Revista Cidade Verde

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Entrevista POR CLÁUDIA BRANDÃO

Dr. Lima Júnior

claudiabrandao@cidadeverde.com

Precisamos de mais doadores

O Brasil possui 32 mil pacientes ativos em lista de espera por um transplante de órgão. Uma realidade angustiante para quem depende dessa cirurgia para continuar vivendo. No Piauí, o número de pacientes na fila por um transplante é de 529, sendo 350 para córnea; e 179, para rim. O transplante de rim, aliás, é o mais realizado em todo o país. Mas, mesmo com uma lista tão extensa de pacientes aguardando por uma cirurgia dessa natureza, os transplantes de órgãos no país ainda são feitos em pequena quantidade, apesar de existir uma rede bem distribuída de centrais pelos estados. O problema está no pequeno número de doadores e no número menor ainda de doadores efetivos. Para melhorar essa estatística, o Dr Lima, coordenador da comissão de remoção de órgãos da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) lançou a campanha “Setembro Verde”.

Foto: arquivo pessoal

Apesar de o Brasil possuir o maior sistema público de transplantes do mundo, o número de cirurgias realizadas no país ainda é pequeno. A resistência dos familiares é um dos principais motivos.

O cirurgião Lima Júnior é especialista em cirurgia cardiovascular pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (INCOR). Em meio a uma agenda atribulada, dividida entre as cirurgias e o trabalho em prol da doação de órgãos, ele concedeu a entrevista a seguir para a Revista Cidade Verde, direto de São Paulo. 8 | 24 DE JANEIRO, 2016 | REVISTA CIDADE VERDE

RCV - Qual a estrutura do Brasil, hoje, para realizar transplantes de órgãos? LJ - Atualmente, a rede brasileira

de doação de órgãos conta com 27 Centrais Estaduais de Transplantes, 510 Centros de Transplantes, 1113 Equipes de Transplantes e 70 Organizações de Procura de Órgãos. É o maior sistema público de transplantes do mundo.

RCV - Apesar de uma rede bem montada, o número de doadores ainda é muito baixo. Por quê? LJ - Neste ponto é preciso diferen-

ciar potencial doador de doador efetivo de órgãos. Por exemplo: no Brasil, de janeiro a setembro de 2015, tivemos 7.269 potenciais doadores e apenas 2.121 doadores efetivos, o que mostra que nosso aproveitamento de potenciais doadores ainda é baixo, comparado aos países com maior aproveitamento (EUA e Espanha). Este é um ponto a ser melhorado, o que depende de melhorias na infraestrutura, o que reduziria também a subnotificação de potenciais doadores. Atualmente, a taxa de recusa familiar é de cerca de 41% no Brasil, o que, para melhorar, depende de mecanismos mais efetivos de informação da sociedade. Ou seja, precisamos melhorar na infraestrutura e na comunicação com a sociedade.

RCV - O senhor criou o movimento “Setembro Verde” para esclarecer às famílias sobre a importância da doação. Quais são os resultados do projeto nesses três primeiros anos de existência?

Nosso aproveitamento de potenciais doadores ainda é baixo, comparado aos países com maior aproveitamento (EUA e Espanha). Este é um ponto a ser melhorado. LJ - O Setembro Verde é um projeto ambicioso que tem o propósito de atuar sobre todo o sistema de doação de órgãos e transplantes. O objetivo é o de criar campanhas contínuas de doação de órgãos (para colocar este tema na pauta de discussão de rotina de toda a sociedade), buscar direitos tributários, fiscais e previdenciários para os pacientes em fila de espera de órgãos e para os já transplantados. Nós nos baseamos no projeto “Outubro Rosa”, que mudou a história do câncer de mama no mundo todo. Nosso objetivo é o de esclarecer para toda a sociedade o tamanho desta necessidade da saúde pública brasileira, da péssima qualidade e da baixa expectativa de vida do paciente em fila de espera de órgãos. Com isso, esperamos reduzir a recusa familiar, que atualmente é muito alta. Outro ponto é o de garantir aos pacientes em fila, e aos já transplantados, todos os direitos que os portadores de deficiência física já con-

seguiram. O projeto foi criado em 2012. Em 2015 tomou proporção nacional. Tivemos monumentos iluminados de verde em referência ao projeto em 20 estados, o que é importante para fazer com que as pessoas associem o projeto ao tema e o debatam. O passo seguinte é o de ir colocando todos os pontos que defendemos, partindo do princípio de que as pessoas sabem a que se refere o Setembro Verde. Os números do início do ano de 2015 foram muito ruins, com queda do número de doadores e de transplantes realizados. No terceiro trimestre, tivemos uma pequena melhora, obviamente que o fato de o Setembro Verde ter se tornado nacional chamou a atenção da sociedade para o tema e pode ter contribuído, visto que toda vez que o tema é abordado em uma telenovela, todos os números nacionais melhoram. Temos a consciência de que o Projeto Setembro Verde pode agregar a ajudar em vários pontos dessa longa cadeia necessária para a realização de um transplante de órgão sólido.

RCV - Quais os requisitos para ser um doador? Qualquer pessoa pode doar órgãos? LJ - Conversar com a família, ex-

plicar seu desejo. As pessoas ainda pensam que ter isso discriminado no RG ou nas redes sociais expressam algo. Já sobre possíveis doadores, classificamos o potencial para ser doador quando temos a confirmação da morte encefálica e, a partir desse laudo, averiguamos o que pode ser doado ou não.

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RCV - Existe alguma doença pré-existente que inviabilize a doação de órgãos após a morte? LJ - A partir do momento que uma pessoa morre por alguma doença e a mesma danificou o órgão, entendemos que ela não está apta para a doação do mesmo. Caso tenha danificado outras partes do corpo, outros órgãos, tecidos e pele, fazemos o mesmo entendimento.

Pacientes portadores de insuficiência orgânica, com órgãos e tecidos comprometidos devido a insuficiência renal, pancreática, cardíaca, pulmonar, entre outros, tornam-se inviáveis para a doação. Doenças infecciosas também inviabilizam, portadores de doenças contagiosas transmissíveis por transplante, como soropositivos para HIV, doença de chagas, hepatite B e C Tumores malignos, com exceção dos restritos ao sistema nervoso central, carcinoma basocelular, câncer de útero e doenças degenerativas crônicas, também inviabilizam a doação.

RCV - Ainda que haja um documento expressando a vontade da pessoa em doar órgãos, os médicos precisam do consentimento da família? LJ - Sim! No Brasil, trabalhamos com

a doação consentida e não presumida. A decisão final é da família. Sempre.

RCV - As equipes médicas estão suficientemente preparadas para abordar a família em um momento naturalmente marcado pela dor da morte? LJ - Sim! As equipes, que são mul-

tidisciplinares, são treinadas e atu-

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A taxa de recusa familiar é de cerca de 41% no Brasil, o que, para melhorar, depende de mecanismos mais efetivos de informação da sociedade.

alizadas exaustivamente. O preparo é adequado e serve de referência mundial. O que precisamos é aumentar o número de profissionais nestas equipes e melhorar as condições de trabalho.

RCV - Quais os tipos de mortes mais comuns que podem tornar os órgãos disponíveis para a doação? LJ - O primeiro ponto a ser esclarecido é que para se tornar doador após a morte é necessário a confirmação diagnóstica da morte encefálica. As causas mais comuns de morte encefálica são: traumas automobilísticos, motociclísticos, domésticos e violência.

RCV - O que caracteriza a morte encefálica? Há chance de erro neste diagnóstico? LJ - Morte encefálica é a constata-

ção legal do que é morte. É a parada irreversível de todas as funções do cérebro, ocasionada por uma severa agressão ou ferimento grave no cérebro. Quando ocorre a morte encefálica, o sangue que vem do corpo e supre o cérebro deixa de circular, ocasionando sua morte. Certos remédios podem mascarar a função cerebral, assim como relaxantes musculares e sedativos. Para fechar o diagnóstico de morte encefálica há uma rigorosa e sistemática série de exames clínicos, laboratoriais e de imagem a serem realizados, por pelo menos dois médicos diferentes, com intervalo mínimo de 6 horas entre o primeiro e o segundo. Exames são baseados em sólidas e reconhecidas normas médicas. Entre outras coisas, os testes incluem um exame clínico para mostrar que seu ente querido não tem mais reflexos cerebrais e não pode mais respirar por si próprio. Em muitos casos, os testes são duas vezes realizados, com intervalo de diversas horas, para assegurar um resultado exato. Há também alguns testes que podem incluir o exame do fluxo sanguíneo (angiograma cerebral) ou um eletroencefalograma. Com estes dois exames, confirmamos a falta de fluxo sanguíneo ou atividade cerebral.

RCV - Qual a diferença do coma para a morte encefálica? LJ - O Coma é uma situação poten-

cialmente reversível, sempre! Não há uma paralisia completa das funções cerebrais. Já na morte encefálica, há uma paralisia completa e irrever-

sível das funções cerebrais, o que acaba sendo a definição de morte: a parada de função cerebral. Então, resumimos em morte encefálica, como algo irreversível; e coma, estado potencialmente reversível.

RCV - Uma vez constatada a morte, quanto tempo a família tem para decidir se autoriza ou não a doação dos órgãos? LJ - Cada equipe tem uma hora pra

responder se vai fazer ou não. Definido com todas as equipes nesse intervalo de uma hora, a captação é marcada em até seis horas. Porém, não existe um tempo limite imposto pela legislação, pois isso depende da família, muitas gostam de decidir em conjunto e isso leva certo tempo. O que fazemos para termos tempo hábil é analisar as condições do possível doador. Se está em estado instável, que pode acabar evoluindo para parada cardíaca em minutos ou poucas horas, esse tempo é reduzido. Se a família não mostrar uma aceitação logo de cara, a equipe médica acaba descartando o doador. Agora, se a família mostrar uma aceitação, mas quer conversar com outros familiares, a equipe aguarda um tempo, mas não existe uma regra, tempo estabelecido por lei, nem por nenhum protocolo.

RCV - Qual o órgão mais difícil de ser transplantado, com maior chance de rejeição? LJ - Tecnicamente, do ponto de vis-

ta operatório, a cirurgia mais difícil é a do fígado. Do ponto de vista de logística, é o transplante de coração,

O primeiro ponto a ser esclarecido é que para se tornar doador após a morte é necessário a confirmação diagnóstica da morte encefálica, que é a constatação legal do que é morte.

porque é o órgão que aguenta menos tempo fora do organismo em isquemia. Idealmente, o transplante de coração tem de ser feito em até seis horas, levando-se em consideração desde o momento em que retiramos o coração do doador, fazemos o transporte e o implante no receptor para que ele volte a bater. Tudo isso deve acontecer em seis horas. Para fígado, isso pode ser em até 18 horas, então eles têm a possibilidade de fazer uma captação, deixar o órgão guardado e começar o transplante no dia seguinte, pela manhã, por exemplo. Já quanto à maior taxa de rejeição, podemos dizer que todos os pacientes transplantados, independente do órgão sólido, têm rejeição, episódios de rejeição. Mas o mais frequente são os transplantados de rim, por características imunológicas. O transplante de

rim, que é tecnicamente o mais fácil de todos, do ponto de vista operatório, tem altos índices de rejeição no pós-operatório.

RCV - Qual o custo de um transplante? Quem paga essa conta? LJ - 95% dos transplantes são fei-

tos pelo SUS, no Brasil. Isso dificulta muito a validação de custo, porque é muito difícil fazer a análise de custo pelo SUS. Mas de uma forma geral, considerando-se os pacotes que o Ministério da Saúde paga, atualmente, o transplante de fígado custa ao redor de R$ 80 mil reais; transplante de coração, em torno de R$ 60 mil reais, e R$ 25 mil reais para o transplante de rim. Esse pacote do SUS inclui única e exclusivamente o implante e até o sétimo dia de internação do paciente. Então, se houver algo fora do esperado, o paciente estoura o pacote. A captação, às vezes que a equipe sai para fazer a avaliação do doador e recusa, não está inclusa no pacote e o SUS não remunera. Esse, inclusive, é um ponto extremamente crítico e tem feito com que os médicos não consigam aumentar o número de equipes transplantadoras, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. O SUS não abrange esse trabalho e, por exemplo, não paga o transplante de pâncreas/rim, por isso não temos muitas equipes que façam o transplante destes órgãos em conjunto. A equipe faz primeiro o de rim, espera, e depois faz o de pâncreas, ou vice-versa, para poder receber. REVISTA CIDADE VERDE | 24 DE JANEIRO, 2016 | 11


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