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Por uma educação científica complexa segunda-feira, julho 04, 2011 http://nucleotavola.com.br/revista/por-uma-educacao-cientifica-complexa/ por Gustavo Leopoldo Rodrigues Daré* Prólogo: As Vozes do Texto Este ensaio é um diálogo que retomo com o projeto “Núcleo de Pesquisa em Educação Científica”, após ter sido relator do mesmo em fevereiro de 2011. O projeto, sob responsabilidade dos professores doutores da Universidade de São Paulo (USP) Dalton de Souza Amorim (coordenador), Heloisa Bettiol, Marco Antônio Barbieri, Marisa Ramos Barbieri e Tiana Kohisdorf, foi produzido para concorrer a uma das cotas de apoio financeiro do Programa da Reitoria da USP de Incentivo à Pesquisa. Também participaram das reuniões de elaboração do projeto os professores doutores Ricardo Z. N. Vêncio e João Pereira Leite, os pesquisadores Cleiton L. Aguiar e Márcia K. K. Higuchi, e membros da Casa da Ciência do Hemocentro de Ribeirão Preto: o prof. dr. André Perticarrari, o biólogo Fernando R. Trigo, a mestre Flávia F. do Prado e a doutora Maria José de S. G. Vecchia . A proposta, infelizmente, não foi selecionada pela Pró-Reitoria de Pesquisa. Todas as frases extraídas do projeto estão destacadas em letras itálicas no ensaio. Uma Certeza Investir na qualificação dos recursos humanos deve ser meta central de toda instituição que deseja maior competitividade internacional. O professor e o pesquisador são atores fundamentais de toda universidade produtora de conhecimento científico e tecnológico. Tornar mais eficaz o processo de capacitação do docente-pesquisador exige domínio sobre uma tecnologia educacional específica: a Educação Científica (1). Educação Científica e Projeto de Pesquisa Habitualmente, os debates sobre as estratégias educacionais envolvidas na formação científica limitam-se às dificuldades operacionais, como, por exemplo, a iniciação científica tardia dos alunos, o financiamento reduzido e a pequena abrangência de projetos de iniciação científica. Não se discutem questões educacionais essenciais como sua validade e eficácia, os porquês de seu formato e de seus objetivos. Os cursos de pós-graduação, geralmente, baseiam-se em programas do tipo “projeto de pesquisa”. Neste tipo de programas, o pós-graduando deve desenvolver uma pesquisa a partir de um projeto elaborado por ele mesmo ou por seu orientador. As disciplinas ministradas possuem importâncias marginais, a execução do projeto de pesquisa, e principalmente sua publicação em uma revista científica, é o único produto educacional importante. Este tipo de comportamento é tão fortemente associado ao modelo ideal do ensinar-fazer-ciência que programas de iniciação científica aos alunos do ensino básico ou da graduação também se reduzem a propor projetos de pesquisa aos seus candidatos. Além da falta de alternativas educacionais, esta ideia monótona induz, no ambiente escolar e universitário, a certeza de que este não é apenas o melhor caminho, mas o único caminho capaz de produzir todas as habilidades envolvidas com a
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atividade científica. Qualquer indivíduo que executa um projeto de pesquisa é considerado fazedor-de-ciência. O contraditório se evidencia quando cientistas criticam os trabalhos dos pares, rotulando algumas pesquisas de não científicas, outras científicas “fracas”, e outras ainda de cientificamente robustas. Se elaborar e executar um projeto de pesquisa não é o suficiente para fazer-ciência, por que o ensinar-ciência se contenta em exigir a execução destes mesmos projetos? A Educação Científica também precisa nutrir-se de teorias do conhecimento, área filosófica ao qual a Ciência possui dependências teóricas. Refletir sobre a possibilidade, a origem, a essência e as espécies do conhecimento, juntamente com a reflexão sobre os critérios de verdade, instrumentalizam o orientador e orientando a perder outra inocência angustiante, a crença subserviente na técnica científica dos projetos de pesquisa (2). A formação científica baseada no projeto de pesquisa, nos moldes atuais, assemelha-se aos programas de ensino que se preocupam unicamente com a seleção dos conteúdos, ignorando ou desconhecendo os objetivos selecionados, acreditando que os objetivos educacionais e os aprendizados são imanentes aos conteúdos selecionados. Educação Científica e Habilidades Complexas Ausubel considera que a aprendizagem do fazer-ciência exige os mais elevados padrões de aprendizagem significativa e aprendizagem por descoberta autônoma (3). Encontrar estratégias alternativas aos projetos de pesquisa é fundamental para expandir os programas de iniciação científica para espaços educacionais pobres em recursos instrumentais e laboratórios. Entretanto, o aprimoramento destes programas exige a reflexão das teorias da Educação e das práticas educacionais. “Em geral, a partir de uma teoria de aprendizagem é que podemos desenvolver noções defensáveis de como os fatores decisivos na situação aprendizagem-ensino podem ser manipulados com maior eficácia”(3). Exige dos atores envolvidos a disposição em perder a crença inocente de que a formação do cientista surge automaticamente durante a relação entre orientador e orientando empenhados na tarefa de executar um projeto de pesquisa. Torna-se necessário identificar os objetivos explícitos e implícitos dos programas de iniciação científica e de pós-graduação, e analisar as interdependências das habilidades desejadas e as sequências e formas mais adequadas para adquiri-las. Se apenas reproduzir um projeto de pesquisa não é suficiente para fazer-ciência, deve-se identificar as habilidades mínimas necessárias características da boa atitude científica. Se um artigo verdadeiramente científico deve atender a critérios metodológicos mínimos, aceitos por cientistas de diferentes áreas de pesquisa, devem existir habilidades comuns para todos os cientistas. Estas habilidades podem ser hierarquizadas em dificuldade e complexidade, e exploradas em diferentes momentos da vida escolar, com diferentes profundidades e objetivos. Observar os fenômenos naturais e sociais com estranhamento, buscar relações causais com distanciamento do senso comum, questionar as verdades cristalizadas, formular hipóteses verificáveis, delimitar as interferências do conhecimento filosófico na prática científica, compreender a dependência que a prática científica possui da estrutura social, comunicar-se com precisão, são alguns exemplos de habilidades complexas que enriquecem o trabalho científico. Estas habilidades podem ser desenvolvidas com tarefas tão diferentes quanto elaborar um texto de reflexões autobiográficas, produzir uma obra artística sobre fenômenos naturais, analisar ambientes sociais desconhecidos, debater sobre acontecimentos históricos, comparar teorias científicas de diferentes épocas. Ao mesmo tempo, a realização de um projeto de pesquisa não garante que estas habilidades serão alcançadas.
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Educação Científica e Paradigmas Científicos Outro problema inerente à iniciação científica centrada no projeto de pesquisa relaciona-se a incomensurabilidade dos paradigmas científicos (4). Cada projeto de pesquisa está vinculado ao paradigma de uma área específica do conhecimento científico, a uma disciplina científica especializada. Cada paradigma científico é a causa e o resultado de uma linguagem científica adaptada para uma determinada disciplina científica. Semelhante às dificuldades na tradução de textos literários, há uma impossibilidade de tradução plena de um texto científico de uma linguagem científica para outra, existe uma incomensurabilidade paradigmática. Apesar deste problema ser ignorado pela maioria dos programas de pós-graduação, seus efeitos deletérios são perceptíveis por muitos cientistas: a impossibilidade do diálogo, e da colaboração, entre as diferentes disciplinas científicas. A compreensão e apreensão das habilidades comuns a todos os cientistas podem viabilizar a construção de uma ponte de diálogo entre as diferentes ciências, tornando-se ponto de partida para uma iniciação científica complexa (5). Se a iniciação científica centrar-se no desenvolvimento de comportamentos cognitivos complexos, capacitará o estudante a aplicá-los em diferentes situações do cotidiano; não apenas em diferentes métodos científicos de diferentes disciplinas científicas, mas em diferentes áreas do conhecimento humano, como nas artes, filosofia e tecnologias. Educação Científica e Pesquisa Educacional Como estratégia para se alcançar comportamentos complexos, parece-me que a vivência do ensinar-ciência e do pesquisar-o-que-se-ensina (6) deve ocupar espaço privilegiado nos programas de pós-graduação e de iniciação científica. A construção de um ambiente dialético entre aprender-a-ensinar-ciência, aprender-a-fazer-ciência e ensinar-a-fazer-ciência transforma as ações de educação científica em ações de formação docente. “Pesquisa e ensino não precisam ser mutuamente exclusivos, mas podem interagir sinergicamente para aumentar a efetividade de ambos” (7). De Meis relata que “diz-se, de modo pejorativo, que cientista não gosta, nem sabe, dar aula e que quem não sabe fazer pesquisa, justifica seu salário dando aulas” (8). Anderson et al destacam que “alguns estudos sugerem pouca ou nenhuma correlação entre ensino efetivo, julgado pelas avaliações estudantis, e a pesquisa, mensurados pela produção e citações”. Entretanto, “a distinção entre pesquisa e ensino é algo artificial; professores ensinam estudantes como aprender conhecimentos em sala de aula, mas também, como criar novos conhecimentos em seus laboratórios de pesquisa” (7). Além da possibilidade de realizar a síntese pretendida pela epistemologia da complexidade, aprender a ensinar-ciência ao mesmo tempo em que se aprende a fazer-ciência permite solucionar a falta de preparo educacional do candidato a professor universitário pós-graduado. “De modo geral, pesquisa-se muito pouco em educação. É provável que essa seja uma das principais causas da grande discrepância existente entre produção do saber novo e forma de como transmiti-lo. A busca de novas formas de ensinar costuma limitar-se às faculdades de educação. As novas noções de pedagogia desenvolvidas nessas faculdades aplicam-se, em geral, ao ensino escolar e não podem ser aplicadas com igual eficácia a todas as áreas do saber e em todos os níveis da educação, desde a escola até a pós-graduação” (8). “Muitas universidades possuem departamentos ou escolas de Educação, mas somente algumas incluem em suas missões o aprendizado na graduação ou conexões robustas em colaborações com membros do corpo docente de departamentos de ciência, tecnologia, engenharia e
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matemática” (7). “Os princípios que governam a natureza e condições de aprendizagem escolar podem ser descobertos somente através de um tipo de pesquisa aplicada ou em construção. Não podemos apenas extrapolar para a sala de aula as leis gerais básicas da aprendizagem, que são resultantes de experimentos de aprendizagem diferentes e extremamente mais simplificada” (3). As pesquisas sobre a educação científica desenvolvidas enquanto se ensina, possibilita a translação dos princípios de aprendizagem para a prática de ensino. Desenvolver trabalhos de pesquisa educacional sobre os processos de ensino-aprendizagem envolvidos na formação do pensamento científico e da prática científica em seus diversos níveis, da iniciação científica de escolares do ensino básico aos programas de pós-graduação, perpassando pelos professores do ensino médio e graduandos, exige uma nova articulação entre os pesquisadores, dentro de um ambiente multidisciplinar em prol da produção dos conhecimentos transdisciplinares da educação científica. Organizar-se para assumir a tarefa de ensinar-pesquisar-criticar o fazer-ciência exigirá a reorganização das instituições de produção científica através da adoção de propostas que valorizam a formação humanística de professores-pesquisadores simultaneamente à produção de artigos científicos. A Instituição Científica e a Escola Para nos reposicionarmos perante uma rotina, é necessária uma situação provocativa, que nos cause estranhamento. Desenvolver projetos de iniciação científica que tragam alunos e professores das escolas de ensino básico para dentro da universidade e levem universitários às escolas, além de fortalecer as relações da universidade com a sociedade, podem promover o estranhamento da rotina universitária e da rotina escolar. Estranhamento necessário para o descobrimento de soluções ao problemático distanciamento entre a pesquisa e o ensino, e entre as diferentes disciplinas do conhecimento. Os projetos universitários de iniciação científica nas escolas não podem ser encarados através das lentes políticas do assistencialismo universitário, mas como uma cooperação entre a universidade e a escola em prol da formação educacional complexa de seus alunos, professores e seus saberes. As habilidades inerentes ao cientista não podem ser classificadas como essenciais para a felicidade humana, nem mesmo como as melhores para a aquisição da verdade, mas podem, sem dúvida, auxiliar o desenvolvimento cognitivo da criança, do adolescente e do adulto. Se desenvolvermos estratégias educacionais de iniciação científica não limitadas aos “projetos de pesquisa”, será muito mais fácil conciliar a vivência científica com as vivências filosóficas, artísticas e espirituais. A iniciação científica deixará de ser apenas uma estratégia tecnológica de introdução do aluno na indústria da Ciência contemporânea, para tornar-se uma ferramenta integralizadora na formação do aluno e do professor, posicionando-os criticamente perante o mar sufocante de informações em que vivemos (9). Notas Explicativas: (1) Definimos “Educação” como toda interação inter-humana intencionalmente construída com o objetivo de transmitir conhecimentos e habilidades, envolvendo processos biológicos, psicológicos, sociais e espirituais. Consideramos que a aplicação e adaptação de conhecimentos científicos provenientes de pesquisas biológicas, psicológicas e sociais são capazes de aprimorar o processo educacional, caracterizando a Educação como o encruzilhamento tecnológico de diversas ciências humanas, tais como a Psicologia, Antropologia, Neurociência e Sociologia.
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(2) As características do conhecimento empregadas neste parágrafo foram adaptados da organização que Johannes Hessem empregou ao seu livro “Teoria do Conhecimento”, tradução de António Correia, 5. edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1970. (3) Ausubel, DP; Novak, JD; Henesian, H. Psicologia Educacional. Editora Interamericana, 2a edição, Rio de Janeiro, 1980, pg 13 a 21. (4) Os conceitos de paradigma e incomensurabilidade utilizados neste texto relacionam-se as teorias de Thomas Kuhn desenvolvidas no capítulo “O que são revoluções científicas?”, de seu livro “O caminho desde a estrutura”, São Paulo, Editora UNESP, 2003, pg 23-46. (5) Os termos “complexa” e “complexidade” utilizados neste texto relacionam-se as teorias de Edgar Morin, em sue livro “Introdução ao pensamento complexo”, Porto Alegre, Editora Sulina, 2006. (6) Pesquisar o que se ensina, neste contexto, associa-se tanto às teorias da investigação-ação quanto da pequisa-ação. Apesar do termo “Pesquisa-Ação” ter sido publicado, pela primeira vez, por K. Lewis em 1946, utilizamos a definição de David Tripp: “forma de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar para melhorar a prática”, e acrescenta que “as técnicas de pesquisa devem atender aos critérios comuns a outros tipos de pesquisa acadêmica, isto é, enfrentar a revisão pelos pares quanto a procedimentos, significância, originalidade, validade, etc.” Para Divid Tripp, “investigação-ação é um termo genérico para qualquer processo que siga um ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e investigar a respeito dela.” Ver Pesquisa-ação: uma introdução metodológica, Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n.3, p. 443-466, 2005. (7) Anderson, WA; Banerjee, U; Drennan, CL; Elgin, SCR, Epstein IR; Handelsman, J; Hatfull, GF; Losick, R; O`Dowd, DK; Olivera, BM; Strobel, SA; Walker, GC; Warner, IM. Changing the culture of science education at research universities. Sciense, vol. 331, 2011. (8) Meis, Leopoldo de. Ciência, Educação e o Conflito Humano-Tecnológico. Editora Senac, 2a edição, São Paulo, 2002, pg 73 a 75. (9) O termo “indústria da Ciência contemporânea” é aqui utilizado como uma adaptação da interpretação histórica apresentada no livro de Maria Amália Andery et. al. “Para compreender a ciência – uma perspectiva histórica”, Educ, 2004. *Gustavo Leopoldo Rodrigues Daré é médico endocrinologista, mestre em Clínica Médica pela FMRR-USP, colaborador em disciplinas pedagógicas nos programas de pós-graduação da FMRP-USP no Departamento de Pediatria da FMRP-USP de 2001 a 2008 e no Departamento de Clínica Médica desde 2010, bolsista da Casa da Ciência do Hemocentro de Ribeirão Preto desde 2010. _______________________________________________ PDF gerado por Kalin's PDF Creation Station
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