PVEC 25Abril2020

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Serge Abramovici (Saguenail) O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Em 1924, há quase um século, numa época em que gozava como qualquer outro bicho careta da licença de circular, André Breton escrevia no «Manifesto do surrealismo»: «A simples palavra liberdade é tudo o que ainda me exalta. (…) Responde porventura à minha única aspiração legítima. No meio de tantas desgraças que herdámos, há que reconhecer que nos concedem a maior liberdade de espírito.» Nesta perspectiva, a situação de confinamento não muda nada. As restrições incidem sobre as possibilidades de consumo e distracção, eventualmente de labor. Em nenhum caso a liberdade de pensamento é atingida, podendo, bem pelo contrário ser estimulada pela reclusão que nos confronta com nós mesmos, confrontação da qual nos desabituámos e que só pode revelar-se positiva.

Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Parece-me que quem não foi capaz de construir alternativas quando tinha à sua disposição mais meios e mais ferramentas não haverá de se mostrar mais eficaz quando as restrições impostas lhe fornecem um álibi perfeito. A consciência é fruto das condições materiais exteriores no seio das quais se elabora. Talvez as populações confinadas se apercebam de que se pode viver sem consumir tanto, que

é possível ocupar o tempo com actividades que não as que a classe dirigente lhes impõe, que o contacto, única fonte de eclosão dos sentimentos (sair de si próprio,


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