“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Guimarães Rosa
Registro do percurso coletivo do 3º ano A Professoras Carol Petreche e Bárbara Pádua – 1º semestre/2020 Orientação - Paula Lutti Coordenação - Débora Rana
Olá, famílias do 3°A! Neste documento, trataremos um pouco do percurso que construímos com o grupo ao longo deste semestre. Um caminho cheio de aprendizagens e adaptações, que exigiu das crianças e de nós, professores e pais, acolhimento, muita flexibilidade, paciência e coragem para lidar com as incertezas e impermanências da vida.
Tchau Verinha, oi Verão! Com essa disposição, as crianças chegaram para desbravar esse novo território, conhecer um novo espaço de aprendizagem, novos colegas de jornada, preparados para esse novo ciclo, com novas companheiras de viagem – Carol e Bárbara – professoras que também eram desconhecidas. Quantas novidades! Nossos primeiros encontros, foram marcados pela expectativa das crianças de entenderem os novos procedimentos, conhecerem os novos ambientes, reencontrarem amigos e aproximarem-se de novos colegas. Conversar sobre os sentimentos que toda essa mudança e crescimento traziam foi fundamental para nos aproximarmos e enriquecermos nossas relações. É importante trazermos à tona
sentimentos
que,
muitas
vezes,
parecem
ser
antagonistas e estão dentro de nós, simultaneamente, e validarmos que isso é do humano.
Surpresa – por conhecer novos amigos tão rápido, por ter mais lição de casa. Tristeza / saudade/ sentir falta – dos antigos professores e amigos. Animação – em passar de ano, em conhecer novas pessoas e arranjar novos amigos, em conhecer o novo. Felicidade – por estar num espaço maior, por ter quadras maiores, por brincar no recreio com os amigos antigos, por ter gostado do Verão, achado legal. Insegurança – novos professores, novos colegas de classe. Medo/ receio – do desconhecido, das lições, de mais aulas. Nervoso – por conta do ano novo, por ser tudo novo. Curiosidade – para descobrir as novidades, saber como serão as aulas.
Pensar, elaborar, refletir, falar sobre o que sente: “Crescemos, mas ficamos menores.” “Éramos os mais velhos e, agora, somos os mais novos.” “Crescer traz responsabilidades.” “Não dá para fazer algumas coisas.”
Aos poucos, nos aproximamos, deixando de ser um agrupamento para nos tornarmos um grupo, em que cada participante tem seu espaço de fala, sua opinião, com a possibilidade de silenciar-se ou defender seus pontos de vista. Nesses encontros, nos víamos como diferentes, cada qual com sua identidade e reconhecendo o outro, de forma a distinguir o que há em nós que nos une em nossas diferenças.
Tornamos-nos, então, o 3º Aterrorizante e pudemos transbordar, sair da Escola e brincar em seu entorno, na rua, celebrando nossa cultura, o Carnaval, com alegria e muita música.
Dias de uma deliciosa convivência, que nos possibilitava momentos de investigação, descobertas, de aprendizagem com o outro, ser contagiado pela dúvida do colega, compartilhar momentos com todos os alunos dessa unidade, o Verão.
Assim, nos aproximamos de novos saberes, novas ferramentas, sem imaginar que em breve seriam elas que nos conectariam.
Eis, então, que nossas rotinas foram completamente alteradas com a chegada de um ser microscópico. Além da privação do convívio social e do isolamento em nossas casas, ele trouxe o medo e a insegurança, pois, a maioria de nós nunca tinha vivido uma situação dessas, em que se fez necessário viver um dia de cada vez, observar como a epidemia evoluía e, a partir dos novos fatos, redesenhar a rota. Um estado de incerteza sem precedentes pediu, de todos nós, empatia e sentido de corresponsabilidade. Em nosso projeto pedagógico, já vivenciamos essa cartografia – partir dos problemas e dúvidas para investigar e construir novos conhecimentos – porém, pautada na relação presencial. Ao vivenciarmos, essas semanas percebemos que, mesmo tendo sucesso no planejamento, a educação à distância não seria igual à presencial: nem o que se aprende e nem o como se aprende. Essa jornada é desafiadora, pois encontramos (todos nós, alunos, famílias e escola) obstáculos que cuidamos de transpor diariamente, e só estamos conseguindo alcançar bons resultados porque o senso de comunidade escolar, que caracteriza o Vera, e o vínculo que une educadores, alunos e famílias, também migrou para o ambiente virtual.
Cada família se organizou, aos poucos, de formas muito particulares para viverem esse período de quarentena, e a Plataforma entrou como uma ferramenta sistemática na rotina dos estudantes durante esse período de isolamento social, para que a Escola, colegas e atividades propostas continuassem a fazer parte do dia a dia dos alunos, procurando manter o vínculo com a aprendizagem e amenizar as perdas trazidas por essa nova forma de funcionamento da vida. Nós, professoras, do lado de cá da tela, ampliamos nosso contato com as famílias. Passamos a entrar nas casas de vocês e vocês nas nossas. Vocês passaram a ter informações privilegiadas que antes eram nossas. Assim, ganhamos parceiros que diariamente são chamados ao trabalho, de forma a contribuírem como nossos olhos no cotidiano de nossos alunos, para que possamos acompanhar a construção feita por eles. Sem vocês e todas as condições que criaram em suas casas, não teríamos a possibilidade desses encontros com os alunos, de planejar nossas ações e fazer as mudanças de rotas necessárias em nossa jornada. Alguns verbos antes pouco usados, como acessar, logar, baixar, carregar, mutar, deletar, dentre outros, hoje, são constantes em nossas casas.
Foi necessária a imersão de toda a comunidade nos diferentes aplicativos e ferramentas que utilizamos para diminuirmos a distância e promovermos a troca de conhecimentos e experiências e que possibilitam a aprendizagem dos alunos nessa nova condição. Mesmo sendo nativos digitais, as atividades virtuais de nossos estudantes, até então, estavam mais voltadas às atividades de lazer, em aplicativos touchscreen e feitos para utilização mais intuitiva. Todos fomos desafiados a conhecermos mais da Plataforma 365, nossa nova sala de aula, em um espaço na nuvem, em que poderíamos colaborar uns com os outros, deixar nossos percursos armazenados e interagir por meio de encontros assíncronos, síncronos, chats, fóruns, dentre outros.
Novos combinados foram necessários, criamos uma “NETiqueta”, para usarmos os recursos de imagens, memes e gifs de forma que não atrapalhassem nossa atenção durante as atividades. A linguagem escrita nunca foi tão necessária como agora.
Os aniversários foram celebrados com a alegria do encontro, com afeto, sendo a presença o melhor presente. Compartilhamos alguns desses momentos, com a certeza de que memórias estão sendo criadas e as distâncias diminuídas.
O ambiente virtual possui um outro tempo. Nós, professoras, fomos conhecendo mais sobre esse funcionamento, que pode ser a qualquer hora, e, também, faltar hora.
Aos poucos, testamos as possibilidades de encontros e percebemos que os encontros coletivos eram produtivos, mas apenas em determinadas situações. As boas conversas sobre A bolsa amarela, foram momentos que permitiram estarmos todos juntos. As propostas de Matemática tiveram mais sucesso em pequenos grupos, em que fosse possível conversarmos mais sobre o caminho percorrido por cada um, conseguindo ver todos na tela. As reflexões sobre a língua portuguesa e as revisões de escrita, transitaram entre grupos maiores (meia turma) e menores. Investigações e discussões sobre o modo de vida e as plantas foram interessantes de serem feitas em grupos com mais de dez alunos para que as ideias transitassem por mais estudantes, na busca de criarmos um espaço mais colaborativo para as investigações, em que uns contaminassem os outros com seus questionamentos e reflexões. Em um dos testes, agendamos um encontro coletivo logo após o encontro com professores especialistas, pensando que seria interessante que ficassem “livres” no restante da tarde e vimos que os alunos estavam impacientes, escrevendo no chat: “Quando acaba?”, “Eu tô cansado de ficar sentado 2 aulas consecutivas” ou “Posso ir ao banheiro?”. Paramos o trabalho, conversamos com eles e agendamos novo encontro, em outro dia. Para nós, ficou a aprendizagem que encontros seguidos não são produtivos. O que revela, na linguagem tão conhecida e usada por eles, que a expectativa (a nossa) e a realidade (a deles) são bem distantes. “Aula por duas horas será tranquilo.” #sqn.
Na Escola, já estávamos envolvidos com as leituras de diários. Conhecemos um pouco do Veludo, em Diário de um gato assassino, de Anne Fine, e iniciamos a leitura do livro Ameixa: o diário de uma cachorra cheia de questões humanas, de Emma Chichester Clark. A leitura continuou em nossa sala virtual, na qual ampliamos o conhecimento sobre diários ficcionais. Nossa proposta foi escrevermos, com mais detalhes, um registro no diário de Ameixa, usando as características que estudamos da estrutura de textos do gênero diário, criando uma narrativa para o dia mais feliz da vida dessa cachorrinha. Ainda durante as aulas presenciais, tivemos a oportunidade de vermos alguns diários íntimos que vocês, mães e pais, guardaram, como suas experiências de escrita na adolescência, ou mesmo seus diários de viagem. Esses objetos ilustraram para a turma a importância desse registro como memória pessoal, escritos para comunicar, inicialmente, a si próprio algo vivido. Logo no início das aulas no ambiente virtual, o jornal Joca publicou uma notícia sobre os impactos da pandemia na vida de crianças e estudantes ao redor do mundo. A proposta de produzirmos um Diário Coletivo da nossa turma surgiu com força para que pudéssemos escrever nossa nova rotina, os sentimentos e novas aprendizagens que aconteceram durante esse período, um registro para que, no futuro, lembrássemos desse tempo vivido tão intensamente.
Mas o momento mais esperado dos nossos encontros era a leitura compartilhada do livro A bolsa amarela. A cada novo capítulo a curiosidade de saber o que aconteceu com cada personagem e com as vontades de Raquel só aumentavam. Ficávamos imaginando o tamanho dessa bolsa, as penas e garras de Afonso, o cérebro amarrado do Terrível. Um livro escrito em 1976, mas que nos pareceu muito atual. Em nossas conversas, o galo com máscara parecia viver a pandemia conosco, pois muitas coisas se via da janela criada na fazenda da bolsa, assim como nós, das janelas de nossas casas. Ao final, a história nos mostrou que, para todos os problemas que temos, precisamos deixar o tempo agir sobre eles, pois a vida é assim, cheia de mudanças, de novas significações. Valeu Lygia! (A Bojunga, autora desse livro que nos foi um presente nessa etapa de nossa caminhada.)
Nesse percurso, utilizando nossos textos, o de Lygia, da Ameixa, do Joca e da Qualé, conversamos sobre a nossa língua, como podem ser organizados os textos, a pontuação a serviço da escrita e da compreensão leitora, mais palavras que já sabemos como são escritas e que não podemos mais errar. Revisitamos nossas produções com diferentes focos de revisão, para que, a cada passo, comunicássemos melhor o que desejávamos.
Outras leituras foram feitas a partir dos objetos. Daqueles que vimos no museu, daqueles que contam histórias das nossas casas e famílias. Objetos que contam a história e o modo de vida das pessoas em diferentes épocas e espaços. Como esquecer da surpresa dos alunos ao lerem a planta baixa da casa que hoje é o Museu da Casa Brasileira? “Sala do mordomo!” E as reflexões sobre o que foi lido? “Eles deviam ser muito ricos, porque as pessoas não têm mordomo. E o mordomo daqui tinha até uma sala para ele.”
Após observarem os objetos da coleção que fica em exposição permanente no museu, eles puderam pensar sobre as transformações que aconteceram em alguns espaços de nossas casas e que algumas delas tinham a ver com a apropriação de novas técnicas, vindas das necessidades de cada época, bem como refletir sobre como vivíamos sem alguns deles. Assim, em casa, os estudantes olharam para os objetos que fazem parte dela, e tiveram a tarefa de conhecer como chegaram até ali. Essa pesquisa os aproximou de histórias que, para muitos, eram desconhecidas e ampliou o conhecimento sobre alguns costumes de gerações mais antigas.
Uma das investigações sobre o passado que fizemos foi sobre o surgimento dos números. Eles também foram criados a partir da necessidade da humanidade de representar as quantidades. Para entenderem como funciona nosso sistema de numeração decimal, desafiamos os alunos a fazerem a contagem de uma xícara de grãos de feijão. Eles depararam com questões vividas pelos antepassados, como, por exemplo, se perder no meio da contagem; uma oportunidade dos estudantes compreenderem a necessidade e a importância da criação de uma sistematização para a contagem. Como resultado, elaboramos diferentes estratégias, mas todas tinham em comum os agrupamentos e o registro. Posto isso como premissa, seguimos pensando nas formas mais eficazes para realizarmos a contagem. Por fim, chegamos aos agrupamentos de 10 e 100, validando o nosso sistema de numeração.
Na realização dessa proposta, surgiram alguns comentários sobre vocês, mães e pais, em nossos encontros: “Meu pai não aguentava mais contar feijão.”, “Minha mãe me ensinou a fazer mais rápido.”. Muitos deles contaram que se divertiram com a tarefa, e acreditamos que isso se deve a dois motivos: estarem resolvendo um problema e dividirem com vocês esse momento. A Matemática é a área do conhecimento em que observamos, mais vezes, vocês apoiarem as crianças nas atividades, como nos cálculos. Ao conversarmos com alguns de vocês, sempre surgiam falas como “Eu não sou professor” e “Não sei fazer desse jeito
que vocês fazem.” Uma das tarefas mais difíceis de nossa profissão é manter o desafio para os alunos, não dar respostas. É importante aceitarmos que, aos poucos, eles vão construindo verdades provisórias, que vão construindo os alicerces para poderem transformar os saberes, de forma a reverem o que já sabem, acrescentando novas formas e explicações para o objeto de conhecimento.
Quantos deles nos falaram que aprenderam a “conta em pé” com as famílias nesse período de isolamento? Acreditamos que os algoritmos são boas estratégias para resolverem cálculos, e desejamos que eles compreendam o funcionamento dessa conta e possam escolher usá-la ou não para resolverem os problemas, mais do que apenas saberem realizar o cálculo, o que valoriza o registro e o caminho percorrido pelos alunos.
Ao permitir que os alunos usem o raciocínio para além do caminho mais rápido, incentivamos que eles se apropriem de estratégias que envolvem diversos conhecimentos matemáticos – como dobro, triplo, composição e decomposição de números, proporcionalidade, o campo aditivo e multiplicativo –, podendo usá-los em outras situações, como fazem ao depararem com as medidas de tempo, quando saem do sistema de numeração decimal e vão para o sexagesimal. É um grande desafio ler as horas e fazer a contagem do tempo exatamente porque trabalhamos com outro sistema de numeração. Poxa vida, por que a humanidade não facilitou as coisas? Justamente porque cada civilização foi em busca da melhor solução para o problema que tinha em determinada época. Os assírios usaram a lógica das falanges de uma das mãos (contadas pelo polegar) associadas aos dedos da outra mão para revelarem os agrupamentos. Assim, temos 12 falanges e cinco dedos, chegando ao 60 como inteiro. Entendeu a lógica deles?
Essas lógicas somente são descobertas a partir da resolução dos problemas e de acordo com os recursos que se têm à mão, de fenômenos que são observáveis. Ainda em tempo de aulas presenciais, um contexto de aprendizagem que tivemos tratou de todos os sentidos e deixou todos envolvidos pelas descobertas que faziam pela visão, olfato, tato, audição e paladar. Essa provocação nos trouxe alguns indícios sobre os caminhos de pesquisa que poderíamos seguir: “Se olharmos de perto, vemos que a natureza é bem mais interessante.”; “Rosas não são apenas cor de rosa.”; “Tinham diferentes cheiros, formatos, texturas e cores.”.
Essa conversa foi retomada ao migrarmos para a sala de aula virtual, quando os alunos observaram, em suas casas, as características das plantas que tinham em seu entorno. Assim, aprofundamos as questões que diferenciam um registro científico de outros, aprimorando as descrições, o detalhamento e aguçando o olhar para existências mínimas, como a observação da germinação.
É, Guimarães, chegamos na parte de esfriar, afrouxar, sossegar. Finalizamos este semestre crescendo como grupo, como pessoas, como estudantes, vencendo o desafio de estarmos juntos, mesmo distantes. É com cor–agem, agindo com o coração, que seguiremos, enfrentando as incertezas, olhando a beleza do caminho, com disposição, mesmo não conhecendo o fim da história.
Até porque somos seres que têm livre-arbítrio e podemos mudar a rota a qualquer instante, ter um clique em uma avaliação, crescer nas férias e voltar com outra perspectiva. Com essa lógica, aguardamos vocês, mães e pais, para conversarmos sobre as conquistas individuais de seus filhos e filhas ao longo deste semestre e os desafios que eles e elas levam para o próximo capítulo dessa narrativa. “Talvez seja hoje necessário fazer um elogio faccioso a favor do que é incerto. Ao fim e ao cabo, a incerteza é um abraço que damos ao futuro. A incerteza é uma ponte entre o que somos e os outros que seremos.” Mia Couto
Junho/2020 Carol Petreche e Bárbara Pádua