Fragmentos da Paisagem
Carlos Fernando Castro
Fragmentos da Paisagem Texto e Fotografias: Carlos Fernando Castro Orientação: Michele Petruccelli Pucarelli
Agradecimentos Este trabalho surgiu como proposta de conclusão do curso de pós-graduação ‘Fotografia e Imagem’ ministrado na Universidade Candido Mendes (RJ) entre os anos de 2013-14. Portanto, gostaria de aproveitar a chance de agradecer o coordenador Dr. Andreas Valentin e a todos os professores do curso pela dedicação aos alunos. Agradeço ao professor e orientador Dr. Michele Petruccelli Pucarelli, por trazer novas questões e desafios essenciais para o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço aos colegas de classe com quem tiver o prazer de seguir nessa enriquecedora jornada. Por fim, agradeço aos amigos e familiares por estarem sempre comigo.
As imagens apresentadas neste livro foram realizadas entre os anos 2012 e 2013 ao longo do processo de demolição do Elevado da Perimetral, no Rio de Janeiro. Trata-se investigação de uma paisagem e o esforço em buscar novas visualidades e possibilidades para a sua representação. É a tentativa de compreender o espaço além da sua aparência e ao mesmo tempo explorar o meio fotográfico. Um jogo desafiador onde pude experimentar diferentes formas de fotografar e, a partir daí, questionar a forma como enxergo o mundo.
Fragmentos da Paisagem
Em movimento constante, que parece cada vez mais acelerar, o mundo se transforma. Subtraímos e adicionamos elementos à paisagem que se sobrepõe a uma outra. A cidade vai se tornando cada vez mais espessa, confusa e massacrante. O artista se joga no meio dessa complexidade e tenta acompanhar essas mudanças. Mas cada paisagem traz dificuldades que afetam a maneira como a fotografamos, representamos e, claro, como a compreendemos. A minha paisagem é o Elevado da Perimetral. A enorme avenida construída na região portuária do Rio de Janeiro, entre anos 50 e 70, com o objetivo de servir de alternativa às vias congestionadas, ligando o Caju ao Aeroporto Santos Dumont e também as zonas Sul e Norte. O que parecia uma boa estratégia à época acabou contribuindo para a degradação da área e seu consequente abandono. Recentemente impulsionada por dois grandes eventos - Copa do Mundo de Futebol em 2014 e Olimpíadas em 2016 -, a cidade do Rio de Janeiro começou a apresentar uma nova dinâmica econômica e uma enorme transformação urbana ao longo dos últimos anos, e a região portuária também passou a integrar esse processo de reurbanização e reestruturação. Uma das maiores modificações anunciadas foi justamente a substituição do Elevado da Perimetral. Dada a ‘sentença de morte’, tornava-se urgente visitar e investigar aquele espaço, explorar as suas possibilidades de representação, participar e interferir naquele meio na forma que me competia, ou seja, produzindo imagens. Naquele cenário degradado e trágico, apontei a câmera e arrisquei diferentes ângulos e enquadramentos. Fotografei suas manchas, riscos e texturas, cicatrizes da sua história. E quando a gigante avenida não cabia na imagem, quebrei-a em pedaços e brinquei com seus fragmentos em novas composições. Parecia antecipar sua morte para construir uma outra paisagem. Para essa tentativa de descontrução e reconstrução do mundo a ferramenta escolhida foi uma câmera de médio formato e de baixo custo feita inteiramente de plástico, inclusive sua objetiva. Ela praticamente não nos permite corrigir a exposição e seu sistema de focagem por zonas também está longe da precisão. Nada funciona de forma automática. E por conta
dessa simplicidade a câmera é categorizada como “toy camera”, ou seja, uma “câmera de brinquedo”. Este instrumento lúdico me colocava dentro de um jogo, mas não apenas um jogo visual de formas e linhas entrelaçadas. Era também um jogo contra o próprio aparelho fotográfico e as limitações técnicas e construtivas que ele impõe. Um jogo com as possibilidades que a câmera me permitia, às vezes brincando e agindo de acordo com suas próprias regras. *** Sabemos que ao apontar a câmera para um motivo e acionar o disparador o resultado será uma imagem interpretada como uma cópia bidimensional daquilo que está diante de nós. A câmera foi construída para produzir determinadas imagens e para produzí-las de determinada maneira. Isso quer dizer que a câmera condensa um certo número de possibilidades ou potencialidades de realização de imagens através de um conjunto de procedimentos que chamamos de programa. Trabalhamos sistematicamente em função deste programa, verdadeiros funcionários, operando de modo repetitivo e produzindo resultados previsíveis. Sabemos com o quê alimentar a câmera e como fazer para que ela cuspa fotografias. Mas a câmera é uma caixa preta, tanto em sua construção como em seu significado. Dominamos o aparelho, mas não sabemos o quê se passa dentro dele, e assim, por ele somos dominados. A escuridão da caixa torna-se o nosso desafio. O fotógrafo-funcionário escolhe as categorias disponíveis no sistema e com elas constrói sua cena. Uma vez que tem esse poder de escolha ele acredita estar exercendo sua liberdade de criação, mas sua escolha está sempre programada, limitada pelo número de categorias inscritas na sua máquina. Assim, torna-se necessário penetrar no interior dessa caixa preta, subverter suas regras e inserir nas imagens informações não previstas pelo aparelho. Cabe ao
artista inventar o seu processo e não cumprir um programa, buscar o “branqueamento” da caixa preta. Para isso, devemos considerar todos os tipos de intervenções feitas na imagem, em todos os seus estágios de produção - antes, durante ou após a sua realização - e que buscam ampliar os limites da linguagem fotográfica. Aqui, o aparelho escolhido é bem simples. Seu programa é muito pobre e limitado, portanto, bastante desafiador. Mas fotografar em filme permite que eu possa interferir em todas as etapas de produção: a operação da câmera, a revelação do filme e finalmente a manipulação e edição das imagens. Uma ferramenta tão rudimentar acaba impondo maiores desafios e, além disso, há um suspense e expectativa em relação ao resultado das imagens. Não havia a certeza imediata se elas foram capturadas corretamente e assim não era possível fazer as correções necessárias. E mesmo se quisesse as limitações da câmera provavelmente não permitiriam. Depositava a confiança na máquina e aceitava os resultados que ela oferecia. Ao jogar com o aparelho eu acabava assumindo um risco: permitir a inevitável participação do acaso. *** É comum o artista rejeitar o acaso, não querer a interferência da fortuidade e a perda do controle de sua obra. O acaso vai contra o conceito clássico de arte relacionado a um fazer corretamente e carregado de intenções. É claro que esses valores acadêmicos já foram confrontados muitas vezes, mas a idéia de que o controle define a concepção de arte ainda sobrevive, de alguma maneira, em nosso senso comum. Assumir a participação de eventos imprevistos pode colocar em dúvida as habilidades do artista e consequentemente o valor de sua obra. Definir o acaso é tarefa árdua. É um conceito bastante ardiloso e tem muitos nomes: sorte, azar, casualidade, contingência, acidente, entre outros. Nomes que cumprem papel de
sinônimos de acaso, mas muitas vezes são contraditórios entre si (sorte e azar, por exemplo). Nomes que se relacionam com a probabilidade, mas também significam o improvável. É resultado de um jogo (novamente um jogo!) de forças da natureza. Aqui, podemos entender o acaso como um acidente, um acontecimento fortuito, ou até mesmo um erro. Um erro que pode ser provocado, criando assim o paradoxo da intenção do acidente, ou seja, “(...) por mais que o processo seja desencadeado com consciência, seu resultado não se reduzirá a intenção do artista.”1 Aceitamos um acidente na obra porque ele pode apontar para novas direções, e assim, somos constantemente estimulados a reformular o nosso projeto segundo as novas necessidades que surgem. É um processo de criação mais flexível, livre dos rígidos paradigmas que orientam o sistema de construção das imagens. Uma vez que aceitamos essa liberdade formal, “o acaso se torna, ele mesmo, uma fonte renovadora das possibilidades de articulação de um repertório ou de uma matéria.”2 Ao fazer múltiplas exposições do negativo, por exemplo, eu jogava com o acaso, pois não sabia como os elementos se alinhariam dentro do quadro. Mas isso era feito de forma sistemática avançando o filme em intervalos iguais e tentando sobrepor as imagens ordenadamente. Desta tentativa de controlar o acaso, formas e linhas tomam o espaço em uma organização ritmada de elementos que se repetem. Mas incorporar o acaso no trabalho não significa abrir mão completamente do controle do resultado final. “O acaso não é uma ferramenta absoluta e não isenta o artista da necessidade de um juízo operativo sobre a obra”.3 Além disso, o artista sempre poderá confrontar os
ENTLER, Ronaldo. Poéticas do Acaso. São Paulo, 2000. Tese de Doutorado - Escola de Comunicações e Arte, Universidade de São Paulo. 2 ENTLER, Ronaldo. Op. Cit. 3 Entler, Ronaldo. Op. cit., pg 51 1
resultados obtidos com suas necessidades e decidir aceitá-los ou não. *** Explorar e experimentar as possibilidades do meio técnico, aceitando erros e imprevistos, acaba resultando em imagens que podem nos causar um estranhamento. Se jogo com o aparelho fotográfico, ou contra ele, não esbarro apenas nas suas limitações, mas entro em choque com velhos paradigmas que há muito guiam os processos de construção das imagens. Desde o Renascimento introduziu-se nos sistemas pictóricos ocidentais um código de representação do “real visível” que produzia um efeito de realidade. Um modelo de construção do espaço conhecido como perspectiva, que deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da realidade visível. Ou seja, deveria corresponder à visão da natureza mais próxima do olho humano. Utilizando linhas retas que convergem para um único ponto fixo – o ponto de fuga - cria-se uma pirâmide visual que serve como sistema geométrico para projetar o espaço tridimensional em uma superfície bidimensional. Através desse sistema obtemos uma imagem que mostra uma hierarquia de proporções representando a distância relativa entre os objetos do espaço tridimensional. A câmera fotográfica incorpora esse código de construção de imagem através do sistema de refração da objetiva, fazendo os raios luminosos convergirem para um único ponto, e assim projetando uma imagem perspéctica. Ao escolher a câmera como ferramenta confirmo a aceitação desse código e a sua impressão da realidade. Mas é preciso ir além da impressão. “A dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que chega aos nossos sentidos. A percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é apenas uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa
forma, a visão pelo homem das coisas materiais é sempre deformada. Nossa tarefa é ultrapassar a paisagem como aspecto, para chegar ao seu significado. A percepção não é ainda o conhecimento, que depende da sua interpretação e esta será tanto mais válida quanto mais limitarmos o risco de tomar por verdadeiro o que é só aparência.” 4 Aprendemos a conhecer o mundo a partir de seus fragmentos. Pequenos pedaços sobrepostos e reorganizados em um jogo da percepção. De forma parecida, a câmera fotográfica recorta a paisagem nos permitindo reconstruí-la a nossa própria maneira. Embaralhando as formas, a perspectiva é desfeita e linhas dão contorno a um novo mundo. No entanto, ainda que a imagem nos cause um estranhamento, ela e o referente continuam intrinsecamente ligados e somos capazes de perceber vestígios da paisagem real. Isso nos permite refazer o percurso de realização da foto, passando por suas intervenções, e chegando ao resultado final. Na tentativa de recompor os fragmentos o observador se vê forçado a alargar sua percepção e seu imaginário é estimulado transformando o seu conhecimento. Mesmo quando a integridade da paisagem é quebrada ainda somos capazes de reconstruí-la. *** Para realmente compreender o mundo é preciso mergulhar nele. Vivenciá-lo e ir além de suas aparências. Mas se minha relação com ele é mediada por um aparelho fotográfico, interferir neste mundo implica em subverter o processo de realização das imagens desarticulando a paisagem referente e podendo até mesmo atribuir-lhe novos significados. A Perimetral era um lugar estranho, caótico, até mesmo hostil. Parecia não me querer ali:
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado, fundamentos teórico e metodológico da geografia. Hucitec. São Paulo, 1988.
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poeira, poluição, sujeira, tumulto, barulho. Ruídos que arranhavam a paisagem. Lá, nenhuma cor, tudo cinza, tudo concreto. Uma paisagem carregada de desafios que deveriam ser traduzidos em imagens. Nessa busca por novas possibilidades de representação eu experimentava com o aparelho fotográfico, e dessa forma, todos os problemas intrínsecos à paisagem acabavam incidindo sobre o meio técnico. A câmera é um objeto lúdico que me envolve em um jogo onde tento impor minha vontade, mas esbarro nas suas limitações. Ela impõe seu próprio desafio: quanto mais eu tento explorar e expandir suas potencialidades mais eu pareço perder o controle e sou obrigado a abraçar os resultados imprevistos que ela me oferece. A câmera aponta para outras direções e sigo adiante até encontrar um novo mundo, com elementos embaralhados em uma nova composição. São imagens que desafiam a nossa percepção, como se enxergássemos o mundo através de um caleidoscópio. E mais uma vez, me vejo num outro jogo, onde tento reconhecer e compreender o mundo a partir de seus pequenos fragmentos.
Nota: hoje, o Elevado da Perimetral não existe mais. Foi demolido e apagado da paisagem. Vive na nossa memória. Vive nas imagens.
Bibliografia COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. Fotografia Moderna no Brasil. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2004 ENTLER, Ronaldo. Poéticas do Acaso. São Paulo, 2000. Tese de Doutorado - Escola de Comunicações e Arte, Universidade de São Paulo. FERNANDES JUNIOR, Rubens. Processos de Criação na Fotografia in Revista FACOM FAAP, ed. 16. São Paulo, 2006 FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011 MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular: introdção à fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado, fundamentos teórico e metodológico da geografia. Hucitec. São Paulo, 1988. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004
Fragmentos da Paisagem
Universidade Candido Mendes Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Pós-Graduação Lato Sensu | Fotografia e Imagem 2013/14 Coordenador: Dr. Andreas Valentin Orientador: Dr. Michele Petruccelli Pucarelli Texto e Fotografias: Carlos Fernando Castro
© Carlos Fernando Castro. O autor detém os direitos autorais exclusivos sobre as imagens e o conteúdo apresentados neste livro. www.cfcastro.com
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