Do lado de fora: A vida de ex-detentas em Taubaté-SP

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Este livro-reportagem faz parte do projeto acadêmico — Trabalho de conclusão de curso — produzido na UNG Universidade Guarulhos, para obtenção do título de Jornalista. Sob a supervisão da Coordenação de Comunicação Social Prof. Ms. Flávia Delgado e orientação da Prof. Rachel Silva.


Edição: Verônica Monteiro Diagramação: Caroline Marcondes Ilustrações das perfiladas: Giovana Macedo Demais ilustrações: Pixabay (pixabay.com) Fotografias: Pixabay (pixabay.com)

MONTEIRO, Verônica. Do lado de fora: A vida de ex-detentas em Taubaté-SP / Verônica Monteiro – Guarulhos, 2017 109 p. Livro reportagem de perfis (Bacharel em Jornalismo) – Universidade Guarulhos (UNG), 2017 Orientadora: Profa. Rachel Ferreira e Silva

1. Cárcere feminino 2. Ex-detentas 3. História de mulheres 4. Jornalismo Literário 1. Monteiro, Verônica 2. Título


AUTORA: Verônica Monteiro

ILUSTRAÇÃO: Giovana Macedo

CAPA E DIAGRAMAÇÃO: Caroline Marcondes


DEDICATÓRIA Aos meus pais, que dedicam suas vidas a mim e meu irmão e tanto se esforçaram para que tivéssemos uma boa qualidade de vida e bons estudos. Dedico também às pessoas que passaram pela minha vida durante minha fase de estudante do ensino médio e universitária e que, de uma forma direta ou indireta, influenciaram para que eu conseguisse redigir esta obra. A Krishna, que esteve a todo o momento caminhando comigo e realizando seus arranjos para que eu concluísse o meu trabalho.


Eu não sou melhor do que ninguém, não Eu não mereço mais do que ninguém, não Só tô mantendo os meus passos no chão Tudo o que eu peço nessa noite é perdão Porque mil cairão, mil cairão, mil Mas eu não serei atingido Porque mil cairão, mil cairão, mil Mas eu não serei atingido

Mil Cairão - Rashid


INTRODUÇÃO Há alguns meses, quando eu precisava entregar uma proposta de tema para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), sofri ao ter que escolher entre as diversas ideias que passavam pela minha mente. Quando finalmente optei por escrever sobre a vida de ex-detendas e relatar de quais maneiras o fato de cumprir pena no regime fechado muda a vida das mulheres no posterior, fui conversar com Karolyne, uma das perfiladas neste livro, minha ex-colega de trabalho e uma grande amiga. Perguntei a ela se aceitaria ajudar-me nessa empreitada e a resposta não foi diferente do que imaginei. Ela aceitou. Entreguei meu pré-projeto, passei pela pré-banca e coloquei as mãos na massa. Fui para minha terra natal começar as entrevistas, algumas delas bem sucedidas e outras não tanto. Durante o planejamento, questionaram-me o motivo pelo qual eu falaria exclusivamente sobre mulheres. Para quem quiser saber, a simples resposta poderá ser encontrada nas páginas deste trabalho, onde se depararão com mulheres altas, baixas, negras, brancas, faxineiras, desempregadas, traficantes, usuárias de drogas e até mesmo uma que estava sob o efeito de substâncias tóxicas durante a entrevista. Todas as pessoas ouvidas e relatadas neste livro são do sexo feminino por um único motivo: elas existem e resistem. *Os nomes das perfiladas foram alterados para preservar suas identidades.



SUMÁRIO

CARLA 10 JULIANA 26

PISANDO EM OVOS 12 E AGORA? 16 EXEMPLO 22

O INFERNO SOU TERRÍVEL SURPRESA

28 32 34

ISABEL 40

UMA MINA MUITO LOUCA DIFICULDADES

BRUNA 48

A VIDA NA BIQUEIRA CONVERSA PARALELA FAMÍLIA ESCOLHAS, NECESSIDADE E O FUTURO INCERTO

42 44

50 52 54 56


KAROLYNE 60 TÁSSIA 82 ROSELI 96

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PRIMEIRO BASEADO ILUSÃO SURPRESA EM DOSE DUPLA O PÓS FÉ NO PAI

62 66 69 74 77

SERÁ UM SONHO 84 EU NÃO GOSTO DE TRABALHAR 88 TENSÃO 90

98 101

COSTUME VOLTA PRA CASA

AS PROFISSIONAIS Angela Soares da Cruz e Irmã Petra Pfaller

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CARLA


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CARLA


CARLA

– Senta aí, a gente é boazinha! – e caiu na gargalhada.

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01.1

PISANDO EM OVOS

Aos 33 anos e mãe de quatro filhos, Carla mantém uma boa forma física. Encontrei com ela na porta da casa de uma amiga, na mesma rua da casa onde vive em Taubaté. A rua é um dos principais pontos de tráfico do bairro. – Se você precisasse de homens que já foram presos, podia pegar qualquer um aí, difícil algum que more aqui ainda não ter sido pego – afirmou acenando para as amigas que também estavam sentadas com a gente na calçada. Todas concordaram. Olhava a rua e as pessoas com desconfiança, podia falar alguma coisa ruim de cada uma delas.

CARLA

– Tá sabendo que ela tá fazendo ponto lá no centro? – comentou novamente com as amigas que não se pouparam em responder com comentários sobre como a roupa da moça era curta.

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Dona de longos cabelos pretos e um semblante sério, Carla se manteve quieta por um tempo apenas observando a rua e provavelmente a mim também, como quem estivesse pisando em ovos. Os papéis se inverteram, no início ela foi a jornalista e fez algumas perguntas, como por exemplo, qual era a finalidade da entrevista, há quanto tempo eu conhecia Karolyne [nossa amiga em comum que nos apresentou uma a outra] e depois, já brincando, perguntou se eu queria trabalhar na Rede Globo. Sua expressão mudou depois que respondi às perguntas, ela estava mais leve e me disse:

CARLA

– O que tanto você quer saber? Não tenho uma história interessante para te contar...

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Estava em casa quando tudo aconteceu, era um dia como qualquer outro. Os quatro filhos estavam com ela e a polícia chegou fazendo a abordagem, revistaram a casa inteira e não encontraram nenhum sinal de drogas. Carla foi forjada. – Me forjaram crack, eu vendia mesmo, traficava, mas como meus filhos eram pequenos, eu não deixava nada dentro de casa. Entocava tudo na rua.

CARLA

Na época ela tinha 27 anos, um ex-marido traficante que não pagava pensão e crianças pra cuidar. – Ele era dessa vida louca e eu tinha medo de colocar ele na justiça, então fui fazer meus corres para sustentar meus filhos. A ficha da situação em que havia se metido só foi cair quando se viu na delegacia com sua filha mais nova. – Ela era muito pequena na época e começou a chorar muito, ficou grudada comigo e então eles a levaram também – conta ao lembrar que os policiais fizeram perguntas para a criança na intenção de obter alguma informação – Eles fazem muita coisa errada.

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01.2

E AGORA?

Essa foi a segunda vez em que Carla foi pega. Na primeira, ela e o primo foram abordados e os investigadores encontraram com 1 kg de maconha, 25 kg de crack, ½ kg de cocaína e dois mil reais em espécie. Como se livraram disso? Fazendo acordo com policiais.

CARLA

– Eles não apresentaram porque havia droga e dinheiro. Pegaram pra eles e fiquei de pagar mais um certo valor. Mas como eu ia arrumar esse dinheiro? Eu fiz esse acordo porque meus filhos estavam ali e eu não podia deixar eles sozinhos.

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Então ela fugiu. Arrumou as malas, pegou os filhos e foram juntos embora para Minas Gerais. Viveu em outro Estado longe da família por cerca de um ano e meio e quando voltou a Taubaté, achou que estava tudo bem e resolveu voltar para o tráfico. – Comecei a pegar em quantidades menores para não deixar dentro de casa por causa das crianças. Eu pegava uma cota mínima com o traficante e revendia, mas os policiais descobriram que eu voltei e aí você já sabe né? – E essa foi a segunda. Quando ela se viu na delegacia com a filha, entrou em desespero. – Eu me perguntei “E agora?”, porque eu fiz tudo isso pra cuidar deles e acabei sendo presa, quem iria fazer isso agora?

CARLA

Levada para a Comarca de Pindamonhangaba onde ficou presa por cinco dias, Carla foi solta porque os investigadores estavam forjando muitas pessoas e isso estava criando suspeitas. Atualmente os investigadores estão presos, as presas são ficam mais na Comarca e sim diretamente para a penitenciária, mas ela jura de pés juntos até hoje que não precisou de mais do que esses dias para não querer nunca mais voltar para lá. – Doía demais ficar longe dos meus filhos, eu sabia que tava errada, mas é só quando você tá lá dentro que percebe a fria em que se meteu.

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A experiência de ficar atrás das grades Carla não deseja para ninguém. – É uma sensação muito ruim, uma humilhação muito grande. Comer comida gelada, dormir em um lugar sujo, ficar longe das crianças, não saber o que está acontecendo, é horrível. Quando eu sai de lá, eu disse para mim mesmo “Não quero mais”. Seis anos depois de tudo o que aconteceu, ela nunca mais voltou a traficar. Quando chegou em casa e encontrou seus filhos chorando compulsivamente, reforçou a certeza de que aquela vida não servia mais para ela. – Mãe, a gente pode passar a dificuldade que for, mas, não faz mais isso, a gente não vai cobrar nada mais da senhora – ela relembrou a frase com os olhos cheios de lágrima. – Eles disseram isso querendo dizer que se sentissem vontade de comer alguma coisa e não tivessem, eles preferiam deixar de me pedir porque assim eu não traficaria mais e ficaria com eles em casa. Hoje as crianças de Carla estão grandes e ela é até avó. Durante nossa conversa, ela interrompeu o que estava falando e gritou: – Ah, meu gordinho! Segui seu olhar e vi um bebê de menos de um ano com perninhas roliças e a roupa toda babada sendo carregado no colo de uma adolescente. Era David, filho de Lucas, o primogênito dela. Com seu jeito desconfiado, tirou o neto do colo da nora e falou: – Deixa ele comigo, eu tomo conta. Sem pensar duas vezes a nora saiu andando e Carla não levou nem um minuto para começar os comentários:

CARLA

– Aquela vaca, olha como ela deixa a criança. Toda suja! Será que ele comeu? Meu Deus! A fralda tá cheia e ela não deixou nenhuma aqui.

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CARLA


Observei a correria e o cuidado que ela tinha com o bebê, via-a bater na casa da vizinha e pedir por uma fralda, dar banho improvisadamente no banheiro dela e voltar com David já sorridente e brincalhão. Sentou na calçada, colocou-o no colo e entre brincadeiras e cócegas, ela tornou a responder as minhas perguntas e contar sua história.

CARLA

– Moro na mesma casa, continuo cuidando deles sozinha, só que agora cuido com dignidade – Atualmente ela trabalha com limpeza em uma empresa terceirizada. Afirma que para conseguir emprego só foi fácil porque já conhecia uma mulher que trabalhava lá e eles não pediram a Certidão de Antecedentes Criminais – Dei sorte nisso porque quando puxa [a Certidão] é muito difícil né, eles darem um voto de confiança pra gente, não é fácil não.

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CARLA


CARLA

Que exemplo você vai dar pro seu filho? O mesmo que eu dei pra você? Você vai querer ver seu filho passando por isso?"

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01.3

EXEMPLO

Mesmo tendo sido criados pela mãe, os filhos sentem falta do pai, mas Carla afirma que dele não se pode esperar nem carinho – Um tempo atrás o Lucas começou a se envolver com o tráfico. Eu fiquei desesperada. Aí eu fui descobrir que quem deu droga pra ele vender foi o próprio pai. Minha vontade era de dar um tiro na cara dele, mas como eu não quero voltar pra cadeia, não fiz isso.

CARLA

A única coisa a se fazer era sentar com Lucas e conversar – O pai deles sempre foi uma pessoa fria, continua no tráfico até hoje. Chamei o Lucas, ele sentou comigo de mau gosto e eu disse “Que exemplo você vai dar pro seu filho? O mesmo que eu dei pra você? Você vai querer ver seu filho passando por isso?”.

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Quando a polícia invadiu sua casa para revistar, o pai de Carla estava se arrumando para ir trabalhar e viu toda a situação – Meu pai não é muito de falar, mas eu sei que aquilo foi dolorido pra ele. Até hoje ele nunca tocou no assunto, mas eu vi no olhar a decepção, ele não me criou pra me ver sendo algemada. Eu podia ser melhor.

CARLA

Hoje eles continuam dividindo a mesma casa, a diferença é o modo de viver. Ela decidiu mudar, decidiu viver outra vida, se esforçar e seguir outro caminho e continuar a ver seus filhos crescendo de perto – Quero dar um bom exemplo pra eles, minhas filhas estão ficando moças, não quero que cometam a mesma burrada que eu. Quero outro futuro para elas e pra mim também. Caso um dia eu perca meu emprego, prefiro fazer faxina todos os dias, o dia inteiro, mas eu não volto pro tráfico. Posso passar fome, pedir ajuda para os vizinhos, o que seria difícil para mim porque sou orgulhosa, mas em hipótese alguma eu volto a vender droga.

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CARLA


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JULIANA


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JULIANA


JULIANA

– A gente pode sentar pra lá e falar baixinho? É que eu tenho vergonha.

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02.1

O INFERNO

Juliana é aquele tipo de pessoa que você fica com receio de olhar muito e ela achar ruim por acreditar que você está encarando. Eu tive esse receio até ela virar e me falar: – A gente pode sentar pra lá e falar baixinho? É que eu tenho vergonha.

JULIANA

Alta e com uma voz grossa, se fosse um ditado, ela seria “não julgue um livro pela capa”. Aos 31 anos ela conta que entrou para o tráfico antes mesmo de se tornar usuária de alguma droga – Arrumei um emprego no cinema, fiquei duas semanas e comecei a traficar, eu precisava de dinheiro rápido e essa era a saída.

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O motivo pelo qual precisava de dinheiro tão rápido era a sua família. Caçula de três filhos era ela quem ajudava a mãe em casa, uma senhora miúda e simpática que, quando sorria, exibia seus quatro dentes na boca. Os irmãos Carlos e Sabrina estavam presos e ela ajudava a mãe a manter a casa, limpar, cozinhar e cuidar dos dois filhos de sua irmã. – Eu tinha que cuidar deles, mas não tinha nem leite em casa, então eu fui pro corre.

JULIANA

Traficou por um tempo para conseguir ajudar nas despesas de casa e depois parou, não foi presa. Isso aconteceu depois – Me pegaram em 2013 e fiquei até 2015 – e em meio a risadas para descontrair, ela me contou como tudo aconteceu – Uma amiga pediu pra eu pegar uma mochila com droga em Pindamonhangaba e pra ajudar com uma graninha, eu fui. Quando desci na rodoviária de Taubaté a polícia já estava lá e me disseram que eu estava presa, não tinha o que fazer, eu tava com a droga e só disse “Tô mesmo”.

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Juliana ia ganhar cem reais, mas na realidade acabou ganhando quase três anos de prisão – Era só pra ajudar, mole? Vou falar procê, é foda porque não compensa, se você for ver, compensa ganhar pouco e estar na rua porque liberdade não tem preço. Ao ser presa foi levada para o mesmo presídio em que sua irmã estava, mas mesmo perto de alguém da família, ela afirma que as coisas não foram fáceis – A gente nunca se deu bem e até lá dentro saíamos na porrada, mas era por coisa boba, coisa de irmão. As agentes separavam, mas não estávamos nem aí, depois voltávamos a brigar.

JULIANA

Durante o tempo em que ficou encarcerada, Juliana fez cursos e amizades. Formou-se em cabeleireira, logística e artesanato, porém, olhar para o lado, ver muros, grades e não ter para onde ir ou o que fazer deixou-a agoniada Meu maior medo é voltar pra cadeia porque lá é o inferno.

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02.2

SOU TERRÍVEL

Depois de passar pela experiência de ser presa, ela ainda se arriscou mais uma vez a ir buscar droga em troca de dinheiro, mas hoje tem medo – Meus irmãos já voltaram [para a cadeia], agora só falta eu. Porém, manter-se longe do tráfico tem sido difícil levando em consideração a sua situação financeira, a falta de oportunidade de emprego e os convites que recebe para voltar a vender drogas – Eu já trabalhei antes de entrar pra essa vida, mesmo precisando do dinheiro, foi safadeza, eu podia me esforçar mais. Já fui até cuidadora de idoso. Hoje eu desisti de procurar emprego, não adianta entregar currículo. Já arrumei dois empregos e fui demitida quando descobriram que eu sou ex detenda.

JULIANA

Negona, como gosta de ser chamada, conta que é muito conhecida na cidade e talvez seja por isso que todos saibam que ela “tem passagem” – Amigo não confia de levar um currículo onde trabalha porque tem medo da gente dar mancada e em todo lugar que vou fazer entrevista tem alguém que me conhece, acho que eles contam né, que eu já fui pra cadeia e daí ninguém me contrata mesmo.

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A primeira vez em que foi demitida ela trabalhava em uma confeitaria famosa na cidade fazendo bolos, sem saber como aconteceu, a dona descobriu seu passado e a colocou pra rua. Já na segunda vez, ela conseguiu ser admitida como atendente em uma lanchonete na zona rural da cidade, a cerca de 20km da sua casa, lá ela era auxiliar do pizzaiolo, atendia os clientes no balcão, era garçonete e até fazia a faxina do local, porém, mesmo com seu esforço, quando contaram ao seu chefe que havia sido presa, foi dispensada pela segunda vez. – Eu queria mesmo era abrir um salão pra mim, trabalhar pra mim mesmo porque todo serviço que arrumo tem alguém pra tirar a minha paz, mas logo que penso na ideia eu já desanimo – ela desabafou – Às vezes eu preciso ter um pouquinho de vergonha na casa, sabe? Porque eu sou terrível – Fico sem entender e ela logo me explica – As coisas não dão certo, eu fico sem dinheiro e logo vem a vontade de voltar pro corre e querendo ou não, uma hora ou outra eu acabo aprontando, igual foi com a cocaína. O primeiro tiro foi aos 28 anos, no dia do seu aniversário. – Vamos, Ju! – Convidou um amigo mesmo sabendo que ela sempre recusava. Mas dessa vez foi diferente, ela quis experimentar. – Na hora eu pensei “Eu vou, quero saber como é isso”, ai eu fui e gostei, sou louca mesmo, mas não sou viciada não. Não ligo de ficar sem. É de momento. Chega uma hora que perde a graça, você só fica louca e pensa “Nossa, que palhaçada, que bobeira”. Mas é só isso, hoje, mesmo sem dinheiro, eu não voltaria pro corre. Com um olhar cabisbaixo ela conta que tem medo pela mãe – ela tem 51 anos, imagina se eu vou presa de novo, quem vai ajudar ela?

JULIANA

“Você tem que fazer um bico, não pode desistir”, ela repete as palavras da mãe, mas afirma que já desistiu – Eu entrego currículo, mas não dá certo. Deve ser a minha sorte.

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JULIANA

Estou trabalhando, muito feliz e honestamente. Nem acredito que a oportunidade chegou�.

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02.3

SURPRESA

Três meses depois da nossa conversa, abro minha caixa de mensagens do Facebook e vejo que recebi uma mensagem dela. O conteúdo era o seguinte:

JULIANA

“Estou trabalhando, muito feliz e honestamente. Nem acredito que a oportunidade chegou”.

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CAROLINA MONTANIERI

PSICÓLOGA

– Carolina, conversei com algumas mulheres que tiveram dificuldades em conseguir emprego ao sair do presídio. Existe alguma maneira de quebrar esse preconceito que vem da sociedade?

JULIANA

– Não existe uma maneira certa de ser quebrado – lamenta a psicóloga - Mas quanto ao emprego, se a pessoa tem duvida na hora de contratar, faz uma experiência. Eu me faço essa pergunta e todos deveriam fazer: você contrataria alguém que matou? É complicado, é difícil. A gente tem que se colocar no lugar das pessoas que não aceitam, mas todo mundo merece uma segunda chance. Quando você não dá essa chance, você pode estar perdendo um grande profissional ótimo no que. Contrata, faz uma experiência, às vezes a pessoa só quer trabalhar, mudar de vida. Temos que ser empáticos, existe o medo, mas por que não dar uma chance desse ex preso mostrar que ele mudou? – questiona.

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Durante nossa conversa, contei a ela sobre a situação de Juliana, que foi contratada duas vezes e nas duas vezes foi demitida ao descobrirem sobre sua passagem pela cadeia. Logo ela afirmou que uma maneira de mudar esse tipo de situação é trabalhar o conceito de ex-presidiário com as empresas, mas que infelizmente isso ainda é difícil na nossa sociedade.

JULIANA

– É necessário estabelecer uma reeducação não só para os presos, mas para a sociedade em si. Por exemplo, se eu tivesse uma empresa, eu psicóloga contrato uma secretaria, ela tá comigo tem dois meses e descubro que ela é ex-detenta, por que eu vou demiti-la se ela tá fazendo o trabalho dela? Eu conversaria, perguntaria o que aconteceu, mas as pessoas não estão nem aí, simplesmente demitem. Imagina o que isso causa na pessoa, ela vai se sentir rejeitada e sujeita ao crime e às drogas novamente porque “nada da certo”. É a desmotivação. Se ela não tiver um apoio familiar muito bom e um contexto social legal, ela recai e volta a ser o que era antes.

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JULIANA


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JULIANA


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ISABEL


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ISABEL


ISABEL

– Sou usuária de crack, de pinga, sou uma mina muito louca

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03.1

UMA MINA MUITO LOUCA

– É aqui – Karolyne me informou. Desci do carro, e bati palmas no portão. – Bel! – ela chamou gritando, já a conhecia. De longe, observei uma senhora, que aparentava ter seus quase 70 anos, aproximar-se com dificuldade. Isabel cumprimentou Karolyne com um abraço e me abraçou também. Ela cheirava a cachaça e já foi falando: – Sou usuária de crack, de pinga, sou uma mina muito louca – e me surpreendeu falando sua idade – tenho 47 anos, cinco filhos e já fui presa três vezes, mas sou uma mulher decente, graças a Deus todo mundo gosta de mim. Compreendi a aparência de mais velha logo no início da frase. Dessas três detenções, duas foram por tráfico e a outra por furto – Trafiquei na rua, já fui levar droga no presídio pro pai da minha filha e roubei, fui presa por isso.

ISABEL

Ela tentava contar a sua história, mas tinha dificuldades, estava alterada – Eu tô meio louca hoje. Mas eu vou falar para você, sou uma mulher de responsa, muito trabalhadeira, não desrespeito ninguém, não desacato ninguém, eu só quero o bem para a minha família, isso é tudo que eu quero – E começou a chorar.

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03.2

DIFICULDADES

ISABEL

A primeira vez em que foi presa, ela já tinha os cinco filhos – Meus filhos e minha mãe são tudo o que eu tenho, eles moram comigo, são a minha vida – E o amor pelos cinco filhos é tão grande que em 2016 a polícia invadiu a sua casa para revistar e apreenderam sua primogênita, Yasmin e a caçula Bruna. Quando ficou sabendo do que havia acontecido, Bel foi correndo para a delegacia tentar defender suas filhas, porém, estava alterada por ter bebido pinga e acabou sendo presa também.

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Na casa humilde vivem Isabel, sua mãe, os filhos e os três netos, dois filhos de Yasmin, que está grávida novamente e um filho de Bruna. Hoje, depois de passar por três prisões e uma cadeira de rodas por causa de uma tuberculose, pergunto se ela está trabalhando e as lágrimas tornaram a brotar de seus olhos ao dizer:

ISABEL

– Eu? Coitada de mim, minha filha! Tô doente, tô ruim, vivo no hospital. Tô com pneumonia e olha aqui para você ver – Ela se vira de costas e levanta a camiseta roxa. Vejo uma protuberância, um osso aparente por debaixo da pele e pergunto o que é – Minha coluna tá trincada, não tenho como trabalhar, não tenho como ajudar minha mãe, a minha situação é complicada.

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ISABEL


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ISABEL


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BRUNA


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BRUNA


BRUNA

– Eu fui presa na porta da minha casa, na biqueira.

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04.1

A VIDA NA BIQUEIRA

Alta, magra, com uma voz fina e uma risada escandalosa, Bruna aparentava estar animada por falar comigo – Gente, dá licença que tá na hora da minha entrevista! Vou ficar famosa! – e gargalhava. Presa aos 18 anos por tráfico de drogas, rindo da situação, ela me contava como tudo aconteceu: – Eu fui presa na porta da minha casa, na biqueira. Eu tava entregando o pino na mão do cara e quando virei pra sentar na calçada, vi a polícia entrando na rua – ela relembra que tentou correr para dentro de casa, mas a polícia invadiu e encontrou a droga – Tinha bastante. Ao fazer a revista da casa, os policiais da operação encontraram 36 pinos de cocaína – Eu achei que não seria presa apenas com a cocaína porque sou usuária, eles fariam exame toxicológico em mim, constataria o pó e eu seria liberada.

BRUNA

Foi aí que a jovem traficante se enganou. Além dos 36 pinos, os policiais forjaram 146 pedras de crack, as quais Bruna afirma não ter conhecimento – Daí eu achei que não ia sair mais, pensei “fodeu minha vida”.

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04.2

CONVERSA PARALELA

Enquanto contava o que havia acontecido, Bruna parou e comentou com Karolyne:

BRUNA

– Ontem forjaram o meu vizinho com 45 pedras, ele com dois mil reais de pino e forjaram as pedras. Daí falaram que não acharam nada, só as pedras mesmo. Eles forjam a pedra e pegam os pinos pra cheirar. Eles cheiram mesmo porque muitas vezes eu já vi bicudo!

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BRUNA


04.3

FAMÍLIA

No total foram 28 dias dentro do presídio e nove meses em prisão domiciliar – Não sei por quê. Acho que foi sorte! Ao decretar prisão, a polícia levou Bruna e a irmã mais velha Yasmin. Ambas deixaram seus filhos pequenos em casa enquanto iam para a delegacia. Quando Bel, mãe das garotas, ficou sabendo, foi bêbada tentar defender as filhas e acabou sendo presa junto. – Foi horrível, mas eu tive que ficar tranquila por causa da minha irmã, ela é muito chorona e ficava entrando em pânico, bunda mole – Ouvindo a nossa conversa a uma certa distância, Yasmin disse: – Eu estava preocupada com os meus filhos. E logo a caçula rebateu:

BRUNA

– Ela pensou nos filhos dela, mas ela tava nessa vida e tinha que saber que uma hora podia cair. Não adianta você estar vendendo droga e pensar “ah, não vou presa” – e riu – Tô falando a verdade, quando você vende droga tem que saber que uma hora vai presa. Eu tinha essa consciência, era totalmente consciente.

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BRUNA


BRUNA

– Eu tava precisando, vi dinheiro fåcil, fui vender droga.

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A garota entrou para o tráfico aos 16 anos, dois anos antes de ser presa. O motivo? Ela diz que precisava dinheiro, que era necessidade – Eu tava precisando, vi dinheiro fácil, fui vender droga. Depois de ter sido presa, mesmo tendo passado pouco tempo dentro do presídio, ela afirma que está “de boa” e tem trauma do tráfico – Tô de boa, tô tranquila. Peguei trauma, não é medo. É que os caras me ameaçaram muito falando que se me “catassem” de novo, enfiariam mais droga em mim, daí eu escolhi não voltar – Ao deixar a prisão, morou por alguns meses fora de casa e recentemente retornou. O seu futuro? Continua incerto – Só tô cheirando um pozinho só, fumando uma macoinha. Traficar eu não trafico mais não. Com um olhar distante ela fala que não sabe como será o futuro, mas espera que melhore.

BRUNA

04.4

ESCOLHAS, NECESSIDADES E O FUTURO INCERTO

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BRUNA


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BRUNA


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KAROL


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KAROL


KAROL

Agora eu vou dar trabalho” – e então ela fumou seu primeiro baseado.

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05.1

O PRIMEIRO BASEADO

Lembro-me bem da primeira vez em que vi Karolyne. Fisicamente ela era bem diferente da pessoa de hoje.

KAROL

Eu era professora em uma escola de inglês e era dia de entrevista para a vaga que havia aberto, ela entrou na sala já chutando a mesa e pedindo desculpas. Realizei a entrevista, apliquei o teste e ela passou. Foi contratada! Alta, com o cabelo chanel liso na cor castanha, ela foi achando que era para uma vaga de secretária e só descobriu que era para professora quando apliquei a prova. Por sorte ela sabia inglês e já havia morado fora do país.

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– Não tive uma adolescência rebelde. Tive uma adolescência muito saudável, estudava em escola particular, pratiquei capoeira por anos e até morei três anos nos Estados Unidos para trabalhar, mas foi quando eu voltei que minha vida mudou. Eu já conhecia um pouco da sua história, afinal, trabalhamos juntas e continuamos nos vendo fora da escola como amigas, mas foi no dia da entrevista para este livro, quando perguntei qual foi o marco da mudança em sua vida, que descobri a fundo como tudo aconteceu. – Eu sempre fui muito apegada à minha família – conta – e teve uma época em que meu irmão estava dando muito trabalho, ele aprontava na rua e por ser menor de idade, não ficava preso e continuava aprontando. Eu estava com medo de ele ser morto e por preocupação, acabei voltando pro Brasil.

KAROL

Ao retornar para a casa, surpreendeu-se com a situação que encontrou. Com o irmão imerso no mundo do crime e das drogas e a mãe em depressão e usuária de cocaína, ela afirma que ainda tentou lutar para melhorar a vida deles – Eu me virava, dava aula de inglês e espanhol, capoeira em escola infantil e na academia que eu treinava, mas meu irmão continuou se afundando e houve uma época em que eu não conseguia mais dormir, não conseguia mais descansar porque na minha casa era gente entrando a toda hora e muita gritaria. Foram exatos cinco minutos em que eu pensei “Agora eu vou dar trabalho” – e então ela fumou seu primeiro baseado.

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KAROL


05.2

ILUSÃO

– Eu queria conhecer o que era aquilo que a droga causava que eu não conseguia tirar eles dessa vida – relembra – E acabei entrando no caminho junto com eles, o que foi muito pior. A primeira experiência foi com a maconha, mas quando Karolyne percebeu, já estava usando cocaína. – Passei a me entender com a minha mãe, eu achava que estava ajudando, mas não tava.

KAROL

– A droga te ilude, ela te dá uma sensação de poder, a sensação de não sentir frio, não sentir dor, não sentir tristeza, você é capaz de tudo porque ela te ilude naquele determinado momento, mas é depois que ela realmente te mostra quem é.

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Karolyne sempre foi do tipo independente, não gostava de ser bancada por homem, então começou a traficar, como ela diz, como muitos usuários começam. – A princípio, você vende pra usar e usa pra vender. Comecei a pegar uma quantidade um pouco maior com o traficante, porque o meu negócio era sair pra balada, então eu pegava certa quantidade, vendia um pouco e deixava um tanto para eu consumir e com o dinheiro da venda, curtia a minha noite.

KAROL

No dia seguinte ela estava pegando mais com o traficante. – Você começa desse jeito.

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O tempo foi passando e Karol começou a se envolver amorosamente com um vapor [pessoa que vende a droga do traficante], eles passaram a morar juntos em sua casa, pois sua mãe e seu irmão haviam se mudado para o litoral. O pai de seu namorado estava passando por problemas financeiros, e então eles foram morar na casa dele para poder ajudar. – Quando eu cheguei lá não tinha nem água na casa mais, tinham acabado de cortar a água, foi uma coisa que me doeu muito porque eu sou uma pessoa muito fissurada em criança, pra mim criança é uma dádiva de Deus e eu via as crianças sem água dentro da casa e o pai dele desesperado porque o bar tinha pegado fogo e ele perdeu tudo que tinha. Eu fui na favela do bairro Três Marias e ofereci minha prata para levantar uma grana. Com o dinheiro que ela conseguiu das pratas que vendeu, pagou a conta de água da casa e comprou mercadoria para levantar o bar. – Também começamos a vender droga no local, de início o pai dele era contra, mas na época ele e as crianças estavam passando fome,então ele não falava nada. Com o tempo o irmão mais novo de Ricardo, namorado dela, começou a ajudá-los nas vendas. Apesar de Karolyne e o namorado também usarem maconha, eles vendiam apenas cocaína. – Nunca gostei de vender maconha porque além de não dar dinheiro, é uma droga barata e que gera muito fluxo de pessoas. Então, por você estar vendendo uma coisa ilícita, é melhor você não chamar muita atenção e a maconha é uma droga que chama muita atenção, igual o crack.

KAROL

Eles ficaram lá por dois anos. – Tinha uma delegacia na avenida de cima do bar, até achei que demorou pra sermos presos.

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05.3

SURPRESA EM DOSE DUPLA

Semanas antes de ser presa, Karol descobriu que estava grávida. Foi um misto de choque e felicidade. – Quando descobri, eu tentei me controlar com as drogas. Não vou dizer que não cheguei a usar, eu usei umas duas vezes e me arrependo muito por isso, peço muito perdão pra Deus sempre. O medo de ser presa começou a aumentar. – Eu continuei vendendo, mas tinha um mau pressentimento, muita gente tava visando, tinha muito movimento...

KAROL

Além do grande movimento no ponto, ela começou a ter mais problemas com o namorado. As brigas ficaram mais intensas e ele começou a aumentar seu uso de cocaína. – Várias vezes eu tive que trancar o guarda-roupa pra ele não usar. – Eles também começaram a vender crack para conseguir mais dinheiro. - Essa vida te dá muita ganância, daí eu peguei crack, porque o crack você vê o dinheiro muito rápido e eu precisava, eu tava com algumas dividas.

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Depois de um dia intenso de brigas, Karolyne estava deitada quando viu Ricardo entrar correndo no quarto. – Ele falava “A polícia tá entrando, a polícia tá entrando” e eu disse pra ele deitar porque já não tinha mais o que fazer, havia grades por todo lado na casa, íamos correr pra onde? Do lado de fora haviam oito carros da Força Tática parados em frente a casa, eram cerca de quarenta e cinco policiais. – Eles entraram com escudo e nos algemaram. Mandaram eu subir para o quartinho em que guardávamos parte da droga e lá havia um policial que parecia estar drogado porque estava muito alterado.

KAROL

Sozinha ela foi interrogada sobre diversas pessoas, conhecidas ou não, ela não respondeu se sabia delas. – Ele me oprimia para ver se eu falaria alguma coisa, teve uma hora em que ele começou a bater na minha cara, porque como eles já sabiam que eu tava grávida, eles não bateram no resto do corpo, mas eu tomei muito tapa na cara. Foram apreendidos meio quilo de cocaína, meio quilo de crack, um quilo e meio de maconha, droga que Karolyne ia vender para um amigo que recebeu como pagamento, mas não traficava e perguntou se ela não queria revender pra ele, além de uma arma que era de seu sogro e ela nem sabia da existência.

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Presa com dois meses de gestação, ela foi levada para a Comarca de Pindamonhangaba, onde ficou durante três meses, até ser transferida para a Penitenciaria Feminina da Capital, em São Paulo. – O primeiro julgamento demorou para acontecer, eu já estava em São Paulo com quase oito meses de gestação. O certo era me levarem de ambulância, mas como não tinha e eu não queria esperar porque tinha muita esperança de sair e ter meu filho aqui fora, me colocaram no bonde, aquela lata de sardinha em que você não vê nada, não respira e quase morre lá dentro. O agente ainda me disse “Não vou algemar seu pé, tá?” e eu respondi “Que ótimo, porque com essa barriga, eu vou correr pra onde?”.

KAROL

Enquanto estava na estrada para Taubaté, os agentes receberam uma ligação avisando que a audiência foi cancelada porque houve uma enchente em São Luiz do Paraitinga e não havia policiais para fazer a escolta de Rodrigo até o Fórum. – Eu fiquei arrasada porque eu realmente acreditava que sairia de lá para ter meu filho. Vou te falar, aquele lugar mexe com a nossa cabeça.

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Karolyne e Ricardo tiveram suas audiências remarcadas e Julio acabou nascendo durante a detenção. – Minha bolsa estourou e eu estava dentro da cela trancada à noite. Minhas colegas de cela começaram a chamar as agentes. Ali eu não recebia assistência, eu fui uma vez ao pediatra, não fiz pré-natal nem nada, no começo eu pedia atendimento, pedia para fazer ultrasom, mas eles nunca me levavam e eu desisti de pedir. Com a gritaria das colegas de cela chamando as agentes, elas foram buscar Karol e a levaram para a área da saúde. Lá ficava um outro agente que a analisou e disse: – Você tá bem, volta para a cela porque não vai nascer agora. – Karolyne rebateu o posicionamento do agente afirmando que sua bolsa havia estourado e o bebê ia nascer, quando ele viu que realmente estava saindo muita água, ele a mandou sentar e esperar. – Nesse momento, duas agentes começaram a discutir na minha frente porque nenhuma delas queria sair de lá para ir passar a noite comigo no hospital.

KAROL

Quando a ambulância chegou, ela foi algemada na maca. – Meu bebê nasceu e fiquei seis dias no hospital, os seis dias algemada pelo pé, até mesmo enquanto estava com anestesia – e ela brinca – Porque eu ia correr com a maca e anestesia na perna né? Ia ser tipo carrinho de rolimã.

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Ao ter alta, eles foram para a área da saúde na penitenciária aguardando por uma vaga no Centro Hospitalar. – Lá não era adequado. A gente ficava na tranca depois das 18h e se a criança passava mal, engasgava, tinha refluxo, tínhamos que socar a porta e gritar para virem abrir. A gente é presa, mas a criança não. Ela ficou até os cinco meses com a criança, mas duas situações a fizeram repensar se ficaria mais tempo com ele lá dentro. – A primeira vez eu tive que ir para uma audiência e deixei o meu nenê com uma enfermeira, eu falei para ela que ela estava ficando com a minha vida e se algo acontecesse à minha vida, eu ia acabar com a dela. A segunda vez ele ficou doente e teve que ser levado para um hospital da rua e eu não pude ir junto porque não era autorizado, daí eu pensei “O que eu tô fazendo oferecendo esse tipo de risco pro meu filho? Ele não merece, porque ele é um anjo, ele não fez nada, eu que fiz”. – E então ela entregou o filho para sua mãe cuidar.

KAROL

As lágrimas começam a surgir no meio de nossa conversa enquanto ela conta que aos oito meses, a mãe levou Julio para visita-la. – Foi muito triste, eu tive que me despedir dele, ele ia embora e eu ia ficar, esse dia eu tive que subir a escada carregada pelas agentes porque eu não tinha forças. – Depois dessa primeira visita, ela pediu que a mãe não levasse a criança mais.

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05.4

O PÓS

Quando ganhou a liberdade, em 2011, seu filho estava com quase dois anos de idade. – Eu já havia visto ele em uma saidinha e juro que fiquei tonta, mais do que o normal. Na época eu ainda queria sair do presídio e fazer alguns acertos de conta, mas quando eu o vi, eu sentei e pedi pra Deus: “Senhor, se o Senhor me tirar daqui, eu vou sair daqui e não vou lembrar nada de mal que me fizeram. Não vou fazer mais nada de errado, eu vou viver pro meu filho se o Senhor me tirar daqui e o fizer com que meu filho me chame de Mãe”. Duas semanas após ter saído do presídio, Julio a chamou de mãe pela primeira vez.

KAROL

Vivendo em Taubaté, Karolyne e Ricardo ainda ficaram juntos por um tempo, mas ela sentia que a polícia podia forja-la a qualquer momento e o medo voltou pra sua vida, além das brigas com o namorado que voltaram a ser intensas. Foram morar no litoral junto com a mãe e o irmão e ao chegar lá, Karol viu que seu irmão estava se afundando cada vez mais e até um homicídio havia cometido. Ela e Ricardo tentaram manter o relacionamento, mas ela não queria mais saber do tráfico e ele estava acostumado com essa vida. – Ele até tentou procurar emprego, mas ele começou nisso muito cedo, ele não sabia fazer outra coisa.

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Então eles se separaram e Ricardo voltou para Taubaté para morar com o pai, que havia se tornado o dono da biqueira e se envolvendo com a milícia. – Ele fez coisas que eu nunca faria, e eu sabia que isso poderia acontecer porque ele era iniciante nessa vida. – Ricardo chegou na cidade e no dia seguinte seu pai foi morto. Ela ainda tentou cuidar de seu filho morando na mesma casa que seu irmão, mas o clima estava muito pesado e decidiu voltar para o interior. Ao chegar em Taubaté, acabou se envolvendo com o ex, mas o relacionamento tornou e não durar muito tempo e ela foi morar na casa da tia, que recebeu a ela e a criança de braços abertos. – Depois disso ele ainda me infernizou por um bom tempo, uma vez ele foi fazer barraco na porta da casa da minha tia e eu o expulsei de lá batendo nele com a corrente do portão. Por muito tempo ele não aceitou o término. Julio já estava com quatro anos e sentia falta do pai, mas quando Ricardo ia pegá-lo para passear, estava sob efeito de drogas, ou então usava perto da criança, que esperta, contava tudo para a mãe. – Eu cheguei a denunciar ele.

KAROL

À época, ela já estava em seu segundo emprego depois de ter ganho a liberdade. – Primeiro eu comecei a trabalhar em um supermercado como part time, mas eles descobriram que eu já havia ido presa e então quebraram o contrato. – E então ela conseguiu o emprego na escola. – Lá eles não me pediram o Atestado de Antecedentes Criminais, mas acho que era porque a escola era muito desorganizada né? Eles não estavam nem aí...

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Um dia durante aula, eu vi que ela estava animada e perguntei o que estava acontecendo, então me responde: – Menina, sai com um boy ontem... – olhei com espanto porque dias antes ela ainda estava chorando porque novamente havia brigado com Ricardo, ela viu minha expressão no rosto e começou a rir – Foi sensacional. Começaram a namorar logo depois que se conheceram. – Quando começamos a namorar, as coisas com Ricardo ficaram mais difíceis, ele partiu para a agressão. Ele e Marcos já saíram no soco na rua. – O motivo da briga era porque Julio passou a chamar Marcos de pai – Ele é muito presente na vida do meu filho. Hoje Karolyne e Marcos estão casados e moram em um apartamento comprado com a ajuda dos pais de Marcos. Ele é tatuador, mas faz diversos bicos para conseguir cuidar da família e Karol cuida da casa, pois, está grávida de cinco meses de uma menininha. – Eu queria engravidar porque queria curtir a minha gravidez. Quando eu estava esperando o Julio, eu estava feliz, mas as circunstâncias eram outras e agora eu posso curtir cada momento.

KAROL

Mesmo tendo um passado turbulento com o seu filho, ela afirma que a relação deles não poderia ser melhor. – É puro amor. Ele é maravilhoso. Somos uma família. Eu, ele e o Marcos. O Ricardo foi preso de novo e pediu que eu deixasse o Julio ir visitar, como ele já está grandinho, eu perguntei se queria e ele disse que sim, então foi. Mas, ele já não tem esse vínculo de pai e filho com o biológico. Com o Marcos é diferente, ele vê como pai de verdade. É super amoroso com ele e comigo também não é diferente. – Eu resolvi mudar a minha vida por ele.

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05.5 FÉ NO PAI No carnaval de 2017, Karolyne e o marido foram convidados pelo seu pai para participar de um retiro da Igreja evangélica Quadrangular, que é a qual ele frequenta. Mesmo desanimados, os dois foram. – Eu venho do espiritismo kardecista, nunca me aprofundei, mas era o que eu mais tinha afinidade. Durante o retiro eu conversei muito com Deus pra Ele me levar pro caminho que realmente fosse melhor pra mim e eu senti que era isso que Ele queria. Então depois dessa data, eu e meu marido decidimos nos batizar na igreja, eu parei de beber e estou muito feliz com a minha vida com Jesus.

KAROL

Enquanto ela me conta sobre sua caminhada na vida espiritual, recorde-me que recentemente ela havia comentado que estava sofrendo preconceito por ser “crente” e então questiono esse fato. – É verdade. Eu sofro mais preconceito sendo crente do que quando era traficante, porque quando você é traficante, você tem dinheiro, você tem muitos amigos, tem muita pessoa que te idolatra, muita pessoa que te acha o máximo! E depois que eu resolvi virar crente, escutei muita piada. Você escuta muita pessoa te achando idiota por ser crente, mas as pessoas não te acham idiota por ser traficante! Acha idiota por ser crente.

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CAROLINA MONTANIERI

PSICÓLOGA

– O presídio pode ter algum tipo de influência negativa na gravidez da mulher? – questiono lembrando do caso da Karolyne.

KAROL

– Passar a gravidez dentro do presídio e ter o filho lá não pode influenciar, influencia totalmente. Porque ela vai estar longe da família, do parceiro, da casa, do lar, de suas coisas agradáveis, do serviço, dos amigos e enfim, por conta dos hormônios que a mulher tem na gravidez, em um ambiente não favorável a isso, ela pode ter muito estresse, ela pode gerar um tipo de transtorno psicológico por estar em uma instituição durante a gestação. Quando ela tem a criança e a criança fica com ela, olha quanta coisa, quanto benefício essa mãe deixa de poder dar para a criança por conta de estar presa.

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A psicóloga também me conta um pouco sobre Diálogo Tônico, que é o nome dado dentro da psicologia para a relação de mãe e bebê. - É a relação do toque, do cheiro, da amamentação, dos cuidados, do olhar mãe e bebê, isso é muito importante e vai até 1 ano e 6 meses. Conto a ela sobre a situação de Karolyne e pergunto se seria mais benéfico para a criança ficar com a mãe dentro do presídio ou com parentes longe da mãe. – É uma questão muito difícil. Para a criança a influencia é toda, acho que tenho mais dó da criança do que da mãe porque a mãe já tem a estrutura da personalidade formada, então, a partir do presente para o futuro, ela consegue de adaptar e vencer os obstáculos, traumas e neuroses que ela tiver. A criança não. Então, ela já nasce com um modelo pré-estabelecido de uma mãe em cárcere, que teve ela na prisão, mesmo ela saindo ou não, olha esse passado, essa carga histórica que a criança vai levar para o resto da vida.

KAROL

Em meio a uma breve análise, Carolina afirma que acha mais benéfico a criança a criança não ficar no presídio, mesmo que longe da mãe. – Mesmo que ela não tenha esse diálogo tônico com a mãe, se a estrutura familiar for boa, a criança pode ter com a avó, com o pai, ou com quem for presente na vida dela. E o relacionamento com a mãe pode ser recuperado depois. Consigo ver mais coisas positivas dela longe da mãe por conta de toda essa carga negativa do presídio.

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KAROL


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KAROL


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TÁSSIA


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TÁSSIA


TÁSSIA

– No dia em que fui presa, eu estava bêbada, daí acordei e eles estavam lá, mas virei pro canto e dormi de novo porque achei que estava sonhando, mas era verdade.

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06.1

SERÁ UM SONHO?

Quando fui encontrar Tássia pela primeira vez, rodamos as ruas do bairro em que mora procurando por ela. – Ah! Já sei onde ela pode estar! – disse Carla, que estava comigo e com Karolyne. Demos algumas voltas com o carro e entramos em uma rua estreita. Paramos e ela veio na janela como se fossemos clientes e só então reconheceu as duas que estavam me acompanhando.

TÁSSIA

– Karol! Eu esqueci de você! Me perdoa! É ela que vai conversar comigo? – Tava na gandaia né? – questionou Karolyne. – Não, menina! Eu só esqueci mesmo! Olho bem para seu rosto que me parece familiar, então eu pergunto: – Você é irmã do Vagner? – Sou! Você é a amiga dele? – observo seu rosto tomar forma de espanto – Menina, pelo amor de Deus, não vai falar pra ele que eu tô traficando. Nesse momento Carla e Karolyne se assustam e perguntam ao mesmo tempo: – Aqui virou ponto? Tássia faz que sim com a cabeça e Karol já liga o carro dizendo: – Vamos sumir daqui! Você é louca! Amanhã a gente volta, vê se espera na sua casa!

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Chegamos na casa de Tássia e eu já conhecia o local, afinal, era a mesma casa de um dos meus melhores amigos. Quem me recebe é a filha mais nova dela, que me dá um abraço. Pergunto onde a mãe está e ela aponta para o bar e então vejo Tássia saindo do boteco e se aproximando do portão de sua casa. – Essa, se Deus quiser, foi a primeira e ultima vez em que fui presa. Eu estava dormindo quando eles entraram – relembra.

TÁSSIA

Em abril de 2012 Tássia estava morando no bairro Araretama, em Pindamonhangaba, com seu namorado. – No dia em que fui presa, eu estava bêbada, daí acordei e ele estavam lá, mas virei pro canto e dormi de novo porque achei que estava sonhando, mas era verdade. Os policiais começaram a chutar os móveis da casa e Tássia e o namorado acordaram em um pulo. Ela conta que o rapaz apanhou, mas ela não. – Eles viram que não tinha nada, mas eles já tinham invadido lá quatro vezes e não me acharam, a casa tava abandonada já. Mas eu bêbada, sai pra balada e pensei “Vou dormir lá e amanhã acordo, vou embora e ninguém vai ver”, só que a vizinha chamou a polícia, estava meio que combinado.

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Na época ela traficava maconha, crack e cocaína, mas como não havia nada no local, eles a forjaram e levaram para a delegacia. – Eu precisava de dinheiro, tinha fogo no nariz, fui no embalo e quando você se dá conta, não sai mais. Ela conta que no momento em que o policial estava revistando a casa, virou e disse: – Se eu não fosse policial, você teria que dormir comigo. Tem cara de puta.

TÁSSIA

Ao chegar na delegacia, o mesmo policial que disse isso deixou, sem querer, cair do bolso o pino que havia usado para forja-la. – Quando eu vi isso, fiz um escândalo bêbada. Me fizeram ficar de molho o dia inteiro esperando e eu acabei dormindo na cela, só no outro dia quando eu acordei que a ficha caiu que eu estava presa de verdade.

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06.2

EU NÃO GOSTO DE TRABALHAR

Tássia ficou oito meses presa por tráfico. Durante o tempo em que esteve na cadeia, sua família foi visitá-la. – Meu pai não chegou a ir me ver, mas ele arrumava meu jumbo [produtos alimentícios e de higiene que são autorizados a entrar no presídio] toda noite. Já minha mãe, o Vagner e minhas filhas foram me visitar. Minha mãe ia sempre...

TÁSSIA

Quando ela morou em Pindamonhangaba, as duas filhas moravam com a avó. – Elas ficaram três meses sem me ver, quando foram me visitar, elas não sabiam que eu estava presa. Minha família falou para elas que eu estava trabalhando. Quando eu as vi, quase tive um infarto de emoção, não queria que elas fossem embora. Na hora de nos despedirmos, elas grudaram em mim e fizeram um escândalo falando “A mãe vai com a gente!”.

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Atualmente faz cinco anos que ela foi solta. – O cara que tava comigo não era bem meu namorado né, mas virou depois que eu fui presa porque ele segurou meu BO para eu sair. Ao colocar os pés pra fora do presídio, a primeira coisa que fez foi arrumar um celular para fazer uma ligação. Ligação completada, a segunda coisa que fez foi tomar um refrigerante. – Tomei uma coca gelada, eu tava com muita vontade. – riu me contando. Ela também conta que logo que ganhou a liberdade, ficou com medo de sair pra rua, mas isso não durou muito tempo. – Eu tava com medo, mas quando passou também cê já viu né? Voltei pro tráfico. Perguntei o motivo e ela sem pensar duas vezes respondeu: – Eu não gosto de trabalhar – gargalhou sem vergonha de afirmar isso – É sério! Eu trabalhei um tempo em uma lanchonete, mas sai porque não gosto mesmo de trabalhar. Lá eu tinha folga na segunda-feira, mas o que eu vou fazer em uma segunda-feira? Bebia pra rua e na terça já não ia trabalhar porque estava varada. Na realidade eu queria arrumar um marido rico, mas podia ser só um marido mesmo, porque a situação tá feia – e riu mais uma vez.

TÁSSIA

Hoje ela assume que “apenas” usa maconha e trafica. O “namorado” está preso. – Não tá preso pelo mesmo motivo. É por causa de mim também, mas não é o mesmo motivo. – Pergunto se ela não tem medo de ele ir atrás dela – Ele não mata, é bonzinho, mas se ele sair e quiser me matar, eu volto com ele.

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TÁSSIA

Mãe!!! (...)" 92


06.3

TENSÃO

TÁSSIA

– Sabe, segunda-feira a polícia invadiu a minha casa. Minha filha mais nova de dez anos ficou em cima deles a todo momento, eles davam um passo e ela gritava “Mãe!!!”. Eu acho que essa não vai ser a única vez que serei presa, eu tenho medo. Do jeito que as coisas estão tensas, tá feio.

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CAROLINA MONTANIERI

PSICÓLOGA

TÁSSIA

“A partir do momento em que uma criança entra em um presídio, ela passa a ver aquilo como natural. Algumas famílias, como essa, até falam que o pai ou a mãe estão trabalhando. A criança não sabe da situação dos pais e quando é pequena, até quer trabalhar no local em que seu parente trabalha. Tudo isso acaba influenciando o psicológico da criança, ela pensa que se o pai está lá, é porque é legal, é bom. Eu não concordo, não acho saudável para uma criança em desenvolvimento”.

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TÁSSIA


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TÁSSIA


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TÁSSIA


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ROSELI


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ROSELI


ROSELI

– Ela ficou presa durante oito meses e por oito meses eu a visitei.

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07.1

COSTUME

Roseli é uma senhora de 60 anos miúda, que me observava com olhos sorridentes por de trás dos óculos. Já havíamos nos visto antes por ela ser mãe de Vagner, mas nunca havíamos conversado sobre a situação de Tássia. Com toda gentileza do mundo, ela recebeu-me em sua casa, fez-me sentar em seu sofá e ofereceu-me um copo d’água. – Ela ficou presa durante oito meses e por oito meses eu a visitei.

ROSELI

Roseli sabia que sua filha era traficante, esperava que ela fosse presa, mas o choque da situação a perturbou. – Foi horrível, eu me senti a pior pessoa do mundo. Até hoje me pergunto o que fiz de errado na criação da Tássia. Ela foi presa no dia 21 de abril e no dia cinco de maio eu já fui fazer visita.

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Era um sábado e ela não sabia o que a esperava no presídio. – A primeira vez eu fui sozinha, ninguém queria que eu fosse porque sabiam que eu ia me sentir mal e realmente né... Até acostumar, quero dizer, não tem como acostumar. Mas depois que a gente vai a primeira vez, na segunda já sabe como é. Enquanto a filha estava presa, as netas perguntavam pela mãe e a avó se sentia mal por mentir para as garotas. Sempre dizia que a mãe estava trabalhando, mas os amiguinhos da escola começaram a comentar e um dia a filha mais velha de Tássia, que na época estava com sete anos, disse: – Vó, a mãe tá presa? – E isso foi como um soco na boca do estômago para ela.

ROSELI

Todo final de semana ela arrumava uma bolsa transparente com tudo que a filha gostava. Fazia almoço, doces e ao chegar no local, a comida era mexida, revirada e revistada. – Eu passava o dia inteiro sem comer a minha própria comida porque eu sentia nojo do que eles faziam, eu sentia nojo daquele lugar.

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07.2

VOLTA PRA CASA

ROSELI

Quando Tássia saiu do presídio, Roseli tinha esperanças de que a filha saísse do mundo do crime, esperança essa que foi quebrada logo em seguida. – Durante um tempinho ela sossegou um pouco, mas totalmente não, né? Assim, fazia mais escondido e tal. Mas de um ano pra cá tá declarado – relata – Ela pega, ela vende, ela vai receber, os cara vem pagar aqui no portão. Tá uma briga, um inferno danado nessa casa porque ele [pai de Tássia] tá com 62 anos, vê a situação dele. Se ele tiver um ataque do coração, ele não vai aguentar. Aí, por exemplo, ele tá todo quietinho aqui dentro de casa daqui a pouco toca a campainha, a gente vai atender: “Eu quero a Tássia. A Tássia tá aí?” Só gente estranha, sabe? É pra pagar, é pra vir buscar droga... Tanto que até um certo tempo a gente sabia que ela usava, sabia que ela vendia, mas ela nunca tinha trazido nada pra dentro de casa.

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Durante minha conversa com a filha de Roseli, ela contou que é usuária de maconha, mas a mãe conta algo diferente. – Olha, maconha deve ser todos os dias. Agora cocaína também eu sei que vai. Já achei pino dentro da bolsa dela, pra consumo dela mesmo. Eu fui perguntar e ela disse “é meu, pode jogar fora”. Tava vazio, tinha que jogar fora né?

ROSELI

Pelo que me contaram, eu tinha ciência de que a relação entre mãe e filha era conturbada, mas durante a entrevista descobri que isso vai além. – Eu tô chegando no meu limite, sabe? Esses dias estava falando com meu filho Valdir sobre isso... Eu tô me segurando, vai chegar uma hora em que eu vou explodir. Pra mim é muito errado saber das coisas erradas e não denunciar, mas eu tenho medo, tenho medo porque tem criança aqui em casa. Imagina se ela vai presa e depois vem alguém aqui se vingar. Esses dias ela tava dormindo e a bolsa dela caiu, minha neta mais nova viu um tijolo de maconha sair da bolsa dela, pegou e trouxe pra mim – com a voz fraquejando e segurando o choro ela conta – Nesse dia ela quase matou a menina, bateu, bateu demais.

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ROSELI


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Angela Soares da Cruz ASSISTENTE SOCIAL

Irmã Petra Pfaller Advogada e Coordenadora Nacional para a Questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária do Brasil – CNBB

“Eu não sou funcionária do presídio, sou voluntária como Capelão Prisional Batista, responsável pelo Vale do Paraíba e Litoral. Trabalhamos com atendimento religioso dentro da unidade prisional, atendimento através de cartas tanto para presídios femininos quanto masculinos, atendimento aos familiares e também suporte as presas durante período de saída temporária nos feriados. O papel do Assistente Social dentro do presídio é tratar as questões sociais, como por exemplo, facilitar para que o reeducando tenha seus documentos, buscar aproximação familiar, sempre que, possível conforme disponibilidade da unidade, inserir programa de estudo ou trabalho, entre outras coisas. Mas todas com o objetivo de atender os direitos do reeducando e prepara-los para sua reinserção na sociedade e família. De forma geral, creio que a maior dificuldade continua sendo a dificuldade do reeducando em ser visto como "pessoa", como "ser humano" que pode mudar se for trabalhado e conduzido para isso. Outra dificuldade que observo em várias unidades é a quantidade de funcionários abaixo do necessário, que muitas vezes acaba atrapalhando para que o reeducando tenha o atendimento necessário. Penso que a assistência "pós" deveria começar antes mesmo que saíssem da unidade prisional, para que saíssem com um norte e não ainda procurando uma direção. Quando o reeducando sai e é acolhido pela família, a dificuldade é amenizada, mas quando não tem esse apoio, em muitos casos, o reeducando não tem lugar para ficar, emprego, roupas e condições para se sustentar. Se ele precisa ainda aguardar semanas ou meses para ser chamado para uma oportunidade de emprego, como se sustentar nesse período? Infelizmente nem sempre a reinserção na sociedade é feita de forma assertiva” – Angela Soares da Cruz, Assistente Social

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“A Pastoral Carcerária promove a dignidade humana dentro dos presídios. Ela nada mais é do que um grupo de paróquias que vão semanalmente ou de quinze em quinze dias fazer visitas aos presídios, dentro das celas, no pátio durante o banho de sol ou em um ambiente ecumênico, cada unidade é diferente. Mesmo sendo da pastoral, ainda existem dificuldades. Existem restrições por parte do administrador do presídio, alguns não deixam entrar violão porque a corda do violão pode ser perigosa, outro não deixa entrar bíblia e folha porque falam que colocam fogo no papel, em outra unidade, quem pode ter atendimento é escolhido pelo diretor, não a gente. Não sabemos quem vamos atender. Isso é usado até como castigo, não deixar falar com a pastoral é um castigo. Tem unidade que deixa entrar dois agentes em um presídio de 500 presos. Eu estou na pastoral carcerária tem mais de 23 anos e nos últimos três anos atuo apenas com mulheres. Eu sempre reforço que o presídio foi feito por homens e para homens, as mulheres são sempre esquecidas, são sempre as ultimas, as alas largadas ficam para as mulheres, a maioria dos presídios ainda são mistos, o que cria uma grande dificuldade, não se respeita a maternidade da mulher, a obrigação dela com os filhos, esse é um assunto muito delicado e não respeitado. O atendimento da saúde da mulher é diferente dos homens, não tem médicos específicos para as mulheres. A diferença entre as mulheres e os homens não é só a menstruação, muitos falam isso, mas não é. A saúde da mulher, a saúde mental da mulher é bem diferente da dos homens. De 60 a 80% das mulheres tomam remédio controlado, tomam remédio para dormir, contra ansiedade, antidepressivos, já os homens são 30 a 40%. Na questão das mulheres grávidas, ainda existe a dificuldade de alegarem que não tem escolta para levarem ao hospital, muitas ainda são algemadas durante o parto.

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A importância da Pastoral Carcerária é estar presente, tratar elas como gente, elas são gente e não são tratadas assim. A prisão deveria ser o ultimo recurso, mas aqui no Brasil é o primeiro recurso e as mulheres ainda são julgadas moralmente. Prisão não recupera, ela não ressocializa, não reeduca. Isso é uma grande mentira. Prisão só gera mais violência. O objetivo da pastoral é a evangelização e promoção da dignidade humana, a busca por um mundo sem cárcere, é perguntar a si mesmo o que Jesus faria, não é só rezar, Jesus não fez só isso. Eu não acredito que grades resolvam. Isso vai contra o evangelho.

ROSELI

O maior torturador é o juiz que pergunta para a presa “Você não pensou no seu filho?” quando na verdade ela estava fazendo aquilo por ele, para cuidar dele. Eu mesma já sofri ameaça de morte duas vezes por fazer denuncias. Já fui acusada de tráfico porque ia denunciar uma tortura e tentaram me forjar para não denunciar. Denunciei mesmo assim. Se forem para Goiânia e ouvirem falar da freira traficante, sou eu” – Irmã Petra Pfaller, Advogada e Coordenadora Nacional para a Questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária do Brasil – CNBB

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