe respirar. Estica uma mão para o assento a seu lado, agarra e bebe do cantil uma água tépida de gosto metálico. Pela janela desfilam pastores desocupados a intervalos regulares, imóveis e erectos como os postes de madeira que transportam electricidade de uma origem distante para um destino também ele longínquo, ambos fora do âmbito deste mundo que atravessam por não terem mais por onde passar. O fio que liga estes pastores não se vê, mas é por ele que se dão a conhecer onde resta ainda um pouco de água que o gado possa beber. Ao lado têm sempre um cão que interrompe o ladrar ao gado escanzelado para perseguir o Land Rover de Ervio e lhe mostrar os seus dentes afiados. Deixem-nos secar sozinhos!, parecem dizer. Deixem-nos morrer em paz! Para quê a pressa? Pelo que prometeu ao Secretário? Por Maara? No banco, ao lado do cantil, largado com impaciência, o telefone celular. Com o mostrador


ainda aceso para deixar ver a lista das últimas chamadas que tentou mas não logrou completar: Maara… Maara… Maara… Tentativas goradas, escusados e repetidos diálogos com a secretária electrónica que educadamente lhe propõe que volte a tentar mais tarde, fazendo-o com uma voz que de cada vez o surpreende, por estar à espera de ouvir uma outra voz. Nada justifica esta pressa. Todavia, Ervio tem esperança de conseguir chegar a tempo.


34 ‘Shhhhhh!’ ‘Quem está aí?’ E um vulto abate-se sobre Maara. A rapariga defende-se com valentia, passada a surpresa. Sabe pôr as unhas de fora quando é preciso. Arranha aqui e ali, onde pode e calha, mas que pode uma rapariga contra um vulto feito mesmo que por vezes calhe certo? Com a desvantagem da surpresa mais a que advém da diferença de constituições – a dela feita nas lavagens do rio, a outra de carregar pesadas pedras nas minas – Maara parece perder terreno. Até porque vai pensando em outras coisas quando devia concentrar-se na luta que leva a cabo para se defender: por exemplo, o telefone que deixou em casa e é para isto mesmo que serviria, para ligar a Ervio (alguma coisa o namorado descobriria que dizer ao agressor, mesmo que a uma distância assim tão grande). Ervio estudou, singrou na vida, quando quer sabe ser autoritário. ‘Larga-me, maldito!’, grita. Mas é como se aquela luta não fosse sua, como se tivesse a mente noutro lugar: no telefone adormecido, na loja do português onde o devia ter deixado, na mãe que levou Floor, na fogueira que ela esqueceu acesa, outra vez em Ervio, na vizinha das micaias que bem podia estar aqui espreitando. E também em Laago! Vem-lhe este último nome e enche-se de fúria. ‘Laago!’ O bafo quente já lhe sopra junto do pescoço, as pernas fortes prendem as suas pernas, um braço prende um dos seus braços, o outro procura o braço que ainda falta. Mais um pouco e será tarde. Ervio! Ervio! O braço solto da rapariga sonda o chão como um farol a escuridão, a sua mão tacteia areia e capins em desespero, como se precisasse de se agarrar a qualquer coisa para não partir. Ervio! Dá de súbito com uma pedra, volta a perdê-la, tacteia, parecia estar aqui e afinal não está, volta a encontrá-la, finca a mão nela, sente-a pesada, talvez não


consiga levantá-la, talvez sim, talvez consiga pegar nela como quem pega noutra pedra qualquer. Entretanto, o vulto procura o braço que ainda falta (onde se terá metido ele!?), enquanto murmura: ‘Calma! Calma! Não quero fazer-te mal!’ Mas a voz não parece dele, parece uma voz vinda directamente do poço de um obscuro instinto e saindo cá para fora como se fosse mais uma arma que ele tivesse ao dispor para quebrar a resistência à rapariga. Ela tem já a pedra na mão, nem sabe como a conseguiu agarrar nem como a levanta (todo aquele peso!), como puxa o braço para trás e o atira com toda a força que tem, a dela mais uma outra que conseguiu arranjar sabe-se lá onde, talvez na indignação. ‘Tup!’ A pedra bate no rosto de Laago, um som surdo que tem o condão de fazer esmorecer nele o tal obscuro ímpeto e de o deitar por terra. Maara levanta-se, cambaleando, mas depressa se recompõe e se põe a correr pelo escuro caminho como uma gazela que viveu aqui a sua vida e portanto sabe bem por onde pisa.


35 O Secretário anuncia o Engenheiro Waasser, diz que ele chegou à aldeia para ajudar. ‘Fale, Engenheiro Waasser!’ O Engenheiro Waasser agradece e fala. Confirma que chegou aqui com os seus homens para ajudar. O povo encara-o sem qualquer expressão. Será que ainda existe uma réstia de esperança? Será que não há esperança alguma? Para os fazer entender a questão, o Engenheiro Waasser vai ter de se esforçar. ‘Vocês têm-me visto trabalhar lá para as bandas do rio, pode dizer-se que já me conhecem apesar de estar na aldeia há tão pouco tempo. Cheguei para fazer as estradas e pontes de que tanto necessitam, para que pessoas e gado possam atravessar para o outro lado sempre que quisessem! Estamos todos na mesma luta, a da construção das pontes e estradas do desenvolvimento!’ ‘Como, do desenvolvimento?’, pergunta uma voz do meio da multidão. Todos se viram. É Praado. O pastor reage mal às metáforas e aos símbolos, não cabem no seu mundo de planícies pintalgadas de escanzelados bois, nervuradas por magros rios, hoje retorcidas tiras de areia, dentro em breve largas faixas. ‘Que estradas e pontes são essas?’, pergunta já de pé. ‘O rio está quase seco, atravessamo-lo bem, povo e gado, sempre que quisermos. Que estradas e pontes são essas de que fala o estrangeiro, meus irmãos?’ Pergunta ao povo apesar dos olhos postos no Engenheiro. Verdadeiramente, só a opinião do povo lhe interessa. O Engenheiro Waasser olha em volta e engole em seco. Torce as mãos, agarra com elas a ponta da capulana que cobre a mesa. Ganha fôlego. Este pastor vai ser um osso duro de roer. ‘Como te chamas?’, pergunta. ‘Que interessa o meu nome?’, pergunta Praado por sua vez. Mas depois, com insolência: ‘Chamo-me Praado!’


‘Pois bem, Praado: as estradas de que falo são as estradas de entrada e de saída dos produtos’, arrisca Waasser com voz de falsete. O povo anda irritado, secaram as humidades do seu proverbial humor, que ao mínimo pretexto se esboroa ou quebra. ‘Já lhe disse que não são precisas pontes! Nem sequer de estradas precisamos!’ Fala por si. Os pastores não precisam de estradas, basta-lhes espalharem-se pelas encostas perseguindo o gado, que por sua vez anda por onde bem entende. O Engenheiro Waasser torna a engolir em seco. Fez o que pôde em jeito de introdução, ver-se-á se é capaz de explicar o resto. ‘Hoje não são precisas pontes’, diz. ‘Mas, como será amanhã, quando voltar a água?’ O argumento é forte. Todavia, requer que se imagine aquilo que não há. E os sonhos do povo, já se sabe, mais secos não podiam andar. Praado ri, sarcástico. ‘Quando voltar a água? A água não volta mais!’ Di-lo virando-se para a multidão que o cerca. É aí que espera colher os seus apoios. Entretanto, multiplicam-se as dificuldades do Engenheiro Waasser. Eis que chega Maara desarvorada, fugindo do escuro e daquilo que lá quase acontecia. De perto nota-se terra na blusa, a capulana rasgada, nada da Maara de sempre, a Maara aprumada. Felizmente que é noite e todos têm os olhos postos na maneira como o Engenheiro Waasser vai tentar sair do aperto em que se meteu. ‘Que desenvolvimento é esse?’, torna o pastor Praado num tom de desafio. Maara tenta ser discreta. Olha em volta, procurando a velha Caana com Floor ao colo no meio da massa escura de corpos e olhares atentos àquilo que se diz. Será que o Engenheiro Waasser conseguirá mostrar-se à altura do desafio de Praado? Será que a velha Caana veio? Será que se cansou e foi embora? Maara avança com cuidado, pedindo licença. O Engenheiro Waasser abre e fecha a boca. Quer falar mas não descobre o que tinha para dizer. Olhava a multidão e deu com Maara, com esse vulto atravessando a custo o mar de gente como um pequeno barco de velas rasgadas arrostando com um vento difícil. Dá com ela ali perdida, procurando a velha Caana, e se havia encontrado as palavras do que tinha para dizer torna a perdêlas. Só lhe vêm ideias absurdas e escusadas, só lhe sai silêncio pela boca escancarada. E, portanto, só silêncio chega àqueles ouvidos todos. Notam-lhe a hesitação. Quem me dera que Ervio chegasse!, pensa o Secretário


atrás da mesa. Quem me dera que Ervio chegasse!, pensa Maara no meio da multidão. ‘Algum dia há-de chover’, acaba Waasser por dizer. Praado encara-o, os olhos em brasa.


36 Sou pastor, os pastores andam por onde anda o gado e o gado nunca se afastou muito deste lugar. Nunca saí daqui, não me faz falta o mundo mais vasto, chegame bem este que tenho. Conheço-o como ninguém pois enquanto os outros vão de casa à machamba, da machamba a casa, erro eu em volta atento às fronteiras que o gado possa atravessar para chegar a capim viçoso que morder. Atravesso estas fronteiras do espaço como atravesso as fronteiras do tempo: sei bem o que faziam os meus avós, é isso que quero que façam os meus netos quando chegar a altura de aqui os semear. Olho o Engenheiro branco e preocupo-me. Passo lento, com o gado a badalar, e vejo-o construindo pontes: para que servem as pontes a não ser para trazer gente de outros lugares? Vejo-o abrindo furos: para que servem os furos a não ser para minar os alicerces do pasto? Sobram-me poucos irmãos, bem sei. Um a um foram deixando o gado e partindo para outros lugares. No fundo, foram passando para o outro lado. De tal modo que hoje em dia é com temor que aguardo que amanheça. Há muito que se acabou o futuro, nada do que aí vem me interessa: só surpresas, malditas surpresas! A querer alguma coisa da técnica do Engenheiro seria que conseguisse prolongar para sempre o dia de hoje, que mantivesse o sol lá no alto por toda a eternidade, de modo a libertarnos deste terror do dia seguinte que todos os dias nos assola. Ou melhor, que inventasse uma maneira de podermos recuar: o amanhã deixaria de ser surpresa porque era igual ao ontem, os pastos voltariam a ser verdes, os pastores regressavam, primeiro os meus amigos, depois os amigos de meu pai, o gado engordava e eu tornava a ser criança, cada vez mais criança até voltar ao corpo da minha falecida mãe, o meu pai faria o mesmo anos mais tarde, entrando no da mãe dele, e avançávamos todos até deixar de haver pessoas, até à origem dos dias. Até chegarmos a uma planície infinita cortada por rios gordos onde o gado pastasse devagar. ‘Nada disto acontecia se não fosse o branco!’, grito. Olho em volta, enquanto um pesado silêncio desaba sobre todos nós.


37 Laama abana a cabeça, discordando. Está em tudo, ou quase tudo, de acordo com Praado. Aprecia o conhecimento que este pastor tem dos anos e das distâncias, os dois eixos principais. Vê o mundo como Praado o vê, fixo no seu lugar. Mas agora decepciona-se. A doença da natureza não pode ser fruto das acções dos homens – mesmo se de homens como o Engenheiro Waasser –, uma vez que só pode ser fruto das acções dos deuses. Ryo sorri. ‘É claro que pode resultar das acções dos homens!’, diz. ‘Que deuses se interessariam por estas pequenas coisas?’ Os homens bebem e regam, bebem também os animais; os técnicos enterram aqui os canos para levar a nossa água até à cidade. Algum dia ela teria de acabar! É a fé que tem na mudança que fala. Prossegue: ‘Entras em casa cheio de sede, chegas o gargalo aos lábios e engoles o que de lá escorre. O que esperas que fique dentro, a não ser o vazio? Queres ao mesmo tempo beber água e ter a moringa cheia?’, e ri-se da ingenuidade do companheiro. ‘Estás portanto de acordo com Praado’, observa Laama insidioso. Pensativo, inspeccionando a lógica de Ryo à procura de uma brecha. ‘Quase’, responde Ryo. E sorri. ‘Ao jovem pastor só falta um pouco mais de idade que o amanse, para poder chegar enfim à verdadeira sabedoria.’ Laama abana a cabeça, um modo de continuar a duvidar. Para ele o mundo é um grande lago imóvel e inesgotável, coberto por este chão que todos pisam. Ryo insiste. Talvez haja tanta gente na cidade, e com tal sede, que acabaram por gastar-nos toda a água que aqui havia e que os canos foram levando. ‘Nunca vi tais canos!’, reage Laama. ‘Nem tudo o que existe conseguimos ver!’


38 O silêncio que se instala é embaraçoso. Como se cada um tivesse o misto de alívio e de vergonha de ver formulada uma convicção ilegítima mas arreigada. Agora que o indizível foi dito, o Secretário não sabe o que dizer. Evita olhar o Engenheiro Waasser nos olhos. Amanhã dir-lhe-á que compreenda, que é o desespero do povo falando, não a sua alma. Olhe-se um camponês sem água e o mesmo camponês com a sua horta verdejante e não parecem a mesma pessoa, dirá. Mas hoje, não. Hoje o Secretário não pode mostrar essa compreensão. Já que se fala em pontes, esticar a ponte que liga o Secretário ao povo é uma coisa, rompê-la é outra bem diferente. Por alguma razão ele é o Secretário! ‘Alguém mais quer dizer alguma coisa?’, pergunta, esforçando-se neste momento por emprestar à voz um tom autoritário. E o povo e o Engenheiro Waasser ficam sem saber o que pretende o Secretário, se remexer na ferida ou procurar outro assunto para que entretanto esta possa ir secando. Olham todos o Engenheiro, que deve estar preparando a resposta. Mas, ai dele!, que se perde olhando Maara toda descomposta, pequeno barco de velas rasgadas atravessando o mar de gente em busca de sua mãe. ‘Outra vez a rapariga!’, suspira Waasser. ‘Como?’, pergunta o Secretário. ‘Nada, nada.’ A velha Caana também olha Maara e quer saber por onde andou. O Secretário também olha Maara, dando enfim com ela e pensando em Ervio. Se esta situação se mantiver a rapariga acabará por atrair os olhares do povo, é sabido que uns olhares atraem sempre os outros. Por este andar o povo também olhará e não se sabe como será. Felizmente que chega um zumbido de abelhas, Ryo diria que o zumbido da seca voando desvairada, Laama que não, e estaria com este último a razão pois afinal é o Land Rover de Ervio galgando a encaracolada estrada cheia de covas e lombas, serpenteando por entre os troncos nus a que se resumem hoje em dia as árvores, por vezes desaparecendo atrás delas ou dos muitos outros obstáculos,


apenas a luz dos faróis espreitando e voltando a esconder-se, espreitando novamente, um ruidoso pririlampo, zumbido e luz ao mesmo tempo, motor e faróis, tudo isso manobrado por um exausto Ervio que pisa a fundo no travão assim que a estrada desemboca junto da pequena multidão. ‘É Ervio!’, exclama o Secretário, aliviado. ‘Só pode ser ele!’ E grita para a multidão: ‘Vem aí a nossa ajuda!’ Todos se viram quando o Land Rover se cala e apaga, imerso na nuvem de pó que ele próprio levantou e que a noite mal deixa ver, apenas adivinhar.


39 Quem me dera que Ervio chegasse!, pensa Maara, ainda tudo isto estava por acontecer. E afinal quem chega é Laago, no rosto o mesmo sorriso brilhando no escuro, embora um sorriso de desconjuntada simetria em resultado do inchaço provocado por uma certa pedra que ali foi embater (‘Tup!’). Ele olha e vê-a, debalde tenta piscar-lhe o olho uma vez que o tem fechado em resultado desse inchaço, acena-lhe de longe um cumprimento, tudo isso como se esperasse que lhe fosse retribuído um aceno igual. ‘Quem é aquele?’, pergunta a velha Caana, experiente em entender olhares (em adivinhar para onde apontam). ‘Chama-se Laago’, responde Maara. ‘Laago? De onde o conheces?’, inquire a velha, farejando a filha numa desconfiança. Tem razões para tal. A razão principal é Floor, a criança que tem ao colo. ‘Quem é ele?’, torna a velha. ‘Chama-se Laago, já disse. É amigo de Ervio. Explico-lhe mais tarde, mãe.’ A explicação ficará para mais tarde pois na reunião tudo continua acontecendo.


40 Ervio nasceu aqui. Quase todos os mais velhos se lembram de o ter visto brincar e crescer, quase todos se lembram de o ter visto partir deixando atrás de si esse rasto forte, um rasto que ainda hoje o liga a este lugar e que se chama confiança. Ervio é uma prova concreta de que o sucesso está ao alcance de todos, por isso cada conquista dele é uma conquista popular. Ervio carrega o povo, representa-o na cidade. ‘Viajei sem parar, atravessei rios secos e estradas poeirentas, planícies mortas, florestas de pedra, montes que se esboroam e ossadas que são resíduos de tudo aquilo que antes vivia. Para quê? Para aqui chegar e convosco poder falar! Lá, onde trabalho, estudamos dia e noite este nosso e vosso problema, todas as máquinas que temos estão viradas para ele!’ Novamente as máquinas! Máquinas por toda a parte!, pensa Praado, impaciente, no meio da assembleia. A esperança que cresce nos olhares empolga Ervio, cada um deles parece pedir-lhe uma protecção particular. Prossegue. Diz que não pode fabricar a água, sabe bem disso, mas se ela não voltar a brotar uma coisa ao menos pode garantir: trá-la-á de outro lugar! O povo alegra-se e murmura, afinal a água está mesmo para chegar. Até ao Engenheiro chegam ingenuidades de espectador. Como não me veio antes a ideia que este jovem está tendo?, pensa. Se a água regressasse, fosse por que meio fosse, voltaria a urgência de desenhar e construir pontes, rasgar estradas, desenvolver! Já quase se celebra, já quase é a alegria e a dança com que se costuma celebrar a chegada da chuva. Até Praado vacila: afinal é por esses canos suspeitos de estar levando a água que a água vai chegar? ‘E quando vai chegar essa água?’, pergunta o pastor, já de pé. O povo é assim, considera dito o que está ainda por dizer. As perguntas que coloca furam as diversas camadas até chegar ao âmago das coisas, ao caroço do fruto.


Ervio encara Praado. A sua prudência faz rápidas contas. ‘Eu não disse que vamos fazer chegar a água’, acaba por dizer. ‘Disse apenas que vamos tentar, sem saber ainda se vamos conseguir.’ Afinal Ervio é bem filho do povo: tem o alcance que o povo tem, não tão grande quanto a princípio se pensava. Grande a valer, agora, é apenas o desafio de Praado, que retornou e não cessa de crescer. Os olhos em brasa outra vez.


41 Ryo e Laama têm a sabedoria dos antigos. Nem sempre é fácil chegar àquilo que se esconde atrás do óbvio, requer a idade que os dois têm mais esse vício de espreitar a natureza. Olham a mesa da reunião, olham a assembleia e não lhes parece que as coisas estejam a ir por bom caminho. Olham Ervio e abanam a cabeça, surpresos com aquilo que a cidade fez do rapaz. Passeia-se dentro do tempo, para trás e para diante, com grande futilidade, referindo coisas que ainda não aconteceram como se fossem obras consumadas. Fala num peixe já assado, detalha os condimentos, os fumegantes e cheirosos sucos, e quando o povo abre a boca para o comer reconhece que ainda nem sequer o pescou! Os dois velhos olham Ervio e vêem um encaracolado fio de água prestes a secar. Olham o Engenheiro Waasser e vêem-no já seco, o olhar penteando a multidão à procura não se sabe bem de quê, talvez de um certo olhar. Olham o Secretário, que costuma pastorear os sonhos do povo, e concluem que deixa o gado tresmalhar-se. Enfim, olham Laago, que não reconhecem (quem é este rapaz?), e preocupam-se. Para Praado nem precisam de olhar, há muito que sentiram o calor dos olhos do pastor. Olham e reflectem. Normalmente parecem terra e água, obra e fantasia, mas nos momentos certos sabem fazer com que as duas sejam uma só. Erguem-se, dispostos a uma fantasiosa obra. Erguem-se e levantam os braços magros para que toda a gente neles possa reparar. ‘Irmãos, o melhor é fazermos as cerimónias!’, propõem em voz alta. ‘Se elas não trouxerem o elemento precioso ao menos revelarão porque se tornou ele tão raro!’ E ninguém, nem mesmo Praado, se atreve a discordar.


42 As palavras dos dois áugures têm o condão de, à uma, serenar e agitar a assembleia. Como se, num salão, finda uma severa liturgia, se empilhassem as cadeiras a fim de abrir espaço para o baile começar. Sagazes Ryo e Laama! Trazem-se os tambores para furar a noite com o seu som, aquecem-se as peles nas fogueiras, ensaiam-se os primeiros fraseados: ‘Tutu titi, tutu titi!’ ‘Tu tikitu tu, tikitu, tikitu tu!’ Logo em seguida, chegam as sagradas águas dentro de específicas panelas, minúsculos ossos e conchas de origem distante, cinzas várias, cada qual com seu nome e seu propósito, espalhando-as o sopro das murmuradas rezas dos dois velhos que são, neste momento, os requerentes e os donos das palavras. Ryo utiliza-as para chamar a água como quem chama uma criança teimosa escondida num arbusto. Estende as mãos para essa criança imaginária que com surpresa todos afinal conseguem ver, dizendo-lhe mansamente que venha, e sem receio, que todos ali lhe querem bem. ‘Vem, menino, vem...’ ‘Tu tikitu tu, tikitu, tikitu tu!’ Laama, mais severo, não perde a oportunidade de contradizer o amigo, recorrendo antes a uma reza mais grossa, como quem repreende um animal renitente em sair da toca. Franze o sobrolho e ameaça com gestos bruscos, ao mesmo tempo que solta urros sacudidos para, ajudando o povo a imaginar o bicho, melhor concretizar a tarefa que tem em mãos. ‘Hop! Hop! Hop!’ ‘Tu tikitu tu, tikitu, tikitu tu!’ Gargalhadas infantis ou obstinados rosnidos, uma das abordagens surtirá o efeito desejado! E, mesmo sem chegar a água propriamente dita, desce ao menos ao terreiro o alívio que haveria se ela chegasse.


43 ‘Anda, levo-te a casa de carro!’, diz Ervio, concluída a cerimónia. Dispersas as cinzas. ‘Porque não atendes o telefone?’, acrescenta. ‘Porque estás assim nesse estado, rasgada e descomposta, assim ofegante?’ Demasiadas perguntas se sucedem, tensas e urgentes, como se das respostas que espera dependesse o relatório que o trouxe cá. ‘Não estou só, estou com a minha filha’, diz Maara devagar. Ervio engole em seco. ‘Levo-vos às duas!’ ‘Estou também com a minha mãe.’ ‘Levo-vos às três!’ Ervio está taciturno. Não só pela reunião mas também porque Floor, pequenina, projecta ainda assim espessa sombra. Todavia, levará quem for preciso desde que leve também Maara, com quem precisa de falar. ‘Vamos então’, diz Maara. Ervio ajuda a velha Caana a subir para a traseira do Land Rover. ‘A minha mãe devia vir na frente’, diz Maara, segurando Floor. ‘Tem mais idade.’ A criança ainda dorme. Depois da longa angústia que a tomou dormirá tranquilamente muitas horas. É do seu feitio. ‘É contigo que quero falar, não com a tua mãe!’, diz Ervio. Arrancam, deixando para trás o colectivo assombro que é verem a família da velha Caana partir assim motorizada. ‘Porque não atendes às minhas chamadas?’ Voltam as perguntas, umas a seguir às outras, enquanto os faróis sondam o caminho. Maara fecha os olhos, aconchega Floor no colo. Está cansada, anseia por um tempo só para si. Tantas coisas cabem num só dia depois de tantos dias sem ter dentro o que se visse! No espelho retrovisor, a velha Caana é um pequeno vulto segurando o taipal com a desajeitada concentração com que os


velhos vivem o tempo actual, aquele que está para lá do tempo deles. ‘Viste como a minha filha cresceu?’, pergunta Maara. Uma maneira de adiar as respostas que as perguntas todas pedem. Ervio lança uma mirada rápida a Floor, mas volta a concentrar-se no caminho. Está escuro, os caminhos das aldeias escondem muitas armadilhas: dissimuladas árvores próximas do percurso, pedras aguçadas que caprichosamente ali foram parar, malévolas curvas, bolsas de areia solta capazes de fazer com que os veículos mais concentrados percam o tino. ‘Está escuro, amanhã repararei melhor’, responde. Pensa nas duas, enquanto conduz. Vem-lhe à ideia que por vezes, para se chegar ao fruto suculento é preciso atravessar folhagem espinhosa, rugosas cascas. Se entre ela e ele existe um telefone, entre ele e ela existe Floor. Descrevem a última curva e param perto da casa. ‘Chegámos!’, diz Ervio. ‘Ajuda a tua mãe a entrar, deixa com ela a tua filha. Precisamos de conversar!’ ‘É tarde’, murmura Maara. ‘Prometo que não demoramos’, insiste ele. Maara desce. Com uma mão segura a filha adormecida, com a outra ajuda a mãe a descer. Depois, enquanto a velha Caana entra, volta para junto de Ervio, que mantém as mãos fincadas no volante. Em que pensará o namorado? O que o leva a fincar assim as mãos? Volta-lhe uma certa culpa que ela tão bem sabe inventar. Culpa de um mau encontro, de um telefone descarregado. Culpa também de Floor? Não, nunca culpa de Floor! Atrás das micaias, a curiosidade da vizinha é uma insónia.


44 Por que será que Ervio, sempre tão apaixonado, tratou Maara desta maneira? Ryo diz que são ciúmes, Laama que é da seca. ‘Como ciúmes?’ ‘Como da seca?’ Ryo explica que o ciúme é uma cor que distorce as cores restantes, uma sensação capaz de falsificar todos os outros sentidos. Se Maara não atende o telefone diz o ciúme que é porque a rapariga quer silêncio e distância para levar a cabo aquilo que não pode revelar; se traz a blusa rasgada é porque alguém lha rasgou, em alguma passagem escusa do seu dia. Laama ri-se. Duvida que Ervio sinta assim. Em tempos mais húmidos Ervio imediatamente trataria de carregar a bateria do telefone à namorada, imediatamente lhe ofereceria uma blusa nova. Tudo isso rindo. As explicações fantasiosas do amigo estão longe de convencê-lo. A resposta está na falta de humidades, na alma de Ervio que está secando. ‘Os homens são como as árvores’, diz. ‘Falta-lhes a água e secam. Olha as nossas peles como estão mais engelhadas que no ano passado.’ Ryo duvida desta interpretação. Se estão mais engelhadas é por causa do tempo que passou! Segundo ele, estão é ambos a ficar velhos! Laama insiste que se vê a seca nos troncos como se vê na pele. Não nos iludamos, pois também à alma afecta a escassez de humidades. Não nos iludamos, Ervio padece dessa escassez!


45 Arrancam novamente, Ervio ao volante. Desta vez sem um destino que não seja o de apurar a razão dos seus temores. Maara vai calada, disposta a ouvir e a explicar-se. Misturam-se nela um certo nervosismo, quase medo, com uma ponta de paciência e outra feita da referida culpa. Nestas horas em que todos dormem as aldeias pouco têm que se deixe ver além da escuridão. Uma fogueira aqui, outra ali, todas elas viradas para dentro, nenhuma iluminando o escuro. Já não é hora dos grandes grupos nem dos públicos espaços. Agora é cada casa por si, de costas viradas para a noite e para os outros. Quanto muito fazendo vingar estas íntimas fogueiras. O Land Rover circula como se fosse ele a escolher caminhos para os indiferentes passageiros, ocupados um com o outro. O seu som vara o escuro como uma casa ruidosa e móvel, dentro dela luzindo o ciúme, tremeluzindo o receio e a paciência. ‘Porquê os teus silêncios? Porquê a blusa rasgada? E que ar ofegante era aquele?’ Volta o martelar das perguntas, o exigir de respostas. Maara engole em seco, explica como se acabou a carga do telefone, como se esqueceu de o deixar na loja do português; como, quando se lembrou, esta tinha as portadas cerradas. Quanto à blusa rasgada, nem sabe como isso aconteceu. Rasgou-se no espinho de um ramo baixo ou coisa assim. As preocupações são também desatenções, não se pode estar atento a tudo ao mesmo tempo. Pensou na falta de água e esqueceu o telefone; pensou em Floor e deixou rasgar a blusa. Tudo culpa desta sua cabeça que não presta para nada. ‘E o ar que tinhas?’ ‘O ar que tinha é o ar que tenho. Este mesmo ar que no ano passado te prendeu!’ Será que o ar era o mesmo no verde ano que passou? Ervio queda-se na dúvida e a dúvida é uma forma de fraqueza. A sua inquietação esmorece. Afinal a explicação é bem mais simples, bem menos preocupante. Foi apenas a cabeça dela, coitada! A dificuldade com que Maara lida com a tecnologia enternece-o.


Diz-lhe que não pode descurar estas questões, que tem de fazer um esforço para ter o telefone sempre carregado. ‘Sim, Ervio.’ ‘Afinal, é para isso que eu to ofereci’, não consegue deixar de acrescentar. ‘Sim, Ervio.’ ‘Ah, e lembra-me de deixar-te amanhã algum dinheiro para o crédito, calculo que deve estar a chegar ao fim.’ ‘Sim, Ervio.’ Estão já perto do rio, foi para ali que o Land Rover os levou. Sim, Ervio. Estão junto da cerca que delimita o estaleiro do Engenheiro Waasser, sob a alçada da sua sombra estrangeira. Sim, Ervio. ‘Já viste o teu irmão?’, pergunta Maara, uma forma sagaz de encontrar novos rumos para a conversa. ‘Não’, reponde Ervio. ‘Ainda bem que me falas nele. Com todas estas preocupações quase me esquecia.’ Ainda bem que falei nele, pensa Maara. Talvez ele te distraia e assim deixes de tentar adivinhar em mim aquilo que trazes dentro de ti. ‘Vamos então vê-lo agora’, diz ela. ‘Tenho tempo de vê-lo amanhã, antes de partir. Agora quero estar contigo.’ ‘É melhor que o vejas agora que entrou ao serviço, amanhã não se sabe por onde andará’, insiste Maara. ‘É aqui perto.’ ‘Vamos então’, concede Ervio. Estão já perto, curvam; deixam a estrada e transpõem o portão. Percorrem a distância que ainda falta, curta assim de carro. Os faróis do Land Rover varando a noite. O estaleiro é um amontoado de ferros e máquinas com estranhas formas, sacos de cimento, caixotes de madeira e contentores de metal, tudo matéria de que são feitos os trabalhos do Engenheiro Waasser, tudo largado ao acaso pelo descampado, inútil por faltar a água que permita transformar em acto a intenção. O estaleiro traduz o desnorte que tomou conta da equipa do Engenheiro Waasser nos tempos que correm. ‘Gaato!’, grita Ervio da janela. ‘Gaato!’, e não lhe vem resposta. ‘Deve estar a dormir’, conclui. ‘Este meu irmão passa metade da vida a dormir, por isso metade da vida lhe passa ao lado.’ ‘Cada um vive a vida que acha ou pode’, diz Maara. ‘Gaato!’, repete Ervio. Só lhe vem silêncio.


‘Gaato’, sussurra Maara. E Gaato surge de trás de uns varões de ferro. Traz, brilhando no escuro, aquele sorriso fixo que não o larga nunca, mesmo se assim escondido atrás do gorro de lã e da puída gola levantada. E uma magreza que o grande capote, manta esgarçada, esconde. Por mais que a noite aqueça está na natureza dos guardasnocturnos ter frio. Maara sai do carro e pousa a mão no ombro de Gaato, que sorri. ‘Maara!’ ‘Gaato!’ Ervio sente um ciúme surdo, não só por ver Maara tocar assim no ombro do irmão, mesmo se por cima do capote, mas por Gaato ter respondido apenas ao chamado dela, não ao seu. Como se o nome do irmão pudesse ser pronunciado com dois sotaques e Gaato fosse surdo ao sotaque da cidade. Mas eis que Gaato também para Ervio abre o seu sorriso e é como se houvesse um anjo dentro dele e esse anjo se soltasse. Como ter ciúmes de um anjo assim? Pele rude, dentes estragados, uma perna rígida, mãos grossíssimas, capazes apenas de esboçar acções, não de as levar a cabo com finura e precisão. Mas eis que se abre aquele sorriso e tudo isso se transforma para dar lugar ao sereno e límpido modo de ser de um anjo. ‘Ervio, meu irmão!’, exclama. Maara olha os dois. Umas vezes são tantas as parecenças que olhamos e dizemos: são irmãos, têm de ser irmãos! Outras, é como se o acaso colocasse num só lado tudo o que havia para dividir. Assim foi desta vez, e com Gaato ficou apenas aquele sorriso. Todavia, um especial sorriso. ‘Com um sorriso destes o teu irmão só pode ter um anjo dentro dele’, conclui Maara.


46 O Engenheiro Waasser está sentado no escuro da varanda. Nas mãos tilinta o copo de whisky, incoerente som de húmidos e furtivos passos atravessando pé ante pé a secura da noite. Pelo ar parado voam os lamentos dispersos de um Lied de Schubert. Na maioria dos dias o Engenheiro Waasser esquece-se dos sinais da sua terra, mostra-se pronto a trocá-los por outros. Cada novidade que aqui descobre é mais um virar de página no livro do passado. A não ser quando um golpe de vento, como este por que acaba de passar, folheia o livro ao contrário. Ainda esta manhã, ouvindo os seus homens cantar enquanto trabalhavam, divertia-se e achava que aqueles sons podiam bem um dia vir a ser os seus próprios sons. Agora, porém, a voz da Gundula Janowitz chega-lhe aos ouvidos como se fosse a voz da sua alma: ‘Meine Ruh’ ist dahin, Meine Freud’ ist entflohn, In dem Säuseln der Lüfte, In dem Murmeln des Bachs, Hör ich bebend nur Klageton.’1 Pinheiros negros no lugar do capim branco, musgo em vez da poeira, noite cerrada escurecendo o meio-dia, água fria para apagar este fogo que trago dentro de mim. Na Klaglied, como se fizesse coro com ela, imiscui-se porém o ruído de um motor que vai crescendo até chegar à base dos degraus. Só nessa altura se cala. É Ervio. Deixou Maara em casa, atenuadas por ora as dores que o perseguiam. Errou pela aldeia adormecida, deixou-se trazer até aqui. Desliga as luzes e salta do Land Rover. ‘Boa noite, posso entrar?’ Dizendo isto, Ervio olha o estrangeiro, e parece-lhe tê-lo já visto num qualquer


lugar: num aeroporto, numa conferência ou coisa assim. Quanto a Waasser, olha o recém-chegado como quem olha um espírito que o veio atormentar. Ervio, moderno, vasculha a memória; ao passo que a Waasser assaltam antigas e obscuras suspeitas. De onde será que se conhecem?, perguntam-se um e outro. E a resposta seria que se conheceram nas cercanias da camponesa Maara: enquanto um lhe lançava perguntas pelo telefone, o outro, cheio de indefinidas intenções, vagueava ao alcance do olhar da rapariga. ‘Posso entrar?’, repete Ervio. ‘Entre, entre’, responde Waasser. E, sarcástico: ‘Vem acusar-me de quê? Também me vem pedir contas dos humores da natureza?’ A reunião deixou-o exausto. Por hoje já cedeu tudo o que havia para ceder, não está disposto a ceder mais. Ervio entende, mostra-se delicado, percebe o momento difícil por que o Engenheiro acaba de passar. ‘Estamos do mesmo lado’, afirma. ‘Posso entrar?’ ‘Entre!’, diz a sombra tilintante, mergulhada em álcool e gelo e melancolia. Ervio quer, desculpando a sua gente, ajudá-lo; e quer que o Engenheiro o ajude a pensar no que fazer. Mas esta noite Waasser navega em outras águas e é para elas que tenta arrastar Ervio. ‘Se me quer ajudar, beba também um copo!’ ‘Jawohl, ganz recht!’, diz Ervio. Waasser surpreende-se. ‘Como assim? Fala a minha língua?’ ‘Já estive na sua terra, de alguma maneira devo a ela aquilo que sou. Foi lá que estudei os segredos da água.’ ‘Brindemos então a isso! Brindemos à minha terra!’, diz Waasser. São agora duas sôfregas sombras tilintando no escuro da varanda. Ervio ainda menciona a água e aventa possibilidades técnicas que a façam regressar, mas apenas vagamente. Quanto ao Engenheiro Waasser, recusa-se a entrar por tais caminhos. Prefere contar a Ervio de uma bela rapariga que quer cativar. Ervio fala então de uma bela rapariga que já cativou. ‘Poderosa aldeia que produz duas raparigas assim belas!’, concluem um e outro, os copos ao alto. Ambas lavando no rio, porventura amigas. E tudo isto serve para aproximar ainda mais aqueles dois homens. Passado um pouco cantam os dois com a Janowitz, são canoras sombras tilintantes. Também Ervio encontra nesses


inexpugnáveis sons guturais um certo refrigério. 1 Vai-se a minha paz, / Esmorece a minha alegria, / No sussurro do vento, / Nos regatos murmurantes, / Ouço apenas uma trémula canção de lamento.


47 Nasci, diz a lenda, de uma bela princesa fugitiva atraída pela luz do ocaso, coberta de finas penugens, musgos louros pingando humidades, pequenas ervas todas elas catalogadas, cada qual com o seu cheiro, o seu nome latino e a sua utilização: arnica e hortelã e zimbro e cidreira e aniz e malva e tília e poejo e alecrim e salvia e verbena e urtiga e alfazema. Sacudida pelo salto das corças e o pulo das lebres, salpicada de ovelhas perdidas, dividida pelo rasgo azul de rios alegres e cristalinos serpenteando por entre pedras e musgos, e também por encaracolados caminhos ligando povoados e direcções, afagada por folhas de Outono e um chuvisco permanente, ritmada pela elástica alternância de dias escuros e noites luminosas, pelo som cru do machado na madeira dura, amaciada pela paciente espera dos lobos e pelo fumo dos casebres (pelo seu cheiro a pão), acarinhada por contemplativos faunos, protegida pela sabedoria dos druidas, agitada pelo esvoaçar de fadas e libélulas e aspergida por um pó de estrelas, perturbada pela ambição de vetustos e rugosos pinheiros que tentam sempre chegar mais alto, e finalmente adormecida por uma perversa história com o respectivo fundo moral, por um ajeitar da manta que me cobre até ao queixo, pelo embalo dos grilos, pelo contar de infinitas e ordeiras ovelhas que saltam as cercas do céu, cada salto assinalado por um sábio piar de mocho. Serei eu dessa floresta? As lendas esfumaram-se, escoou-se o canto do alaúde através das ameias dos castelos, desapareceram os livros e o cheiro quente do papel. No seu lugar surgiu um labirinto de feiras pagãs regadas a cerveja e gargalhadas, imersas num som de gaitas-de-foles, uma floresta de prédios cinzentos abatidos pelo peso de dias sempre iguais, por um céu retalhado de fios e fumos, cabos e catástrofes, antenas e ansiedades, e por caminhos cada vez mais largos, monótonos e direitos. Caminhei seguindo as setas dos passeios e as luzes dos semáforos. Perdidos os livros, aprendi a ler em despedaçados cartazes vermelhos que se desprendiam de paredes arruinadas e cujo voo pífio foi interrompido por espinhosos rolos de arame farpado dividindo as duas metades da maçã que foi preciso voltar a juntar


– a metade sã e a metade podre –, submeti-me desde sempre ao princípio de que cada obra feita é sinal de que há outra ainda por fazer, cumpri regras, provei os frutos mais doces que me deixaram na boca um rasto amargo. Quem sou eu, afinal? Porque me cansei? Que faço aqui nesta terra de corpos também cansados antes mesmo do esforço decisivo, nesta terra exangue onde os homens se imobilizam e apenas o peito arfante e os olhares ansiosos se movimentam? Olhares que pesam como chumbo, construídos sobre uma fundação de palavras feitas de silêncio ou de algo que não trazem agarrado às letras que lhes pertencem, metáforas e alegorias, mensagens dissimuladas, escusos propósitos, defesas ou perdidas aspirações? Quem as pronuncia tem os músculos secos, quase imóveis, agitados apenas por este respirar de pássaro doente. Que maldição é esta que me atrai para um poço seco e sem fundo? Quem é ela, cujo número não possuo? Bebamos!


48 Nunca ninguém viu uma trovoada assim. Seca, sem um pingo de humidade que lhe amaciasse o rasgar. No começo era uma longínqua agitação, rumores de uma desavença ao fundo da celestial planície que nem interferiam nas rotinas mais triviais. Maara resmungou na altura qualquer coisa, esticou a mão até tocar o minúsculo volume da filha, até sentir que esta respirava, e virou-se para o outro lado continuando o sono sem ter chegado a sair dele. Depois, pareciam pedras gigantes rolando pelas encostas do céu, mas um rolar ainda tão longínquo que se misturava ao sonho sem sequer o disturbar. Um som que aceitava o enredo que fosse, fingindo-se parte dele. Fazia de voz grossa se era alguém que ralhava, fazia até do que era – uma longínqua trovoada – se necessário fosse. Por um momento pareceu até afastar-se, voltando os sonos a ser mais quietos: da criança, da rapariga e da velha. Mas depois irrompeu subitamente como uma explosão reciclada do tempo da guerra que há tempos se acabou e teima em regressar. O tal rasgar bem seco prolongando-se até ao limite em que se esperava que acabasse, continuando todavia para lá dele. Maara despertou sentada. A seu lado, Floor chorava baixinho, um chorar interior, receoso de atrair as atenções. A velha Caana estava já de pé perto da porta, esticando a mão para fora a ver se sentia as primeiras gotas grossas de uma chuva que normalmente estes sons fazem cair; aguçando também o velho nariz para sentir o cheiro a formigas esmagadas por esse ar pesado que se instala antes da chuva. Qual cheiro! Qual chuva! Nem sequer aquela discreta sacudidela de vento que, com precisão meticulosa, assinala a viragem. Tudo como antes, seco e parado! Fervendo, só que num ambiente de ruidosas explosões de luz e som, como se tivéssemos passado a avançar aos solavancos, sem as velhas distinções entre dia e noite, entre ruído e silêncio. Como se faltasse óleo na engrenagem do tempo. E nós, fantasmas piscando calados. Lá fora, nem piado nem balido, que os animais se fazem invisíveis nesta altura. Nem sequer um restolho da folhagem. Apenas uma universal espera acendendo e apagando. E, talvez, uma sombra furtiva atrás das micaias, tão


furtiva que a vizinha das insónias nem sequer notou. A velha Caana, agudíssima, só não sentiu o cheiro de Laago rondando a casa de Maara porque ainda o não conhece, só de o entrever fugazmente na distância, e de ouvir falar. Durou muito a fúria do céu, tanto que até o medo se cansou e esmoreceu. Maara sentada com Floor nos braços, a velha Caana no umbral perscrutando o escuro e suspeitando de sombras e cheiros que lhe são estranhos, esperando a tal viragem do ar que não há meio de chegar. Lentamente, voltam as pedras gigantes e fofas a rolar nas planícies lá de cima, depois os rumores da longínqua desavença quase resolvida (quase, outra vez, ameno diálogo), e finalmente um resíduo que ficou, um vazio no interior de cada um, onde estremecem, de quando em quando, ténues ecos do acontecido. Ryo diria que as abelhas partiram para castigar outro lugar. Laama discordaria, com base num argumento qualquer.


49 Mas neste aspecto Ryo e Laama estão de acordo: a trovoada é um resmungo dos deuses (isso até uma criança sabe). Discutem antes as razões que há por detrás desse resmungo. Ou seja, os mecanismos a que os deuses recorrem para o produzir. Laama avança com uma explicação simplista e preguiçosa: a trovoada não é mais que os elementos que há no chão – pedras e areia – dilatando com o calor, provocando com isso os conhecidos estrondos. Amigo das imobilidades, procura no chão a razão. Ryo ri-se da desajeitada explicação: se o fenómeno ocorre no chão por que será que o barulho, a sua expressão, se ouve no céu? ‘Um absurdo!’, conclui. A Ryo, fascina o movimento e por isso avança com a sua fantasiosa versão: a falta de água faz com que as engrenagens raspem umas nas outras lá no céu. ‘Como assim?’ Ryo explica: a água permite que as celestiais engrenagens encaixem harmoniosamente para fazer o mundo funcionar. Por isso costuma chover depois da trovoada, a chuva não é mais do que a acção dos deuses oleando as engrenagens da nossa vida para que esta continue a funcionar. Há que reconhecer que a explicação de Ryo é elaborada. Mas, versado que é na difícil arte da retórica e da argumentação, Laama dificilmente aceita uma derrota. ‘Se é como dizes, porque não chove então?’ E Ryo permanece em silêncio. Esse silêncio é uma forma de dar a Laama a razão.


50 Waasser e Ervio bebem com afinco, como só numa outra vida seriam capazes de beber. Uma vida de que o primeiro se cansou e que pelo menos no breve espaço desta noite seduz o segundo. Bebem e cantam, o que de certa forma acaba por surpreender o silencioso grupo que, com Praado à cabeça, chega para perguntar ao Engenheiro quando encontrará ele a água que diz procurar. Ou pior, para perguntar por que não a encontrou. Nalgum lado teriam de descarregar a frustração de pastores sem pasto, de sonhadores de sonhos secos. Praado chega mesmo a subir os dois degraus que vão dar à varanda, olhar feroz e bordão em punho, perguntando para o escuro e estranhando os sons que de lá chegam, da Janowitz desafiando a trovoada (Ervio e Waasser fazendo coro com ela). ‘Wie braust durch die Wipfel der heulende Sturm! Es klirren die Balken, es zittert das Haus! Es rollet der Donner, es leuchtet der Blitz, Uns finster die Nacht, wie das Grab!’2 ‘Entrem, entrem’, diz Waasser assim que sente o ranger da madeira dos degraus, pisada pelos pés grossos de calcorrear pradarias atrás do gado. Di-lo com a voz entaramelada e os cabelos em desalinho, se é que estes se conseguem ver no escuro da varanda. ‘Entrem, entrem’, repete Ervio com uma voz gutural, sem ficar claro se imita o Engenheiro ou se é a sua alma que se tornou, por um momento, estrangeira. Praado estremece. Parecia ao pastor que o mundo era mais simples, os dois grupos que existem ocupando cada qual o seu lugar, transportando um peso respectivo de motivações e aspirações. Que forças terá o Engenheiro Waasser para tomar assim a alma a Ervio? Quem canta a triste canção que sobe pelos ares da noite como se a terra padecesse? E, finalmente, porque se rasga o céu desta maneira se não cheira a chuva? Atemorizado pela incoerência destes sinais, Praado hesita a meio dos degraus.


Estalidos e rangeres. ‘Entrem, entrem’, vão dizendo os dois em coro, do escuro da varanda. Como se, tal como os sons da madeira e da noite seca, também estas palavras fizessem parte do libretto. Mas Praado dá meia volta sem sequer se despedir, e ordena, perturbado, a retirada. E o grupo, antes um corpo só clamando por vingança, esfarela-se em vários vultos desgarrados procurando cada qual, dentro da noite, debaixo dos seus roucos sons, o seu refúgio. 2 Nos cimos, soa raivosa a tempestade! / Rangem as madeiras, estremece a casa! / Estala o trovão, o raio ilumina o céu, / E é escura a noite, como na tumba!


51 Maara mal dormiu. Havia que proteger Floor da trovoada, embora não soubesse de que modo o faria. A criança dorme enfim, para as crianças a madrugada pode bem ser a noite que atrás se perdeu. Se pudesse Maara também dormiria! Mas há a água para trazer, o telefone para deixar na loja do português. E há Ervio que não chega, embora tivesse prometido chegar. Na certa estará também dormindo. Nota-lhe esta parecença com Floor e sorri. Mas, em seguida, vem-lhe à lembrança essa promessa quebrada e cerra o cenho. Por isso e pela noite mal dormida. Sai, equilibrando a lata vazia à cabeça. É cedo ainda. Melhor assim. Está só, pode dar largas à sua irritação. Seria um belo dia se fosse molhado, se ela tivesse na mão o telefone pronto a ligar, para esclarecer o que precisa de ser esclarecido. Se não houvesse a sombra de Laago que atravessou com ela a noite e que, mesmo à luz brilhante deste dia, custa a despegar-se. Se não lhe castigasse os ouvidos, como um golpe seco de vento, o riso do maldito. Badalam os sinos das vacas e ladram os cães dos pastores. Por ela passa Praado à procura da pastagem.


52 Este nosso fontanário, sempre generoso, segue hoje o correr do tempo: está exausto. Ultimamente tem rangido, espremendo gota a gota um magro fio de amareladas contas que martelam o fundo das latas de cada um. Sujas, todavia preciosas missangas. Mas dita o destino que quando Maara chega esse fio se rompa. Assim mesmo, como se fosse para a castigar. Estivesse Laama aqui e acharia ser da rapariga a culpa, alguma sombra que ela tivesse trazido agarrada. Maara fica em silêncio, olhando o furinho negro por onde o magro fio antes escorria. Em silêncio fica também a fila de gente que aqui chegou depois dela. E agora? Felizmente que alguém fala numa cova, purulenta ferida onde fermenta uma lama que as capulanas velhas ainda conseguem recolher e filtrar, não muito longe daqui. Partem todos para lá. Poderá até haver vantagens, filtrando-se a água de beber e, com a lama que sobrar, fazendo-se potes e panelas, moringas e pratos, coisas necessárias que as utilizações descuidadas estão sempre a quebrar. Mas assim que chegam perto há tantas questões prévias a resolver! Merece ser primeiro quem primeiro achou o buraco ou quem o cavou? Ou, mesmo, quem teve a ideia de o cavar? Merece ser primeiro o dono da terra onde o buraco está ou o dono da lata presa à corda que a faz descer? Merece ser primeiro quem se acha no direito! Merece tanta gente, até Maara merece por ter estado na frente da fila do fontanário, em primeiríssimo lugar, quando este secou. Todos se acham donos de uma água que quase não existe, donos da lama que jaz no buraco. Reclamantes donos de quase nada! Rebentam as discussões em volta desta fenda da discórdia, deste apenas húmido buraco. Com as discussões chegam os insultos e os empurrões, e com estes há uma criança que acaba por cair lá dentro com a lata vazia que trazia de casa, a mando de sua mãe. Faz-se um pesado silêncio, o silêncio da vergonha dos que mais gritavam e empurravam. A criança jaz imóvel, deitada no lamaçal. A lata vazia junto à cabeça, no chão


do buraco.


53 Praado apascenta o gado. Está imóvel, protege-se do sol dentro da sombra de um arbusto, quase árvore. Move apenas a cabeça para manter as escanzeladas vacas debaixo de olho. Já aconteceu fugir-lhe uma, perder-se, ter de passar a tarde atrás dela. Rês que não responde à chamada é rês perdida ou então despedaçada por alguma fera do mato, ténues sons de um poderoso maxilar triturando carne e ossos sem critério. Ao menos desta vez o risco diminui, o gado mal se mexe, sabedor que o pasto que aqui falta também não haverá noutros lugares. O gado está esgotado. Dá um passo e leva uma eternidade a decidir-se a dar o passo seguinte, olhando-nos com aquele ar dos esfomeados (expondo o branco dos olhos). Falta erva tenra que o revigore, água que o dessedente. Os líquidos fios, cristalinas minas, frescas lagoas, suaves marulhares, surgem hoje imóveis e retorcidos, gretados, esgotados pela inextinguível sede de quem, embora não se veja, há-de ser enorme e poderoso. Praado está imóvel, mergulhado na sombra magra do referido arbusto, quase árvore. O corpo não destoa mas o olhar carrega a ânsia de quem procura, não de quem guarda. É um olhar de quem se quer certificar se está sozinho com os animais ou se andará mais alguém pela planície. Quem andaria? Nada há que encontrar; nada, portanto, que procurar. Tudo o que vale a pena é o que a humidade cria – talos tenros, plantas verdes, frescas sombras – e todos sabem que isso hoje não passa de um desejo aflorando de quando em quando do fundo da memória. Praado engole em seco. Nada há que engolir, o gesto do subir e descer da garganta não passa de uma inércia empoeirada. Mais uma vez lhe giram os olhos nas órbitas, abarcando o todo em volta, e só quando chega a uma certeza se põe a subir, com surpreendente resolução, a encosta sobranceira e pedregosa que vai dar aonde só ele sabe. O gado segue-o, badalando. Por ter crescido a seguir sempre o pastor e porque o empurram os dois cães, fustigando aqui e além como um enxame de um par de abelhas só. Caninas abelhas de voo cansado, arrastando a língua pelo chão.


54 Ervio chega tarde, atravessando com dificuldade a mole humana que o incidente juntou em volta do buraco. Já foram lá abaixo, já puxaram a criança para cima, lambuzada de lama, agarrada ainda ao balde que levava, sacudida por compreensíveis tremuras ao ver-se assim no centro das atenções. Mexeram-lhe, apalparam-na e não é tão grave quanto parecia: inchaços ligeiros, lamacentos arranhões e pouco mais. Em breve estará outra vez a correr arrastando a lata atrás de si, à procura de água que levar. Ninguém quer agora ser o primeiro a descer para se servir daquela água mesquinha e suja, cada um revelou há pouco os demónios que tem dentro; demónios que fazem de cada homem quase um bicho, mesmo se o que os aguçou foi a necessidade. Há uma espécie de vergonha no ar, uma vergonha que é a esperança que resta de podermos continuar juntos. Ervio traz restos da noite na cabeça que lhe estala, nos olhos avermelhados, na língua entorpecida pelo álcool, na garganta arranhada pelo uso e abuso dos sons guturais. Abre caminho por entre a mole envergonhada para chegar junto de Maara. ‘Desculpa’, diz. ‘Ontem à noite estive com o Engenheiro estrangeiro, perdi o tino. Ando nervoso, não sei o que me deu. Bebi.’ Maara encara o namorado, cheira-o e franze o nariz: sem dúvida que ainda tem, agarrados, restos da noite que passou. ‘Não faz mal’, responde. ‘O que eu tinha de fazer era para fazer sozinha mesmo.’ ‘Que tens?’, pergunta Ervio. ‘Pareces irritada.’ ‘Não tenho nada. Deve ser por causa da água que não consegui’, responde Maara. ‘Para ti é tudo tão mais fácil!’ É a vez de Ervio se empertigar: ‘Já te disse que sofres porque queres, sabes bem que basta uma palavra tua e vens comigo para a cidade!’ ‘E tu bem sabes que não sou sozinha, tenho uma criança.’


Outra vez Floor. ‘Basta uma palavra tua e vêm as duas, tu e ela!’ ‘Tenho também a minha mãe.’ ‘Basta uma palavra tua e levo as três!’ ‘Não sei viver na cidade.’ ‘Aprenderás!’ Maara sorri amargamente. Floor é uma prova viva do quanto o amor, mesmo se fugaz, pode deixar uma raiz. ‘E o que acontece se te cansares de mim?’


55 Ryo acha bem que Maara parta; Laama, que ela fique. ‘Qualquer outra teria já partido’, diz Ryo. ‘Só provando da panela conseguimos chegar ao sabor da comida.’ ‘E se a comida estiver estragada?’, pergunta Laama. ‘Só em casa encontramos comida confiável e a casa de Maara é aqui, junto de nós. Além disso, se todos partíssemos desapareceria o nosso lugar.’ ‘Os lugares é a gente que os faz. Além disso, mesmo ficando todos o nosso lugar desaparece a cada dia que passa’, retorque Ryo. Olha em volta, para o pouco que sobra do lugar que tem guardado na lembrança, que era verde e povoado, atravessado por um rio pujante. Amarelas, nessa altura, apenas as espigas de milho maduro e uma ou outra flor pontilhando o mato. ‘Desconfias demasiado da tua terra’, diz Laama. ‘E tu desconfias demasiado das outras terras’, responde Ryo. Ryo já esteve na cidade; enterrou mesmo, nesse lugar, algumas ilusões. Mas isso não vem agora ao caso. ‘Porque regressaste?’, pergunta Laama. ‘Porque não pude continuar lá. Tivesse podido e não estaria aqui a aturar-te, velho resmungão!’ Laama faz uma careta despeitada, cuspindo o resto da palha do tabaco para o chão.


56 Praado olha uma última vez a planície deserta que se estende lá em baixo, lençol de fogo pespontado de remendos de obstinada resistência. Quem andaria por aqui a esta hora, com este calor? Depois, dá a volta à grande pedra e aproxima-se da secreta mina de água, olho intenso e claro, ronronante rasto de coisas que se foram. Há tempos que cala este segredo, desde uma vez em que seguia um bezerro que aqui veio dar. Uma água que jorra mansamente como se a história que castiga o tempo actual se tivesse esquecido de passar por este lugar. Mergulha as mãos gretadas na água fresca, passeia-as pelo dorso da pequena hidra mansa, aparentemente inesgotável. Molha com elas o rosto e, onde havia rugas e marcas de preocupação a humidade atenua-as, faz delas vincos leves de um sorriso que agora lhe aclara a expressão. Bebe, sofregamente e com ruído. O gado espera a sua vez com paciência, os olhos fixos no dono. Saciado, Praado afasta-se e dá a vez aos animais. Mas à medida que sente revigorar-se sente também descer um sabor salgado a sangue. Que sabor é este?, surpreende-se. Será o sabor da culpa de calar segredos, uma atitude tão contrária à nobreza dos pastores? Depois, há um inusitado suspirar da natureza que lhe parece gente. Olha em volta e não vê ninguém, o lugar é isolado. Afinal o suspirar vem-lhe de dentro, crescendo até se tornar numa dorzinha aguda, quase insuportável. Torna a avançar, expulsando secamente o gado com gestos largos que provocam um restolho de badalos. ‘Suca!’ Mergulha outra vez a cabeça no minúsculo lago em que se desfaz o fio de água, como se quisesse afogar ali aquela dor, certificar-se de que não é sangue. Sacode-se e volta-lhe a pontada da culpa queimando como ferro em brasa. Torna a mergulhar a cabeça. Depois, pensa no Engenheiro e odeia-o de maneira redobrada. Pensa nele o tempo necessário até serenar. Finalmente, chama cães e gado com um assobio e principiam todos a descer a encosta em direcção à aldeia.


57 Maara imagina Ervio bebendo e conversando com o Engenheiro Waasser. Estremece. Que tremor é este que me assalta? Mas não é Waasser quem chega, é Laago. Esvoaçando baixo como um corvo escuro. ‘Olha quem aqui está!’, crocita ele. Dirige-se a Ervio, sem sequer olhar Maara. Como se neste momento ela tivesse perdido toda a importância. ‘Ainda ontem falei com Maara para pedir o teu número de telefone e eis-te aqui!’ Ervio olha Maara, que tanta coisa tem para fazer – uma lata de água que encher sabe-se lá onde, um telefone para deixar na loja do português, mais roupa para lavar – tudo menos este encontro que está agora acontecendo. ‘Tu aqui?’, exclama Ervio para Laago. ‘Afinal conhecem-se?’, acrescenta, virando-se para Maara. ‘Sim. Cansei-me da terra estrangeira, resolvi regressar’, diz Laago, o mais lesto a responder. ‘E quem é a primeira pessoa que eu encontro quando cá chego, à beira da estrada? Maara!’ ‘Como assim?’, pergunta Ervio. Agora é Maara que, embaraçada, se vê obrigada a explicar. Vinha do rio, de lavar a roupa, quando este amigo de Ervio desceu de um camião para a cumprimentar. Sempre a culpa. ‘Porque não me telefonaste a dar a notícia?’, pergunta Ervio. ‘Nessa mesma altura acabou-se a carga do meu telefone.’ É verdade’, diz Laago. ‘Eu próprio quis telefonar-te mas ela não se recordava do teu número.’ E Laago pisca o olho a Maara, como se a estivesse ajudando a sair de um aperto. Estão sós, os três. Da mole envergonhada, culpada sem saber bem de quê, já só restam fiapos desgarrados. Alguém levou a combalida criança arrastando a lata; os outros foram à procura de outras águas ou coisa assim. ‘Não te recordavas do meu número?’


Maara fica sem saber o que dizer.


58 Passam cães e gado, passa Praado que levanta vagamente o seu bordão na direcção dos velhos, num esboço de cumprimento. Respondem-lhe de longe, também com um aceno. É o jeito que ficou nos aldeãos do tempo em que os cumprimentos dependiam de acenos e olhares. Maara e Ervio já não se cumprimentam desta maneira, levantando bordões ou ensaiando gestos e olhares. Clicam antes botões e, sejam quais forem as distâncias e os obstáculos, lestos se podem pôr a falar um com o outro. Ryo e Laama estão à sombra de uma mangueira. ‘Lá vem Praado, satisfeito por ter conseguido dar de beber ao gado’, diz Ryo. Laama surpreende-se. Como sabe Ryo que Praado deu de beber ao gado? ‘Pelo ar que trazem, ele e os animais.’ Será que Praado sabe onde há assim tanta água que chegue até para os animais? ‘Nesse caso Praado é pior do que eu pensava’, resmunga Laama. O Praado que ambos conheciam prezava muito a sua aldeia, prezava-a a ponto de partilhar com ela tudo aquilo que descobria. Incluindo, claro, a água. ‘Talvez a água que ele descobriu não chegue para todos’, alvitra Ryo. Os tempos actuais são diferentes de antigamente, as coisas dispõem-se de maneira mais complicada. ‘Mesmo assim...’, insiste Laama. ‘Mesmo que se vá a água deve ficar o respeito! Pelos vistos este já não é o Praado que eu conheci!’ E Ryo: ‘Se os tempos são diferentes o respeito também tem de mudar. O respeito é filho do tempo.’ ‘Qual quê! Antes morrermos todos que mudar dessa maneira!’ E ambos concluem que o que conserva une, o que inova desbarata. É esta a contradição do mundo.


59 O remorso é uma mordedura de insecto que nos vai abrindo galerias sinuosas nos recônditos da alma, fundo golpe de goiva na madeira macia de que é feito o mais íntimo de nós, dor fina que não cessa de nos atormentar. Praado passa noite após noite de sono inquieto e revolvido. Porquê a insónia, se pastor e animais se dessedentam todos os dias? No seu sono atropelado, Praado tem um segredo que lhe lava o corpo mas lhe mancha a alma. A água lava ou escurece conforme as circunstâncias, a água revela ou cala. O pastor passa com o gado a badalar, cruza-se com gente cujo olhar parece pronunciar sempre o mesmo refrão, formular a mesma acusação: Olha-me nos olhos e verás que tenho sede! O insecto é persistente, as galerias cada vez mais fundas, rendilhando a alma a Praado. A lâmina da goiva é recurva e afiada. Em cada novo dia, em cada nova viagem que faz montanha acima em direcção ao seu segredo, Praado engorda o bicho. E o bicho escava. Quando chega ao topo, à secreta mina, a água que sofregamente engole parece-lhe a cada dia mais salgada, com um sabor a sangue. Será que a mina está secando? Será que o bicho a está conspurcando? Os ódios que tem ao Engenheiro Waasser são outros tantos restos de comida que atira ao bicho na tentativa de o distrair do principal.


60 Maara entra enciumada na loja do português. Deixou para trás o namorado no Land Rover cinzento, na companhia de Laago. Falam do que cada um viveu nos tempos mais recentes. Ervio conta como partiu e estudou, como gosta da cidade. Laago, o quanto literalmente escavou nas profundezas das minas e, à sua maneira, também venceu. ‘Perder seria ter ficado por aqui passeando o gado ou coisa assim’, dizem um e outro. Mas precisam muito deste lugar. Sempre que ao longo da conversa os seus destinos partem por caminhos diversos, os dois amigos apressam-se a apelar à infância para os juntar. Nada como a infância, a saudade dela, para nos aproximar uns dos outros! Os pequenos nomes afogados no macio mar de madeira das carteiras, a fruta, as brincadeiras no rio no tempo em que este levava toda a água necessária, a água fresca das lembranças. Lutavam os dois pela preponderância, nessa altura; por ter primeiro as ideias, por responder mais lestamente ao professor; enfim, por impressionar as raparigas. ‘E a rapariga?’, pergunta Laago a dado passo. ‘Quem? Maara?’ ‘Sim, Maara. Havia outras tão mais promissoras! Como foste dar com Maara?’ ‘Não te sei dizer.’ Um dia, muito depois de partir, Ervio regressou à aldeia para enterrar o pai e deu com ela lavando no rio. Era cheirosa e alvíssima a roupa que as mãos lavavam, melodiosa a voz que trauteava; enfim, desnudas as costas. E, depois de se virar por ter sentido a presença dele, aguado e límpido o olhar. ‘Além disso, quando a conheci melhor notei que ela me via não como eu era mas como devia ser. E foi essa esperança em mim, tanto quanto o resto que nela notei, que me prendeu.’ Laago sorri, pisca o olho direito. ‘O que tens no olho? Parece inchado’, diz Ervio.


‘Bati numa árvore ou coisa assim. Ainda não reaprendi a andar no mato.’ Riem os dois. Ervio prossegue: ‘Conversámos, eu e ela’. Nesta passagem o seu semblante escurece-se. ‘Disseme que tinha uma filha, resultado de uma ilusão.’ ‘Como, ilusão?’, pergunta Laago. Ervio esclarece que as ilusões podem ter tanta força quanto os sentimentos verdadeiros, é esse o seu poder maldito. ‘Na altura doeu-me como uma punhalada. Ainda não deixou de doer.’ ‘Imagino’, sussurra Laago. ‘Aos poucos vou-me habituando. Chama-se Floor.’


61 Enquanto Ervio e Laago falam de tempos novos e antigos, Maara entra na loja do português. Vai finalmente pôr o telefone a carregar. Houve aqui, há muito tempo, um português de que hoje poucos se lembrariam. Barriga grande, irascibilidade ou bonomia conforme os dias e o que dentro deles havia, pêlos por toda a parte, imprecações constantes e uma enorme propensão para as contas de cabeça. Fê-las na compra e na venda, partiu como chegou, a mesma mala amarrotada, alguma conta errada há-de ter feito para lhe tirarem assim a loja, por algum caminho errado se terá metido em vez de seguir pela estrada iluminada e principal. Deixou apenas o nome genérico agarrado a esta loja: português; nela e também, talhado a canivete, na ossuda memória dos mais velhos. Maara entra nessa atarefada penumbra embebida do cheiro acre das farinhas fermentadas e do vinho barato derramado na madeira velha do balcão, das frutas amolecidas e do ranço do sabão derretendo ao calor deste Verão, menos importante desde que falta água que lhe dê finalidade. A um canto há um grupo de mulheres. Falam umas com as outras em voz baixa, por vezes riem sem ter de quê. Uma delas destaca-se e vem ter com Maara. É Heera. ‘Como estás, Maara?’ ‘Estou bem, Heera. E tu, que fazes aqui?’ ‘Vim reaver o milho que vendi.’ ‘Como podes reaver aquilo que vendeste?’ Maara intriga-se com este desconhecimento que a amiga patenteia das fases por que passa o tempo. O milho gasta-se, desaparece. Os negócios, uma vez estabelecidos, não voltam atrás. O rio, quando existia, caminhava inexorável para a foz. Bem dizia um dos dois velhos que não se pode beber a água e ficar com a moringa cheia! Silêncio. Heera arrependeu-se do negócio feito, foi isso que quis dizer. Não podia adivinhar que o milho que entregou era o último que colhia na machamba.


‘Entendes-me, não entendes?’, pergunta ela a Maara, esperançada. Maara entende. Foram-se as humidades, foi-se com elas uma certa lógica das coisas. Sobrou apenas este entendimento de Maara, construído a partir daquilo que também a ela podia ter acontecido: ficar sem roupa que cultivar na machamba líquida do rio. Maara acena que sim, que entende, faz até o gesto de pegar no telefone para contar a Ervio mais esta desgraça. Baixa os braços, tira a nota enrugada da dobra da capulana e entrega-a a Heera. ‘Toma, compra de volta o milho que vendeste’, diz. Heera anui silenciosamente e regressa para junto das outras mulheres. Todas cochicham, algumas riem. Não sabem o que está dando em Heera ultimamente. Do balcão, perguntam a Maara o que pretende. Têm pressa, há mais a quem atender. Ou então é esta impaciência que toma conta da gente. ‘Nada’, diz ela, antes de se virar e sair pela porta com o telefone na mão. Culpará mais uma vez a pobre cabeça, quando Ervio perguntar. Esqueceu-se do dinheiro, ou então perdeu-o; na fila da água que não havia ou coisa assim. Talvez o tenham roubado na agitação que se seguiu à queda da criança. Felizmente que foi pouca coisa, que a criança, embora parecendo morta, acabou por levantar-se arrastando a velha lata atrás de si, zonza mas ansiosa por levar à mãe uma explicação; felizmente, também, que Heera está prestes a fazer a roda da história girar para trás, reavendo o milho que vendeu.


62 O Engenheiro Waasser desliga o telefone com um sorriso de satisfação. Também ele recuperou da noite agitada e mal dormida, povoada de outros sons, florestas e disposições. Ontem, depois de Ervio sair, veio-lhe a ideia. Ou melhor, aproveitou a ideia do rapaz. Acaba de mandar vir da cidade um par de camiões-cisterna que, percorrendo caminhos poeirentos e atravessando rios secos, trarão a água tão necessária à aldeia. Haverá maior ironia do que esta – urdida pelo som brando do tilintar de copos intercalado pelo rasgar furioso da trovoada e pelos estalidos do pisar dos pés nus dos pastores nos degraus da varanda, e em honra de duas mulheres que afinal são uma só – a ironia de trazer água por cima dos rios depois de os rios terem secado? O Engenheiro Waasser sorri desta complexa mas involuntária relação que acaba de estabelecer com a realidade, ainda o dia mal começou: se não existe água sobre a qual construir pontes, que se construa uma líquida ponte por cima do poeirento espinhaço do rio! Volta a pegar no telefone, desta vez para dar a boa nova ao Secretário. ‘Vem aí a água, camarada Secretário!’, e explica como. O Secretário demora um tempo a responder. ‘Temos de ter cuidado com a distribuição, camarada Engenheiro’, acaba ele por dizer. ‘Temos de ter muito cuidado para evitar confusão.’ ‘Tem razão, camarada Secretário, temos de ter cuidado com isso. O melhor mesmo é que a distribuição fique a cargo do senhor.’ Só depois, pensando alegremente que a notícia vai espalhar-se, o Engenheiro Waasser manda servir o seu pequeno-almoço na varanda enquanto trauteia uma alegre canção deste lugar. A complexa tristeza de Schubert voltou a ser não mais que uma longínqua recordação, a Janowitz permanecerá muda nos tempos mais próximos. Hoje deixar-se-ão de lado teodolitos e réguas, escavadoras e perfuradoras pneumáticas, e até memórias antigas e secretas preces. A água virá de outro


modo, de outro lugar! É o Engenheiro Waasser que a vai buscar!


63 ‘Então?’, pergunta Ervio. Está sentado no Land Rover. A seu lado, Laago. Maara engole em seco, mais a mais por ter de dizer na presença de um estranho aquilo que vai dizer. Explica que perdeu o dinheiro, ou então roubaram-lho; no buraco da água ou coisa assim. Só sabe que entrou na loja e não o tinha consigo. Pede desculpa. Laago sugere que voltem ao buraco que ainda apanham o ladrão. Tem a veemência de quem fosse o dono do dinheiro, de quem tivesse sido o prejudicado. Ao mesmo tempo sorri furtivamente e pisca o olho. Ou então é Maara que não consegue imaginá-lo sem estar sorrindo e piscando. ‘Não vale a pena, a esta hora ele já deve ir longe’, diz a rapariga. E mentalmente pede desculpa ao ladrão, de acusá-lo de um crime que, pelo menos desta vez, não cometeu. Laago olha Ervio, Ervio olha Laago. As mulheres são assim, parecem dizer um e outro; enquanto isso, Maara espera a reacção do namorado. Ervio abana a cabeça e tira umas moedas da carteira com um encenado suspiro de comiseração. E Maara reentra na loja com o novo dinheiro na mão, cruzandose à porta com um grupo de mulheres que cochicham e riem sem terem de quê. Quanto gostariam de ser Maara, desfazendo negócios e voltando a fazê-los desta maneira, cruzando tão facilmente as intransponíveis fronteiras da nossa condição! As mulheres cochicham e riem. Entre elas vai Heera com um saco de milho à cabeça.


64 O Engenheiro Waasser pergunta quem está de serviço ao estaleiro. ‘É Gaato’, responde um dos homens. ‘Gaato?’ ‘Sim, Gaato. O homem magro e escuro que se move arrastando uma perna, aquele que não deixa nunca de sorrir.’ Waasser encolhe os ombros. Não se lembra de ninguém com esse nome nem com esse vício de sorrir, com esse hábito de arrastar a perna, embora tenha sido ele próprio que o contratou. Os homens estranham: ninguém que tenha visto aquele sorriso o pode esquecer. Mas ao Engenheiro, consumido no esforço de entender coisas mais fundamentais, pouca atenção resta que dedicar ao que está perto e é pequeno, como esse tal sorriso. De qualquer maneira, se é Gaato que está de serviço, quem quer que Gaato seja, é Gaato que ele vai incumbir de guardar a água que chegou, importada da cidade. Os restantes deverão descansar para poderem mais tarde continuar a perfurar o chão: não é por o presente estar resolvido que deixamos de pensar no futuro! Gaato fica pois de guarda a camiões-cisterna cheios a abarrotar, silenciosos, sem que deles emanem os costumeiros assobios: por chegarem cansados do peso que traziam ou então por Maara não se fazer presente na berma da estrada, retida por Ervio em algum diálogo urgente ou, ainda, por já nada ter a fazer nas margens de um rio quase seco. São misteriosas as relações que ligam os diferentes acontecimentos, e também infinitas, sendo portanto prudente parar em algum ponto, em algum ponto desistir de persegui-las.


65 Nova noite escura em que a lua é já um fino risco que mal se descortina; dentro de dias desaparecerá. Praado arrasta atrás de si outros pastores, embalando-os com palavras cheias, ensopadas de imagens que são ao mesmo tempo de mudança e de preservação. Em breve será como promete! Sobem a encosta a custo, ajudados pelos seus bordões. ‘Só mais uma curva, mais umas pedras que é preciso vencer e vereis se o que digo é ou não verdade!’ Os pastores anuem, confiam cegamente no companheiro. Anseiam também eles por afagar com as mãos o luzidio dorso da pequena hidra. Passam essa curva, trepam essas pedras e chegam à secreta mina de água que há tanto Praado vinha prometendo. Não tarda poderão todos beber da água amarga, uma água que à medida que os outros beberem se irá para Praado adoçando. Está escuro, apalpam o chão em volta, sentem o macio do musgo verde, aquele que só existe se houver por perto a frescura da humidade. Mas eis que Praado encosta as mãos à rocha – aquela por onde, mesmo no escuro, costumava escorrer ininterrupto o clandestino fio – e encontra-a áspera e rugosa como sangue seco, em nada distinta das outras rochas que pululam pelos pedregosos matos ao redor. Praado nem quer acreditar! Será que se enganou no lugar? Erra, apalpando aqui e ali com as suas grossas tenazes, murmurando os sons de uma linguagem salpicada de perplexidade e de vingança. ‘Oooh! Oooh!’ Não costumam as sombras trazer-nos à lembrança outras sombras, aquelas que temos dentro? Praado olha em volta e dá com o vulto do Engenheiro Waasser operando máquinas nocturnas para sugar do chão aquela água amarga, salgada como o sangue; ainda assim, a única água. ‘Conseguem ver o que vejo?’, troveja, apontando na direcção desse Engenheiro feito de escuridão. Mas os outros, amedrontados, vêem apenas um pastor perdido e desgrenhado, apontando para sítio nenhum o seu bordão.


66 Ainda a água não saiu dos camiões e já toda a gente fala nela, naquilo que irá fazer com a parte que lhe couber. Divida-se a água em partes e cada uma delas é imensa como um todo, inteira, capaz de alimentar qualquer aspiração. A hidra não tem cabeça nem mãos, apenas um perverso plano, um afã de alisar a orografia humana das necessidades e dos desejos. Matará a sede a muitos, lavará a capulana que tem a velha Caana (com o retrato do Presidente), limpará os olhos da vizinha das micaias para que esta possa ver melhor aquilo que os outros fazem. E também, quem sabe!, saciará a ira que Praado traz dentro do peito. Ainda ninguém viu esta água e ela já serve para tanta coisa! Ryo e Laama não sabem ainda o que pensar de tudo isto uma vez que os pormenores da encomenda foram tratados numa língua estrangeira que ambos desconhecem. Mas quem melhor do que eles para se deitar a adivinhar? Ryo diz que o Engenheiro é um homem bom. O que importa, acima de tudo, é salvar o povo. Laama protesta contra tal ingenuidade. Dando de beber ao povo o estrangeiro prende-lhe a alma e, ao mesmo tempo, liberta-se a si próprio. ‘Como assim?’, intriga-se Ryo. É simples: assim que beber dessa água o povo ficará para sempre devedor a quem a trouxe. Quanto ao estrangeiro, convencer-se-á de que sem ele o povo deixaria de existir. Ryo entristece-se com a abstracta dignidade que o companheiro patenteia. Acha que ele vive num outro tempo. Ele que pergunte àqueles que têm sede e verá que ninguém concorda consigo. O seu raciocínio é o raciocínio de quem, apesar de tudo, ainda vai bebendo alguma coisa! Laama torna a discordar. Se, como diz Ryo, levaram a água com as suas máquinas, é justo que a tragam de volta. Essa água que aí vem nos camiões é como se fosse a nossa água! ‘Que interessa agora de quem é a água?! Interessa, isso sim, quem a vai beber!’, diz Ryo.


Laama exalta-se, fala em justiça e dignidade. Ryo argumenta que, tal como tudo, também a justiça e a dignidade se transformam e adaptam: atrás dos grandes valores está aquilo que mais importa, a nossa sobrevivência! Laama vira-lhe as costas, despeitado. Que importa a sobrevivência se a morte não é o fim de tudo? Além disso, para quê continuar a viver se a natureza não reage? Se está ela própria ferida de morte? Se é preciso que os homens, com estes artifícios, finjam que ela ainda funciona? Ryo acha que não. Acha que a intenção dos homens, trazendo a água que antes vinha com a chuva e com os rios, é lembrar à natureza o seu papel. É preciso que a natureza reaprenda a funcionar! Quando amanhecer surgirão as longas filas. Filas naturais, diria Ryo, e Laama discordaria. Velhos trôpegos! A tragédia quase a acontecer e eles presos ainda a minudências, discutindo a natureza da água que chegou!


67 Se não a encontras aqui – tu, que tens os meios – sabes bem como ir buscá-la à cidade. Sabes e tens como fazê-lo ao passo que a mim me resta apenas esta única arma das promessas vãs, quase mentiras que digo não fosse a nobreza da minha intenção. São esses dentes que tens para morder que nos dividem. Quanto mais fundo com eles prendes mais patente se torna a falta dos meus, que dependo do que me chega e quando me chega, um quê e quando que quem determina está em níveis muito para lá do meu entendimento, em salas fechadas com pesados reposteiros. Quanto mais necessário te tornas mais supérfluo eu fico. Pensa bem: podias ter-me proposto qualquer coisa, sei lá!, dizer que foram as autoridades que trouxeram a água ou coisa assim. Embora trazida por ti, seria a minha água, a minha dádiva. E essa pequena diferença, de não mais que meia dúzia de palavras, seria para mim tudo e para ti quase nada. Mas não!, tinhas de anunciar o teu espectáculo no estaleiro, alardear a tua força, pôr a nu os meus limites. Toda a gente ouviu, toda a gente sabe. Chegou a água do Engenheiro que o Secretário vai distribuir! Ainda esta manhã passaram alguns por mim e quase me não cumprimentaram. Em contrapartida, andam todos ao teu redor para o caso de necessitares de alguma coisa que possam fazer. Andam ao cheiro da água. Mas toma atenção, estrangeiro, que não há ninguém mais sem memória, ninguém mais volúvel do que o povo. A água vem e vai, é da sua natureza. E quando se for, como tu também irás, ou quando vier para ficar (já não sei bem), enfim, quando voltarmos a ser só os dois, povo e eu, cá estarão novamente à minha porta de mansinho: camarada Secretário ajude-nos nisto, camarada Secretário ajude-nos naquilo, e voltará então a ser a minha vez. Toma atenção, estrangeiro, que de povo percebo eu!


68 ‘Sigam-me!’, grita ele, iniciando a descida da montanha em passo resoluto. Escorrem pela encosta como lava de ódio, brasa viva. O rancor de Praado já contagiou a pequena multidão. ‘Vamos buscar o que é nosso!’, grita ele. A mancha escura é como um grande insecto descendo, um insecto de que os bordões fossem as antenas e ferrões. Praado vai na frente, anunciando e prometendo. Praado é o ocelo desse insecto. Termina a encosta e entram no vale, passam a pedreira, atravessam a estrada e vencem uns terrenos livres pelos quais, por qualquer razão, nunca ninguém se interessou, tornam a cruzar a estrada mais adiante, por esta se aproximar da aldeia como um fio que a necessidade de tornear obstáculos – pedras, outeiros e árvores – enrodilhou e porque o insecto de um ocelo só segue a direito, preso àquilo que o chama. Agora são as traseiras de umas casas onde toda a gente dorme, cães que ladram, novamente a estrada, mais terrenos de ninguém que é no que se tranformaram hoje em dia as machambas, uma cerca irrelevante que transpõem facilmente e ei-los dentro do estaleiro do Engenheiro Waasser, ainda a madrugada está por despontar. A distância, os obstáculos que foi preciso transpor podiam ter arrefecido neles uma cólera tão recente. Mas lá estava Praado para voltar a despertá-la sempre que a sentia esmorecer, lá estava o ocelo olhando o mundo por eles. ‘Já falta pouco para termos o que é nosso!’ De facto, já falta pouco. Estão dentro do estaleiro, serpenteiam por entre as máquinas e os montes de areia e pedra, os feixes de varões de ferro, e avistam finalmente os dois camiões-cisterna imóveis e cheios como dois embondeiros escuros, dentro deles uma água respirando os sons discretos que só dentro dos espaços fechados se ouve respirar. Entre os camiões e eles, Gaato. Minúsculo vulto soprando uma também minúscula fogueira, inventando um frio de Verão como só os guardas-nocturnos sabem inventar.


Vê-os quase na mesma altura em que eles o vêem a ele e imediatamente o seu sorriso de anjo se desdobra. Entrem, sentem-se aqui junto da minha fogueira. Como quem diz que se tivesse algo que partilhar alegremente o faria. Não esta água que não é minha, é uma água que o patrão Waasser importou, uma água que amanhã de manhãzinha será do povo inteiro sem excepção. Será portanto também vossa, tenham vocês a paciência de esperar um pouco mais, o tempo de atravessarmos juntos esta noite, uma noite em que mais uma vez não choveu e que é portanto igual a todas as outras. É isto que diz o sorriso do anjo dirigido aos pastores que chegaram assim desta maneira, um de cada quadrante do escuro, como se viessem atraídos pela minúscula fogueira que Gaato sopra de quando em quando para manter viva. Lendo assim esse sorriso, Praado enfurece-se. Venham para junto da minha fogueira, o calor que ela deita chega bem para todos, torna o sorriso. ‘Sai daqui, Gaato!’, diz o pastor secamente. Incomoda-se com ele e com as galerias que o bicho não cessa de lhe escavar dentro da alma. ‘Sai daqui!’ ‘Não queremos fazer-te mal!’, dizem os outros pastores. Mas foi Gaato a quem, embora mal conhecesse, o Engenheiro incumbiu de guardar a água, e por isso Gaato não pode arredar pé. Eles que esperem mais um pouco, a madrugada do novo dia não tarda aí. ‘Pensa bem!’, ainda lhe dizem um e outro, que quanto a Praado já se esgotaram nele as palavras. ‘Pensa bem, a água não é tua, não percebemos para que te dás a um trabalho que vale tão pouco a pena.’ Mas Gaato é assim, continua nele o sorriso; o sorriso e o movimento atento para permanecer entre os homens e os camiões. Mexem-se os pastores e mexe-se Gaato sempre sorrindo, guardando nesta dança a água do patrão. Não há pois como não se abater sobre Gaato uma saraivada de bordões, primeiro o de Praado e depois os dos outros todos. Enquanto pode o guardanocturno levanta-se depois de ter caído, para os chamar à razão. Será assim enquanto persistir em interpor o seu sorriso entre os atacantes e a água. Cai e torna a levantar-se. Mas dura pouco, um curto instante, até que os pastores fiquem com o caminho livre para as cisternas que golpeiam com as catanas para que funcionem como deveria funcionar a língua da hidra, lá em cima na montanha, espalhando-se a água em redor até alagar o acto e os seus fautores, até refrescar a fúria que traziam e lavar as feridas a Gaato que jaz agora no meio do chão.


69 Maara e Ervio estão finalmente sós, junto ao rio moribundo. Ervio já calcorreou as margens, colheu amostras de solos, registou os dados das leituras dos postos udométricos, anotou considerações climatológicas e agrometereológicas; em suma, encheu ficheiros do seu computador portátil de zeros ou quase-zeros. Maara aguardou paciente, observando a actividade do namorado. Perguntando-se se esta traria mais resultados que as perfuradoras pneumáticas do Engenheiro Waasser. Qual dos dois terá a resposta? Ervio está pronto. Fecha o computador e dirige-se para a sombra onde aguarda a rapariga. Ficam em silêncio um tempo, escutando, na falta dos pássaros que há muito se calaram, na falta do molhado ronronar do rio, o som dos besouros, minúsculos camiões assobiadores vogando sem direcção; e olhando o esforço com que os pequenos lagartos se arrastam pelas pedras; e sentindo o roçar de outras sombras. Por exemplo, Laago. Maara evita falar de Laago; todavia, é de Laago que Ervio quer falar. Pergunta-lhe por que não lhe disse que conhecia Laago. Maara responde que não se lembrou (Laago não é assim tão importante). ‘Tens razão, desculpa.’ ‘Devias confiar mais em mim.’ ‘Tens razão.’ Novo silêncio. De quando em quando passa um besouro assobiador; nas pedras, um lagarto que devia ser rápido mas que o tempo transformou desta maneira. ‘Tens o telefone carregado?’ Maara retira de dentro do cesto o seu telefone celular. ‘Tenho’, diz com ele na mão. Sorriem os dois. Têm os respectivos telefones prontos a falar, agora de pouca valia uma vez que se têm um ao outro. Maara torna a guardar o seu no cesto onde traz a roupa, torna a olhar o leito do


rio na esperança de encontrar uma esquecida poça de água. Cai em rotinas antigas embora saiba que o mundo mudou. ‘Deixa isso agora’, diz Ervio adivinhando. ‘Tenho de partir. Queres que te leve a casa? Ainda tenho tempo...’ ‘Não é preciso, vou a pé. É perto.’ ‘Bom, vou-me então.’ Maara levanta-se. Beijam-se. Perto, os homens do Engenheiro Waasser retomam o trabalho. Um pouco mais acima, na penumbra das canas, Ryo conclui que os telefones que o jovem casal agora usa são como os caminhos do amor. Por vezes, quando deles mais precisamos encontram-se fechados; outras, mostram-se desimpedidos e nós sem necessidade de ir a qualquer parte! Laama anui olhando as costas cansadas da rapariga, quase um ponto na distância. Imersas no rolo de poeira do Land Rover que se afasta, cercadas do ensurdecedor barulho das perfuradoras pneumáticas.


70 O que quer que todos defendam, o rio é hoje um gesto interrompido, um esgar. A água fez-se lama, vai-se a lama endurecendo. O que na passada semana eram pregas moles são hoje gretas fundas onde as pequenas criaturas húmidas se vão tornando quebradiças: o menor movimento fá-las em pó. As canoas estão viradas, os calados expostos sem qualquer recato. As árvores retorcidas têm as raízes de fora, parecem temer o calor do chão. O sonho do Engenheiro, que chegou a este lugar para dar largas à imaginação, não passa hoje de um pedestre raciocínio: para quê desafiar a gravidade se nos basta atravessar a pé, pisando sólido chão onde eram as águas de outrora? Para quê o esforço vão de discutir aquilo que apenas à natureza cabe decidir? Chegou o mundo amarelo, chegou e veio para ficar! Até Ryo e Laama, os eternos conversadores, têm as bocas secas, dentro delas línguas ásperas como répteis exangues contorcendo-se penosamente ao sol. Em Laama, a tradição – outrora urdido e sofisticado argumento no salão húmido do mato – é hoje inútil memória, escusado exercício. Ryo não vai melhor: o que era nele elegante e incansável movimento não passa hoje de um mísero solavanco. A mudança passou a ser para ele uma específica dor. Pobre Ryo! Pobre Laama! Pobres áugures cansados cujo diálogo se espessou!


71 Ervio desceu ao âmago das coisas, foi lá e regressou. É por isso natural a curiosidade dos colegas. Cercam-no, querem saber se a situação é tão grave como dizem os aparelhos, perguntam-lhe se na aldeia ainda sobra alguma memória da água, se descobriram caminhos inovadores que permitam funcionar sem ela. Não é tanto a ideia da sede que atormenta os funcionários, é mais a maneira de a reportar. Enquanto redige o relatório – apoiando-o em sólidas teorias sobre previsões meteorológicas e transformações climáticas, depressões e ventos, o papel dos solos, e polvilhando-o de gráficos de barras, referências a outras situações concretas, outros manuais e outros autores – Ervio faz o que pode para satisfazer a ânsia de saber que têm os colegas. No departamento, descontadas as quezílias que fazem parte de uma sã competição, todos têm a noção de pertencer a um corpo só, um corpo a quem a aldeia faz perguntas que, por sua vez, têm de ser respondidas aos superiores hierárquicos. Como se a sede sentida em baixo viesse de cima, como se só em salas fechadas, com pesados reposteiros, fosse possível cultivar esta memória que engelha e seca. Daí a ansiedade geral, sobretudo agora que a versão quase completa do relatório de Ervio se perde dentro do computador – Oops! – mastigada por um desses vírus malsãos que pairam no ar virtual e atacam quando menos se espera, obrigando o pobre investigador a recomeçar. Entretanto, o país estrangeiro é uma mancha escura feita de húmidos tentáculos ao passo que no nosso existe apenas o vazio. Como se não bastassem as rezas e as línguas, as estradas e as tribos, agora até o céu nos quer dividir, até ele parece querer cavar mais fundo a linha da fronteira. Eles com tudo, nós sem nada! Ervio mantém os olhos fixos no monitor, os ouvidos atentos às retortas das maquinetas de onde não há meio de pingar uma gota sequer. Uma mão castiga o rato, golpeia o teclado, enquanto a outra, distraída, compõe números no telefone celular.


‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ ‘Maara?’ ‘Não, não é Maara. Aqui fala Laago’, diz a voz do outro lado. ‘Laago?!’, surpreende-se Ervio. ‘Sim, Laago.’ ‘Desculpa, enganei-me no número. Pretendia falar com Maara.’ ‘Não te enganaste, não senhor’, diz Laago. ‘Foi antes uma feliz coincidência.’ ‘Como assim?’, pergunta Ervio. ‘Ligaste-me quando eu próprio me preparava para ligar-te. Feliz coincidência.’ ‘E porquê feliz?’ ‘Porque acabo de ver Maara. Ia agora mesmo telefonar-te para dizer que acabo de a ver.’ Ervio agita-se na cadeira. ‘Viste Maara?’ ‘Sim, vi-a.’ ‘Como estava ela? Estava sozinha?’ ‘Sim, estava sozinha. Passou com uma grande trouxa de roupa à cabeça, ia sorridente.’ ‘Sorridente?’ ‘Sim, sorridente. Parecia contente consigo própria, contente com o mundo.’ ‘Contente com o mundo?’ Ervio interroga-se acerca das razões que Maara teria para passar assim contente, sorrindo para o mundo numa altura em que o mundo está secando. Custa-lhe imaginá-la esbanjando assim o seu sorriso. Enquanto se faz um silêncio para que Ervio possa interrogar-se e reflectir, Laago também reflecte. Não te enganaste, não senhor. Ligaste-me porque pretendias saber de mim aquilo que Maara seria incapaz de dizer-te.


72 Os aldeãos sabem pouco. Conhecem algumas manhas das sementes e da terra, apetites do gado e caprichos do tempo (mesmo assim poucos, como este presente que nos castiga deixa comprovado). Para Laama é o tempo – esse alfaiate que cose entre si as gerações – que organiza tudo aquilo que os camponeses sabem. Ryo, pelo contrário, acha que o pouco que sabemos, quando chegamos a este mundo nus e vulneráveis, provém da descoberta. Laama recorre a exemplos que façam valer os seus argumentos: ‘Heera cava a terra porque a sua mãe também cavava, Praado leva o gado porque desde criança lhe ensinaram a fazê-lo.’ Ryo sorri amargamente. ‘Neste momento deixou de haver terra húmida que cavar, deixou de haver pasto que comer. Suspeito que se não vier a chuva o pano do teu alfaiate se vai romper!’ E é a vez de Ryo trazer um exemplo. Menciona Laago, diz que não foi nenhum alfaiate que coseu o conhecimento que o rapaz tem das coisas. Quando deixou a aldeia, Laago pouco sabia que o distinguisse dos restantes. Foi lá por onde andou que aprendeu aquilo que sabe. ‘E que sabe ele de tão fundamental e novo?’, pergunta Laama duvidando. ‘Não te posso dizer aquilo que ainda não descobri’, responde Ryo enigmaticamente. Ryo ainda só sabe aquilo que a observação lhe diz: que Laago anda atento aos movimentos de Maara e que os transmite em voz baixa para dentro do seu telefone; e também que olha Heera atentamente sempre que esta passa com o deambular de cega que a miséria lhe confere. Todavia, estranhamente iluminada. Laama insiste no ensinar, Ryo acha que é mais importante o aprender. Qual dos dois terá razão? E o que faz mover Laago? Será que o grande alfaiate, de obscuras maneiras, vai cosendo sempre atrás de uma palhota, escondido numa sombra?


73 São vários os carreiros – vários e tortos – que vão da aldeia ao rio e deste a ela. Tantos quantas as vontades de cada um, por onde achou que precisava de passar para poder chegar. Uns são carreiros delirantes, procedendo às complicadas evoluções de quem avança para o destino imerso em outros pensamentos e astutamente prolongando o tempo para os poder concluir antes de chegar. Outros são mais práticos, mais apressados, trazem consigo a impaciência de cortar a direito para chegar mais cedo, carreiros de quem tem mais o que fazer. Distingue-os, portanto, a diferença entre quem tem pressa e quem tem vagar. Inesperadamente se podem cruzar, é certo, mas logo se afastam, como normalmente também andam afastados os dois tipos de gente que os percorrem. Por vezes a geografia troca as voltas ao mundo, obrigando os sonhadores a seguir por carreiros curtos, os únicos que há para ir dar ao destino pretendido; outras é o contrário, ficando quem tem pressa obrigado a sonhar. Por um carreiro apressado vem Maara com a trouxa à cabeça, cortando a direito sobre pedras e fendas e tufos de palha seca que se intrometem no caminho; por um carreiro contrário vem Heera com um estranho sorriso que não rima com a sua condição, cercada de uma inusitada luz. Quase se cruzam, não fosse a pressa de Maara ter sido interrompida pelo chamado do telefone vindo de dentro do cesto. ‘Críí! Críí!’ Maara coloca o cesto no chão e mete nele as mãos, procurando apalpar o som. Mete as mãos no cesto e cessa o elaborado chilreio. Pragueja. Ergue-se e olha em volta, impaciente. Não fosse a árvore que cresce aqui, a rocha que aflora logo em seguida, e veria as costas de Heera que já passou, costas direitas quando deviam ir inclinadas sob o peso destes dias, costas iluminadas por uma estranha luz. Torna a tocar o telefone. ‘Críí! Críí!’


Maara abaixa-se, mete outra vez as mãos no cesto e felizmente que desta vez chega ao pequeno coração que pulsa. Agarra-o e encosta-o ao ouvido, ao mesmo tempo que aperta um pequeno botão que é verde como certos anos que passaram e parecem não querer regressar. ‘Ervio?’, pergunta. ‘Não, é Laago’, responde a voz do outro lado. ‘Como, Laago?’ ‘Ligo para dizer-te que acabo de falar com Ervio e que ele está bem.’ ‘Como sabes o meu número?’ ‘Ervio deu-mo.’ Laago diz isto com se o facto de ter sido Ervio a dar-lhe o número conferisse legitimidade ao novo conhecimento que tem. Como se dissesse que se fosse ela a dá-lo seria estranho. O Engenheiro Waasser, por exemplo, daria tudo para ter o número de Maara. Todavia, nem Ervio nem ela própria lho dariam. Maara pára um momento para respirar. ‘Não preciso que me digas como está Ervio!’, acaba por dizer secamente. ‘Posso bem ligar-lhe e perguntar-lho! Posso fazê-lo sempre que quiser!’ ‘Desculpa’, diz Laago. ‘Pensei que gostasses de saber.’ Entretanto, Heera prossegue lentamente pelo carreiro que lhe coube em sorte, sonhando e sorrindo em volta, imune ao peso dos dias. Perdida nas incessantes curvas.


74 Ervio entrega-se com afinco à elaboração do relatório. Trabalha uma segunda versão, tentando refazer-se da traição que o computador lhe fez. Uma versão que não tem o viço da primeira uma vez que as ideias surgem todas requentadas. Além desta dificuldade, debate-se com as bifurcações que, cedo ou tarde, se atravessam sempre no caminho da ciência. Veja-se o exemplo da média de água por pessoa: será que nas parcelas deve figurar o gelo do whisky do Engenheiro? A falta de água de Heera? Será que é eficaz apresentar as coisas como se a Heera coubesse um dos referidos cubos de gelo? Como se a Waasser deprimisse, da mesma maneira, a onda de secura que assola o casebre da mulher? Ou ainda, será que o gelo faz tanta falta a Heera como faz ao Engenheiro? Nem sempre a conclusão a que chega o raciocínio da ciência é sinónimo de justiça ou de verdade. Mesmo assim Ervio faz o que pode. Fá-lo enquanto se justifica perante o chefe do departamento. Refere o vírus malsão que lhe mastigou sofisticadas análises e promissoras perspectivas, obrigando-o a recomeçar. ‘Humm!’, comenta o chefe do departamento, reflectindo. Pesando os prós de se mostrar compreensivo e os contras do atraso. ‘E para quando o resultado?’ Ervio hesita na resposta. Também ele tem pressa, claro, não só para responder à pressa exigida; sabe que quanto maior for o atraso menos fielmente o relatório reflectirá o que se vive na aldeia. Há ainda, nessa pressa, outras razões privadas que não vêm agora ao caso. ‘Farei o possível’, promete. O mundo não pára, sabe-se lá o que estará ocorrendo agora, pensa ele, tendo na ideia o telefonema que fez a Laago. Apesar da lentidão actual as coisas fazem-se e refazem-se sem parar; tudo muda, à excepção dos resultados que as máquinas não cessam de debitar, transmitindo com monotonia a negativa constância da natureza. ‘Apressa-te, meu rapaz’, diz o chefe do departamento com um semblante preocupado, pensando nas perguntas que lhe chegam todos os dias. Vindas de níveis que estão para lá do nosso alcance, em salas fechadas com pesados


reposteiros. De facto, com todos estes percalços vá-se lá saber o que se passa na aldeia! A única forma de atravessar esta ponte tão mais comprida que as pontes que o Engenheiro Waasser ousou algum dia construir, ou mesmo imaginar, é recorrermos a Ryo e a Laama, aos seus secretos poderes de adivinhação!


75 Praado, na prisão, é uma fera numa jaula. O seu andar bamboleante e circular é o de quem tivesse um lugar preciso aonde ir não fossem as quatro malditas paredes que fareja como se nelas estivesse escondido um buraco por onde escapar-se. ‘Metes-te em problemas e obrigas-nos a fazer aquilo que não gostamos de fazer’, diz o Secretário espreitando por esse buraco. Praado olha na direcção de onde vem o som desta inútil consideração – que visa acalmar a consciência de quem a profere mais que propriamente outra coisa qualquer – e vê os dois olhos da autoridade espreitando, ali mesmo por onde lhe chega a única luz de fora. O ar que ostenta é o de quem não entendeu o que foi dito. Que crime é esse de irmos buscar aquilo que é nosso de direito natural, aquilo sem o qual nos é impossível viver? Já bem basta ser-nos vedado tudo o resto! O Secretário está ciente destas verdades. ‘Solto-te se me garantires que não voltas ao estaleiro do estrangeiro, se me prometeres que te portas com juízo!’ Além do mais, às autoridades faltam-lhes milicianos suficientes para vigiar o sonho dos pastores, o melhor mesmo é que eles prometam vigiar-se a si próprios. Os milicianos que há dispõem-se na sede do governo local, de guarda à bandeira, e na varanda do Engenheiro Waasser para proteger este nosso visitante dos sentimentos contraditórios que suscita. Os que ainda sobram, quase nenhuns, estão no estaleiro velando pela segurança do bem mais precioso, ainda mais raro desde que deu em Praado aquela ideia. ‘Se me prometeres que te portas bem deixo-te sair’, insiste o Secretário. Praado, farejando as paredes como um felino, nem parece ouvir aquela voz.


76 Maara desliga bruscamente o telefone. Atira-o para dentro do cesto e fica a olhar a planície nervurada de carreiros como se dali esperasse o regresso da serenidade. Quis nesta altura o destino que Maara estivesse no carreiro recto, sem sonhos que sonhar (apenas raivas, pressas e irritações), e que no carreiro torto seguisse Heera há certo tempo, ainda o telefone de Maara não começara a tocar. O carreiro por onde segue Heera é caprichoso, dá uma grande curva mas torna a passar no cruzamento que parecia ter ficado para trás. Maara olha em volta, pensando ainda em Laago com uma raiva surda, e eis que vê Heera. Vê Heera que se afastou há certo tempo, levada pelo carreiro torto que, todavia, a obriga a voltar a passar perto. ‘Heera!’, exclama. Heera parece sobressaltar-se com este grito chegado do lado da surpresa para se intrometer nas suas reflexões. ‘Heera!’, torna Maara. Torna e sente que, passado o sobressalto, a amiga estuga o passo. Estranho! Tem a impressão de que ela amaldiçoa um carreiro torto que, se fosse direito, já a teria levado para longe dali. ‘Heera!’ Heera vira-se finalmente e acena na distância. E Maara fica sem saber se aquele aceno é um cumprimento, se o gesto que a amiga encontrou para se afastar. Fica sem saber e a olhar a amiga que se afasta, caminhando apressada pelo carreiro torto como se agora o desejasse mais direito. Apressada e iluminada, cercada de um estranho halo. Como se dentro de si escondesse um tesouro. ‘Heera!’, repete Maara ainda uma vez, com voz mais fraca. Mas o chamado perde-se no ar, incapaz de vencer a distância que se cavou já entre as duas.


77 O Engenheiro Waasser não é ingénuo, sabia desde o início que iria passar por tempos duros. As culturas são diferentes, tens de estar preparado para isso!, disseram-lhe antes mesmo de partir. Nem sempre a força que nos faz mover os move a eles, e vice-versa!, acrescentaram. Todavia, desde que perceba por onde vai o Engenheiro Waasser está disposto a tudo, mesmo que seja a recomeçar todos os dias. Cada fracasso é também mais um motivo de nova investida. Não há maior obstinação do que a daqueles que querem fazer o bem. Porfiam, não deixam os outros em paz. O gesto de Praado foi sem dúvida uma surpresa. Mas, passada essa surpresa, o Engenheiro Waasser pegou no telefone e tratou de encomendar mais água, o dobro das carradas para que Praado ficasse ciente do quão inúteis eram as suas tentativas. Como se quisesse dizer ao pastor que se voltasse a destruir estas quatro ele encomendaria oito, dezasseis, trinta e duas, sessenta e quatro e por aí fora até ao infinito. É o que dá quando à bondade se junta a capacidade! Queiram ou não, vou afogar esta gente!, decidiu Waasser. Suspeitasse Praado no que poderia dar a sua sanha destruidora e sem dúvida que se postaria numa curva do caminho para destruir mais e mais camiões, mais e mais carradas, fazendo assim com que à aldeia chegasse a abundância! Mas, voltando ao que importa, antes de encomendar a nova água Waasser interpelou duramente o Secretário, lamentando que as autoridades se mostrassem incapazes de desempenhar o seu papel. E ao Secretário só restou tratar de punir exemplarmente o pastor.


78 ‘O Secretário não tinha outra saída senão prender Praado’, diz Ryo. ‘Afinal, foi por causa dele que o povo ficou sem a água de que anda tão precisado. O Engenheiro tem razão, é papel fundamental de um Secretário assegurar que a ajuda chegue ao destinatário!’ ‘Nada disso!’, discorda Laama. Discorda e lamenta, mais que a falta de memória, a falta de imaginação do companheiro. Se a falta de memória faz com que ele se esqueça a quem pertence a água desde o princípio dos tempos, numa altura em que os antepassados de Waasser nem faziam ideia de que esta terra existia e funcionava, a falta de imaginação impede que Ryo perceba o real significado da acção de Praado, que prefere morrer de sede a beber das mãos do Engenheiro uma água inquinada por esta hierarquia malsã. Ryo ri-se. ‘Seja como for, é papel do Secretário ampliar a revolta de Praado!’, insiste Laama de cenho cerrado. Ryo encolhe os ombros.


79 Furiosa, Maara põe-se a caminhar. Pontapeia o carreiro torto por onde descuidadamente entrou como se o quisesse endireitar. Enquanto o faz, pressiona as teclas do seu telefone celular. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ Quer saber de Ervio o que disse ele a Laago que não pudesse ter-lhe dito a ela directamente. Desliga, presa ao velho método (esperando que seja Ervio a ligar). Aguarda, enquanto caminha. Aguarda a chamada de Ervio que demora a chegar. Alguma dificuldade no sinal, uma tarefa urgente do namorado ou coisa assim. Volta a tentar, desta vez disposta a deixar que se complete a ligação. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!, Ti! Ti! Ti! Ti!’ Cresce nela uma surda irritação: a linha está ocupada! ‘Ti! Ti! Ti! Ti!’ Atira o telefone para o cesto, só lhe resta seguir as caprichosas curvas do carreiro. Ao mesmo tempo vai pensando em Heera, nas costas inclinadas para trás, no andar bamboleante e nos olhos húmidos, em tudo isso que julga ter notado na amiga. E que pressa toda era aquela que Heera levava?


80 Gaato percorre os quatro carreiros rectos que definem o perímetro do estaleiro. A sua tarefa é simples, recta como eles. O perímetro é uma fronteira entre onde há água e onde ela não existe. Por estes dias o estaleiro é um oásis que muitos espreitam e alguns guardam. Laago, escondido atrás de um tronco, é dos que espreitam. Gaato, coxeando monotonamente, dos que guardam. Assim que Laago vê Gaato de costas, depois de ter passado, mete dois dedos à boca, enrola a língua, aperta os lábios grossos e lança um assobio que tanto pode ser o piar de um pássaro nocturno como gente chamando alguém. ‘Piááá!’ Gaato continua o caminhar sem sobressaltos, afora o seu modo de andar. Habituado à noite e aos seus incoerentes sons. Ave ou gente distante, dá na mesma, nenhuma delas o preocupa. Praado está na prisão. Sempre nas costas de Gaato, Laago atravessa a cerca de arame e esgueira-se para junto dos dois milicianos, atrás do depósito da água. Mal falam entre si, apenas se reconhecem. A um entrega um dinheiro que traz, enquanto do outro recebe a primeira lata desta água nova que o Engenheiro Waasser mandou buscar. Gaato prossegue a sua ronda, está no vértice mais distante, ciente de que atrás estarão os milicianos guardando. Laago recua atabalhoadamente, vê-se que não está acostumado ao feminino gesto de levar latas de água à cabeça. Vai correndo e semeando um fio de água, que só não será um sinal que Gaato possa seguir, quando mais tarde vier espreitar, porque a terra nestes tempos engole avidamente qualquer líquido que lhe chegue perto. Abeira-se enfim da cerca com a lata de água à cabeça (desta já só há três quartos), e emite novo piado, agora de coruja manhosa cujo verdadeiro significado só Heera é capaz de entender. ‘Piúúú! Piúúú!’ Heera sai do escuro onde se escondia, chega-se perto do furtivo vulto, recebe dele a lata de água sem uma palavra, põe-a à cabeça, vira as costas direitas e


põe-se a caminhar por um carreiro recto com o andar bamboleante com que anda ultimamente. Só que mais apressada e com mais competência que a do ladrão, sem deixar cair uma gota sequer. E, sempre, cercada do novo halo.


81 Ervio pressiona os botões do seu telefone celular. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ ‘Está?’, pergunta. ‘Quem fala?’ ‘Daqui é Laago’, diz a voz do outro lado. ‘Voltaste a enganar-te?’ ‘Não, desta vez ligava mesmo para ti.’ Dizendo isto, Ervio é percorrido por um íntimo estremecimento (porque ligo a Laago se quero saber de Maara? Porque o coloco entre mim e ela?). ‘Tens visto Maara?’, pergunta após ligeira pausa. Laago sorri, silencioso. Tão silencioso que Ervio, do outro lado, nem sequer nota o sorriso. ‘Sim, tenho-a visto’, responde. ‘Como está ela?’ ‘Parece-me bem. Quando a vi passar ia com uma lata cheia de água limpa à cabeça. Altiva, apesar do peso da lata.’ Laago nem sabe porque disse o que acaba de dizer. Será por ele próprio ter roubado a água? Ou porque a altivez com que Maara o trata é idêntica à de quem transportasse, nestes dias de escassez, uma lata de água limpa? Ervio estremece. ‘Uma lata de água limpa?’ Sente nos ossos um vento gelado, apesar do calor que faz. Espreita os termómetros e as retortas: os primeiros indicam elevadas temperaturas, das segundas goteja apenas silêncio. Nada. ‘Como, lata de água limpa?’, pergunta num fio de voz. ‘Onde a arranjou?’ Laago respira fundo: ‘Não tenho a certeza. Mas onde mais podia ela encontrar água a não ser no estaleiro desse tal Engenheiro?’ De facto, onde mais podia Maara encontrar água?, pensa Ervio. Despede-se de Laago, desliga o telefone e fica de olhar perdido no mostrador silencioso. Missed call, lê nele. E apressa-se a clicar nos botões apropriados para


ler um nome escrito a letras negras sobre um fundo azulado e brilhante: Maara.


82 O Engenheiro Waasser enche-se de coragem. ‘Gaato, chama aquela rapariga!’, ordena. ‘Quem, patrão?’ ‘Aquela que ali vai com o cesto à cabeça.’ Do outro lado, o carreiro desenrola-se pela encosta fora. Rígido, crispado pelo pisar de Maara. Gaato põe-se a caminho. Levemente trôpego, apressando o mais que pode as suas pernas desiguais para chegar junto de Maara antes que a engula uma súbita curva e, depois dela, uns tufos de palha amarela, capim que morreu de pé. Corre e tropeça, ansioso. ‘Maara! Maara!’, grita, coxeando cada vez mais rápido. Waasser segue os dois com o olhar, franzindo o cenho no esforço de não perder os pormenores. Vê que à rapariga engole uma curva, mas felizmente logo a regurgita. Quanto a Maara, pareceu-lhe ter ouvido um som, o som do seu nome, e voltou atrás para se certificar. Era mesmo isso, o som do seu nome, pois vê Gaato encosta acima, qual anjo negro tropeçando nas asas em atabalhoado voo baixo, tentando chegar junto dela. A visão enternece-a. ‘Espera, Maara!’, grita Gaato entre um e outro solavanco. A impaciência de Maara dá lugar a um sorriso. ‘Espera, Maara, que o meu patrão te chama!’ O recém-chegado sorriso desaparece. ‘Que me quer o teu patrão?’ ‘Não sei, mandou-me chamar-te.’ ‘Vamos então’, diz a rapariga após breve hesitação. E Waasser, mais sereno, vê que os dois regressam pelo caminho percorrido, carreiro tenso que serpenteia até se acabar a seus pés.


83 Heera entra no casebre para guardar a lata de água, o seu bem mais recente e também mais precioso. Pousa-a com cuidado ao lado dos restos do milho que Maara pagou, certa vez em que se encontraram as duas na loja do português. Lutou por aquela água, só ela sabe o quanto lhe custou. São estes os seus dois tesouros, a água e o milho, lado a lado, num canto escuro do casebre. Laago entra atrás dela. ‘Não me agradeces?’, sussurra-lhe. Está ainda transpirado do caminho, tem um cheiro intenso. Heera permanece em silêncio, olhando o barro escuro e enrugado da parede. Laago chega-se perto, toca-lhe, passa as mãos pela pele precocemente engelhada que envolve o corpo magro, quase infantil. ‘Maara!’, sussurra ele. Heera fecha os olhos, deixa-se abraçar. Há tempos que se habituou a ter dois nomes. É este, afinal, o preço da lata de água que ganhou. A recompensa, além da água, está também na distância maior a que agora fica a solidão. ‘Maara!’, torna Laago em voz baixíssima. Passado um pouco Laago assoma à porta do casebre. Inspira fundo, olha em volta. Segue com o olhar os múltiplos carreiros, filiformes tatuagens na pele das colinas. Por um deles, ao longe, irá Maara, a verdadeira, com o inevitável cesto à cabeça (ela passa sempre a esta hora). Cerra os dentes. Odeia essa mulher de maneira redobrada.


84 Maara e o Engenheiro Waasser estão frente a frente. Gaato, na margem do encontro, é um anjo sorridente. ‘Que me quer, senhor?’, pergunta Maara. Waasser, confrontado com uma altivez assim, quase desfalece. Quase lhe diz que se enganou na pessoa que mandou chamar, que não era com ela que queria falar. ‘Como te chamas?’, murmura. ‘Chamo-me Maara.’ ‘Maara!’ Finalmente um nome para designar quem há tanto tempo vê passar para cima e para baixo no caminho das lavagens. ‘Maara!’ ‘Que me quer, senhor?’, repete ela. ‘Vi-te passar, pensei que precisasses de água.’ ‘Água?’ ‘Sim, água.’ Ideia sem nexo: quem não precisa de água nos dias que correm? É isso que ele e ela pensam. ‘Recebi alguma da cidade, pretendo distribuí-la pelo povo. Posso bem começar por ti.’ Gaato sorri, orgulhoso de ver o patrão falar assim com a amiga, em breve mulher do seu irmão. Parece-lhe bem que se comece por Maara na distribuição da água. Quanto à rapariga, tantas coisas podia ela ter perguntado, umas de âmbito geral, outras mais particular. Porque se deu o estrangeiro ao trabalho de trazer água para a aldeia?, por exemplo, e Waasser teria de desfiar os seus argumentos, falar no quão inúteis são as pontes que cruzam rios se estes não levam água, quão inútil é o gado sem pasto, os pastores sem gado. Tudo isso mais para este fim que está à vista, este pretexto. Maara perguntaria então porque começava o


estrangeiro por ela. E Waasser, caso tivesse presença de espírito, dir-lhe-ia naturalmente que foi a primeira que viu passar. Nada disto, porém, Maara pergunta; nada disto quer saber e portanto Waasser nada tem a responder. Neste momento a atenção da rapariga está longe do estrangeiro, os seus ouvidos prenderam-se já aos misteriosos ecos da água dentro do depósito, aos estalidos húmidos do seu respirar. Fala com Waasser sempre que é necessário, responde às perguntas que ele inventa para ter o que dizer, mas não se desprende desse som de deuses dedilhando uma celestial e líquida timbila. Quanto a Waasser, está também ele à mercê de um som, o da voz da rapariga. Os olhos dela não largam a torneira, como se duvidassem que ela pudesse voltar a deitar. Quanto a Waaser, não consegue desviar os seus da rapariga. Maara, agora. Talvez se decepcione um pouco com o fim do mistério, com a perda de altivez de quem já só pensa na água; mas, em contrapartida, cada gesto dela é tão nítido que quase lhe dói. ‘Gaato, enche uma lata das grandes!’, murmura Waasser sem desprender os olhos de Maara. Gaato, solícito, apressa-se a fazê-lo. ‘Leva, rapariga’ – (Maara, agora) – ‘leva toda a água que quiseres.’ Depois, já com a lata à cabeça e o cesto a tiracolo, Maara agradece, vira-se e parte. Seguida pelo olhar de Waasser até se perder na distância. Quando souber do acontecido, Laago sorrirá. Um sorriso orgulhoso do seu poder de antecipação.


85 Ryo e Laama aproximam-se da cerca do estaleiro, ainda o Engenheiro Waasser tem o olhar perdido no carreiro que engoliu uma certa rapariga com uma lata de água à cabeça. Um deles agita no ar o bordão, o outro chama por Gaato com a sua rouca voz de velho. ‘Gaaaato!’ Gaato aproxima-se, traz ainda restos do sorriso que o encontro entre o Engenheiro e Maara nele despertou. Ouve o que os velhos lhe pedem e afasta-se para falar com o patrão. ‘Estão ali dois velhos a pedir uma cabaça de água’, diz para Waasser. ‘Uma cabaça de água apenas?’ ‘Sim, só uma cabaça de água.’ Waasser sorri da humildade dos velhos. Vistos assim à distância são dois velhos magros e curvados, apoiados em bordões. Secos e nodosos como eles. ‘Dá-lhes mais água, dá-lhes toda a água que quiserem!’ Está ainda sob o efeito do encontro de há pouco, que incutiu nele uma generosidade particular a juntar à generosidade mais geral que trazia quando aqui chegou para fazer as suas obras. Mas, apesar da insistência de Gaato, os dois velhos não querem mais do que a cabaça que pediram. E Waasser, surpreendido com este capricho que a idade dita, e que Gaato é incapaz de explicar, abana a cabeça enquanto Ryo e Laama agradecem e se afastam pelo carreiro que os trouxe. Mais adiante, os dois velhos metem por outro carreiro torto, um carreiro que vai dar ao rio. Chegam ao fim dele e sentam-se nas costumeiras pedras, perto do canavial. Vão poder enfim observar, com toda a minúcia, a água do estrangeiro.


86 ‘Sai!’, diz o Secretário abrindo a porta da cela. ‘Sai e vê se tens juízo! Não quero voltar a ter-te aqui!’ Praado recolhe a sua manta, carrancudo. Passa pelo Secretário sem sequer olhar para ele, chega cá fora e olha em volta procurando os companheiros. Atrás, o Secretário abana a cabeça. Ao lado deste, numa penumbra espessa daquelas que só o sol do meio-dia sabe criar, está Laago. Camarada Secretário, havia dito Laago, até quando vai manter esse pobre diabo aí dentro? Sede é coisa que todos temos, a diferença está em que ele não sabe da enorme distância que existe entre nós e aquilo que desejamos. É atrasado e tosco como o são todos os pastores, habituados a estar longe dos homens e perto do gado. Mande-o embora, camarada Secretário, que essa cela que aí tem é para os criminosos de verdade, não para pobres diabos como ele! Tens razão, havia respondido o Secretário. Do outro lado do terreiro, em baixo de umas mangueiras, um grupo de pastores aguarda. Praado dirige-se para lá. O que é pior, estar dentro de uma cela ou no topo da montanha com todo o seco espaço em volta mas sem saber o que fazer dele? Os homens deixam a sombra e juntam-se a Praado. ‘Que fazemos agora?’, perguntam. ‘Sigam-me!’, diz ele. E o pequeno grupo de pastores sem gado deixa a aldeia e envereda por um dos múltiplos carreiros que trepam a encosta.


87 Depois da primeira curva, Maara pára e pousa a lata no chão. Limpa o suor da testa com a ponta da capulana, pega no telefone e pressiona as teclas conhecidas sem contudo voltar a desligar. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ Ervio atende. ‘Ervio?’ ‘Sim, sou eu’, diz Ervio. ‘Porque não esperaste que eu te ligasse?’ Maara nem parece notar o tom de Ervio. Continua embalada pelo doce som da água que vem de dentro da lata. ‘Nem imaginas o que me aconteceu!’, diz excitada. ‘O que foi que te aconteceu?’ ‘Ofereceram-me uma lata de água!’ Do outro lado, Ervio quase desfalece, quase deixa que o telefone lhe caia das mãos. Quase lhe diz que já sabia. Respira fundo. ‘Assim, sem mais nem menos?’, pergunta, progredindo com cautela. ‘Sim, sem mais nem menos!’, responde Maara. ‘Foi Gaato que me veio chamar, foi ele que me deu a notícia!’ Silêncio. ‘Ervio?’ ‘Sim’, responde ele. ‘Ainda aí estás?’ ‘Estou, mas tenho de desligar. Há aqui trabalho que não pode esperar. O trabalho de descobrir uma maneira de trazer água, não para uma pessoa só mas para a aldeia toda inteira!’ Ervio desliga. E Maara fica de telefone na mão, pensativa. Porque será que Ervio nem sequer perguntou quem lhe ofereceu a lata de água?


88 Olham os dois a água, depois de verterem parte dela da cabaça para uma pequena concha de madeira. Minúsculo lago com microscópicas ondas. Laama aproxima o ouvido mas não ouve o marulhar, talvez porque os seus sentidos não são os mesmos de outrora. Ryo, mais ousado, pretende meter nela o dedo indicador a fim de saber da temperatura e, depois, que gosto tem. ‘Ainda é cedo’, diz Laama segurando-lhe a mão, interrompendo o temerário gesto. Laama é prudente, sabe-se lá o que aquela água pode fazer a quem a prove! Antes de tudo é preciso saber o que há por detrás dela. Desconfia de uma água que vem de fora, forçosamente diferente da água que costumavam ter. Ryo encolhe os ombros. ‘Água é tudo igual. Mas seja como queres’, diz. E põem-se os dois a discutir o significado daquela água. Laama acha que, além de ser estrangeira – ou talvez por isso mesmo – é uma água que apela aos piores instintos de quem com ela lida. Basta ver como fortalece a estranha relação que une Heera a Laago (o que une Laago a Heera não se sabe bem o que será!). ‘Pode ser que dessa relação de que falas nasça algo de bom’, arrisca Ryo. ‘Bom? Nada pode haver de bom quando uma mulher é chamada por dois nomes’, replica Laama. Qual dos dois seria então o nome verdadeiro? O fruto de uma ligação assim só pode ser maldito, algo que refresca e mata. Um nome para designar o refresco, outro a morte.


89 As coisas sabem-se. Porque será que Ervio nem sequer perguntou quem me deu a água? Ainda Maara se coloca esta questão e já a vizinha, longe dali, atravessa a sebe de micaias para contar à velha Caana o sucedido. ‘Diz-se por aí que a tua filha recebeu água. Toda a que quis!’ ‘Diz-se tanta coisa!’, replica a velha Caana em tom cansado. ‘Mas, se fosse como dizem achas que eu estaria suja como estou?’, e olha a capulana que tem vestida, com o retrato murcho do Presidente. ‘A minha Maara ainda respeita a sua mãe!’ A vizinha das micaias encolhe os ombros, despeitada com a dúvida da velha; não tendo porém por onde prosseguir. ‘Mãe! Mãe!’ As duas mulheres viram-se para o lado de onde vem este chamado. É Maara, o cesto da roupa pendurado num dos braços, o telefone numa mão. A lata de água à cabeça. ‘Mãe!, veja o que trago aqui!’ E a vizinha das micaias sorri satisfeita. Afinal sempre é como dizem por aí.


90 Praado, no cimo da montanha, olha em volta. O ar está parado, tão luminoso que cega. Lá em baixo, a estrada de alcatrão vem de longe, muito direita, e prossegue em direcção ao infinito. Tira negra. Passa imperturbável ao largo da aldeia, como se esta não fosse motivo suficiente para ali se deter. Praado perde os olhos no vale imenso, nos carreiros que se espalham em todas as direcções como os raios retorcidos e queimados de um sol em chamas. Caminhos de gente dócil que sobe se há uma elevação, desce se é uma cova, que torneia uma pedra ou uma árvore se estas resolveram postar-se logo a meio de onde se pretendia passar. Olha tudo isto como se aguardasse uma premonição. A aldeia é cada vez menos sua. Só lhe restam uns poucos animais morrendo um a um, onduladas e arquejantes peles penduradas em quatro ossudas patas, encimadas por pares de chifres, esses sim, sobranceiros e viçosos! Só lhe restam estes animais e o pequeno cortejo de pastores leais e cegos. Pastores que aguardam por uma iluminada visão. ‘E agora, Praado, o que fazemos?’, perguntam-lhe. ‘Esperem, tenham paciência!’, responde, como se tivesse um segredo e houvesse um momento certo de usá-lo. Será que é este o momento certo? Este momento em que Laago vem subindo distraído, pontapeando levemente as pedras do caminho poeirento que sobe a encosta da montanha, curva após curva, um caminho que após todas essas curvas se acaba bem no topo, aos pés de Praado? ‘Que pretendes?’, pergunta Praado secamente, assim que o tem junto de si. Praado não gosta do desafio de Laago, não gosta desta segurança de quem se acha por cima de tudo só por ter vivido na cidade. ‘Que pretendes?’, repete.


91 Ryo e Laama prosseguem o estudo da água na concha de madeira. O Secretário enviou umas quantas mulheres a buscar outras tantas latas daquela água, os milicianos desentenderam-se entre si, mas isso agora pouco importa, pouco interessa aos velhos. Falam antes do Engenheiro, tentam perceber a obsessão que tem por Maara, escondida atrás do gesto de lhe oferecer a água. Ryo, com base na perene crença que tem na mudança e nas coisas impossíveis, arrisca falar em amor; ilegítimo, poderá ser, mas ainda assim amor. ‘Amor?’ ‘Sim, amor. Trata-se de uma possibilidade’, diz cautelosamente. Laama ri-se. ‘Como amor, se são duas pessoas tão diferentes? Basta olhar-lhes para a pele!’ ‘Que tem a pele deles?’ ‘Nem isso consegues ver?’, exaspera-se Laama. A dele tem a crueza do meio-dia, a dela todos os mistérios da noite. Ironia dos deuses, esta de em terras escuras colocarem homens brancos e nas nossas terras claras os homens que se vê! Mesmo assim, quando estão juntos é a rapariga que se acende e ele que se apaga. Ryo matuta. ‘Se nem isso te convence’, prossegue Laama implacável, ‘ouve então a língua que falam um e outro.’ ‘Referes-te ao português?’, pergunta Ryo. ‘Não te faças desentendido!’, responde Laama. ‘A língua que fala cada um deles consigo próprio quando estão sós.’ Ryo ri-se. ‘Nunca os vi falando consigo próprios, duvido até que o façam. Isso de falar consigo próprio é coisa de velho. Só um velho caduco como tu se põe a falar sozinho!’, diz rindo. É evidente que se sente pisando terreno inseguro e por isso procura escapar-se.


Mas Laama não lhe dá tréguas. ‘Se nem o que é claro te satisfaz, olha a casa que cada um ocupa, a dela de palha, a outra de pedra e zinco, cheia de varandas. E olha a quem deve, cada um, a sua obediência. Com Maara sabemos bem como é. E com o estrangeiro? Sabese lá a quem deve o estrangeiro a sua obediência!’ Ryo reflecte; e arrisca, agora mais sério: ‘Mesmo assim, com todas essas diferenças, pode acontecer que o amor seja uma coisa universal que se acende em qualquer pele e em qualquer língua, em qualquer casa.’ É a vez de Laama sorrir. ‘Universal? Então tu, que dizes que tudo muda – que hoje é assim, amanhã de outra maneira – vens agora falar-me em coisas gerais e sempre iguais? Preocupas-me, irmão, já não tens o claro raciocínio que te distinguia.’ Ryo ouve e põe-se sério. E ficam os dois calados um tempo, olhando a água na concha. Olhando aquela água minúscula na margem de um rio sem água alguma, um rio de areia branca. ‘E Maara, terá feito bem em aceitar?’, pergunta Laama passado um pouco. Voltando à carga. Laama é perspicaz, sabe do apego que Ryo tem à rapariga. Só em defesa dela o amigo voltaria, neste momento, a argumentar. ‘Quem não aceitaria uma lata de água nos dias que correm?’, pergunta Ryo ainda abespinhado. ‘Não me refiro à água’, precisa Laama. ‘Refiro-me a esse amor de que falas, esse amor que o estrangeiro lhe ofereceu.’ ‘E quem nos diz que ela o aceitou? Olhamos a água da concha, o seu reflexo, e nada vemos ali escrito que nos permita tirar tal conclusão.’


92 ‘Calma!’, diz Laago. ‘Eu explico por que subi até aqui. Sou teu amigo, fui eu que convenci o Secretário a libertar-te.’ Praado encara-o. ‘Queres que te agradeça por isso?’, pergunta com sarcasmo. Já se sabe que dentro da cela ou aqui, em cima da montanha, Praado é a mesma fera. Na mesma jaula. ‘Não, não é isso que pretendo nem isso que me trouxe aqui.’ ‘Que pretendes então?’ ‘Vim contar-te uma coisa que não sabes.’ ‘Só me interessa aquilo que sei’, diz Praado. ‘Nada do que não sei me interessa já saber.’ ‘Mesmo assim te conto, uma vez que tem a ver contigo.’ ‘Cala-te, nada quero ouvir. Cortei com o mundo lá de baixo. Vai-te embora antes que eu perca a paciência!’ ‘Está bem, eu vou. Mas antes deixa-me ao menos dizer-te por que fiz este caminho encosta acima. Foi para revelar quem te denunciou. Mas está visto que nada te interessa saber...’ Laago está já de costas quando profere as últimas palavras. Já deu o primeiro passo no torto e inclinado carreiro que o trouxe e que agora o vai levar. Veio apenas, afinal, para plantar uma semente negra no topo da montanha. Já a plantou e portanto já nada o prende ali. Mas a alma de Praado há muito que é solo seco onde as sementes custam a entrar. ‘Não é nenhuma novidade que foi Gaato, o guarda do estaleiro, que me denunciou’, diz. ‘Limitou-se a cumprir o seu dever, não lhe quero mal por isso. Cada um escolhe o seu caminho. E, uma vez escolhido, é obrigado a segui-lo.’ Laago pára. Volta-se. ‘Sim, foi Gaato’, diz. ‘Isso todos sabem. Suspeitei que tu também saberias. Mas o que não sabes é como conseguiu ele fazê-lo tão lestamente. Ainda vocês


principiavam a subir o carreiro para aqui chegar e já os milicianos do Secretário te cercavam e prendiam. Achas que Gaato, ainda por cima com aquela perna que tem, com o seu lento entendimento, teria conseguido avisá-los a tempo de te cortarem a retirada? Não haverá aqui mais qualquer coisa?’ Com um estudado sacudir de ombros Laago torna a virar-se para iniciar a descida de regresso. O terreno é duro mas o agricultor das sementes negras é persistente. ‘Espera!’, diz Praado. Laago pára, ainda de costas, olhando também ele o vale que se estende lá em baixo. Na ponta está a aldeia. Perto dela o rio é um rasgão comprido e fundo, a crosta seca da ferida que a unha de uma águia enorme provocou. ‘Espera!’, torna Praado. ‘Quem foi então que avisou os homens do Secretário?’ Ainda de costas, Laago sorri. E responde com uma outra pergunta: ‘Conheces os telefones celulares?’ Praado acena com a cabeça. Já os viu, colados ao ouvido de um ou outro passante, recolhendo os murmúrios que essa gente lhes segreda. ‘Sim. E que tem isso?’ Laago sorri novamente. Vira-se. ‘Servem para muita coisa. São instrumentos demoníacos, chegaram aqui na altura em que o Engenheiro chegou. Pergunto-me se não terá sido ele que os trouxe e espalhou; pergunto-me se não terão sido eles a causa de todo este castigo que se abate sobre nós.’ E Laago explica como esses aparelhos, fingindo guardar vozes dentro deles, as lançam para longe por cima dos vales e das montanhas, por cima do pasto amarelo do gado, das pedras e dos rios secos. Impedido de fazer pontes verdadeiras, são estas as pontes invisíveis que o Engenheiro faz: saber o que se passa em lugares distantes sem ser preciso lá ir. Quem é capaz disso é capaz de muito mais; capaz de sugar a água toda do chão sem ser preciso estar presente com as suas máquinas. Praado ouve, interessado. Laago insiste: ‘Nem sei também, embora desconfie, se não terá sido Maara, aquela rapariga, a filha da velha Caana, a amiga do coxo Gaato, essa mesmo, se não terá sido ela, a quem o namorado deu um desses aparelhos, enfim, se não terá sido ela a utilizá-lo para ligar ao Secretário a avisar onde estavas e o que havias acabado de fazer. Pensa se não pode bem ser como digo!’ ‘E que interesse teria a rapariga?’, pergunta Praado.


‘Não sei ao certo. Mas tenho-a visto com o Engenheiro, que lhe dá toda a água de que precisa.’ Praado olha para trás, para a sombra dos arbustos onde os outros pastores aguardam iluminações. Depois olha o vale lá em baixo. Nada diz. Laago começa enfim a descer, sem se virar para trás, nem despedir. Sabe que da semente negra já desponta um pequenino pé. Cheio de pequeníssimos espinhos.


93 Ervio é, por estes dias, um homem dividido. Atira-se ao teclado do computador com declarado frenesi e quando interrompe a febril actividade é para folhear o caderninho e retirar uma medida das que colheu na aldeia, ou então para olhar o tecto vasculhando um pormenor. Mesmo assim o texto sai-lhe requentado, sem a frescura que tinha da primeira vez. É tão diferente o criar, tão mais empolgante que o lembrar e repetir! Amaldiçoa-se, levanta-se, senta-se, torna a levantar-se, vem cá fora fingindo observar um aparelho, na verdade à procura de uma ideia e da frase que a transforme em algo que se veja. Pragueja. Se repara no telefone em cima da secretária é o contrário: disparam-se-lhe em catadupa ideias que não interessam, que não tem por que escrever. Pragueja de novo. É assim que passa os dias, espremendo lentamente as gotas de um relatório que se quer urgente, lucubrando urgentemente sobre um problema que pode esperar. Vou telefonar-lhe, dizer-lhe que largue tudo e venha para cá. Vou dizer-lhe que estou até disposto a perdoar, pensa, com as mãos fincadas no teclado. Consulta os números que atribuiu às nuvens secas que viu passar sobre a aldeia quando lá esteve, para não as confundir umas com as outras. E ela vai dizer-me que tem Floor, que tem a velha Caana, que tem um monte de roupa para lavar. Responderei que venham a velha e a filha, que venham as três mais a roupa que tiverem. Que faço com esta maldita nuvem? Que número lhe dou? Larga bruscamente o teclado, levanta-se, agarra no telefone e vem cá fora respirar. Prime as teclas que compõem o número de Maara, aquele que o Engenheiro Waasser daria tudo para ter. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz! Tloc!’ Desliga antes que a chamada se complete. Como se com isso pudesse resolver um problema sem ser obrigado a decidir como fazê-lo. Olha o telefone, absorto, enquanto os pensamentos se sucedem. Pode ser que esteja a lavar alguma roupa com a pouca água que tem – água maldita! – ou a cuidar da criança. Para quê


importuná-la? Esperará pois mais um pouco, até que ela termine essas tarefas que imagina estará fazendo. Como um cego, volta a utilizar o telefone sem sequer olhar para ele. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ ‘Laago?’, pergunta, assim que atendem do outro lado. ‘Sim, sou eu.’ ‘Onde estás?’ ‘Estou na fila de água do Engenheiro. Aprecio a agitação do povo, da aldeia quase inteira. Começou hoje a distribuição da água!’ ‘Humm... Diz-me, Maara está por aí?’ ‘Maara é esperta, Ervio. Porque haveria de estar na fila da água se pode ter toda a que quiser?’


94 É tarde, Maara demorou-se no rio. Alguém lhe disse que, lá mais adiante, depois de uma curva, se abria uma cova enorme, caprichosa ferida que a água deixou no leito depois que se foi, um leito que no mais é chão como o são normalmente os leitos dos rios; e que nessa cova, onde a terra seria mais escura do que antes ou depois, e semeada de pedras, havia ainda um resto de água que aproveitar. Maara nem se perguntou qual a razão de lhe terem dito aquilo e porque não se aproveitara do segredo quem o tinha. Pôs-se simplesmente a caminho por essa estrada nova e larga e branca que é hoje o rio, passou pelas suas curvas – sinais do quão retorcido ele era (relutante em chegar à foz e se perder), no tempo em que levava água – e chegou aonde lhe parecia ser o dito lugar. Não era. Prosseguiu, já a aldeia ficara há muito para trás, até chegar enfim a uma nova curva onde de facto havia um buraco, umas pedras, terra escura. Que andaria a fazer quem descobriu este lugar quando o descobriu? Mas isso agora pouco importa, pensou. Procurou por entre as pedras, deu enfim com uma pequena poça. Cheia de paciência, pôs-se a limpá-la. Foi escavando com cuidado, as mãos em concha, tirando terra escura, sorrindo à medida que ela se tornava em lama e que, por sua vez, a lama parecia aclarar-se. É tarde. Pára, sentindo chegar o impulso que a assalta sempre em momentos como este. Limpa as mãos à capulana, limpa o suor da testa com o braço, olha em volta e tira enfim do cesto o telefone celular. Há que avisar Ervio! Compõe o número e escuta, com o aparelho encostado ao ouvido. ‘Pi! Pi! Pi!’ Segue-se o silêncio. ‘Neste raio de lonjura nem sequer há rede!’, diz irritada. Morde o lábio, atira com o aparelho para dentro do cesto e regressa ao trabalho. Não faz mal, pensa, procurando concentrar-se naquilo que a ocupa. Digo-lhe mais tarde.


95 Sentado numa pedra, à porta do casebre, Laago nem sabe porque veio visitar Heera. Olha-a e não se entusiasma: parece-lhe mais mãe sem filhos que mulher. Mãe magra, sem leite que dar. Que será que vi nela quando a olhei pela primeira vez?, pensa. Nem sequer foi para imaginar por onde andará Maara que veio visitar Heera: imagina bem por onde andará a maldita rapariga. Imagina também por onde andarão Praado e o seu bando de pastores. Atrás de uns paus, sem que Laago a veja, está Heera. Abana a tampa de uma panela velha para espevitar o fogo. Ferve uma água, deita-lhe dentro um retorcido molho de inomináveias ervas quase secas, quase já só palha. Deixa ferver mais do que a conta, para que a água possa sugar do capim o suco que ainda houver e se impregne desse vago aroma de limão. Depois verte a infusão numa lata, pega nela com ambas as mãos, dá a volta e vem trazê-la a Laago. Laago recebe a lata distraído, leva-a à boca. Cospe. Chegou-lhe um sabor amargo a coisas velhas; um sabor a sujidade, a palha e a miséria. ‘Chamas a isto chá, mulher? É nisto que gastas a água que te dei?’ ‘A tua água era pouca, há muito que se acabou. Essa consegui-a hoje, é água do estrangeiro.’ Laago torna a cuspir. ‘E não podias ao menos pôr-lhe um pouco de açúcar?’ ‘Há muito que o açúcar acabou.’ Laago reflecte, fixo na distância. ‘Tens razão. Na verdade o que te falta é o açúcar!’, diz com azedume.


96 Em casa do Engenheiro Waasser também fervem a água, mas fazem-no para matar a doença; e também a congelam para que possa esfriar o whisky que lhe preenche o vazio que tem, entre o projecto de um buraco e o desenho de uma ponte. O Engenheiro está à varanda, tilintando o copo entre as mãos. Olha os cubos de gelo e conclui que, da água que mandou vir, foi esta a parte que lhe coube. Sorri desta conclusão. Na sua frente, o Secretário pigarreia para o trazer de volta do devaneio e se poder enfim despedir. Está de pé, pronto a partir. Discutiram o que havia a discutir, fizeram o balanço da água distribuída, trocaram impressões sobre como trazer mais. O futuro não escorre por si só, são elaboradas discussões como esta que o arrastam para perto de nós. Visto daqui de trás, a única constante que ele apresenta é a seca; tudo o resto, incluindo o comportamento dos imprevisíveis aldeãos, é necessário amansar. Waasser está confiante, o que se compreende: tem apenas de trazer mais água. Quanto ao Secretário, tem um ar cansado: cabe-lhe organizar este magro gado exangue. Despedem-se. O Engenheiro fica só, entretendo os pensamentos e sorrindo. Tilintando. Passado um pouco, agita-se na cadeira de verga da varanda. Pousa o copo sobre a mesa, levanta-se. Pareceu-lhe ter ouvido um rumor, um restolhar leve nos arbustos do jardim. Vai espreitar. E é nessa altura que passa uma ave negra em voo cego, como se a noite lhe tivesse vazado os olhos. ‘Tla! Tla! Tla!’ Uma ave cujo som é como uma vírgula separando dois enredos, ambos desconhecidos. Vinda dos lados do rio.


97 É tarde, só agora Maara se dá conta disso. Lembra-se que quando era criança também fazia covas no rio para ver a água borbulhar dentro delas. Nesse tempo, o tempo da natureza generosa, a terra, além dos frutos, fabricava também a água. Agora já nada disso acontece, o correr do rio é uma memória. Procura essa memória mas o que encontra é uma cobra descarnada, a sua esfarrapada pele espalhada pelas margens, enquanto no veio repousam as ossadas alvas e brilhantes. Sorri quando sente o humedecer, depois o borbulhar. Mas o que vem à tona dentro da cova é uma água fétida, quase negra, que logo volta a esconder-se. Um negro segredo que veio espreitar. Cava mais fundo, em outros lugares, com os mesmos afinco e resultado. Fica a caprichosa curva cheia de buracos como se andasse ali à solta uma multidão de formigas de muchém. Foi aqui que tudo começou, é aqui que tudo se acaba. Neste leito que fica agora para todo o sempre com as marcas de derradeiras e escusadas indagações. É tarde, dentro em breve chegará a noite. Não tarda nem sequer se verão os buracos. Recolhe as suas coisas e põe-se a caminho. Alaranja-se a faixa branca do rio seco, banhada pelo súbito fulgor de uma última luz. Maara conhece bem a falsidade desta luz, estuga por isso o passo. Adiante, a faixa rapidamente se acinzenta, coberta por um cacimbo leve, os fumos de uma terra de âmago ardente. Apressa-se ainda mais, quase corre. Mais três ou quatro curvas e, de onde estará, conseguirá ver as primeiras casas da aldeia. Já as imagina. Desde pequena que não consegue sentir-se verdadeiramente só, há sempre olhos de bicho com pêlo, ou de pessoa, espreitando atrás de esquinas do mato. Desde pequena que salpica o silêncio de pequenos sons que não sabe se é ela que inventa, se são apenas os sons dos seus passos apressados. Sons a que atribui grandes significados. Um gemido de dor da terra que frita parece-lhe uma fera tossindo; o resvalar da pequena pedra pela ribanceira que há na margem, um pequeno ser que se afasta para não ter de a encarar. Vai pelo leito do rio como agitada deusa sobre as águas, não fossem estes


caprichos do tempo as terem levado a seu bel-prazer. Volta a pegar no telefone, passada uma curva e um rochedo que lhe pareciam ser os culpados de barrar as ondas do apelo antes que estas chegassem ao destino. ‘Pi! Pi! Pi!’, torna o telefone, e depois cala-se. Não eram. Acontecerá assim muitas vezes enquanto caminha apressada. Novas curvas e rochedos se interpõem sempre que os anteriores deixam de poder fazê-lo, isso para que o telefónico apelo não chegue a concretizar-se. Pensa em Ervio, lá longe. Pensa em Floor. Agita-se a folhagem. Fosse ave, tivesse também asas, e voava. Corre o mais que pode.


98 E Maara que não chega! A velha Caana vem espreitar à porta. Há horas que Floor se agita como se adivinhasse qualquer coisa. Em vão a velha avó se desdobrou em cuidados. Fezlhe um chá morno, bem açucarado, que a criança cuspiu irritada. Cantou-lhe antigas melodias de ninar ao mesmo tempo que caminhava para cá e para lá com ela à anca, dentro da palhota ou no terreiro. Mas a voz de Caana é uma áspera voz de velha, a sua anca é seca e angulosa: nenhuma das duas serenou Floor. E como até a velha paciência das avós tem um limite, Caana pousou a criança na esteira com brusquidão. Foi nessa altura que Floor, surpreendida, se calou. E que a velha Caana, aproveitando o silêncio, veio até à porta espreitar. Parecia-lhe ter ouvido os passos de Maara finalmente regressando. Mas não. É só o adejar rasante de uma ave negra e cega, vinda dos lados da casa do Engenheiro. ‘Tla! Tla! Tla!’ Parece a Caana um presságio. Sente uma pontada de frio no meio do calor todo que faz. Vira costas à noite que tragou a ave e regressa para junto da criança.


99 Praado morde um capim que tem na boca, um capim que mal se vê neste mundo cinzento cheio já de sombras longas, os dedos da noite que se aproxima. Umas são dóceis sombras que o seguirão para onde for; outras, sombras desconhecidas. Morde o capim e sente-o amargo. A princípio tem dúvidas se o som que lhe chega é o som do ranger dos dentes nesse trabalho de morder, se o de uma ave assustada batendo as asas para conseguir voar. Sorri. Desde criança que conhece os sons do mato. Além disso, desde criança que conhece a rapariga, de levar o gado a beber perto de onde ela lavava. Atravessou os anos verdes do passado ao som do chapinhar do gado e vendo arredondar aqueles quadris de criança. Como se, de outro capim na boca, muito mais verde que o de agora, fosse o despontar do seu desejo que os fizesse mais redondos. Trocou até palavras com ela, sempre que não havia outros pastores por perto que pudessem troçar dele por falar com raparigas. São os carreiros da vida que, tendo-os levado por percursos tão diversos, caprichosamente os colocam agora frente a frente. Sorri. Ergue o braço, sem sequer olhar para trás, e os seus dóceis seguidores emergem das árvores baixas da margem, dos escuros meandros onde se escondiam. Ainda não viram a ave dos quadris redondos mas já sentem o seu cheiro. Sabem também quão inútil é aquela pressa: a rapariga vai falhar no seu esforço de voar!


100 A crise de Ervio é patente. Umas vezes não atende, outras quer atender e o telefone não chega a tocar. Os argumentos do relatório arrastam-se junto ao chão sem que ele os consiga pôr a voar. Pega no telefone, quando a vontade de falar se torna mais forte que a de recriminar. De qualquer maneira, agarra-se à possibilidade de que a chamada falhe e o seu agastamento se revigore. Clica os números, na esperança de que algo impeça a chamada. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ O telefone chama. É que neste preciso momento Maara passa por uma curva nua, uma clareira sem árvores nem rochedos, como se por uma vez a natureza estivesse disposta a conceder aos dois uma graça. ‘Críí! Críí!’ Na tocaia, assustam-se Praado e os companheiros com aquele sinal de que Maara não está afinal só. Existem fios invisíveis, todavia poderosos, que ligam a rapariga ao mundo mais vasto que está para lá do rio seco, para lá da noite escura. Que som foi aquele, avisando a rapariga? Quase desistem. Surpreende-se também Maara, que contudo é lesta a responder; por levar na mão o telefone, por necessitar tanto de ouvir a voz de Ervio. ‘Está? Ervio?’ ‘Sim, sou eu’, responde Ervio. Distante, como se não tivesse sido ele a ligar. Sente-a arquejar, imagina que está regressando do estaleiro. À cabeça uma lata de água importada. O furor que o percorre é quase irreprimível. Quase desliga. ‘Onde estás?’, acaba por perguntar. ‘Ajuda-me!’, grita Maara, continuando a caminhar. ‘Que dizes?’ ‘Ajuda-me!’ E é nesta altura que passa em Praado a surpresa. E que, de todos os cantos que há na margem, saltam os pastores. São afinal muitos, mais do que a frágil posição de Praado deixaria adivinhar. O pasto antigamente era muito, muito o gado e portanto muitos os pastores. E embora prados e vacas se possam ir como


vêm, é a espécie humana mais obstinada, sobram sempre alguns pastores. Saltam de todos os cantos salpicando a enluarada mina a céu aberto a que se resume hoje o leito do rio. ‘Que me querem?’, pergunta Maara para as sombras. ‘Maara?’, pergunta Ervio, do outro lado. As sombras sorriem. ‘Que me querem?’, repete ela. ‘Ervio!’, grita. ‘Queremos apenas o teu telefone’, diz Praado mansamente. ‘Maara?’ ‘Não o trago comigo.’ Praado sorri. ‘Vimos-te com ele na mão, falavas para dentro dele.’ Viram Maara falando para dentro do telefone, guardando nele palavras como quem, furtivamente, esconde moedas numa lata. E, embora a rapariga tenha agora as mãos vazias, querem saber que moedas eram essas. Maara tenta fugir por onde lhe parecia haver uma brecha, mas afinal também daí, de trás de um arbusto, saem mais pastores. São muitos, tantos quantos forem necessários para que aconteça o que está para acontecer. Regressa ao meio do círculo, o cesto apertado junto do peito. É esse o gesto que faz desconfiar Praado. ‘Que tens no cesto?’ ‘É apenas roupa.’ O tom de voz de Maara, a forma como aperta o cesto, fazem com que se redobrem em Praado as suspeitas. ‘Deixa ver!’ ‘Não!’ ‘Maara?’, grita um fio de voz dentro do cesto. No leito seco do rio as sombras dançam umas com as outras. Mal se vêem, são quase apenas dispersos sons polvilhando a noite. Praado estica as suas grossas mãos, enrugadas no pasto, ásperas de lidar com as pedras, segura uma das alças do cesto e puxa-a com violência. Maara vem atrás, agarrada à outra alça. Praado sacode-a e a rapariga cai no chão. ‘Maara?’, chama o fio de voz. Ela morde o lábio e tacteia em volta. Sabemos já como as suas mãos ganham olhos em situações difíceis como esta. Uma delas encontra uma pedra de bom tamanho, pesada, escondida anos a fio no fundo do rio e agora a descoberto, pronta para que a mão de Maara a possa agarrar. Já utilizou uma pedra uma vez,


poderá bem tornar a fazê-lo. Mas Praado não é Laago, não se deixou adormecer pela vida da cidade. Sabe bem, desde criança, para que servem pedras esquecidas e pontiagudas como aquela. Com uma mão agarra a mão da rapariga, com a outra esbofeteia-a com violência. Uma, duas vezes. Maara geme. ‘Maara, estás aí?’, grita Ervio, ouvindo o gemido e o ulular mais grosso que o cerca, dos pastores. Quando parece a Praado que Maara ficará quieta, pega no cesto e vira-o ao contrário espalhando o seu conteúdo no leito do rio. Pequenos pertences, sementes, descoloridas conchas, um lenço, pétalas secas com um especial significado. Enfim, coisas pequenas. ‘Maara? Maara?’ Praado nem precisa de procurar. Basta-lhe seguir aquele som vindo de longe, seguir a luz do mostrador, a única luz. Pega no telefone e embrenha-se na escuridão, seguido dos outros pastores. Levando consigo os incessantes apelos de Ervio. ‘Maara? Maara?...’


101 Os dois velhos estão perto do rio. Observam ainda a água. Fazem-no com dificuldade, por estar já escuro e ser complexa a operação. Não é a água em si que lhes interessa mas aquilo que se pode descobrir no seu reflexo. Ryo movimenta a concha tentando que a água capte um raio de luar. ‘Cuidado, não a entornes!’, avisa Laama. ‘Descansa que não o faço’, responde Ryo. A lua, embora quase cheia, está hoje perturbada por um cortejo de nuvens vazias que apenas servem este propósito de esconder a luz. Os dois homens não passam de vultos; e as palavras, ditas assim em voz baixa, cortam o ar sem que se saiba exactamente qual deles as proferiu. Falam agora dos dois reflexos que notaram: um fazendo lembrar a obediência, o outro a aceitação. ‘Aceitar não é necessariamente obedecer’, diz Ryo. Ainda procura justificar a atitude de Maara, que aceitou a água do estrangeiro. ‘Se víssemos o mundo como tu por vezes pareces vê-lo, enlouquecíamos. Claro que aceitar é obedecer! O que tu dizes é tão absurdo como dizer que obedecer não é o mesmo que aceitar!’ ‘Claro que se pode obedecer sem aceitar’, insiste Ryo. ‘Não é essa a nossa história desde o tempo antigo, obedecer sem aceitar?’ Laama amua. Para ele os gestos correspondem sempre às atitudes. Não faz sentido rirmos se por dentro temos vontade de chorar. E estão neste desacordo, sem saber como avançar, quando dois estranhos acontecimentos ocorrem em simultâneo para os atormentar. Primeiro, uma das nuvens recua lá no alto, com isso permitindo que um disparo de luar arranque um novo reflexo da água na concha. Qual o significado desse reflexo?; depois, ouvem um surdo tropel vindo dos lados do rio. ‘Que é isto?’, pergunta Laama, olhando a água e ouvindo o som. ‘É melhor irmos espreitar’, diz Ryo. Com uma lenta e atabalhoada pressa de velhos, erguem-se e vão espreitar,


atrás dos arbustos, o rio. É nessa altura que vêem vultos de pastores correndo pelo meio do leito como se fugissem de si próprios. Na frente, mais veloz que os restantes, vai Praado. Levando nas mãos um apelo iluminado: ‘Maara? Maara?...’. Ouve-se ao longe um ruído de motor. Os velhos perturbam-se com a súbita multiplicação dos sinais.


102 O Engenheiro Waasser torna a sentar-se. Passa os dedos pela superfície embaciada do copo para sentir a humidade. Tem o olhar fixo no gelo que derrete lentamente. O criado surge na varanda. ‘Patrão, o jantar está pronto.’ ‘Não me apetece comer. Serve-me mais um whisky’, diz Waasser. A ave cega não lhe sai da cabeça, parecia voar na vaga direcção do rio. Muda de ideias e levanta-se, desce os degraus e mete-se no Land Rover, ao mesmo tempo que grita para dentro: ‘Vou sair! Não me demoro!’ Transpõe a cancela ruidosamente, acenando ao miliciano que a guarda, e mete pela estrada voando por cima dos buracos. Segue assim durante um tempo, os faróis varando a noite. As árvores e os tufos de capim negro desfilam pelos lados, Waasser nem repara. De quando em quando brilham trémulas luzes de fogueiras mas a esta hora já não há vivalma. Depois, com uma guinada para a esquerda, deixa a estrada e entra pelo caminho que vai dar ao rio. O carro sacode-se e protesta, saltando por cima dos regos que a chuva deixou, no tempo em que chovia, mas Waasser, metendo uma mudança, obriga-o a manter-se obediente. Adiante o caminho vai descendo e vai estreitando, é já um caminho só de gente e gado. O carro hesita, mas Waasser, com nova mudança, obriga-o a entrar por ele. Andam durante um bocado, as fogueiras dispersas ficaram para trás e só guinadas súbitas evitam a agressividade das pedras. Depois de uma curva o caminho estreita ainda mais, é já só um carreiro de cabras tresloucado volteando ao sabor de onde antigamente havia erva que comer. Waasser entra por ali sem hesitar, o carro já deixou de resistir, cumpre cegamente o que lhe ordenam escorregando e largando torrões e pedras em todas as direcções. E eis que os faróis, que há muito haviam perdido o tino, amansam, fixando-se agora no caminho: o Land-Rover avança já pelo suave leito do rio seco. Aos poucos Waasser vai diminuindo a marcha até parar por completo. Desliga o


motor em busca de silêncio. É nesta altura que ouve um gemido e, mais distante, um restolhar da folhagem, como se fosse uma cobra fugindo ou gente velha aproximando-se. Pega na lanterna e salta do carro a ver o que Ê.


103 Praado está sentado numa pedra, arquejante. Deixou o leito do rio, correu muito encosta acima. Não lhe serviam os carreiros existentes, tortos ou direitos. O carreiro que lhe fazia falta era um que fugisse, não que fosse dar a um lugar. Por isso criou o seu próprio carreiro cortando a direito pelo mato, fazendo um percurso que só alguma terra revolvida, algum capim pisado, poderiam agora revelar. Por perto estão os restantes pastores, ofegantes, cada qual procurou um canto onde se sentar a descansar. Praado cerra os olhos, como se isso o ajudasse a esquecer o que acabou de acontecer. A nobreza dos pastores é feita de madrugadas, a noite serve apenas para que durmam ou que façam coisas que os envergonhem. Depois abre-os. O ar está pesado de um nevoeiro tinto de sangue, da queimada que lavra abertamente numa encosta não muito distante. Ferida aberta pela qual a terra purga as suas doenças ou então esperança vã de quem ateou o fogo, à espera ainda da chuva e da renovação. É isso, e a distância, que o impedem de ver o vale com nitidez. Esquadrinha-o a custo, tentando imaginar por onde andará a rapariga. Sabe onde a deixou, numa curva assinalada por um grande rochedo, daqui pequena mancha irrelevante. Será que ainda lá está? Será que se pôs a caminho em busca de socorro? Desiste de olhar a noite ensanguentada e fixa-se no telefone que tem nas mãos. Fica assim durante um tempo. Perto, os pastores aguardam nova iniciativa. Depois o telefone toca, um súbito grito que golpeia o silêncio. ‘Críí! Críí!’ Praado assusta-se com o som e o acender da luz no mostrador. Quase deixa cair o telefone. Voltará muitas vezes a ser assim pela noite fora: o grilo enlouquecido insistindo e desistindo do apelo, de cada vez golpeando fundo o corpo do silêncio. Daria tudo para que o maldito não voltasse a tocar. ‘Vejo que cumpriste com a tua parte dos trabalhos!’ Praado vira-se. É Laago. ‘Cumpri. Mas quase me arrependo. Talvez a rapariga andasse apenas à procura


de água como todos os outros.’ ‘Não te deixes enganar pelo ar dela’, retorque Laago, estendendo a mão para receber o telefone de Maara. ‘A rapariga é dissimulada, tem toda a água que quiser!’ Permanecem um bocado em silêncio. Laago segura na mão os dois telefones, o seu e o de Maara. ‘Podes ficar descansado’, diz. ‘Dentro em breve voltará a água outra vez.’ ‘É bom que volte’, diz Praado. ‘Ou então poderei pensar que me mentiste.’ Laago vira-se e inicia a descida da encosta, um telefone em cada mão.


104 Maara está no chão, doi-lhe o corpo todo. Aos poucos o tropel foi diminuindo até desaparecer na distância. Voltou o silêncio e o som dos grilos verdadeiros, mas por pouco tempo. Empurrados para longe por um ruído de motor e por arrastados passos de velho. É Ervio que chega!, pensa. Mas logo afasta a ideia, por mais que gostasse dela: seria impossível ao seu namorado chegar assim tão depressa. Mas quem mais pode chegar àquele ermo assim de carro? Aos poucos vai voltando a perceber a situação. ‘Socorro!’, grita. Socorro!, ouve Waasser, de lanterna em punho. Socorro!, ouvem Ryo e Laama. O Engenheiro, por estar mais perto e ser mais jovem – e também porque a lanterna o ajuda a avançar sem ser aos tropeções – é o primeiro a chegar. Ilumina o mato em volta, depois o chão do rio onde descobre o cesto de Maara virado, as roupas da lavagem e outras pequenas coisas espalhadas ao acaso, uma carteirinha de palha, sementes e cordeis, uma pulseira barata, um pequeno lenço de capulana, coisas de mulher. Conheço estas coisas, são as coisas da rapariga!, pensa ele sobressaltado. Dá por fim com ela estendida no chão. Maara vê primero o foco de luz varrendo em volta, os arbustos, o cesto virado. Vê por toda a parte as suas coisas. ‘Estou aqui’, diz num fio de voz, ao mesmo tempo que a lanterna a descobre e que o Engenheiro se precipita sobre ela.


105 ‘Está?’, pergunta Ervio. Está ao telefone, à secretária, tem na frente um revolto mar de papéis que não consegue ordenar. Há horas que os tenta ler, inserir novos números, estabelecer médias e confrontá-las com as teorias mais avançadas e recentes, comparar com casos idênticos espalhados pelo mundo e pelo tempo, redigir sólidas conclusões. Mas a cada passo é assaltado pela ansiedade do chefe que vem à porta espreitar, e por uns certos gritos que, desde que os ouviu, não o deixam em paz. Que gritos eram aqueles? Quase os entende, quase vê Maara arrependida percorrendo a invisível onda para se aninhar nos seus braços. Sente uma urgência de dizer que lhe perdoa. Certifica-se de que é o número dela que liga, dispõe-se finalmente a ir até ao fim. ‘Bip! Bip!, Tzz! Tzz!’ ‘Está?’ ‘Sim.’ ‘Quem fala?’ ‘Sou eu’, responde Laago. Desce a encosta, no escuro. ‘Laago?’ ‘Sim, Laago.’ ‘Viste Maara?’ Laago dá-se a si próprio uma pausa. Precisa de pensar. ‘Viste Maara?’, torna Ervio. Laago sorri, agora mais seguro. ‘Sim, acabo de a ver. Ia de carro com o estrangeiro. Naturalmente que ele a viu regressando do rio e lhe ofereceu uma boleia.’ Do outro lado faz-se um silêncio pontuado por estalidos e crepitares. Sons que correspondem a outros tantos obstáculos com que depara a invisível onda, inevitáveis na longa viagem de ida e volta para trazer e levar as partes do diálogo.


‘A esta hora?’, interroga Ervio. ‘Sim, a esta hora. Atrás, levavam um par de latas de água’, aproveita Laago para acrescentar, sem saber por que o faz. ‘Naturalmente que o Engenheiro as vai oferecer à mãe de Maara. Ele é muito generoso.’ Novo silêncio. Longo, enquanto Laago continua a caminhar. Após o que Ervio torna a falar: ‘Diz-me então, Laago, já que sabes tanto: porque falas pelo telefone de Maara?’ Laago sobressalta-se. Afasta o aparelho do ouvido e olha-o com estupor. É o telefone de Maara! Na outra mão tem o seu próprio telefone, adormecido. Num impulso, atira o primeiro para longe e põe-se a correr pela encosta abaixo procurando um carreiro recto que o leve para longe de onde falou com o amigo. ‘Está?’, grita a voz de Ervio de dentro de uns arbustos, perseguindo Laago no meio da escuridão.


106 ‘Rapariga! Que te fizeram?!’, exclama Waasser. ‘Ajude-me, senhor!’ Waasser inspecciona o corpo de Maara com a lanterna. Percorre com essa língua de luz os seus braços, o pescoço, as pernas descobertas. Perturba-o vê-la assim tão perto e vulnerável. Perde-se por um momento nos lábios grossos, nos dentes certos espreitando da boca entreaberta, nas narinas frementes, nos lóbulos das orelhas. Nota-lhe um dos malares inchado. E o olhar, que há tempos o traz preso, assustado. ‘Quem te fez isto, rapariga?’ ‘Não sei, senhor.’ Inclina-se para ajudá-la a levantar-se. É nesse momento que chegam Ryo e Laama vindos do mato. ‘O que é isto?’, exclama Laama. ‘O que fez você a Maara?’, pergunta Ryo com um ar reprovador. ‘Eu?! Que disparate!’, diz Waasser. ‘A rapariga foi assaltada. Eu vinha a passar por acaso e ouvi o seu pedido de socorro.’ A passar por acaso? Neste lugar escuro e ermo? Os dois velhos mantêm prudente distância. ‘Venham, ajudem aqui!’, diz o Engenheiro recobrando a autoridade, enquanto rasga uma ponta da camisa que traz vestida. Os velhos aproximam-se. ‘Que têm aí’, pergunta ele olhando a concha de água que Laama segura nas mãos. ‘É água.’ ‘Água limpa?’ ‘Sim’, dizem os dois em coro, embora não estejam seguros disso. Por não terem ainda acabado de a inspeccionar. Waasser mergulha a tira de pano na concha, torce-o ligeiramente e começa a passá-lo pelo rosto de Maara, pelos seus braços contundidos, sem se desprender


daquele olhar. Ao mesmo tempo diz aos velhos que recolham o cesto e os objectos espalhados no leito do rio. Eles pasmam, mas não deixam por isso de obedecer. Ou por a água ter poderes especiais, benzida pelas minuciosas observações que Ryo e Laama tinham já levado a cabo, ou então por ser apenas água – rara nos tempos que correm – ou ainda pela eficácia dos cuidados do Engenheiro, rapidamente Maara se recompõe e, com a ajuda dos três, consegue levantar-se. ‘Vou levar-te ao Secretário para apresentares queixa’, diz Waasser. ‘Prefiro ir para casa, senhor’, diz Maara. ‘Tens a certeza?’ ‘Prefiro ir para casa.’ ‘Seja, então. Amanhã tratarei eu próprio de falar com o Secretário’. E, para Ryo e Laama: ‘Ajudem-me a levá-la para o carro!’ E partem os dois, deixando para trás os velhos. Laama segura ainda na mão a concha com o resto de água que sobrou.


107 Ofegante, Laago chega ao casebre de Heera. Fraco refúgio para quem fugiria hoje de si mesmo, se pudesse. Não encontra uma fogueira acesa, o som de algum trabalho doméstico, o cheiro de alimentos cozinhados. Apenas um silêncio irrespirável, mofos, podridão. Quanto muito, sinais de ingénuas tentativas de alegrar este espaço sem solução: na colorida página rasgada de uma revista presa por um prego à parede, num caco de barro já sem a flor que suportava. Sinais antigos: o que ali existia, o que quer que fosse, há muito envelheceu e mirrou. ‘Heeeera!!’, grita batendo as palmas. Ninguém lhe responde. ‘Heeeera!!’, torna ele. Espreita o interior e depara-se com mais cheiro a palha podre, mais escuridão. Torna a sair, dá a volta ao casebre e encontra a mulher nas traseiras, soluçando baixo. Deitada sobre os farrapos de uma esteira. ‘Estás aí, Maara?!’, diz com um riso escarninho. Quer que ela reaja, que o mundo todo reaja. No fundo quer alijar a pesada carga que transporta e não olha a meios. Mas Heera continua com o seu soluço baixo, sem parecer ouvi-lo. ‘Então, não me serves essa merda a que chamas chá?’ Enquanto fala, Laago vai olhando as sombras ao redor como se de lá pudesse sair alguém para o atormentar. Além de raiva, está claro, tem agora medo. Heera continua ausente, alheada de tudo isto, encolhida sobre a esteira. Nunca a viu assim. ‘Olha, trouxe-te açúcar’, diz, metendo a mão no bolso e tirando de lá um pequeno pacote de papel pardo. Como se um esporádico bem pudesse remover tão profundos e antigos males. Mal a consegue ver. Aproxima-se, debruça-se sobre ela e é então que descobre que Heera não chora, Heera ri baixinho. ‘Escuta-me, maldita!’, grita enfurecido. ‘Escuta-me!’ Heera continua com o seu riso baixo e soluçado.


‘Maara!’, grita ele. ‘Maaaara!!’ E esbofeteia-a com violência, repetidas vezes. Heera nem sequer faz o gesto de se defender. É como se ele esbofeteasse um velho saco de serapilheira. O mesmo abandono, o mesmo cheiro azedo. Um saco sacudido por fora pelas bofetadas, por dentro pelas gargalhadas soluçadas. Por isso ele rapidamente se cansa, ou então arrepende-se. Ainda lhe dá uma última bofetada, já sem o vigor inicial, após o que a deixa em paz e vai sentar-se numa pedra, à entrada. À espera que ela resolva regressar ao nosso mundo. Além disso precisa de pensar.


108 Há muito que a velha Caana também espera quando ouve o ruído do motor. Adormeceu Floor, aqueceu o chá, cozeu um toco de mandioca para o jantar e fez o resto que havia a fazer sem qualquer pressa. O que acontece tem o tempo certo de acontecer, não vale a pena mexer-lhe dentro para o antecipar ou atrasar. Boas novas ou desgraças. Por fim, com tudo pronto, sentou-se no umbral olhando as estrelas e esperando. No canto do quintal, junto à sebe de micaias, a vizinha entra e sai de casa fingindo fazer coisas. Mas também ela as tem já prontas, já comeu ou adiou a refeição para amanhã, também ela sabe que algo está para acontecer e quer estar por perto para ver. Ambas se sabem ali. É nesta altura que ouvem o ruído do motor. De modo que mal o Engenheiro Waasser pára, levantando um rolo de poeira, a velha Caana está já colada à porta do carro e perguntando: ‘Que aconteceu com a minha Maara?’ ‘Calma, senhora. Ela agora está bem.’ ‘Que lhe fizeram?’ ‘Calma, mãe.’ Ouvindo a voz da filha, a velha Caana parece serenar. Pensou sempre no pior; e o pior, depois de ver a filha, acaba de passar. Pensar primeiro no pior é a melhor garantia que temos de que o que vem não seja assim tão mau. Mexe-lhe para verificar se está inteira, ajuda-a a descer. Maara é quase tudo o que tem, descontando Floor. ‘Que te fizeram?’ ‘Calma, mãe. Já estou bem.’ Waasser desce e dá a volta para vir ajudar. ‘Quem quer que tenha feito isto é possível que volte para concluir o que começou’, diz, como se duvidasse que o pior tenha acontecido. ‘É melhor que ela passe a noite em minha casa.’ ‘Ela tem-me a mim, sou a sua mãe’, diz Caana.


‘Virá a senhora também.’ ‘Ela tem também uma filha. Chama-se Floor.’ ‘Virá a filha também, Floor. Há espaço para as três.’ A casa do Engenheiro Waasser é uma grande casa de pedra e zinco, cercada de espaçosas varandas que as noites enchem de sons tilintantes. Enquanto falam, amparam a rapariga cada um pelo seu lado. Acabam por levála para dentro. ‘Fico bem aqui, já estou melhor. Não preciso de ir a sítio algum’, diz Maara. ‘Tens a certeza?’, pergunta o Engenheiro. ‘Tens a certeza?’, pergunta a velha Caana. ‘Sim, tenho a certeza.’ E virando-se para Waasser: Obrigado, senhor. Desculpe o trabalho todo que lhe dei. Pode ir-se embora descansar.’ Ao semblante de Waasser quase chega uma nota de despeito. É só isto? Depois de tudo o que acabámos de passar? Mas faz um esforço e prevalece nele a paciência. ‘Seja como dizes. Adeus, então.’ E para a velha Caana: ‘Adeus senhora, tome conta dela.’ Está já dentro do Land Rover quando volta a falar: ‘Não querem que eu traga cá o Secretário para dar queixa?’ ‘Não, senhor. Está tudo bem’, insiste Maara. E Waasser, esgotado tudo aquilo a que se lembrou de recorrer, vai-se embora. Sorri fugazmente a velha Caana. Pasma a vizinha, atrás das micaias.


109 ‘Ervio?’, pergunta Laago cheio de coragem. ‘Que pretendes, miserável? Como ousas falar comigo?’ ‘Calma, Ervio. Pretendo esclarecer o mal-entendido que se criou entre nós.’ A amizade que têm, embora interrompida pelas vicissitudes da vida, é uma amizade que vem de longe, do tempo em que enterravam os nomes na madeira macia das árvores e das carteiras. Merece, segundo ele, maior empenho na sua preservação. ‘Não há mal-entendido algum! Entendi muito bem que falavas pelo telefone de Maara. Como é que ele foi parar às tuas mãos?’ De facto, é uma difícil questão. Laago faz o que pode para a esclarecer. ‘É que, momentos antes de me ligares (ou melhor, momentos antes de tentares ligar a Maara), cruzei-me no caminho com um pastor, Praado, penso que conheces...’ ‘Que tem isso? Não vejo a relação...’ ‘É que o pastor nessa altura me mostrou um telefone, perguntou-me se estava interessado em comprá-lo. Pedia por ele uma pechincha! Comprei-o, claro que sem fazer ideia de quem era. Observava-o justamente quando ele tocou. Eras tu. Atendi sem pensar, e quando ouvi a tua voz nem me apercebi de que falava por esse novo telefone, não pelo meu.’ ‘Humm...’ ‘Juro que não fazia ideia de que era o telefone de Maara! Na certa o pastor roubou-o para o vender, isso está sempre a acontecer. Deve ter sido isso! Mas não te preocupes, estou pronto a devolvê-lo. Neste momento em que te falo estou até à procura de Maara para o fazer.’ ‘E porque foi que quando te disse que era o telefone dela tu deixaste de falar?’ ‘Acho que foi nessa altura que a ligação caiu. Deixei de te ouvir... Ervio, escuta, sou teu amigo...’ Ervio fica em silêncio um momento, ouvindo os ecos deste apelo. Tantos são


os problemas que os aparelhos resolvem quantos os equívocos que criam. Além disso, num ponto ao menos Laago tem razão: os dois têm os nomes juntos, enterrados na madeira macia de uma certa carteira. Pesando tudo isto, diz: ‘Tens razão, desculpa. Ando nervoso. Não sei o que me deu, desconfiar de ti. De qualquer maneira Maara já deixou de me interessar’. E desliga. Laago fica a olhar o telefone, pasmado. Indeciso sobre que atitude tomar. Depois chega-lhe um gemido sacudido, vindo de trás do casebre. Levanta-se para ir espreitar.


110 O ar está seco, abafado. Maara agita-se na esteira e a velha Caana vela. Trouxe um pano, humedeceu-o com um pouco de água, passou-o na fronte da filha ao mesmo tempo que cantava num áspero fio de voz para lhe baixar a febre. O tempo parece andar para trás: quando achou que lhe restava apenas passar húmidos panos na fronte da pequena Floor, eis que Maara volta a reclamar esses trabalhos e atenções! ‘Quanto uma velha tem ainda de fazer antes de morrer!’, suspira. Olha as duas, Maara e Floor, agora mais quietas. Pode enfim descansar. Levanta-se e vem cá fora espreitar. Maara, nas suas costas, evita abrir os olhos enquanto a sente por perto. Não quer preocupá-la. Coitados dos velhos, sempre tão atentos, convencidos de que o curso das coisas depende de algo que possam fazer! Aguarda pois um pouco, até sentir que os sons da mãe se afastam na direcção da porta. No que quer que pretendesse reflectir depois de sentir a mãe afastada, não chega contudo a fazê-lo por entretanto ter adormecido. Primeiro deu ainda um tempo à dor, uma dor ténue e difusa, amansada pelas atenções recebidas e espalhando-se pelo corpo todo como uma maceração (Ryo diria que a dor é como a água, acaba por espalhar-se por toda a parte). Depois, sem saber como, levou-a o cansaço. Parte para um estranho mundo de mulheres adormecidas, todas elas com a cor que a terra tem: a mãe, a pequena Floor, a anunciadora Heera, a vizinha das micaias, a mãe da criança que caiu no buraco e se pergunta por onde andará ela; até a si própria se vê adormecida numa planície muito plana e amarela, disposta de lado, os joelhos junto do queixo como se a aspereza do mundo a levasse a desejar regressar ao começo, regressar mesmo até antes dele. Enquanto se encolhe e aconchega, sente chegar das sombras um íncubo de feições indistintas e feroz vontade, determinado a cobrir as mulheres todas da aldeia. Não consegue ver-lhe a cara mas percebe-o forte, habituado à satisfação de todos os caprichos. De relance, consegue ver-lhe o brilho do olhar, claro como o gelo. E uma


meticulosidade assustadora: uma a uma, levanta as capulanas que tapam os corpos adormecidos, indeciso por onde começar a saciar-se. Detém-se junto de Heera, que dorme. Encara-a. Desesperada, Maara quer avisar a amiga mas prende-se-lhe a voz. O íncubo nota o gesto e vira-se para ela, indicando estar próxima a sua vez. Maara quer debater-se e resistir mas tem os gestos presos. Invade-a então uma inesperada serenidade, como se sobre a planície amarela se espalhasse uma onda fresca e verdejante. Vem sentir!, ouve, sem estar certa de quem fala. ‘Vem sentir!’, torna a velha Caana. Da dor sobra apenas um vago cansaço. Deixa-se ficar assim, atrasando o mais possível tudo o resto que tem a fazer: buscar água, lavar no rio, coisas assim. Quer dizer à mãe que a deixe ficar deitada mais um pouco. É nessa altura que sente uma pincelada gélida na face, como se as palavras da velha Caana a estivessem lambendo. ‘Vem sentir!’ Estranha, mais que a sensação, que a mãe tenha a língua assim gelada. ‘Anda coisa estranha no ar!’, sussurra a velha Caana. Maara soergue-se na esteira. ‘Que tens, mãe?’, pergunta, como se a velha Caana estivesse doente e aquele frio fosse um mau presságio. ‘Descansa, filha, que este frio não é meu. É um frio que vem de fora. Há tempos que vem e vai. Como se o mundo estivesse mudando.’


111 O Engenheiro Waasser chega a casa, agitado. Vence de um salto os degraus e põe-se a gritar ordens, apesar da hora tão tardia. ‘Tragam-me um whisky!’, diz primeiro. Enquanto um dos criados, ensonado, parte a cumprir a ordem, ele caminha em círculos, em grandes passadas. Só nessa altura dá com o vulto na varanda. ‘Quem és tu?’ ‘Chamo-me Laago.’ ‘Que fazes aqui na minha varanda? Trabalhas para mim?’ ‘Não. Vim trazer-lhe um recado.’ ‘Um recado?! Um recado de quem?’ ‘Um recado de Maara, uma rapariga da aldeia.’ Waasser estaca a meio da varanda. Encara o homem com desconfiança. Que recado é esse que a rapariga não lhe pôde dar directamente? Saiu há pouco de lá. Que pretende este homem? ‘Que recado é esse?’, pergunta rispidamente. Laago faz por esconder a satisfação. Parece que as coisas estão a voltar ao lugar. ‘É o número do telefone dela’, responde. Finalmente o número do telefone! O número que desde há tempos daria tudo para ter! Mas sente que há algo de errado no que está a acontecer. ‘Acabo de chegar de lá. Porque não mo deu ela directamente?’ ‘Não sei’, diz Laago. ‘Talvez por ser tão tímida.’ E pisca um olho, o direito, ao mesmo tempo que deixa que o sorriso se solte. Waasser não gosta daquele piscar de olhos, não gosta daquele sorriso. Não quer rir com aquele homem, ainda por cima de algum defeito da rapariga. ‘Tragam-me papel e caneta!’, grita para dentro, embora saiba que vai ficar com o número gravado dentro assim que aquele homem o pronunciar. Aponta assim que Laago dita. ‘Obrigado’, diz quando conclui.


‘Só isso, patrão?’ ‘Como assim, só isso?’ ‘Faço-lhe um favor deste tamanho e não há nada para mim?’ Waasser, cego pelos seus próprios interesses, quase se esquecia da importância que os objectos têm para quem possui tão pouco. ‘Que queres então?’ Laago olha em volta. Waasser segue-lhe o olhar. Dão ambos com a garrafa de whisky em cima da mesa da varanda, quase cheia. ‘Leva-a!’, diz o Engenheiro. Laago pega apressadamente na garrafa, desce os dois degraus da varanda e desaparece na escuridão. Waasser fica um tempo pensativo, dando grandes passadas na varanda. Tanta coisa acontece numa só noite depois de tantas noites sem ter dentro o que se visse! Brinca com o número que agora conhece, agrupando de várias maneiras os dígitos que o compõem para descobrir as possibilidades que se abrem. Subitamente, berra outra vez: ‘Chamem-me o guarda do sorriso, Gaato! Quero-o aqui já!’ Parte outro ensonado criado a cumprir mais esta ordem. Waasser mal consegue esperar. Esqueceu trabalhadores e pontes, esqueceu o que o trouxe aqui. O seu olhar brilha no escuro. Cintila a ponta do cigarro, tilinta o gelo no copo que volta a ter na mão. Rumina palavras soltas, guturais, em alemão: ‘Acht... zwei... sechs... null...’, e por aí fora até completar o número que há tanto procurava. Assim que Gaato chega, arfando da corrida, Waasser grita outra ordem ainda: ‘Arranja quem te ajude e levem um par de latas de água a casa da rapariga!’ ‘Qual rapariga, patrão?’ ‘Aquela...’ Waasser dá-se a si próprio esta última pausa. Quer, com ela, simular ainda uma distância. ‘Qual rapariga, patrão?’, torna Gaato. ‘Maara, rapaz. Maara!’ ‘Maara?’, pergunta Gaato surpreendido. Será que quer dar a Waasser uma derradeira oportunidade de voltar atrás?


112 A Ryo e Laama espanta a desassombrada ambição do estrangeiro, de se querer substituir à natureza. O gesto anterior, de trazer água da cidade, ainda tinha a explicação de querer dar de beber a quem tem sede. Mas – insensatez sem limite! – inundar a rapariga?! Olham a água da concha com atenção. Descobrem, mergulhada nela, uma fugaz mancha escura movendo-se numa certa direcção. ‘Ah!’, aponta Laama triunfante. ‘Conheço esta varanda!’ Mas eis que a lua se move atrás dumas nuvens, fazendo por sua vez mover a mancha. Fazendo-a avançar numa direcção que é a mesma que leva ao casebre de Heera. Estranham. ‘Que iria fazer o Engenheiro a casa de Heera?’, pergunta Ryo. ‘Algo está errado!’


113 Que fiz eu? Que me trouxe à varanda deste estrangeiro que desconheço? Porque lhe dei o número mais procurado, lhe abri o caminho por onde as suas súplicas chegarão aos ouvidos da rapariga? Poderia até ser Ervio, não eu, a fazer estas perguntas: Que te levou até ele? Porque lhe deste o número mais precioso? Responder-lhe-ia que, com todo o poder que tem, cedo ou tarde o Engenheiro chegaria a este número, que não fiz mais do que abrir o caminho que o levará à perdição. Poderia ser também o Engenheiro a perguntar-me: Porque queres o meu bem se mal me conheces? Dir-lhe-ia que é por inveja, que se não puder ser minha Maara também não será do meu amigo. E a mim próprio, que responderia eu? Não sei. Para responder teria antes de saber o que é mais forte, se a inveja que tenho do meu amigo ou o ódio ao poder do estrangeiro, à capacidade que tem de fazer mover o mundo a partir da sua varanda, enquanto a mim o destino obriga a calcorrear caminhos infindáveis se quiser ver os meus desígnios satisfeitos. Sei apenas que o ódio é o único caminho para se chegar ao verdadeiro amor. E que odeio Maara acima de todos os ódios.


114 ‘Vem sentir’, diz a velha Caana do umbral, sentindo nas costas a presença da filha. ‘Hoje nem sequer há estrelas’. Há tempos que as estrelas aquecem ainda mais as noites secas, há tempos que iluminam o vazio do céu. Porque será que não se mostram hoje? Maara olha para cima, confirma com a cabeça. ‘Que futuro nos espera?’, pergunta. ‘Já o vi pior’, diz a velha Caana com um sorriso matreiro. Como pode a mãe tê-lo visto pior, com tudo isto por que estão passando? Hoje nem sequer há estrelas, ela própria o confirmou. ‘Que queres dizer com isso?’ ‘Pelo menos tens a água que quiseres’, diz a velha Caana. Maara compreende enfim. ‘Não gosto que fales assim, mãe!’ Ficam as duas em silêncio durante um tempo. Matutando. ‘Além disso tenho a Ervio, ou já te esqueceste?’ ‘Será que o tens?’ pergunta a velha Caana. ‘Nunca gostei muito desse rapaz. Os tempos pioram e não o vejo por perto. Ele é como o teu pai, que só aparecia por aqui quando as coisas corriam bem.’ Maara nem sequer se lembra do pai para poder comparar. Mas, na maioria das vezes, a memória atenua os defeitos de quem lembramos e vinca as suas qualidades. ‘Os homens têm todos as suas fraquezas, cabe-nos a nós compreendê-las. Digo-te isto quando devias ser tu a dizer-mo!’ Parece que foi ela própria a atravessar uma vida inteira, não a mãe. ‘Têm fraquezas mas também têm responsabilidades!’, diz a velha Caana. ‘Que sabes tu da vida de Ervio? Das dificuldades que tem? Pensas que a seca só castiga aqui na aldeia?’ ‘Os nossos homens são todos iguais. Talvez tenha chegado a altura de ver se os outros são diferentes. Esse branco, por exemplo...’


‘Cala-te, mãe!’, corta Maara secamente. ‘Já disse que não quero ouvir-te falar assim!’ Torna o silêncio. ‘Pelo menos tens o destino nas mãos’, insiste a velha. ‘O que de bom ou mau te acontecer depende de uma escolha tua.’ Maara fulmina a mãe com o olhar. Corajosamente, a velha não desvia o seu. Há alturas em que não podemos desistir de fazer ver aos outros que a razão está connosco, pensam as duas. E ficam assim, fazendo gestos bruscos que maltratam tudo o que lhes passa pelas mãos: a amolgada chaleira com um resto de água dentro, a lata do açúcar, os dois púcaros de barro. Estão assim caladas, de costas uma para a outra, quando dois vultos cruzam a sebe das micaias para se aproximar. Gaato e um companheiro, cada qual com uma lata de água à cabeça. ‘Vê se tenho ou não razão’, diz a velha Caana cruzando os braços em triunfo.


115 Praado, na montanha, tem todo o espaço em volta mas não sabe o que fazer dele. Perto, os pastores cansam-se de esperar. Resmungam. Levantam-se, caminham em círculos enquanto ele, junto da pequena fonte seca, aguarda que lhe venha uma ideia. ‘De nada vale estarmos aqui’, diz um deles. Praado vira-se e encara-o. É claro que perdem a esperança, que perdem a crença. Nada lhe responde uma vez que nada vale a pena responder. Fita-o apenas, de olhar vazio. Um olhar que nem sequer segue o homem quando este principia a descer a encosta de volta à aldeia. Seguido dos outros todos. Fica só. Pode ser que afinal a rapariga esteja inocente. Que, tal como o resto da gente, lute apenas pela água. Pode ser que nada mais faça sentido, as montanhas e o gado, o pasto que antes era ali em baixo, um pouco adiante a água brincando com as pedras, ganhando a forma que estas lhe quisessem dar. Maldita hidra dissimulada cuja ausência nos mantém reféns! Lembra-se do avô, que lhe ensinou a postar-se atrás do gado, sempre atrás dele embora conduzindo-o. Nem sempre para conduzir é preciso ir na dianteira, dizialhe. O gado sabe onde está o pasto, ou se não sabe deixemos que o descubra. É mais de metade do trabalho que fica feito. Que lhe diria agora o avô? Como é possível ir atrás da natureza, deixando ser ela a descobrir o que há adiante, se a natureza já nem mexer-se sabe? Vêm-lhe as lágrimas aos olhos, umas lágrimas que não consegue reprimir. Ainda bem que os outros já partiram, que não há ali ninguém. As lágrimas, num pastor, são uma grande humilhação. Escorrem-lhe pela face e pingam no chão, perto de onde brotava a água da pequena fonte. Abaixa-se, mexe na terra e sentea molhada.


116 Gaato e o companheiro já se foram, as duas mulheres estão em silêncio. A vizinha ainda pasmada, atrás das micaias. Maara acaba por entrar, deixando para trás a mãe e o seu vício de procurar as estrelas. O céu nunca esteve tão escuro, tão crivado de buracos que a ausência delas revelou. O ar é um pesado fardo que cada um tem de carregar. Ela vai ficar assim um tempo, olhando para nada, deixando-me a mim tempo para pensar, acha Maara. Mas também a velha Caana entra: ‘Sempre queres um chá, filha?’ ‘Pode ser, mãe.’ A velha torna a sair. Mais que um chá, o que ela propõe é um armistício. E, também, uma celebração. Nenhuma das duas cedeu, é certo, mas a água nova que vai fazer aquele chá traz vantagens ao ponto de vista da velha Caana. Maara sente-a andar lá fora, espevitando as brasas de um resto de fogueira que ainda havia, e ainda bem; ouve-a meter a concha na lata de água cantando baixinho, despejá-la na chaleira, pôr a chaleira no fogo e esperar que a água ferva para lhe deitar as ervas dentro. Sente-a fazer tudo isto, ouve-a cantarolar. Ao lado, Floor dorme. Bebem o chá em silêncio. A velha nada diz para não atormentar mais a filha (viu-a morder o lábio). Basta-lhe sorver o chá em goles fundos e extasiados, e ver que Maara beberica o seu com a boca cerrada, como se estivesse provando coisa amarga. É isto que está acontecendo, as duas mulheres sentadas no chão da entrada, quando regressam vultos à sebe das micaias. Muitos, chegando em passo apressado. Mais água de Waasser? Não. São antes mulheres, tantas e tão agitadas que a Maara vem a absurda ideia de que podiam estar fugindo do íncubo do sonho. Sente uma onda de embaraço. Chegam desarvoradas, cruzam a sebe sem bater palmas para pedir licença.


‘Vem depressa, Maara! Heera está muito doente e chama por ti! Vem depressa antes que seja tarde!’, grita uma delas. A tua amiga de infância, aquela com quem fizeste bonecas de barro para atar às costas como fazem as mães de verdade, a que cresceu soprando fogueiras com isso soprando também o futuro para longe, a tal cujo corpo de criança secou antes de chegar a ser corpo de mulher, cujo destino podia ter sido o teu e que, por sua vez, tantas vezes quis ser como tu, a Heera dos negócios que andam para trás por confiar na chuva e nas repetições, a Heera que te evitou no cruzamento dos carreiros com o seu passo apressado e estranhamente iluminado, a anunciadora da desgraça, é essa a Heera que está morrendo. ‘Mãe, toma conta de Floor!’, diz Maara pesando tudo isto, largando um chá difícil de engolir e partindo, descomposta como está, atrás das mulheres.


117 Não é só ciúme que tem dentro. Afaga o telefone, ao mesmo tempo que no monitor bailam palavras e frases inteiras cujo significado não consegue descobrir. Há tempos que, na sua leitura, as máquinas deixaram de fazer pontes com o mundo lá fora. Seguem já só o seu próprio raciocínio, colocam possibilidades fundadas em possibilidades que elas próprias construíram. E a natureza, liberta assim da vigilância das máquinas, vai urdindo o insidioso plano. Engole em seco. E se também ele tivesse construído possibilidades assentes em nada mais que outras possibilidades por si próprio construídas? Levanta-se, numa súbita resolução, e dirige-se ao gabinete do chefe do departamento. ‘É urgente que eu regresse à aldeia a recolher uns dados que perdi’, anuncia. ‘E que dados fundamentais seriam esses?’, pergunta o chefe do departamento, desconfiado. Ervio fita-o, sem ser capaz de responder. Não teria cabimento falar-lhe em tirar a limpo a questão de um telefone perdido nuns arbustos, o caso de alguém que fala por telefones alheios, o mistério de uma aldeã cujas opções ele desconhece. Como dizer-lhe tudo isto? Mesmo assim, insiste: ‘Só posso garantir a reescrita do relatório se for lá colher esses dados que me faltam.’ ‘Lamento’, diz o chefe do departamento. A situação está dificílima, as solicitações que vêm de cima sucedem-se agora todos os dias. Ele deixou de se interessar por tudo aquilo que não seja responderlhes, e para isso precisa de todos os seus funcionários. ‘Lamento’, repete. Amargurado, Ervio regressa para junto do seu computador. Será que Laago devolveu o telefone a Maara? Procura fixar-se na luminosa cascata. Quantas vezes pôde dizer tudo o que queria e optou por frases curtas, incompletas, na certeza de que poderia voltar a ligar mais tarde para as completar! Fosse agora e


sem dúvida que trocaria com Maara frases mais longas, parágrafos inteiros! É isso!, pensa. Vou dizer-lhe tudo! E levanta-se para vir cá fora telefonar.


118 Maara partiu com as outras mulheres, a velha Caana ficou só e pensativa. Perdeu também o interesse no chá. Entorna na terra o resto que ainda havia no púcaro: ao menos que o bebam os que já partiram. Mas é sobretudo aos vivos que há que dar atenção. Põe uma capulana sobre os ombros magros, espreita Floor, que ainda dorme, sai e grita para o escuro das micaias: ‘Vizinha, tome-me conta de Floor. Vou sair mas volto já!’ Parte apressada pelos escuros caminhos, leva na ideia uma certa casa, uns certos degraus que vão dar a uma varanda. Chega lá num piscar de olhos. ‘A senhora aqui?’, exclama o Engenheiro Waasser. Tem nas mãos um copo de whisky para o ajudar a pensar. ‘Aconteceu alguma coisa a Maara?’ A velha tranquiliza-o. Veio apenas agradecer-lhe os cuidados que teve com a filha, o socorro no rio, as latas de água e todos os demais gestos que o futuro dirá quais são. ‘É sobretudo o futuro que me preocupa. É nele que penso’, diz a velha Caana. Waasser estranha a atitude dela. Nunca tinha visto um velho falar no futuro desta maneira, como se fosse testemunhá-lo. Como se pudesse dele beneficiar. Além disso, se está tão presa ao futuro porque não esperou pela manhã para vir agradecer-lhe, para vir falar-lhe nas entrelinhas sobre esperanças e desejos vagos? O que a fez largar a casa e cruzar a noite assim desta maneira, com esta urgência? Quem tem urgências vive agarrado ao presente, não ao futuro! Haverá alguma coisa mais? A velha despede-se. No canto da varanda o criado, ensonado, espera novas ordens do patrão. ‘Podes ir!’, diz-lhe Waasser. As interrogações angustiam-no. Pensa em Maara como quem tem sede. Bebe do copo, em grandes goladas. E verifica com estranheza que o copo continua cheio e tilintante. Assusta-se. Que se estará passando? Levanta-se, pega no telefone com as mãos trémulas. Vai ligar o número


precioso.


119 Maara partiu assim como estava, os pés descalços e a capulana amarrotada, o chá e a questão com a mãe deixados a meio. Segue as outras mulheres, tropeçando nas pedras e na palha e nas covas escuras do carreiro tortuoso. As curvas obrigam a pensar. Pensa em Heera, nos diferentes carreiros da vida que cada uma seguiu, na distância que se cavou entre as duas. Estende as mãos para uma amiga que ficou para trás, sente que ela quer corresponder ao abraço mas não sabe como. Revolta-se com a imposição dos carreiros, com os seus encaracolados caprichos. ‘Vamos por aqui, é mais rápido!’, diz para as outras mulheres, abandonando o carreiro a meio e seguindo a direito pelo mato. As outras vão atrás dela cochichando, comentando talvez esta ousadia de afrontar assim a natureza, de recusar as voltas que ela nos impõe. Sobem (o casebre de Heera está num alto onde a água reluta em chegar, mesmo nos anos mais verdes). Arfando, agarram-se a palhas e ramos secos para poderem fazê-lo. A dificuldade de Maara deriva do estado em que se encontra depois de um acidente como o que teve; a das restantes mulheres, por terem vindo e estarem regressando, duas razoáveis distâncias de uma vez só. Passam o último cabeço, aquele que antecede um suave declive que só termina à porta do casebre, e espantam-se ao ver o ar nocturno pejado de borboletas. Borboletas brancas. O voo delas é frenético mas também silencioso. Mais silencioso o mundo não podia estar neste momento, o único som é o dos passos descalços e do esforço das mulheres. O que é isto que nunca aqui vimos? Infinitas borboletas voando numa desencontrada urgência, levantadas do chão e perdidas no espaço sem conseguir, apesar do bater das asas incessante, ir a qualquer parte. Absortas, mergulhadas no seu inútil empenho, nem parecem reparar nas mulheres que passam apressadas, nem sequer se afastam. São as mulheres que têm de fazer gestos largos para as arredar do caminho a fim de poderem chegar à porta do casebre.


120 Praado desce a encosta com os olhos rasos de água. Não sabe dos cães nem do gado, perdeu os pastores que o seguiam. Desconhece de onde vem esta água que lhe sai de dentro, e porque lhe sai. Não sabe porque caminha nem para onde vai. Não há carreiro que o segure, desce a encosta como se todos os carreiros fossem agora um só, sem nada que o delimite – nem capim mais raso e submisso de tantas vezes pisado nem pedras afastadas para o lado –, escolhido apenas pelo acaso da sua cega inquietação. Na verdade segue o carreiro que tem dentro. Tropeça, mas logo se recompõe. Vai como se não houvesse tempo a perder. Os carreiros são caprichosos nas voltas que dão. Apesar de mais apressado, e portanto mais direito, dá este vago carreiro de Praado, sem limites que se deixem ver, uma curva pequena, todavia suficiente para o obrigar a passar perto de um certo arbusto em nada distinto dos outros. ‘Críí! Críí!’ É este o som que Praado ouve saindo de dentro do referido arbusto. Estaca, mete-lhe as mãos dentro às apalpadelas, ajudado por uma luz azulada que do arbusto emana. Encontra um telefone, arranca-o de lá. ‘Críí! Críí!’ O telefone não pára de tocar. Não sabe quem liga uma vez que não sabe ler. Todavia, é este o único telefone que conhece, o único que alguma vez teve nas mãos. Retoma a sua descida aos tropeções, mais atabalhoado ainda desde que deixou de ter os olhos onde pisa por não conseguir desprendê-los do mostrador azul. Depressa surgem as primeiras casas, cujas sebes salta como se fizessem parte do caminho. Não há espinho de micaia que lhe doa, obstáculo que o demova. Por outro lado, ninguém ousa inquirir aquela sombra veloz e piscante, deixando para trás um estranho som (‘Críí! Críí!’). Depressa chega a uma certa sebe, surpreendendo uma certa vizinha que passa os dias dentro dela. ‘Ó da casa!’, grita, batendo repetidamente as palmas. ‘Ôôô! Ó da casa!’ ‘Escusas de gritar que não está aí ninguém’, diz-lhe a vizinha. ‘A velha Caana


saiu mas volta já.’ ‘E a rapariga?’ ‘Saiu também, foi ajudar uma amiga.’ ‘Amiga?’ ‘Sim, aquela rapariga magra que anda sempre por aí, com corpo de criança mas cara e barriga de velha. Heera.’ Parte a sombra veloz de telefone na mão, saltando sebes novamente. Sem sequer se despedir.


121 ‘Que querem aqui?’, resmunga Laago. Está sentado à porta do casebre, descansa das longas caminhadas que a vida difícil que tem o obrigou a fazer: desceu a montanha depois de falar com Praado, veio para aqui tentar salvar a ligação com um amigo, correu a casa do maldito Engenheiro com uma nova ideia, de lá tornou a subir à montanha em busca de um telefone que não encontrou onde o julgava ter perdido, da montanha regressou aqui. De mãos a abanar, não fosse a garrafa de whisky que conseguiu a meio do percurso. ‘Que pretendem? Suca!’ Percorreu praticamente todos os carreiros que, como complexa teia, se espalham ao redor da aldeia. Não o teria conseguido sem a garrafa que o Engenheiro lhe deu, agora quase no fim. Mas também é ela que o deixou de muito mau humor. ‘Suca!, já disse!’ As mulheres guardam prudente distância. Não sabem bem quais, mas alguns direitos sobre Heera este homem há-de ter. Cochicham entre si, algumas riem nervosamente da desgraça. Alguns direitos aquele homem há-de ter. Só Maara dá dois passos na direcção da porta do casebre. De todas é a única que sentiu o peso da mão do maldito, por isso mesmo a única que o desafia. ‘Queremos ver Heera’, diz. ‘Sabemos que está doente.’ Laago dá um trago fundo da garrafa, faz uma careta. Limpa os lábios com as costas da mão. ‘Que fazes aqui? Não devias estar com o teu amante?’, resmunga. ‘Queremos ver Heera!’, insiste a rapariga. ‘Não devias estar com o Engenheiro, cadela?’ Uma mão segura a garrafa, a outra hesita entre ameaçar a rapariga ou afastar as borboletas que esvoaçam na sua frente, toldando-lhe ainda mais a visão. É evidente que não está em condições de falar. Por isso Maara não lhe responde. Tenta passar por ele para entrar. Laago levanta-se, vacilante. Com uma


mão continua a segurar a garrafa enquanto a outra desiste das borboletas para tentar agarrar a rapariga. Maara evita essa mão com um movimento hábil, um gesto fácil. Laago cambaleia e cai. As mulheres, afastadas, cochicham. Algumas riem. Dir-se-ia que esqueceram o que as traz aqui, presas à intensidade daquilo que acontece. Maara já virou costas. Sabe, de ouvir a velha Caana contar, que com bêbados o melhor é nem ligar. Mas Laago logo se levanta, mais lesto do que seria de esperar, e ergue a mão primeira para a rapariga, aquela que segura a garrafa. Antes olhou para esta com atenção, deve ter concluído que não era muito aquilo que se perdia (estava quase vazia). Mais útil será para este fim de dar vazão à fúria e ao mesmo tempo ensinar à rapariga uma lição. Em Laago, já se sabe, o amor e o ódio convivem intimamente. A garrafa já vai no ar, segura pelo gargalo; Maara de costas, as mulheres ao fundo cochichando. Mas felizmente que se interpõe a mão de Praado, que entretanto chegou para apaziguar a sua agitação. Passando pelas outras mulheres, afastando também ele as borboletas. ‘Deixa-a, canalha!’, diz Praado, segurando o braço de Laago. Maara surpreende-se ainda mais que Laago (aos bêbados, se lhes falha um caminho tropegamente tentam outro). Tem esta voz e este olhar bem presentes na memória, de um encontro no leito do rio numa noite bem recente. Que é isto? Que me quer ainda o pastor? Mas Praado não quer nada dela, veio apenas resolver um problema que não o deixa em paz. Acalmar um certo bicho que há tempos lhe rói aquilo que tem dentro. Se a defende é porque esse propósito passa por aí. Olha-a até com certo desprezo. ‘Vim apenas devolver-te o telefone’, diz. Laago afasta-se, cambaleando; com a garrafa ainda inteira, embora vazia, numa mão. Chega-a aos lábios e deixa-a cair desalentado. Maara pega no telefone. Descobre, no mostrador, várias chamadas que não foram atendidas. São todas de Ervio salvo uma, de um número desconhecido. ‘Depressa, Maara!’, dizem-lhe as outras mulheres. Ouviram mais gemidos vindos do casebre. Olha em volta. Praado já partiu, sem sequer olhar para trás. Laago voltou a sentar-se, a cabeça pendendo-lhe entre os ombros. ‘Depressa, Maara!’ De telefone na mão, Maara entra no casebre.


122 O que une esta mulher a Maara? O passado não é mais que uma invenção para que ressalte, em uma e outra, a actual condição. Invenção de Maara para poder ser bondosa; invenção de Heera, ela própria, para poder descobrir aquilo que perdeu. A sua barriga é um saco de promessas por cumprir, enquanto a de Maara – veja-se Floor! – enche-se mesmo quando é desnecessário; encher-se-á sempre que ela quiser, com quem quiser. O que a une a Maara a não ser o encontro de dois carreiros caprichosos que o acaso fez cruzar, a não ser o sorriso mútuo nesse cruzamento, uma forma de se distinguirem uma da outra? Só para os outros rimos, para nós estamos quase sempre sérios! O que será que as une, a não ser esse sorriso e uma saca de milho benevolente à porta da loja do português, uma saca que para uma é caridade e para a outra humilhação? O que a une a Maara a não ser as sobras de um amante que Maara teria se quisesse? A não ser um nome tomado furtivamente de empréstimo, em certas alturas, sempre que for necessário aplacar o ódio ou o amor desse amante, nem se sabe bem? O que a une a Maara a não ser o amor ao que ela própria poderia ter sido, o ódio ao que é? Viver não é mais do que ir fechando uma a uma, a cada dia que passa, as portas que temos pela frente e nos poderiam levar por outros caminhos, até que não reste senão uma única porta abrindo para o buraco mais escuro. Apesar desta seca que nos mata a todos, Maara ainda vai tendo portas que escolher.


123 Os dois velhos andam sabe-se lá por onde. Há muito que se movimentam sem parar auscultando o corpo da aldeia, percorrendo a teia de carreiros por onde os camponeses tentam, sem o lograr, partir para o mundo mais vasto que existe por aí. Ryo e Laama procuram perceber de onde vem esta febre e este cheiro de tragédia. Caminharam um bom bocado trocando impressões, mas agora estão exaustos. A noite, a escuridão, obriga-os a redobrados esforços a fim de evitar pedras e covas e paus, tudo aquilo em que poderiam tropeçar. Param na curva de um carreiro, encostam-se a umas pedras que ali há e aproveitam uma espreitadela da lua para voltar a olhar a água da concha. Laama parece o mais cansado dos dois. Desde criança que é fraco do peito, há anos que as suas articulações só a muito custo conseguem funcionar. Sente que tem um corpo de madeira, um corpo cada vez mais difícil de fazer obedecer. ‘Cuidado!’, diz Ryo. ‘Cuidado que entornas a água!’ Mas é tarde para o evitar. Tremeu a mão a Laama, grande parte da água escorreu da concha para o chão. Olham desalentados. Segue-se a surpresa pois a água que caiu e se devia ter escoado para as entranhas da terra sedenta continua ali, uma pequena poça iluminada. Laama repete o gesto, volta a entornar. E verificam os dois, com maior surpresa ainda, que cresce a seus pés um pequeno lago brilhante. E que, nas mãos de Laama, a concha permanece intacta. Olham um para o outro, trocando sorrisos. Reconhecem o sinal.


124 Ouvindo um som que ora lhe parece um gemido ora uma gargalhada – de qualquer modo um som urgente – Maara precipita-se para dentro do casebre. Tudo o resto pode esperar: estes telefonemas que lhe quiseram fazer (um dos quais desconhecido), o ódio de Laago, a estranha atitude do pastor, o riso das mulheres. ‘Vai, Maara!’, dizem estas, encorajando-a. Entra na escuridão do casebre atrás desse som indefinível, algures entre a desistência e o triunfo. Adiante, fazendo discreto coro com ele, um arfar rápido e entrecortado. ‘Heera!’, chama Maara. Heera não lhe responde. Não podia estar mais longe daquele chamado, mais distante do resto do mundo e mergulhada em si mesma. Piscando os olhos, Maara vai-os habituando à escuridão. Vê agora pequenas coisas que não via quando entrou, uma folha rasgada pendurada na parede, uma haste seca que em tempos deve ter suportado uma flor. Pequenos esforços daquela também pequena mulher. Só depois descobre o vulto de Heera em cima dos farrapos de uma esteira. Arfando sempre. Rindo e gemendo. ‘Depressa!’, grita Maara para as outras mulheres. ‘Ajudem aqui!’ As mulheres entram, e é nessa altura que de dentro de Heera se solta uma água como se ela fosse uma fonte. Uma água que cresce e molha os pés de Maara, se espalha para fora do casebre e escorre pela encosta em direcção ao vale. Sucessivas ondas que submergem os casulos ocos das borboletas, espalhados ao acaso pelo chão.


125 Segundo os aparelhos, a primeira onda de cheia atingiu a aldeia às três horas e doze minutos da madrugada. Como lágrimas furiosas, as letras negras começaram a crepitar sobre o fundo azul dos monitores compondo rápidas frases de alerta. ‘Trrrrrr! Trrrrrr!’ Na véspera, computadores de captação mais geral haviam mostrado já a mancha escura dos vizinhos lançando um ou dois tentáculos na nossa direcção. E foi esse o erro: uma vez que era lento o seu avanço, optou-se por considerar aquilo como um desvario do equipamento. Rendidos finalmente ao poder da natureza, descriam dos aparelhos achando que a permanente atenção a que estavam obrigados os levava a delirar. Lá fora Ervio havia visto o mundo imóvel. E, embora tivesse sentido uma espécie de sopro sem o ser, pensara nele como o último suspiro de uma natureza que finalmente ia morrer. Voltara para dentro e confirmara aos colegas a constância dos sinais. Um a um foram-se então deixando dormir, cansados de dias e dias de espera. Já noite dentro, um pequeno ponto negro começou a derramar-se com falsa lentidão ao longo do risco tortuoso que, no monitor, significa sempre o rio. Pouco depois era uma espécie de fungo, uma mancha provocando jogos de luz e sombra na pele dos funcionários adormecidos. Lá fora sabe-se lá o que seria (nem sempre as representações a que as máquinas recorrem são fáceis de interpretar a olho leigo). Ervio é o primeiro a acordar. Encostado na cadeira, os pés cruzados sobre a mesa, junto aos monitores, padecia da conhecida doença que há tempos, mesmo no sono, lhe não dá tréguas. Não era só Maara, eram todas as mulheres da aldeia que, submetidas há muito aos caprichos do tempo, se deixavam desta feita submeter a um insaciável íncubo que as procurava com perturbantes sons guturais. ‘Trrrrrr! Trrrrrr!’


As mulheres respondiam com tímidos gritos, pingos de som que Ervio não estava certo se eram protestos pudibundos, se aqueles risinhos sem causa que as costumam tomar. ‘Píí! Píí! Píí!’ Mexe-se na cadeira, indignado. Quase cai. E acorda em sobressalto, interrompendo a acção do íncubo e despencando desse agitado mundo para se estatelar no nosso. Apitos e ronronares, cascatas de números e letras, luzinhas vermelhas piscando por toda a parte. ‘Trrrrrr! Trrrrrr! Píí! Trrrrrr! Píí! Píí!’ Não é afinal o rugido do íncubo, nem sequer os gritos das mulheres! Ervio salta da cadeira, esfrega os olhos e afasta a persiana para espreitar pela janela. Lá fora, os aparelhos agonizam, as árvores e a rosa dos ventos têm a imobilidade das estátuas. Nem sempre, já se disse, a realidade se conforma às representações que fazemos dela. Ervio larga a persiana e grita para os companheiros: ‘Depressa, venham ver!’ E uma multidão de funcionários estremunhados acorre a presenciar a loucura das máquinas. Passado o momento de surpresa, as plotters começam enfim a debitar respostas mais coerentes, recorrendo a tinteiros novos com todas as cores do arco-íris. As impressoras não ficam atrás, zunindo endiabradas, desdobrando harmónios de papel que se espalham pelo chão como cobras anunciadoras da mudança. No meio de tudo isto Ervio lembra-se de Maara. Corre lá fora para lhe telefonar.


126 Gaato cumpre o seu papel, percorrendo as quatro linhas que delimitam o espaço do estaleiro. Cumpre-o monotonamente com os solavancos do seu característico andar. Chega a um dos vértices e dá-se uma pausa para perscrutar a escuridão. Por vezes vem-lhe um ruído, inclina a cabeça e põe-se a imaginar até descobrir o que é: o tardio regresso à toca de um qualquer bicho de pêlo, um pássaro de asa partida, um lagarto arrastando a barriga pelas folhas secas ou assim. Tudo menos os suspiros da natureza nestes dias em que nas árvores os ramos estão imóveis e as poucas folhas que restam pendem pesadas. Tudo menos Praado, que já deve ter aprendido a lição. Era isso que pensaríamos se estivéssemos na pele de Gaato, onde é tão difícil entrar. Não sendo assim, sabese lá o que pensa ele! Retoma a caminhada até chegar ao vértice seguinte e encetar nova pausa, para novas escutas e adivinhações. Num desses infinitos vértices, tantos quanto dura a travessia do túnel da noite antes que desemboque na madrugada, Gaato sente no braço uma gota grossa, gelada, depois mais outra na mão, logo em seguida um par delas em pleno rosto. Leva um tempo a compreender, proporcional ao tempo que o fenómeno demorou sem acontecer. Abre então o seu particular sorriso de anjo para celebrar a chuva que chega. Mas, logo em seguida, franze o cenho pois o som que os seus ouvidos escutam não é o sussurro da chuva acariciando as folhas, é um som diferente, como se o escuro não fosse a falta de uma luz mas o excesso de um som, a ser lagarto arrastando a barriga um lagarto imenso, bicho de pêlo regressando enorme como nunca houve, ou então pedras rolando no alto roubadas a um dos sonhos que assolam Maara sempre que é noite de trovoada. Mas não cheira a trovoada. Que será isto, então? Gaato escuta o escuro respirando e pensa no papel que lhe cabe, em tudo quanto disse o Engenheiro no dia em que lhe atribuiu a tarefa: dormes de dia, andas de noite (por mais que te custe andar), defendes o que aqui está contra tudo e contra todos, mesmo que seja uma noite com arfares assustadores; nisso tudo e mais no que, tempos depois, ele reiterou quando publicamente o louvou


por ter interposto o corpo entre as cisternas de água importada e o bando de pastores: daqui em diante, disse-lhe, é preciso que faças mais do que o possível que fizeste, é preciso que faças o impossível! Gaato pensa em tudo isso mas o som que chega é de tal ordem que lhe enfraquecem as pernas, tanto a outra como a sã. Ainda abre os braços para o escuro, sem saber o que ali vem, mas acaba por deitar a correr justificando essa sua retirada com a necessidade de avisar o patrão. Modesto, suspeitou que situação exigia dele mais do que aquilo que seria capaz de dar. Coxeia entre um carreiro torto e um direito, o segundo parece levá-lo velozmente, o outro demorá-lo. Liberta-se da hesitação de escolher entre os dois seguindo agora abertamente pelo mato fora, deixando-se de carreiros, querendo mas é ver-se longe dali. Nas suas costas, com um som rouco, a hidra atravessa facilmente a cerca, apaga a pequena fogueira deixada a meio, lambe as rodas dos camiões, deita-as ao chão para os libertar da água que guardavam dentro, em breve sem préstimo algum, enche as covas que os homens de Waasser, imprudentes, há semanas escavavam no leito do rio, escarnece dos pilares de uma ponte que não chegou a concluir-se, iniciada no tempo em que se acreditava ser outra coisa o rio. Insatisfeita com a inundação do estaleiro, lambe também fora dele, ao longo das margens de um rio que vai ficando cheio e tenso, grosso, submergindo parte do canavial. Só depois repara em Gaato, nos solavancos do seu andar apressado pelo declive acima em direcção à casa do patrão. Parte imediatamente atrás dele.


127 ‘Críí! Críí!’ Maara tenta perceber como melhor ajudar Heera, e que água é aquela que as cerca, na altura em que o telefone começa a tocar. ‘Críí! Críí!’ Mas para ela é como se o telefone não tocasse. O que é um simples som, nada tangível, quando existem tantas coisas que fazer, e tão urgentes?: chamar as outras mulheres e dizer-lhes que parem de rir e venham ajudar, descobrir uma luz que ilumine Heera por ser fraca a luz que dela emana, pensar entretanto em Floor, como estará ela neste momento e por que pensou nela agora assim tão de repente, que sinal preocupante é este de pensar na filha sem razão; e, já agora, perceber que água é esta, e de onde vem. ‘Críí! Críí!’ Mas esse som que nada é pode afinal vir a ser alguma coisa, há tempos que só se cala para poder recomeçar, modesto mas insistente, ténue mas fundo, com isso despertando uma inquietação que nos vem de dentro, não do aparelho, uma inquietação que, mais do que ele, somos nós próprios a criar. Quem me chama?, que me quer?, e pode ser um recado da velha Caana (Floor!), pode ser Ervio com um pedido urgente, pode ser a notícia de uma tragédia aberta por este multiplicar de sinais. Mas, por outro lado, haverá algo mais urgente do que esta estranha água saída de dentro de Heera, subindo-nos pelas pernas e também pelas paredes? ‘Críí! Críí!’ Vai o som, vem o som. É tão difícil optar! Lá fora, as borboletas esvoaçam agitadas. Maara tira os olhos de Heera e põe-os no mostrador. É Ervio! ‘Críí! Críí!’ ‘Ervio, és tú?’ Ervio quase lhe responde com outra pergunta, quase lhe pergunta por que levou ela tanto tempo a atender. Mas, nestas circunstâncias, o pensamento acaba


por envergonhá-lo. Contenta-se com uma ligeira pausa, após o que diz: ‘Ouve, Maara, ouve com atenção: quero que pegues na tua filha e na tua mãe, naquilo que tiverem à mão que vos for mais precioso e puderem transportar, e que fujas para a montanha dos pastores. Subam as três, o mais alto que puderem!’ Fala-lhe assim porque o telefone apenas opera entre sons e silêncios, apenas transporta palavras. Nada nos diz dos lugares. Ouve a voz de Maara e em princípio ela estará em casa, ao lado de Floor e da velha Caana. Em princípio será assim. Maara estranha o pedido, mais a mais por enviá-las às três para junto de um certo pastor. Que pretende Ervio? ‘E que iria eu fazer para a montanha a esta hora da noite?’, pergunta. Ervio responde com outra pergunta: ‘A água já chegou a tua casa?’ Maara olha em volta. Tem água pelos joelhos. Deitada no chão, Heera é uma pequena fonte. Como terá Ervio sabido das águas de Heera? ‘Não sei, não estou em casa’, responde. Onde estará então, se não está em casa? Ervio engole em seco, sente subir uma fúria surda que é também uma velha conhecida. Lá fora, as mulheres já estão também molhadas. Nada aquieta as borboletas. ‘Maara, faz o que te digo!’ ‘Porquê?’ ‘Faz o que te.... dgooklkltli... Pi! Pi! Pi!’ Estalidos, crepitares. E depois silêncio.


128 Ryo e Laama eram crianças da última vez que surgiram borboletas como estas, tanto que não saberiam dizer se chegaram mesmo a vê-las nessa altura ou se foi só de ouvir contar. Borboletas que aparecem quando e onde o grande mundo seco encontra o mundo molhado. Borboletas anunciadoras desse terrível combate entre o sol e a água, ambos reclamando a posse da terra. Afastam-nas com as mãos nodosas e os bordões para poderem voltar a olhar a água da concha. Perdem algum tempo nessa inútil diligência. Suspiram os dois: que interessa agora a água da concha se começa a haver água em toda a parte? Ryo exaspera-se com esta natureza que lhes não dá tréguas; Laama, por sua vez, acha que quem não dá tréguas é este povo irrequieto, tecendo os fios de um pano de tragédia. Aliás, é Laama quem primeiro fala, e fá-lo para achar que Maara deve ficar e ajudar Heera apesar dos avisos do namorado. ‘Mais do que nunca temos de nos ajudar uns aos outros. Mais do que nunca Heera precisa de Maara’, conclui. Ryo, pelo contrário, acha bem que Maara parta e que o faça sem demora: ‘Falando em ajudar os outros, Maara tem uma filha e uma mãe para cuidar, é nelas que a rapariga deve pensar em primeiro lugar!’ Interrompem-se então um momento, para sorrirem e abraçar-se. É que sentiram as primeiras gotas de chuva batendo-lhes na face, escorregando-lhes pelos sulcos das rugas como pequenas cobras endiabradas. Interrompem-se nesse momento para lançarem francas gargalhadas. Em seguida voltam ao trabalho pois os áugures não podem descansar. Ryo sugere que cabe agora a vez a Laago de fazer alguma coisa, Laama acha que de Laago nunca veio coisa boa. Um deles diz que o coro de mulheres também deve ter um papel, o outro que não deve ter papel algum. Numa coisa ao menos estão de acordo, e é na decepção com que olham Ervio. Acham que ele opina e intervém à distância, a salvo dos humores da natureza. ‘A chuva não o molha agora da mesma maneira que antes a seca não lhe fazia


sede’, diz Ryo. ‘Tens razão’, acrescenta Laama. ‘Para ele nada significa o que verdadeiramente é.’ No fundo, invejam a facilidade com que as máquinas de Ervio o transportam até à verdade, ao passo que eles para chegarem a metade dos resultados têm de palmilhar o dobro da distância pelo chão ensopado do canavial, sujando e molhando as velhas sandálias.


129 Mais acima, o Secretário tem o seu telefone celular encostado à orelha. Olha distraidamente a noite para lá da janela, as primeiras gotas de chuva que ali escorrem, enquanto ouve as palavras de Ervio. ‘Não sabemos das dimensões da ameaça, do quanto o rio vai crescer. De qualquer maneira, não há tempo a perder. É preciso tirar a gente que vive perto das margens,’ diz ele. O Secretário mostra-se céptico. ‘Há tempos que as pessoas deixaram de acreditar na água’, diz. ‘Há tempos que olham o espaço onde existia o rio e o vêem vazio. Como posso convencê-las de que a água vai chegar, de que vai subir com essa força?’ Tal como as pessoas, custa-lhe acreditar que uma tragédia de tais proporções se venha sobrepor à tragédia que já vem acontecendo. Mais a mais agora, numa altura em que esta primeira chuva só leva a pensar em coisa boa. Ervio respira fundo. Procura apelar ao passado, à amizade que os une. Mas o Secretário é hoje um homem diferente: ‘É que as pessoas não me ouvem...’, diz. O Secretário tem dificuldade em largar umas coisas para poder agarrar outras: tem ainda em mente a água importada, não se desprende da velha competição com o Engenheiro Waasser, não consegue deixar de pensar nos meios que este tem ao dispor. Ervio torna a suspirar. Como pôde o Secretariozinho ter-se transformado neste homem cansado e descrente?! O que a vida consegue fazer das pessoas! Escolhe outro caminho, explica-lhe que se vier a tragédia ele será responsabilizado de nada ter feito para a evitar, fala-lhe na glória que será ter salvo o povo ribeirinho no caso de acontecer aquilo que ninguém quer que venha a acontecer. Perguntalhe para que serve um Secretário a não ser para exercer o seu poder; diz-lhe, finalmente, que se ele analisar bem as coisas verificará que chegou a sua vez. ‘Essa desgraça está mesmo para acontecer?’, pergunta o Secretário com um fio de esperança.


‘Sim’, responde Ervio. ‘Infelizmente essa desgraça vai mesmo acontecer.’ O Secretário sorri intimamente: será que é isso?, será que chegou a sua vez? Gostaria de ter a autoridade moral de Ryo e Laama cujas interpretações são atentamente seguidas por toda a gente, desafiadas por quase ninguém; gostaria de ter a capacidade de Waasser, os planos e homens e máquinas com que domestica a natureza; gostaria enfim de ter a importância de Ervio cujo nome faz inchar de orgulho a aldeia inteira. Mas, por outro lado, quem repara em dois trôpegos velhos, pouco lestos a fugir numa situação como esta? E para que servem as poderosas máquinas do Engenheiro se estiverem em baixo da água? Sorri novamente. Resta ainda Ervio. Que tem feito Ervio para salvar o povo da aldeia? Onde está ele, agora que esse povo precisa de quem o possa conduzir? Amanhã o que os sobreviventes vão lembrar é o gesto do Secretário correndo de casa em casa, dando as orientações necessárias, salvando crianças e velhos. Talvez salvando Ryo e Laama e, quem sabe!, salvando o próprio Engenheiro estrangeiro. Este pensamento enche-o de satisfação. ‘Fechem as portas e sigam-me!’, diz para os guardas da prisão. ‘Vamos ao rio salvar o povo!’


130 Praado franze o cenho para poder ver melhor o que acontece lá em baixo. Está no cimo da montanha. Há tempos que espera aqui a chegada da mancha que todos os dias avermelha o céu. Se ela demora, atenta em pequenas coisas que o ajudem na espera, todas elas lá em baixo: reverberações do mato, tremuras interiores das árvores (há muito que o vento não lhes chega às folhas), espreguiçares dos carreiros arrogantes antes de voltarem a encaracolar-se para complicar a vida aos aldeãos, movimentações súbitas de pássaros assustados ou répteis fugidios golpeando o langor do vale. Mas hoje há algo de novo. Daí o franzir do cenho, para que se agucem os sentidos. Um suspiro, pouco mais que uma suspeita, adejares silenciosos por longínquos, inéditos estalidos e brilhos emanados das casas e dos matos, e as ditas reverberações disparadas encosta acima. Que será isto?, pergunta-se Praado. Inquieto, levanta-se e chama os cães: ‘Sviuuu! Sviuuu!’ Reconhece quando as capacidades dos animais são superiores às suas, sabe como arrancar-lhes as informações de que precisa. Torna a chamá-los: ‘Sviuuu! Sviuuu!’ Chegam os dois cães, põe-lhes a mão no lombo, num arremedo de afago, e sente-os tremer. Não aqueles espasmos da pele para afastar insectos ou dar conta de uma comichão, antes um tremor mais fundo, acompanhado de latidos surdos e de humildades. Poucas vezes viu os cães assim, andando em bicos de pés como se ardessem as pedras do chão. Será que há fera por perto? Não, não pode ser: os badalos das escassas reses que ainda lhe sobram traduzem movimentos lentos, ajeitares de posição e pouco mais, nada da inquietude nervosa que haveria se fosse esse o caso. Olha em volta e é o mesmíssimo fim de noite de todas as insónias, as mesmas e conhecidas cores anunciando a madrugada. Nota então as primeiras gotas de água e sente pena dos cães, tão desabituados da chuva que se atemorizam com ela. E é quando volta a cravar o olhar na encosta, a mão ainda serenando os cães,


que nota a pequena multidão calcorreando as voltas do carreiro principal, ainda longe mas já principiando a subida da montanha. Vem apressada. Atrás dela, imbuída da primeira madrugada, a retorcida fita de areia que até hoje era como sempre o rio endireita-se e engrossa com um rugido surdo e uns há muito ausentes reflexos de prata.


131 ‘Ajudem aqui!’ Tal como Praado na montanha, atento aos sinais que conduziam à secreta mina ou às reverberações do vale, também Maara procura, no escuro do casebre, a origem da água que borbulha em torno de Heera. Impacienta-se com a falta de iniciativa das mulheres. Heera arfa, tem o olhar fixo de um pequeno animal acossado, impossível dizer-se em que estará pensando. Maara estranha: nenhum pequeno berro inaugural irrompe de entre as escanzeladas coxas da amiga, nenhum sinal diz ao que vêm estas águas, por que razão estão ali. ‘Ajudem aqui!’ As mulheres acorrem finalmente, também elas estranhado a visão de uma água brilhante, todavia inútil. E, assim que entram, os risos e as hesitações vão desaparecendo e elas espalham-se em volta como se desde há muito estivesse estabelecido o papel que cabe a cada uma. Nasce um fogo para aquecer um pouco de água, surgem umas tiras de pano, endireita-se a esteira onde Heera se contorce. Sucedem-se os gestos como se não os produzisse o livre arbítrio de quem os faz, como se fossem parte de uma sequência de repetições antigas que cada uma transportasse desde sempre dentro de si. Mulheres. À medida que socorrem Heera vão também dando algum arranjo ao interior do casebre, de forma que quem visse tudo de longe, passando por acaso por ali, diria serem quase os preparativos de uma festa, o casebre assim cheio, assim iluminado, assim prenhe da alegria que as mulheres sabem trazer aos espaços. E tão distraídas estão nesta actividade que não dão pelos sinais de que o tempo muda, revelados através da porta entreaberta; nem sequer dão pelo Secretário que passa arrastando consigo o povo que conseguiu arrebanhar perto do rio. E tão apressada vai esta pequena multidão que não nota que o casebre de Heera é, neste momento, um casebre diferente; como se dentro dele, nesta hora tão imprópria, estivesse começando a inédita festa. Viradas para dentro, de costas para o mundo que desta maneira se transforma,


as mulheres afadigam-se. Todavia, não há nenhum berro inaugural, nenhum vestígio espreitando do interior de Heera a não ser aquela água que nasce às golfadas e aos borbotões. ‘Ajudem aqui!’, vai dizendo Maara cada vez mais baixo, enredada na sua própria perplexidade.


132 Também Ryo e Laama deixaram que o Secretário passasse por eles sem se fazerem notados. Distraídos com as suas coisas, eles próprios não notaram a algazarra dos que se retiravam a mando da autoridade. Analisam os sinais. Ryo acha que as coisas estão finalmente a mudar, que o tempo verde vai finalmente chegar. Acreditando que o povo muda, como não acreditar na mudança da natureza? Sabemos quão larga é a noção que Ryo tem da natureza, nela cabendo quase tudo. Laama, pelo contrário, acha que não, que os sinais com que vêm deparando são sinais de estagnação e morte. ‘Não sentes o cheiro?’, pergunta Ryo, achando sentir o cheiro a formigas esmagadas que acompanha sempre a viragem. ‘Não sinto cheiro algum’, responde Laama obstinado. ‘És um velho casmurro!’, desabafa Ryo. ‘Tu é que não tens solução!’, resmunga Laama. Viram-se as costas, amuados. Afastam-se mesmo um do outro. Quer o destino que Ryo siga na direcção do rio, em passadas rabugentas ajudadas pelo bordão, e que Laama tome o carreiro oposto só para o contrariar, subindo para a estrada. Podia bem ter-se dado o contrário, com Laama a ir ao rio certificar-se e Ryo a subir à montanha para ver tudo do alto. Mas o que importa são os factos e o facto é que nesta altura os dois velhos separaram-se e tomaram as referidas direcções.


133 Tenso, Ervio pressiona os botões do seu telefone celular. ‘Bip! Bip! Tzz! Tzz!’ Aguarda, sem tirar os olhos da mancha negra que alastra no vidro do monitor. Gigante, avassaladora, provocando uma explosão de luzinhas e um fragor de apitos que não tarda vão cercar e envolver o pequeno ponto negro que, para quem estudou e sabe interpretar, significa a aldeia. ‘Píí! Píí! Píí! Píí!’ Impaciente, atira com o telefone para cima da mesa. Por onde andará Maara? Vezes sem conta lhe disse que estivesse sempre com o telefone ligado e carregado, pronto a responder. Afinal, para que lhe ofereceu ele o telefone? Por outro lado, vezes sem conta lhe faltou a coragem de dizer-lhe que andasse apenas por onde houvesse sinal, que não saísse nunca da sombra protectora da antena dos telefones. Onde estará ela? Pobre Ervio, com tantos computadores ao dispor mas sem um cujo ponto, progredindo pelo monitor, significasse a rapariga! Torna a pegar no telefone, pressiona novamente os botões: ‘Bip! Bip! Tzz! Tzz!’ ‘Está?’, diz a voz do outro lado. Esta é uma chamada que Ervio nunca pensou fazer em dias da sua vida. ‘Engenheiro Waasser?’, pergunta. ‘Sim, sou eu’, diz a voz do outro lado. ‘Ligo para avisar de uma segunda onda de cheia. Vocês correm grande perigo!’ ‘Onde estamos, já reparámos’, responde o Engenheiro com alguma frieza. Compreende-se: Waasser não está em situação de ter de ser delicado. É a Ervio, a quem só meras simulações ameaçam, que cabe a contenção. ‘Viu Maara?’, pergunta, como que casualmente. ‘Quem?’ Antes falavam de Maara como se falassem de duas amigas, cada uma delas


tendo para eles um especial significado. Agora que o equívoco se desfez e são obrigados a falar de uma só, fazem-no com grande distância, como se Maara significasse pouca coisa. É a maneira que encontram de evitar o ciúme ou a humilhação. Waasser parece não ter ouvido bem ao passo que Ervio parece perguntar apenas por perguntar. ‘Quem?’ ‘Maara, aquela rapariga que lava no rio.’ ‘Não, não vi’, responde Waasser. Ervio já não consegue conter-se: ‘Procure-a por favor!’ E Waasser: ‘Há muito que a procuro sem a encontrar.’


134 ‘Eu ajudo!’, diz Laago. Está outra vez sóbrio. Surpresas, as mulheres afastam-se ligeiramente. Temem este homem carrancudo e irascível, temem os homens em geral. Maara também se afasta. Está contudo vigilante. ‘É preciso transportá-la até ao posto de saúde. Está muito fraca’, diz. ‘Eu levo-a’, diz Laago. Trocam estas palavras com alguma polidez. Como se tivessem concluído que, neste momento, o importante é Heera. Lá fora, as borboletas não cessam de multiplicar-se. Sem uma palavra, Laago debruça-se sobre a esteira e levanta Heera em braços como quem levanta uma criança. Com uns ossinhos de pássaro e um corpo de criança, esvaziada da água que trazia dentro, Heera não há-de pesar quase nada. Maara desdobra uma capulana sobre os ombros da amiga. Esta, com os olhos muito abertos, arfa e continua longe dali. É ao deixar o casebre que o grupo descobre as primeiras gotas de chuva. As mulheres riem todas muito, desta vez com motivo para o fazer. Até Laago, sempre tão taciturno, tem um ar mais leve. Maara ajeita a capulana nos ombros de Heera. Descem o declive em direcção à aldeia. Chapinham no chão já empapado do carreiro. Maara vai na frente, limpando a água do rosto e incitando os outros. Laago vai cada vez mais curvado pelo peso que carrega em ombros. As mulheres seguem um pouco atrás, cercadas de um mar de gotas e de borboletas.


135 A água chega ao terreiro da escola e cobre-o num ápice, galga o patamar e entra na penumbra da sala de aula com um ruído de soluço e um gesto de golfada, espalha-se pelos pequenos corredores entre as carteiras, engrossa por cima da terra do chão apesar desta ir engolindo dela quanto pode, começa a cobrir as ditas carteiras uma a uma, primeiro os bancos, seguindo os veios da madeira macia e imperfeita, nós e fendas, defeitos e acidentes, enchendo as calhas dos lápis e canetas, os buracos dos tinteiros (que velhas são estas carteiras!), os sulcos abertos a canivete para formar as letras dos nomes, há muito tempo, Ervinho e Secretariozinho, talvez também Laago e alguns outros, quase todos eles rapazes que iriam dar em homens pois as raparigas são mais reservadas e respeitadoras, não têm canivetes, são mais receosas do desafio à ordem que é entalhar nomes na madeira das carteiras, nomes verdadeiros, e depois deixá-los lá ficar para quem quiser apurar culpados, e os nomes vão desaparecendo um a um, afogados numa água também ela verdadeira, não de madeira, embora na maioria dos casos nomes e rapazes, entretanto adultos, não correspondam já nas respectivas condições, os nomes aqui presos numa ânsia de soltar-se, os rapazes já soltos pelo mundo, presos quanto muito às suas novas vidas, estivessem aqui e afogar-se-iam, mas felizmente partiram à procura de outros lugares onde pudessem estar a salvo de se afogar nesta miséria, afogam-se apenas os nomes e com isso deixa de haver âncoras para prender os rapazes feitos homens a este lugar, faróis, como saberão agora onde se sentavam?, como saberão se eram daqui?, que farão eles lá onde estiverem quando sentirem a dor aguda espetada no peito, uma dor que só se aplaca quando sobre ela se derrama o bálsamo que é o cheiro de casa, o ar da nossa terra? E a água avança e deixou de haver o que conduza essas pequenas almadias perdidas pelo mundo de volta ao ancoradouro, deixou de haver um espaço onde vir mostrar as conquistas que fizeram, vãs e modestas vaidades, vãs e modestas saudades, a água avança inexorável e está quase a chegar ao quadro negro, um dos pequenos pilares, já antigo (a madeira quase podre, roída pelos bichos), cede com estrépito:


‘Crrrááá!’ E com ele vem uma esquina da cobertura de palha que distrai a hidra durante uns segundos sem contudo a convencer a desistir, nunca mais a escola voltará a ser a mesma, uma palha caída lá de cima para polvilhar a pele desta pequena lagoa aqui formada, caniços que vão indicando agora a direcção da corrente que entretanto já chegou ao quadro, já o lambeu uma primeira vez como se indagasse ao que sabia, se era amargo como esta vida ou doce como as crenças que ali foram sendo registadas, o optimismo de uma soma, a ambição desmedida de uma multiplicação, os solavancos das sílabas até irem dar numa palavra, a ousadia de uma frase, a alegria de uma conclusão, a timidez de umas reticências, a ignorância obstinada de um silêncio, um vazio cercado pela troça cantada dos colegas – fulaninho não sabe!, fulaninho não sabe! – e eis que a ardósia de um negro baço, salpicada daquelas antiquíssimas e repetidas mensagens a giz, apagadas, reescritas, fica brilhante e sem nada que nos indique o que ali se riscou nestes últimos dias, nestes últimos meses, nestes últimos anos, nenhum traço, nenhum sinal, tanto esforço para nada, gerações de professores e alunos neste mundo de paus e palha estalando e inchando, gemendo a dor que lhe inflige a água lambendo tudo assim tão de repente, tão de surpresa, apesar da sede que trazia há tanto tempo deixar adivinhar que cedo ou tarde tal viria a acontecer, e sem estes rastos de vida será impossível dizer adiante se aqui foi uma escola ou uma loja, uma sede do partido ou um estábulo, uma igreja ou uma prisão, sinal da inutilidade das vaidades e da modéstia dos empreendimentos, nada no quadro negro que nos indique, nada, nada. Sem remorso de ter apagado desta forma tanta coisa, tanta história, tanta obra feita que será necessário refazer, parte a água em busca de outros lugares, fá-lo sem deixar de ficar pois a hidra é una, a hidra não se divide, existe aqui e além toda inteira, em cada bocado ela é inteira, é tudo água, segue já pelo carreiro principal e pelas suas margens dando as curvas que ele e elas dão, e todavia está ainda aqui na sala de aula, ainda lambendo o quadro negro, ainda minando outro poste para dar cabo de outra esquina da cobertura de palha, mais caniços resvalam e nadam na corrente, mais caniços lestos rodopiando na direcção a um invisível ralo, cedo ou tarde virá a cobertura toda abaixo, cedo ou tarde deixaremos de saber ao menos se aqui houve um dia uma construção, peanha sem estátua, corpo sem cabeça, e enquanto a água o faz está já na bifurcação do carreiro, a esquerda levando à lembrança de quase desgraças num certo dia de escasso luar em que um recém-chegado era todo ele desejo, a direita em direcção ao terreiro das reuniões, e assim que a água passa deixa de haver bifurcação,


deixa de haver até carreiros, esquerda e direita indo dar a um mesmo lugar, distinções antigas que se desfazem e perdem o sentido, nada há mais passageiro que os significados, nada mais voraz que o tempo, esse engolidor das pequenas importâncias, esse instituidor de uma grande importância que daqui não conseguimos descortinar, e felizmente que no terreiro das reuniões não há ninguém a esta hora, já ninguém pensa em reuniões, nada resta que necessite de um esforço colectivo desta maneira discutido de antemão, as coisas ou se resolvem na base da pequena iniciativa, do gesto pessoal, ou então ficarão por resolver com isso na mesma se resolvendo, a mesa da reunião é agora também ela lambida pela água que lhe percorre as nervuras como percorreu nas carteiras, rachas das tábuas, pequenas covas feitas por pregos enterrados, desgastadas uniões e talvez mesmo, a um canto, entalhadas a canivete, letras de um nome, Secretário, não já Secretariozinho como na escola, mas Secretário, pois se há gente que partiu também há outros para quem a vida acabou por ser um prolongamento da infância, uma agonia de perguntas que apodreceram sem as respostas que lhes permitissem envelhecer serenamente, e para sempre se apaga não só essa palavra Secretário mas também tudo o que ali foi dito, sonhos difundidos, ânsias de justiça colectiva mas também mentiras apregoadas, opróbrios, infâmias, injustiças mesquinhas e miseráveis cuspidas por cima das cabeças baixas do povo subjugado e paciente, quantos cotovelos ali apoiados, quantas mãos espalmadas, quantas decisões discutidas, amadurecidas e tomadas ao longo de anos, não de meses ou de dias que há tempos não se decide nada apesar do esforço do Secretário e dos seus argumentos políticos, apesar do esforço de Ryo e Laama e da sua ciência de convocação dos espíritos, apesar do esforço de Ervio e dos seus aparelhos medidores de gotas que não pingam, apesar do esforço do Engenheiro Waasser apontando ao chão os seus terríveis argumentos pneumáticos, apesar da fé que os pastores punham no cepticismo amargo do pastor Praado, apesar de tudo isso há muito tempo que nada há a decidir, apenas esperar, esperar sem solução e sem saber como sair dessa, secar lenta e inexoravelmente, e eis que a água chega de rompante com fome de tudo, alisando os argumentos que existiam neste espaço, lavando as palavras de ordem e a lógica que nos diziam única e verdadeira, ou de qualquer forma irrevogável, afogando as orientações, da mesma maneira fazendo mergulhar os tais legítimos empenhamentos e as ditas mentiras, nobrezas e artimanhas dos que se pensam donos da história, tudo reduzido à mesma massa inútil de coisas submersas por algo mais poderoso, ei-la aqui e já de saída, parte e fica ao mesmo tempo, a hidra é una, ainda aqui, recém-chegada, e já solta em direcção à loja do português


onde chega com pequenos embalos de timidez, primeiro por baixo das portas, espalhando-se como silenciosa mancha de óleo pelo chão desgastado por milhares de passos, esfomeados passos, esperançados passos, anónimos e modestos passos, empapando a farinha bichada e o óleo rançoso, amolecendo as frutas e o feijão, acariciando os pés do balcão, minando-o para lhe poder chegar ao tampo e descobrir o que ali ficou esquecido até ao dia seguinte e que lá não chegará, apagando todo esse episódio que vai desde a chegada até à partida do português, as trocas e baldrocas que fez, os cálculos e lucros, planos e sonhos, a quem enganou e a quem matou a fome, que culpas e méritos teve – ele próprio se aqui estivesse achando que teve mais dos últimos, quem lhe escreve a história achando que foi sobretudo das primeiras, no fundo só os mais velhos sabendo o suficiente para com legitimidade se pronunciarem, ou pelas cicatrizes que trazem agarradas às costelas ou pela comida que levaram fiado – o prego onde ele pendurava o chamboco mas também as gelosias que serrou, pregou, poliu e pintou com a minúcia e o carinho de quem ficaria eternamente a servir-se delas para se proteger do sol, a orgulhar-se delas, e ainda aí estão para comprovar a solidez da obra, o quanto ela acabou por nos proteger do sol também a nós, e é por elas que agora a água entra, cansada de entrar por baixo, fatias e fatias de água que entram pelas pálpebras das janelas que são estas gelosias, e as janelas são como os olhos da loja e é como se a loja, discreta na dor, chorasse para dentro intermináveis lágrimas pesadas. A hidra é poesia maldita, ubíqua praga, está aqui e já não está, o seu olho já virou costas interessado em outros lugares embora a cauda ainda fustigue, ainda cumpra nas traseiras a sua malévola função, estragando tanta coisa, um resto de feijão que secava, umas sacas de milho miúdo, e ei-la também na varanda onde põe outro tanto a boiar, uma cauda que é como um chicote, arbitrária por ser cega uma vez que a frente já dali saiu, o olho já vai na curva, carreiro afora, desta vez mais comedida porque o carreiro é mais fundo, única e estreita via entre duas colinas e a hidra maldita não ousa ainda afrontar essas colinas, ainda só cobre o carreiro com falsa docilidade, mentirosa submissão – se ele decide serpentear por entre as colinas também a hidra transparente o faz, vou por onde fores, faço o que fizeres – mas depois dessas colinas, assim que o chão se alarga logo a maldita se empertiga e vai espalhando pela planície afora apesar dos cães dos pastores que arreganham os dentes e lhe ladram às arrecuas, apesar do mugido dos bois apavorados – só olhos, só olhos esgazeados – e logo a maldita avança castigando um par de casas que alguém colocou numa cova e não no outeiro mesmo em frente, caso em que, embora sujeitas ao vento, mais


protegidas estariam desta desgraça que agora lhes chega, cavando em volta para desnudar sapatas, fazendo estalar pilares desde há muito carcomidos, revelando ferros onde os havia escondidos dentro do cimento, esboroando as coisas sólidas com um som de lamento, inchando e levando palhas e barros se é parede modesta, e os bois só olhos, olhos muito brancos, e atrás de tudo isto gente coitada de mãos na cabeça hesitando entre deitar a fugir ou deitar a correr atrás dos objectos, prender com as mãos as suas coisas, fracos todavia essenciais pertences, uma velha máquina de costura, duas fotografias, um banco de madeira, uma mala de cartão com qualquer coisa dentro, um par de sapatos, uma galinha já morta, cansada de esbracejar, a cabeça pendendo do pescoço, a asa alongada e descomposta, talvez partida (que fazer agora com esta galinha?), tudo o que uma vida leva a juntar, apanhados a meio do gesto, engolidos nesta dúvida tão essencial de quem embora não sonhe voar alto se recusa todavia a voar mais rasteiro do que já voa, uns achando que ainda há espaço mas eles que não, que já sentem a barriga raspando os dois chãos, o de dentro pela falta de comida, o de fora pelo peso da vida mais o peso agora desta água que nos chega, e enquanto se afadiga a fazer este mal a hidra leva já o olho adiante, submerge o fontanário que há dias espremia gotas enlameadas como pérolas sujas, fá-lo com malévola ironia, engole o buraco onde caiu um dia uma criança com a sua lata, fruto do desatino de quem queria a todo o custo o que a todo custo agora quer evitar, que eram quase todos, que eram mesmo todos, e quando a água se retirar num qualquer futuro, se o houver, por algum capricho que não se sabe bem qual será (já se disse que ela não precisa de sair daqui para poder estar noutro lugar), quando a água se retirar ficará o buraco cheio de terra outra vez como se nunca tivesse existido, e ainda bem que não calhou isto acontecer enquanto jazia lá dentro a criança com a sua lata pois se não houvesse testemunhas era como um milagre negro, uma feitiçaria, como se a criança se tivesse evaporado, e mesmo que houvesse testemunhas o chão faria o seu trabalho sem que força humana conseguisse a tempo reagir, o mais a que chegariam seria ao accionar das perfuradoras pneumáticas do Engenheiro Waasser enquanto ele alongava os olhos na esperança de ver quem vinha do rio, e isso apenas para resgatar um corpo já sem vida enquanto ele desanimava por não ver ninguém, a estrada deserta, os bois correndo com os olhos brancos, e ao tempo em que se pesam estas possibilidades e o que se faria caso algumas delas tivessem mesmo acontecido, já a hidra se aproximou da varanda do Engenheiro tendo passado o portão, devagar que ali há um declive, mais depressa uma vez vencido este, pondo os dois guardas em alvoroço, menos empenhados que Gaato na tarefa que


lhes coube de defender instalações e por isso debandando assim que suspeitam da língua fria, da possibilidade das costas húmidas, não como Gaato que ainda abriu os braços para tentar segurar a água no estaleiro tal como antes tentara defender a água importada do ataque dos pastores, e é esta a ironia, este anjo feio vítima da míngua de água e do excesso dela, vítima da vida, irmão a quem nada coube na divisão que houve entre irmãos a não ser o seu sorriso, precioso sorriso mas sem que se saiba bem para que serve, isso e mais este destino de ter um irmão estudando a água e ele sendo vítima dela, e vítimas dela não quiseram ser os dois guardas da vivenda, as roupas ainda secas, diferentes de Gaato que só quando concluiu serem os seus braços pequenos face a tanta água se atirou para o meio de um carreiro (ou terão sido dois, isso agora pouco importa), e ou foi ainda a tempo ou então já tarde, isso ainda não se sabe, aliás quase nada se sabe a não ser umas quantas notícias desencontradas, tudo o que antigamente era estável anda agora em movimento, e fá-lo para se pôr em fuga ou por ter sido destruído, são dadas zonas como alagadas onde a água ainda nem sequer chegou enquanto se aconselha a fuga para outras que há tempos deixaram de existir, submersas nas entranhas do bicho, tudo isso por olharmos para o mundo como feio ou bonito, resguardado ou solarengo, limpo ou empapado em cacimba ou no fumo das queimadas, poeirento e nu ou então arborizado, verde ou castanho, sereno e silencioso como uma praia na maré vaza ou rumorejante como uma fonte ou um bazar cheio de gente, tudo o que se quiser mas raramente nos vindo à ideia antecipada onde ele é alto e onde é baixo, a não ser se temos de subir do baixo para o alto todos os dias (fosse ao contrário e facilmente esqueceríamos), a não ser que seja assim e nos doam as pernas de o fazer, só nessas alturas, e nestas que agora nos acontecem, concluímos quão importante é termos presentes os altos e baixos da orografia, quão importante é termos ensaiado de antemão a fuga segundo esses ditames (sempre do baixo para o alto) no caso em que a hidra aqui chegasse como chegou, mas quem haveria de lembrar-se disso nos últimos meses, a quem saudável das ideias ocorreria fugir de uma água que não havia meio de chegar?, a quem saudável das ideias ocorreria tal coisa?, já os guardas se esfumaram num pavor – esperando descobrir um penedo alto e seco no meio da escuridão – e a água sobe os dois degraus que vão dar à varanda numa nova timidez de quem pede licença, afinal quem mora ali é importante, veio de longe com as suas máquinas perfuradoras e a ambição de mudar a nossa vida, traz com ele os ouvidos do mundo, os olhos do mundo (vendo mais até do que é suposto ver, uma rapariga que vai e vem do rio, por exemplo), a voz do mundo para nos dizer o que fazer, como e onde lançar pontes que nos permitam chegar ao outro


lado a partir deste lado de miséria, que pode uma mera água local ante um poder assim, e além disso antes dele houve outros, alguns também poderosos, nesta casa que é antiga, nestas paredes que são grossas, nesta varanda que é larga e penumbrosa, adequada ao fim do dia do antiquíssimo administrador e da sua excelsa esposa, sonhando sempre com algo que não chegariam a ter, os dois trajando com solenidade para não esquecerem a cultura, falando um com o outro polidamente para não esquecerem a educação, ele de casaca de linho branco e ela de vestido levíssimo de tafetá, e a água pedindo licença, pedindo licença e estes fantasmas sem reparar, fantasmas com a sobranceria de quem sabe que já nada os pode atingir, não há vingança a que sejam vulneráveis, inatingíveis na sua melancolia, imersos num mundo de grilos tristes, na reverberação do seu apelo, nem estes nem sequer outros que mais tarde aqui entraram com as suas fardas militares falando alto de justiça e de reparação, palmilhando este chão com empoeiradas botas, assustando culpados, enchendo de esperança os inocentes com as suas precisas previsões, e a hidra espreitando, espreitando e pedindo licença a estes fantasmas de outrora, mas uma vez lá dentro voltando a perder o respeito, era afinal uma artimanha para transpor os portões de tão vetusta praça-forte, ei-la agora que se espalha pelo encerado vermelho como se fosse sangue, sangue aos borbotões fazendo fugir e gritar de terror a senhora (o tafetá pingando sangue), o administrador com a casaca de linho vermelho, o guerrilheiro reparando com surpresa que a sua farda não é afinal verde-oliva, acastanhou-se de sangue (será que o feriram as balas da guerra?), que a sua verdade não se escreve em mármore mas num chão ensanguentado, e a hidra passa por eles como se não lhe interessassem, não são estes que eu quero, empurra a porta da entrada com um pontapé, é lá dentro que quer ir e ainda cá fora assustando uns e outros, a hidra é una, vai de quarto em quarto abrindo e fechando portas, de sala em sala e ainda cá fora, pelos corredores e ainda na varanda, o cozinheiro fugiu, o mainato encurralado no quartinho dos fundos, gritando enquanto tiver pulmões, assim que a água os encher calar-se-á, tudo passará então a ser-lhe indiferente, por eles passa a hidra furibunda, onde está Waasser?, pergunta ela arrastando as mesinhas da sala e engolindo napperons da esposa do administrador que o acaso e a inércia fizeram aqui esquecer, onde está o Engenheiro?, e derruba estatuetas de pau-preto e esguias aves de corno de impala, revolve armários e colchões, crocodilos de balsa antes em melíflua pose junto ao chão e agora vogando como pequenas canoas perdidas, caixotes e velhas arcas vazias sem as pagelas de quem ora, sem o linho de toalhas e guardanapos, sem a seda de lençóis, sem a prata dos talheres das recepções, sem


o cristal dos copos desses mesmos dias a não ser um par, largos e grossos, que costumam estar na varanda para o whisky do estrangeiro e por isso já devem ter sido levados, enfim, sem outros tesouros que famílias sedentárias costumam acumular, o que redobra na fera a fúria: onde está esse Engenheiro?, fúria e desconfiança de quem chega sem ser inteiro (utilizando como se fossem seus os napperons que a esposa do administrador deixou aqui esquecidos!), a quem faltam as respectivas tralhas e o propósito de aqui agonizar um dia como se estivesse verdadeiramente em casa, onde está o maldito para quem a vida é uma viagem?, um salto de uns lugares para outros?, um mero cenário da meia-idade, onde está ele?, e revolve as caixas vazias desse homem que vive como se fosse partir amanhã embora ultimamente haja uma inesperada mas fortíssima âncora que o prende a este lugar, âncora que vê passar indo e vindo do rio, e é essa inconsequência que enfurece ainda mais o bicho como se quisesse tirar desforço disso e de dias e dias em que as máquinas perfuravam o chão na mira de o apanhar, e ainda das pontes que o Engenheiro desenhou e com que sonhou, das pontes que passavam por cima do rio sem este lhes poder chegar, e a esposa do administrador grita na varanda (o vestido de tafetá é uma ensanguentada papa), o administrador partiu a ver o que ainda se pode salvar, o guerrilheiro confundido é uma cruel e caprichosa criança, uma música triste sai por uma janela, ah, que música é esta que não parece ser apenas o lamento dos antigos habitantes desta casa?, e a hidra fareja, que música é esta?, derruba panelas e pratos farejando sempre, e com um ruído de louça partida (está aqui e ainda na cozinha) acaba por entrar no quarto mais promissor, aquele onde o tristíssimo lied soa mais forte: Mich führt mein Weg wohl meilenlang Durch Golf und Strom und Waassergrab;3 Perplexidade e fúria: que som é este afinal?, e estende os braços e escancara as fauces para abocanhar a caixa de onde sai o som e afogar de vez aquela voz para que fiquem apenas os ruídos roucos do engolir o que a cerca, isso e os gritos das vítimas, fúria ainda maior porque Waasser já partiu, será que o fez em resposta a um telefónico pedido de socorro?, será que o avisaram de longe de que tudo isto ia acontecer?, será que simplesmente lhe chegou o cheiro da iminente tragédia? Seja como for, o Engenheiro não está no quarto nem em parte alguma da casa, à varanda onde passava as noites tilintando obsessões habitam-na apenas rubros fantasmas e, agora, o líquido manto, e a hidra parte por onde veio, por aí e por


novos lugares ainda por percorrer, a hidra nĂŁo desiste enquanto nĂŁo cumprir o seu desĂ­gnio. 3 Leva-me o meu caminho muito longe / por golfos e rios e valas...


136 Por onde andará a rapariga? Waasser também não desiste, as luzes do Land Rover varam a noite, o roncar do motor atiça a fera que esmiúça todos os buracos sem conseguir ainda dar com ele para o calar, as rodas agarram-se ao que resta de terra nos carreiros, antes era o carro percorrendo o leito do rio atrás de uma nocturna ave de voo rasante, agora é a vez da água andando pelos carreiros, por aí alongando e emaranhando os seus braços. Por onde andará a rapariga? ‘Críí! Críí!’ Waasser estende uma mão para o telefone, a outra segura o volante. O olhar perscruta a noite. ‘Está?’ ‘Engenheiro Waasser?’, pergunta uma voz. ‘Sim, sou eu’, diz Waasser, atendendo uma chamada que nunca esperou receber. ‘Ligo para avisar de uma segunda onda de cheia. Vocês correm grande perigo.’ ‘Onde estamos, já reparámos’, responde Waasser. ‘Viu Maara?’, pergunta Ervio, como que casualmente. ‘Quem?’ Compreende-se a distracção: Waasser vai mais atento ao caminho que ao telefone. Ou é isso ou quer fingir distância. ‘Quem?’, repete. ‘Maara, aquela rapariga que lava no rio.’ ‘Não, não vi’, responde Waasser guinando bruscamente para evitar uma árvore que o acaso postou na berma. Pessoas, árvores, pedras e animais, tudo se agita e move nesta noite tão diferente das outras noites. ‘Procure-a, por favor’, diz a voz trémula de Ervio, do outro lado. ‘Procure-a, é um favor que me faz.’ ‘Há muito que a procuro sem a encontrar’, responde Waasser a meia voz,


como se falasse consigo próprio. ‘Como?’ Mas Waasser já desligou o telefone, já guinou no cruzamento e tomou a direcção da casa da velha Caana, trava agora bruscamente à porta dela, salta sem sequer desligar luzes nem motor. ‘Maara está?’, berra. A velha Caana vem cá fora, assustada com o tom. Às costas, a pequena Floor. Embalava-a quando o Engenheiro aqui chegou. ‘Maara? Não, Maara ainda não veio’, responde. Atrás das micaias, a vizinha espreita. ‘Onde está ela?’ ‘Foi socorrer uma amiga.’ ‘É preciso fugir sem demora!’, diz Waasser. ‘A água está a chegar!’ A velha Caana fita-o, sem arredar pé. ‘Entendeu o que eu disse?’, pergunta Waasser. ‘Não posso partir sem a minha neta’, diz ela. ‘Levo-vos às duas’, diz Waasser. ‘Não posso partir sem a minha filha.’ ‘Vamos procurá-la para vos levar às três.’ A velha Caana enfim acredita. Há muito que vem notando o interesse do estrangeiro pela filha. Entram no carro, arrancam. Waasser volta a travar bruscamente. ‘Venha você também!’, diz para as micaias. Notou um certo olhar espreitando. De lá encolhem os ombros. A mulher nunca andou de carro, não é hoje que vai experimentar. Além disso, teme pelas suas coisas (sabe-se lá quem se pode aproveitar das coisas alheias numa noite como esta, cheia de casas vazias). E finalmente, que água tão grande viria ameaçá-la aqui no alto onde mora? Há certas coisas que só vendo se acredita. Volta o encolher de ombros: não, não vai. Sendo assim, Waasser volta a arrancar. É urgente encontrar Maara.


137 Ryo e Laama voltaram-se as costas, segue cada qual por seu carreiro rebugento. Ryo quer chegar ao rio para sentir enfim o verde despontando, celebrar as águas no seu movimento. Laama, por seu turno, vai subir à montanha para dali inspeccionar o vale, certificar-se de que continua quieto no seu lugar. Nenhum deles viu ainda a água, é certo, mas sabem que ronda por perto. Numa curva, Ryo pára. Ouviu passos apressados. Espreita por trás duma pedra e vê vindo um grupo de mulheres acompanhadas por dois homens. Um deles coxeia, outro leva às costas um pequeno volume embrulhado numa capulana. Reconhece-os e sorri. Caminha nessa direcção. Na curva oposta, aquela que começa a subir, Laama ouve o ruído de um motor. Salta para o meio da estrada, agita braços e bordão. O carro trava bruscamente, levantando uma pequena nuvem de poeira que faz o velho tossicar. ‘Sobe, velho!’, diz o condutor. É o Engenheiro Waasser. ‘Para onde vão?’, pergunta Laama. ‘Vamos para a montanha.’ ‘Vou com vocês, também quero chegar à montanha!’ E Laama trepa a custo para as traseiras do Land Rover, que de imediato se põe em movimento. Sentado na caixa como está, agarrado ao taipal e de costas para o caminho, vê a paisagem fugir de si e sente-se às arrecuas: mais do que correr em direcção à montanha, sente-se a fugir do rio. Quer avisar Ryo deste seu pressentimento mas o lugar onde se separou do amigo é já um ponto na distância, envolto em névoa e em poeira.


138 A pequena coluna dos mais expostos, por viverem nas margens do rio, é afinal aquela que primeiro vai chegar lá acima, subindo a montanha com a hidra a roerlhe os calcanhares mas no geral escapando às suas lambidelas; enquanto os outros, aqueles que se sentiam seguros nas modestas alturas que há no vale – o telhado do edifício da administração, uma pedra grande ou então uma árvore mais antiga e alta – são os que agora se apavoram e não têm para onde fugir, subindo a coberturas que ondulam como cascos de navios adornados por um mar encapelado; são também os que se agarram a paus que navegam desvairados numa perigosa direcção, como se algures houvesse um ralo que os sugasse; enfim, os que deviam ter escutado os animais, pelo menos alguns deles, pois desde ontem que os cães andam inquietos ladrando às folhas das árvores, ladrando às pedras e sombras como se estivessem já injuriando a natureza pelo acto que esta ia cometer, ironia suprema de nos afogar com aquilo que nos faltava e nós pedíamos sem cessar – tomem lá, já que querem tanto, e não se queixem mais! – e os cães sabendo tudo de antemão talvez por fazerem parte dessa natureza tal como os restantes animais, excepção feita a nós humanos que cortámos o cordão umbilical e agora não nos chega o alimento, que à mesma natureza tentámos pôr uma trela e a maldita roeu-a, virando-se agora contra a mão que a educava, e depois de ladrar, um modo de avisar os donos por não conseguirem avisá-los com palavras, quem quisesse que entendesse!, puseram-se os cães a caminho e agora é vê-los todos na montanha, ladrando sempre mas um ladrar diferente, um ladrar que é uma forma de descomprimir da grande excitação, ou latindo uns com os outros ou ainda chamando donos que não conseguem achar entre os que chegam cansados a este refúgio, onde estarão os meus donos?, e, se sim, é vê-los aos saltos e de língua de fora abanando freneticamente a cauda como se fosse a própria vida que tivesse estado em jogo e não a de quem, apesar de lhes dar de comer, também lhes bate (que nas aldeias e no mundo rural em geral batem sempre mais nos animais, embora nem sempre os tenham presos como na cidade, que é outra crueldade), mas enfim, não foram


só os cães a descobrir o que aí vinha muito antes dos humanos – apesar dos postos udométricos, dos computadores munidos do Google Earth, das rosas dos ventos, das plotters, das impressoras, dos satélites, das fotografias aéreas, das cartas, das médias de precipitação, do el niño, da la niña, das conferências internacionais, da organização mundial de meteorologia, dos esforços do Centro de Boulder, Colorado, dos avisos da senhora Brundtland e do senhor Gore, de Kyoto e de Paris, das associações dos amigos da natureza, das perfuradoras pneumáticas, dos vedores e suas varas, da ciência do par de velhos, das palavras de ordem dos políticos, do ódio do nosso partido à natureza (tapando tudo com cimento), das rezas de tanta gente, dos impacientes choros das crianças, apesar de tanta coisa! – além dos cães também as vacas, mais lentas, mesmo assim o souberam antes dos humanos e se puseram a salvo mugindo muito (os olhos de uma brancura extrema), e até cobras, lebres, facoceros, lagartos, gazelas, chegaram à encosta saltando, ondulando e rastejando, procurando escapar à lambidela da irada hidra, esses e também um outro tipo de animais que sempre viveram a nosso lado sem que os víssemos, apenas suspeitássemos num movimento de sombras sem razão palpável, em inusitados suspiros sem haver quem os exalasse, e eis que os vemos agora nesta simulação de juízo final, neste ensaio de derradeiro ajuste de contas, embaraçados pela exposição, fingindo que pela primeira vez nos vêem, simulando uma surpresa, mas todos eles aqui antes de nós, excepção feita às formigas e outros animais de minúscula envergadura pelo muito que teriam de caminhar para aqui chegar, mil vezes mais passadas que as nossas de cada vez, excepção também dos pássaros, besouros e abelhas, mas estes por ausência de necessidade uma vez que podem pousar onde quiserem e quando quiserem, mesmo que seja em coisas leves que a natureza dotou sem raízes, produzidas aqui ou vindas sabe-se lá de onde e dirigindo-se para onde o capricho da vaga as quiser levar. Todos aqui, aqueles que o destino quis trazer pela mão do Secretário mais os poucos que cá estavam, caso de Praado que muito se surpreendeu ao ver a multidão subindo assim como se viesse às pressas agarrá-lo, e só não fugiu por ser corajoso de feitio e não ter para onde, por o resto de vacas ser lento e ele não querer deixar para trás aquilo que é seu, e ainda, há que dizê-lo, porque à medida que subiam subia também neles uma espécie de humildade, como se reconhecessem a autoridade de Praado neste lugar, como se quisessem pedir licença para aqui estar, o Secretário que há tão pouco tempo o teve preso olha para ele como se olha um igual, como estás Praado?, e Praado surpreso, obrigado a responder, vou indo, e com isso baixa a guarda, afinal eles queriam todos era


fugir do que aí vem, seja o que for, ajuda mesmo alguns velhos a percorrer os últimos metros, mostra onde melhor se podem sentar a descansar, e uma vez sentados ficam eles e ele à espera de ver o que a hidra pretende fazer, até onde está disposta a ir antes de se retirar, e na verdade pode muito a água, transformou o rio de encaracolado fio em traço grosso e pesado, depois em mancha poderosa, interessante seria agora saber o que pensa Ryo, Laama sabemos achar que um fenómeno assim é exterior à natureza, uma doença, coisa inventada pelos de fora, maldição, mas Ryo diria, pelo contrário, se aqui estivesse presente, que desde que esteja dentro do nosso espaço e do nosso tempo a coisa passou a ser natural, mas será que é assim?, será que é isso que Ryo diria?, e já que se fala nele, já que se pensa nele, onde andará Ryo?, e Laama olha em volta procurando o companheiro entre os fiapos de gente mais atrasada, deixou de haver grupos nos carreiros que sobem a encosta, apenas fiapos de gente, famílias mais distraídas ou mais ciosas das suas coisas, a quem custou mais deixar estas para trás, gente que vive mais longe, loucos desprendidos da vida, mulheres doentes, crianças perdidas, velhos com dificuldade em andar, e entre estes últimos estaria Ryo, e Laama olha com atenção procurando descobri-lo, ei-lo que chega, frágil mas resoluto, apoiado no bordão, Ryo!, mas afinal não é ele, é alguém muito parecido, o bordão é quase igual, curioso como existe alguém assim parecido e ele nunca ter reparado, e eis que se surpreende o interpelado, como?, e Laama obrigado a corrigir-se, a perguntar se ele viu Ryo, e o velho abanando a cabeça, que não viu, quem foge dificilmente olha em volta, não tirou os olhos do carreiro que vem dar aqui ou se os tirou foi por um curto instante, apenas para ver se via o filho que não veio a tempo de o encontrar, meteu-se a água a meio, mesmo assim ele conseguiu passar, quer dizer ao filho que está aqui mas não há meio de encontrá-lo, será que Laama viu um fulano assim-assim, um fulano que tem de estar vivo pois os filhos só se vão depois dos pais, o velho devolve a Laama a pergunta, viste o meu filho?, mas Laama não viu ninguém que condiga com a descrição, nenhum viu quem o outro procura, nenhum tem a dar ao outro a resposta necessária, e é assim por toda a encosta, gente muito junta, povo perguntador mas ninguém que dê respostas, é tudo um mar de perguntas, um deserto de respostas, e as perguntas, sem terem quem as agarre, resvalam pela encosta abaixo até se perderem no vale e se afogarem no rio, e quanto a Waasser a única pergunta é: ‘Alguém viu Maara?’ E não, ninguém viu Maara, e Waasser continua a perguntar, de vez em quando esbarra no olhar da velha Caana e esse olhar pergunta-lhe se viu Maara, e ele


desvia o seu, um modo de responder que ainda não a viu, e portanto não é só por si, é também por não poder mais com o olhar da velha Caana nem com o vulto da pequena Floor que se decide a descer a encosta, meter-se outra vez no Land Rover e disparar pelos caminhos que ainda se salvam fora de água, partir buzinando repetidamente, oxalá ela reconheça a buzina e faça algum sinal, fiapos de gente, oxalá esteja num deles, estou aqui!, estou aqui!, obrigado senhor por me ter vindo salvar uma segunda vez!, tal como antes obrigado pela água importada, mas não é isso que acontece, ainda assim talvez venha a acontecer para lá daquela curva, mais fiapos pelas bermas, bermas cheias de fiapos, e Waasser faz-lhes sinal que subam a encosta e eles duvidam, como subir a encosta se ele se afasta dela?, chega à curva, torna a buzinar, mas não era da curva, Maara continua sem responder, onde se terá metido ela?, e pega no telefone para lhe ligar, e antes que o possa fazer o telefone toca: ‘Críí! Críí!’ E antes que possa atender chega-lhe um ruído: ‘Crrrááá!’ E, logo a seguir: ‘Pi! Pi! Pi!’ Foi a antena dos telefones que tombou ali perto, a sua sapata minada pela água, os ferros contorcendo-se e tombando lentamente em agonia, e para sempre deixou de haver esta novel sombra protectora, para sempre deixou de haver telefones, acabaram-se de uma vez aquelas feitiçarias, as pequenas caixas de segredos estão vazias, nada dentro delas, nada, nada. Terá sido Maara quem tentava ligar-lhe?, de certeza que foi Maara, é isto que acha Waasser enquanto conduz, sem saber que era Ervio ansioso por não ter mais para quem ligar uma vez que todos estão em movimento, ninguém com tempo para o atender e serenar, para lhe dizer como é que as coisas vão acontecendo, é cada um por si, apenas Ervio pensando nos outros, ele e de alguma maneira Waasser, e nova curva, e logo acontece o caminho enterrar-se no mar, todos os caminhos perderem a direcção, a ponta de trás ainda se escapando às arrecuas mas a da frente capturada e engolida lentamente com um corpo pela cobra, e a partir daqui deixa de haver caminhos e carreiros, transformados em braços do rio, um rio gordo, cada vez mais lento, estendendo os seus tentáculos, arrotando aquilo que tem engolido, não há caminhos nem gente, não poderá portanto haver Maara, e Waasser volta a pensar só em si, vem-lhe ao pensamento um lied apropriado, sobem-lhe saudades antigas, que faço eu aqui?, como vim aqui parar?, e trava bruscamente, inverte a marcha com dificuldade e torna a


rumar à encosta, nada mais pode fazer a não ser esperar junto dos outros, e é quando inverte a marcha que olha e vê uma nuvem de borboletas cercando o Land Rover como se quisesse avisá-lo, e ele não entende por que há assim tantas borboletas neste lugar, sacode-as com a mão, acelera e as borboletas ficam todas para trás.


139 O que sobra da aldeia está agora na encosta da montanha, pessoas e animais, pois o resto – casas e coisas, estradas e carreiros – foi coberto pela hidra. Ficou a montanha como uma ilha cercada por um mar imenso, e Praado, sem ter mais para onde fugir, deixou-se daquela solidão carrancuda dos pastores, aquela sobranceria de quem vive lá no alto, pois estando todos no alto passa este a ser como um vulgar baixo, olham-se uns aos outros como se estivessem à porta da loja do português e não na solidão do alto, apenas os diálogos mudam pois aqui não faria sentido perguntar por preços de quilos de feijão ou metros de pano, já não há feijão nem pano, nem balcões nem gelosias, as gelosias que levaram tanto tempo a serrar e pregar e polir e pintar, não faria sentido haver porque já não há sequer palavras, engolidas que foram por este silêncio que as pessoas trocam, perguntam-se e respondem-se em silêncio, às palavras já não é a voz que as profere mas o olhar, e o olhar de uma maneira é o olhar de quem pergunta, se de outra maneira é o olhar de quem responde, vá-se lá saber quem ensinou esta complexidade de olhares, e como aprenderam, talvez nas reuniões, talvez noutro sítio qualquer, um silêncio suportado por estes olhares embora de vez em quando surja um queixume de quem sente saudade dos antigos sons, mas um queixume baixo, leve gemido que nem parece humano pela constância com que é exalado, um queixume que se prolonga sem desfalecimentos como se à dor e ao medo nada fatigasse, e quem está perto entende esse queixume como uma pergunta e logo lhe responde com outro queixume, e então o silêncio é arredado por este continuado coro de queixumes baixos que é quase uma música, uma polifonia de queixumes, e Praado ouve essa música e logo olha o Engenheiro que entretanto regressou pois lhe parece que foi este o som que ouviu numa certa noite em que chegou com os companheiros aos degraus de uma varanda, de olhar feroz e bordão em punho para perguntar que som era aquele por cima do tilintar, um som que era como se a terra padecesse, e atrás desta pergunta vem a desconfiança de que o Engenheiro já sabia, já antecipava o que ia acontecer e a música que tocava era afinal um som do futuro que ele já estaria a ver, mas eis


que o olhar que Waasser retribui não é o olhar de quem sabia, é antes um olhar de surpresa parecido com todos os outros olhares, uma surpresa igual a todas as outras surpresas, talvez até mais carregada pelo peso de quem se surpreende por não ver ali uma certa rapariga, de quem se surpreende por estar quase a desistir de perguntar por ela, o que é isto?, porque me desinteresso daquilo que tanto me interessava?, que vontade é esta de regressar à minha terra?, é isto que o estrangeiro se pergunta e Praado volta a serenar, antes assim, antes estarmos todos imbuídos da mesma surpresa embora a do Engenheiro mais carregada, tal como carregada é também a surpresa de Laama por pela primeira vez não ter com quem discutir, onde estará Ryo?, surpresa de ter concluído que sem a discordância do velho companheiro a verdade fica mais longe, afinal a verdade não emanava de si próprio, constata com perplexidade, afinal a verdade emanava da discussão, e se agora os lábios de Laama mexem como se falasse sozinho é porque tenta formular os seus próprios argumentos mais os argumentos do companheiro, tenta descobrir um veículo de discordância que o transporte até à verdade, a verdade de entender que momento é este por que a aldeia toda está passando, que momento é este por que a natureza está passando, o que será que se pode fazer para saírem desta espera, nesta encosta, ele sabe que tudo o que existe numa encosta cedo ou tarde acabará por resvalar, basta cansarem-se as forças que ali os seguram, isso se entretanto a água não subir ainda mais, e antes que uma das duas coisas aconteça é para ele que todos olham, é para ele que o Secretário olha, é para ele que Waasser olha, e ele sem nada que dizer-lhes, nenhuma cinza ou concha ou amuleto que despoletem forças benignas que os viessem ajudar, apenas aquela ladainha com que procura construir a presença do companheiro, ‘Vem, Ryo, vem!’, o som mental dos tambores acompanhando, ‘Tu tikitu tu, tikitu, tikitu tu!’, e os outros, pensando que reza para convocar forças que só ele conhece vão-se juntando cheios de esperança, e ele mexe os lábios com um vigor manso, ‘Vem, Ryo, vem!’, mas Ryo sem surgir, Ryo sem dar um sinal, será que o faz apenas para contrariar?, será que mesmo ausente continua um velho casmurro?, e Laama sorri ao descobrir que mesmo nesta nova situação não deixa de discutir com o amigo, e os outros pensando que ele sorri por ter recebido um sinal, e volta um murmúrio colectivo, ‘Laama descobriu um sinal!’, passam a palavra, ‘Laama descobriu um sinal!, ‘Tu tikitu tu, tikitu, tikitu tu!’, e Laama, sem achar justificação para aquele vago optimismo que desponta faz-se outra vez sério, abana a cabeça para dizer que não, e o murmúrio vai serenando até voltar a instalar-se aquele silêncio recheado de olhares, salpicado de queixumes desgarrados que fazem lembrar a Praado uma certa noite numa


certa varanda, queixumes que vão crescendo até ficar um só queixume polifónico, e é preciso que decorra um certo tempo até que este amanse e deixe regressar o silêncio, aquele silêncio que existe sempre nas montanhas pois ali a visão abarca sempre mais que as parcas palavras e por isso as faz humildes, embora sempre acompanhadas de um eco que as vinca e lhes empresta solenidade.


140 Ervio espreita pela janela do seu gabinete. Lá fora, estranhas lufadas de ar, súbitas a chegar e a partir, fazem estremecer a rosa dos ventos e espalham umas primeiras gotas grossas nas mais desencontradas direcções, provocando um surdo matraquear nos aparelhos. Larga a persiana e vira-se para dentro, inquieto. O telefone jaz em cima da mesa, morto. Desistiu dele há muito, sabe que já não serve de ponte com a aldeia. A diferença entre as manchas escuras dos monitores e o que acontece lá fora impede-o de imaginar com clareza o que estará acontecendo naquele lugar distante. Aqui é só a cauda da besta, a ponta da história. O que estará acontecendo no olho dela? Olha fixamente o ecrã, bate no vidro com ambas as mãos como se quisesse forçá-lo a revelar mais do que ali está. Vem-lhe à lembrança a sua pequena escola, estúpida lembrança!, pergunta-se de que maneira ela estará resistindo. Mas o que importa são as pessoas, e enfurece-se surdamente quando imagina o proveito que o Engenheiro estará tirando da situação. Na certa já foi buscar Maara, salvou-a a ela e à família, recorreu aos subalternos que tem, ao equipamento do estaleiro, a todo o seu poder para dar à rapariga as garantias de uma grande segurança! Agarra no telefone com ganas de gritar tudo isto para dentro dele. Larga-o de novo. Pensa em Laago e toda a confiança que a muito custo ia recuperando volta a perder-se. Nem quer imaginar aquilo de que ele será capaz nesta altura em que, atentas à natureza, as pessoas se esquecem de proteger-se umas das outras. Maara! Torna a vir-lhe então à ideia a rapariga, sabe que é isso o que verdadeiramente importa. No monitor, a mancha continua vaga e imprecisa, sem lhe revelar aquilo que realmente precisa de saber. Atira o telefone para longe com um gesto brusco. Sai para respirar. Pobre Ervio, ainda afadigado à procura de novos enredos onde os enredos velhos se desfazem!


141 Rosna a hidra aos calcanhares dos sobreviventes sem contudo conseguir ainda lá chegar, o olho aqui e a cauda estrebuchando na casa do Engenheiro, o mainato calou-se finalmente, de costas viradas ao mundo, braços e pernas abertas, a farda branca encharcada, o olhar apontando para baixo como se atentasse em algo que jaz nas profundezas do quartinho, talvez o lençol branco que engomava e agora lhe serviria de mortalha para não ficar a apodrecer quando o sol vier, hoje em dia os vivos não cuidam dos mortos, é cada qual cuidando de si se quiser ficar protegido das aves agoirentas que nos tentam debicar, as hienas que com falas mansas nos querem revolver, e nós como se não notássemos, como se nos orgulhássemos daquilo que conquistamos todos os dias, levando os bolsos rotos por onde escorregou e se perdeu a nossa humanidade, ficando apenas com coisas menores, pequenas jóias de fancaria como uma pretensa força ou uma pretensa autoridade, uma razão privada que só nós vemos, mais ninguém, será nisso que pensa o mainato nesta sua imobilidade feita de atenção ou perscruta antes o fundo escuro onde o lençol se esconde?, onde andará ele?, como poderei fazer dele a minha mortalha se não o encontro?, não são de bom agouro estas meias mortes, ficar enterrado com o corpo de fora, os vivos só são mesmo vivos se os mortos forem mesmo mortos, e um crocodilo de balsa encostado a uma perna do mainato como se a quisesse mordiscar, as aves de corno de impala a afundar-se em vez de voar, os guerreiros de pau-preto atrás delas quais improváveis mergulhadores com as lanças empunhadas, os napperons da esposa do administrador vogando como minúsculos peixes de prata, e a água trepa pelas paredes, lambe os quadros e lava as frutas das suas naturezas mortas, cresce dentro do relógio da sala, as badaladas das horas cada vez mais líquidas, cada vez mais lentas até se suspenderem por completo, e com isso se suspende o tempo, e sem tempo deixou a hidra de se contorcer, os espaços vazios foram todos ocupados, não há mais o que encher, até o tempo foi todo ocupado, e do casulo da hidra, agora vazio, sai o íncubo, lento, imenso, tranquilo quando se deita sobre todas as coisas para as cobrir e fica o mundo um lago quieto, pejado


de coisas dispersas e de cadรกveres.


142 Afogado o tempo, é natural que o que está consumado continue ainda a acontecer. Rosna a hidra em volta desta montanha que ousa desafiar o destino, atrás de si é só o seu corpo imenso desde o vale até ao horizonte, terra e céu é tudo a mesma coisa, o mesmo sinistro e quieto lago, até o céu de chumbo custa a separar-se, acabaram-se os caminhos, desde logo a estrada infinita que por aqui passava, interminável nos dois sentidos como uma dor solitária e sem esperança, também os nossos caminhos e carreiros mais modestos, aqueles que fomos nós que abrimos, cada um deles portador de mais do que uma história, um que levou Praado e os outros pastores ao rio para se apoderarem de um certo telefone celular, outro por onde gostavam de passar os velhos nas suas deambulações, dois paralelos e tão diferentes por onde saltitava Gaato, a estrada dos assobios, enfim, tudo se foi, como será agora possível dizer como tudo aconteceu?, não há testemunhas, ódios e amores antigos foram desta maneira lavados, contratos quebrados a meio, injustiças por reparar, boas-vontades por reconhecer como esta de Laago, dispondo-se a levar Heera para onde as mulheres a quiserem levar, e chegarão ao posto de saúde e não haverá enfermeiro à porta para os receber, nem porta por onde entrar, nem macas nem correrias, será tudo feito em silêncio e com todo o vagar, os lençóis voando lentamente pelos corredores, os medicamentos diluindo-se na água sem aproveitar a ninguém, Laago aguardando ligeiramente inclinado pelo peso que transporta, esperando que alguém lhe diga em que cama de água depositá-lo, e Laago afinal não fez qualquer mal a Heera, nem sequer bem, Heera não sofreu nem teve esperança nem se desencatou, nada acontece se não puder ser relatado, só em outros que não os protagonistas ganham os factos realidade, e aqui neste lago quieto nada aconteceu, os objectos que flutuam não testemunham nada, não trazem agarrado um enredo, são inocente fruto do acaso e o lago é um espelho tranquilo que não faz mais que devolver a quem o olha a sua imagem, um espelho que não esconde nada, nada.


143 Pela janela, Ervio olha o mar quieto lá em baixo. O minúsculo reflexo do par de helicópteros avança velozmente à superfície da água zumbindo sobre as pequenas ondas. Procura uma ponta por onde puxar, um vestígio a partir do qual possa entender como tudo aconteceu. A antena dos telefones não está onde ele imaginava que estivesse, os tectos de palha desapareceram ou então foram levados, de qualquer maneira sempre que surgem fragmentos de um deles flutuando é impossível dizer-se de onde se desprenderam. Não há postes nem caminhos, as árvores são como náufragos agitando os braços magros ao sabor da corrente. O lago tem um ar cândido, como se o movesse o único intuito de cobrir pudicamente as plantas aquáticas, pequenos peixes, quanto muito o casco de uma velha canoa afundada. Deixa que as minúsculas sombras dos helicópteros que passam no alto se passeiem impunes pela sua pele. É como se estivesse ali desde sempre, como se não tivesse feito o que fez, o maldito! ‘Ali!’, grita Ervio, lobrigando a montanha ao longe, hoje mais baixa, com metade da imponência que teve, ainda assim a única saliência no infinito espaço em volta. Os helicópteros descrevem uma curva larga e aproximam-se da encosta, na esperança de encontrar sobreviventes.


144 Vistos daqui de baixo (por mais alta que seja, o que é a montanha senão um baixo face à altura a que podem voar aves e helicópteros?), parecem um par de libélulas de metal zumbindo e crescendo até quase tomarem conta do céu: ‘Flaw! Flaw! Flaw! Flaw!’, fazem eles. Mais abaixo, eriça-se a pele do lago com a sua presença, uma espécie de arrepio leve, um resmungo abafado pelo som das hélices e dos motores mas nada de mais, o lago continua quieto como se não tivesse sido ele que nos empurrou até aqui, como se não tivesse sido ele que apagou as nossas obras, as nossas inimizades e alianças, as nossas traições, os nossos caminhos, os nossos carinhos, aqui nada aconteceu, parece dizer ele com as pálpebras baixas sem ousar olhar para cima, que posso eu face a estas máquinas, parece dizer, mas as libélulas são desconfiadas, tocam e afastam-se, não chegam a pousar com todo o peso que têm, tocam as superfícies estáveis sem deixar contudo de voar, estão no chão e estão no ar, temem que do lago se solte uma língua para os tragar: ‘Glurp!’ E que depois se diga que não passaram aqui quaisquer helicópteros, nenhum arrepio, nenhum ruído, só a placidez do lago mais um cacho de sobreviventes pousado na encosta e olhando para cima, e lá de cima Ervio espreitando e acenando: ‘Não me reconhecem? Não me reconhecem?’ E ninguém lhe responde, é difícil entender o que diz o homem pendurado lá em cima, com todo o ruído que há. ‘Ninguém me reconhece?’ Mas as pessoas estão com a atenção noutro lugar, estendem os braços para os sacos de comida que tombam das janelas e chegam à encosta e resvalam em direcção à água: é peciso agarrá-los antes que tal aconteça. ‘Não me reconhecem?’, vai insistindo Ervio. Mas como podem reconhecê-lo se se perderam os espaços onde todos se conheceram?, como podem saber que ele é daqui se não há carteira que


comprove onde deixou o nome gravado a canivete?, se não há sequer a escola que ele diz ter frequentado, se ninguém sabe onde pára Gaato que ele alega ser seu irmão, a última vez que foi visto desistia de impedir que a hidra invadisse o estaleiro do patrão, acalentava a miragem de que encontrando outros, dividindo com eles a sua preocupação, mais seguro ficaria, ou então fugia para se esconder num sítio qualquer, e bem escondido deve ter ficado pois mais ninguém o viu, e não estando aqui não poderá estar noutro lugar, é só olhar em volta e ver que é tudo mar, não existe Gaato, e Ervio não tem como saber, não tem como provar, e subitamente lembra-se do que verdadeiramente o trouxe aqui. ‘Onde está Maara?’, grita. Mas ninguém se lembra desse nome. ‘Aquela rapariga que lavava no rio!’ E viram-lhe todos as costas, só têm olhos para os sacos que tombam lá de cima. A uns prendem-nos as ávidas mãos, outros resvalam até à água. ‘Quem viu a rapariga que não passava pela rua sem um assobio?’ Mas, quem pode lembrar-se de assobios se ninguém sabe sequer de que rua ele fala? E de repente vê a velha Caana olhando também os sacos, a pequena Floor às costas só olhos e silêncio, vê-a e pergunta por Maara. ‘Maara?’ Mas a velha Caana só tem olhos para os sacos, Floor só tem olhos para a avó e Ervio por fim vê Waasser, desgrenhado, olhando os sacos como toda a gente. ‘Engenheiro!’, grita. Está ali a sua última esperança. ‘Engenheiro, viu Maara?’ E Waasser olha-o e não lhe responde, a bem dizer nem sequer chega a olhá-lo, quer é deitar a mão a um saco, ou então a uma corda que penda para subir por ela e se pôr longe dali, não sei o que faço aqui, não sei o que faço aqui, vai repetindo em voz baixa, esperando que este helicóptero o socorra como esperam todos os outros, este helicóptero porque o outro partiu entretanto em busca de mais sobreviventes, parece que passou uma cobertura de palha ao sabor da corrente, parece que levava gente e lá foi ele ver o que descobria, e Ervio perdeu a esperança de dialogar com a gente que aqui está, ainda vê Praado, imóvel como um rochedo, sem sequer olhar os sacos, apenas os olhos em brasa, tão diferentes dos olhos brancos do gado que teve, em que será que está pensando?, mas desiste antes de lho perguntar, não há aqui ninguém que lhe possa dizer alguma coisa, falar-lhe de Maara, assegurar-lhe que sim, que ele é daqui, o


tempo já não corre e portanto as suas esperanças estão no outro helicóptero, naquilo que ele puder encontrar, verá Maara flutuando em cima de um tronco, abraçada a Gaato, eram muito amigos, sem dúvida que um procurou o outro quando tudo isto aconteceu, deitaram a mão a um tronco que passava, seguiram por cima da hidra na altura em que esta se espraiava. ‘Viram Maara? Viram Maara?’, repete para o rádio. E os outros já não se surpreendem: é Ervio criando histórias onde as histórias terminaram.


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