COMO ATRAVESSAR UM CAMPO DEVASTADO
Carmela Rocha
Ação-reflexão desenvolvida durante workshop “Poéticas da destruição: como atravessar um campo devastado ministrado por Renato Bolelli Rebouças em São Paulo. Participantes do workshop: Ana Luísa Secco, Anita Lisboa, Carmela Rocha, Carolina Yangın Çingene, Gabriela Jovine, Mariana Godone, Marine Sigaut, Naíza Vieira, Olívia Lagua, Stella Ar.
1
Inicia-se por caminhar pela rua buscando olhar para onde não se olhava e pisar onde não se pisava. Um saco voando, um pneu solto, um vão em um muro. Nesse percurso, por entre as frestas não antes visitadas, detalhes escondidos estão carregados de vida. De uma outra vida que antes não conhecias. Ao espiares por esses vãos, o colorido da vitrine torna-se composição, rima, ritmo e alegria; a cadeira velha, encostada na parede suja da borracharia, começa a te contar histórias. Nessa transformação, abrem-se brechas para pessoas com quem cruzas e diálogos, nunca antes tidos, tornam-se pos-
síveis. A brechas inspiram e te imbuem de vontade e de coragem. O não antes imaginável toma forma. Entre a brincadeira, o choque e o riso, uma pilha de pneus torna-se teu invólucro, uma linha de contato com quem antes não conhecias e, de objeto a rodar pelo asfalto, torna-se roupa, brinquedo, performance.
2
Nessa travessia, o ato de destruir ou descobrir o destruído ganha um novo significado. Por entre as ruínas de um passado recente, imaginar a cidade que foi ou poderia ter sido e a cidade que será ou poderá vir a ser, torna-se potência para o agora: os vazios urgem por intervenção ao mesmo tempo que nos acalmam por representar esse parênteses no tempo da história; a calmaria do instante presente. E sob as ruínas urbanas de São Paulo, reinventar o corpo torna-se uma obrigação. Se a escada não é mais escada e tampouco será, o que ela é agora? Para que serve?
Foto Naíza Vieira
Se já não leva a lugar algum onde a pressa exige a eficiência do movimento e a medida ideal para chegar daqui ali rapidamente, como nosso corpo deve responder a essa forma que se dobra? Sentir cada degrau com a mão, com o rosto, com o corpo inteiro apresenta-se a ti, então, como a única saída. Sentir o pó da história, a pedra caída, o caco que corta e ali deixar teu rastro. Levar contigo a história, deixar um pouco de ti em cada degrau que passas. Eis que aquela escada onde deitaste não mais é uma escada, mas lembrança de um corpo que sente. É potência de reinventar o movimento, de reinventar a arquitetura, de reinventar a cidade.
3
Reorganizar o descartado e ressiginificá-lo. Sob o manto bordado entre conversas, olhares e sorrisos, os restos da produção cotidiana transformam-se em ferramenta de resistência. Resistir ao tempo que passa, resistir ao corpo treinado. Repetindo o movimento, com novos padrões em uma sequência e forma não antes pensada, recriar o sentido: reinventaste um corpo que canta.
Foto superior Naíza Vieira
Reinventar a cidade. Mas como reinventá-la se não reinventar-te a ti mesma? Nos vícios do corpo que anda em linha reta estão os vícios do mundo. Demonstram os limites que tanto nos impõem e nos impomos. Os medos, as vergonhas, as impossibilidades. Na linha reta, mais curta, urge a curva que transgride. No movimento mais longo, sem objetivo claro e que não visa ir a lugar algum, mas a qualquer lugar, pode brotar o levante. A potência do deslize. A potência do estranhamento. A potência do movimento.
4
Enquanto canta, ele convida, festeja e compartilha. O corpo que canta-danรงa, transforma-se e aglomera. O corpo em movimento, em conjunto, cresce. O manto tornase coletivo e nessa coletividade se apresenta o amor, o respeito, a cumplicidade. E nessa delicadeza do movimento conjunto, os corpos se reinventam e se redescobrem. Pouco a pouco tomam forma e, desformes, contam histรณrias. Histรณrias que sozinhos jamais imaginariam, mas que, no movimento do corpo coletivo, brotam com naturalidade, simplicidade e forรงa.
Foto Renato Bolelli
Foto Renato Bolelli
Pela alegria de vibrar percorrendo e convidando outros corpos, passa a serenidade do estar. Sentir o outro e deixar-se levar: deitar, mergulhar, olhar, esperar. Esperar o trem que passa, o sol que brilha, a raiva que chega. E em um rompante de amor e Ăłdio, retornar o manto ao papel, e ao chĂŁo.
Foto NaĂza Vieira
Foto Renato Bolelli
5
E no chão, achas os vestígios. Nesse chão que não existia para muitos, até que passou a existir. Vestígios de um lugar que nada era, mas tudo era. Vestígios de um lar, de um encontro, de um jogo, de uma dança. Vestígios de uma construção que virá a ser outra, não mais para as mesmas pessoas que ali deixaram seu rastro, seu lastro.
E no movimento de retornar o que se demoliu ao seu lugar, de dar luz ao que tentam apagar, as lรกgrimas que escorrem nos rostos em movimento coletivo, misturam-se com a chuva que incessantemente tenta apagar o que ali estava. Ou seria ao contrรกrio? Tenta ela fazer brilhar, cada objeto com suas gotas cheias de vida? A chuva que tanto nos assusta, naquele lugar torna-se amiga. A chuva que afasta, ali, com seu brilho prateado, unifica.
E em grupo, com as mãos, trazem à tona, um a um, os escombros que derrubaram uma vez, e duas e três. Peça a peça, como em um quebra cabeça onde todas a partes se completam de forma lógica e explícita. Recolocar o que deveria estar lá. No olhar coletivo, vê-se a ânsia de que tenham mãos para continuar reerguendo os escombros. Atravessando os campos devastados, até que não existam mais.
Por onde andamos, 1. Pelas ruas da bela Bela Vista, São Paulo. 2. Em algum lugar no meio da Vila Romana, São Paulo. 3. Em meio aos tecidos do Bom Retiro, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, São Paulo. 4. Descobrindo o museu do Imigrante, na Mooca em São Paulo. 5. Na antiga (?) cracolândia, em um dos terrenos que virão a se tornar “cafés parisienses” ou “novaiorquinos”.
Carmela Rocha SĂŁo Paulo, maio e junho de 2017.