1 cap marian keyes sushi

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PRÓLOGO ― Droga ― pensou ela, ao se dar conta. ― Acho que estou tendo um colapso nervoso. Correu o olhar pela cama onde estava jogada. Seu corpo há muito necessitado de um banho espalhava-se letargicamente sobre o lençol há muito necessitado de uma troca. Lenços-de-papel encharcados e amassados atulhavam o edredom. A poeira se acumulava sobre um arsenal intacto de chocolates em cima da cômoda. A televisão no canto bombardeava sua cama sem trégua com a programação da manhã. Opa, colapso nervoso, não tinha nem talvez. Mas algo estava errado. O que seria? ― Sempre achei... ― ela arriscou. ― A verdade é que sempre esperei... Do nada, ela soube. ― Sempre achei que seria melhor do que isso... CAPÍTULO 1 Algo estava no ar havia semanas na redação da revista Femme, uma sensação de que um terremoto estava prestes a acontecer. As especulações chegaram ao auge quando se confirmou que Calvin Carter, o diretor superintendente da Randolph Media nos Estados Unidos, fora visto perambulando pelo último andar, à procura do banheiro dos homens. Pelo visto, acabara de chegar a Londres, do escritório central em Nova York. Está acontecendo. Lisa fechou os punhos de empolgação. Está finalmente acontecendo, acontecendo de verdade! Mais tarde, naquele mesmo dia, veio o telefonema. Será que Lisa não daria um pulo lá em cima para conhecer Calvin Carter e Barry Hollingsworth, o diretor superintendente da Randolph Media na Inglaterra? ― É pra já! ― berrou ela, batendo com o telefone. Seus colegas não se deram sequer ao trabalho de levantar os olhos. Pessoas batendo com o telefone e berrando em seguida eram figurinhas fáceis no jogo da revista. De mais a mais, estavam presos no Inferno da Data do Fechamento da Edição ― se não conseguissem fechar a edição daquele mês até o fim da tarde, perderiam o espaço na gráfica e seriam desbancados novamente por sua arquirival Marie Claire. Mas Lisa estava pouco se importando, pensou, mancando em direção ao elevador, pois não teria mais um emprego ali depois daquele dia. Teria um muito melhor, em outro lugar. Fizeram Lisa esperar vinte e cinco minutos do lado de fora da sala da diretoria. Afinal, Barry e Calvin eram homens muito importantes. ― Será que já não podemos deixá-la entrar? ― perguntou Barry a Calvin, quando achou que já tinham feito hora o bastante.


― Só se passaram vinte e cinco minutos desde que a chamamos ― observou Calvin, mal-humorado. Era óbvio que Barry Hollingsworth não se dava conta de o quanto ele, Calvin, era importante. ― Desculpe, achei que já tinha se passado mais tempo. Não gostaria de me mostrar outra vez como melhorar minha tacada? Quando Barry e Calvin finalmente deram permissão a Lisa para entrar, estavam sentados por trás de uma mesa de nogueira medindo aproximadamente um quilômetro de comprimento. Sua figura era de uma imponência assustadora. ― Sente-se, Lisa. ― Calvin Carter meneou gentilmente a cabeça, que parecia uma bala de prata. Lisa sentou-se. Alisou para trás os cabelos cor de caramelo, com isso realçando seus reflexos cor de mel gratuitos. Gratuitos porque ela vivia incluindo o nome do salão na seção "Fique de Olho" da revista. Acomodando-se na poltrona, trançou graciosamente os pés calçados com sapatos Patrick Cox. Os sapatos eram de um número pequeno demais para ela ― não importava quantas vezes pedisse à assessoria de imprensa da Patrick Cox para mandar um par trinta e nove, eles sempre mandavam um trinta e oito. Mas sapatos Patrick Cox de salto agulha grátis são sapatos Patrick Cox de salto agulha grátis. Que importância tinha um detalhe ridículo como a dor excruciante? ― Obrigado por subir até aqui. ― Calvin sorriu. Lisa achou melhor retribuir o sorriso. Os sorrisos eram uma mercadoria, como tudo o mais, uma coisa que só se dá em troca de algo útil, mas ela ponderou que nesse caso valeria a pena. Afinal, não era todo dia que uma mulher era nomeada redatora-chefe da revista Manhattan e transferida para Nova York. Por esse motivo, curvou os lábios e mostrou os dentes brancos como pérolas. (Assim mantidos graças ao estoque de um ano da pasta Rembrandt que fora doado para um concurso a ser promovido entre as leitoras, mas que Lisa achou que seria mais útil no seu banheiro.) ― Você já está na Femme há... ― Calvin olhou para as folhas grampeadas à sua frente. ― ...quatro anos? ― Vai fazer quatro anos mês que vem ― murmurou Lisa, com um misto de deferência e autoconfiança estrategicamente dosadas. ― E é editora há quase dois anos? ― Dois anos maravilhosos ― confirmou Lisa, resistindo ao impulso de enfiar os dedos na garganta e vomitar.


― E você só tem vinte e nove anos ― admirou-se Calvin. ― Bem, como você sabe, aqui na Randolph Media nós recompensamos os esforços de nossos funcionários. Lisa recebeu essa mentira deslavada com um piscar de olhos simpático. Como muitas empresas do mundo ocidental, a Randolph Media recompensava os esforços de seus funcionários com salários baixos, cargas de trabalho cada vez maiores, rebaixamentos e demissões sumárias. Mas Lisa era diferente. Estava em quite com a Femme, tendo feito sacrifícios que nem ela mesma pretendera fazer: pegar no batente às sete da manhã quase todos os dias, fazer jornadas de trabalho de doze, treze, quatorze horas seguidas, e ainda comparecer a reuniões de imprensa à noite, quando finalmente desligava seu computador. Muitas vezes ia trabalhar aos sábados e domingos, e até mesmo em feriados que caíam na segunda. Os porteiros tinham ódio dela, pois sempre que queria vir ao escritório, um deles era obrigado a ir trabalhar para abrir a porta e, portanto, perder sua pelada de sábado à tarde ou sua excursão familiar a Brent Cross no feriado. ― Temos uma vaga na Randolph Media ― disse Calvin, com ar importante. ― Seria um desafio maravilhoso, Lisa. Já sei, pensou ela, irritada. Vai direto ao ponto. ― Obrigaria o funcionário a se mudar para outro país, o que poderia ser um problema para o cônjuge. ― Sou solteira. ― Lisa foi brusca. Barry franziu a testa, surpreso, e pensou nos dez paus em que fora obrigado a morrer alguns anos atrás para a vaquinha de presente de casamento de alguém. Podia jurar que fora para Lisa, mas talvez não, talvez sua memória já não fosse mais o que era antigamente... ― Estamos procurando uma diretora para uma nova revista ― prosseguiu Calvin. Uma nova revista? Lisa perdeu completamente o rebolado. Mas a Manhattan é editada há setenta anos! Enquanto quebrava a cabeça tentando decifrar as implicações da notícia, Calvin desfechou o golpe final: ― Você seria obrigada a se mudar para Dublin. O choque produziu um zumbido abafado em sua cabeça, como se seus ouvidos estivessem tapados. Uma sensação de alienação, mescla de dormência e confusão mental. A única realidade era a súbita dor em seus dedos do pé massacrados. ― Dublin? ― Ela ouviu sua própria voz abafada perguntar. Talvez... talvez... talvez se referissem a Dublin, em Nova York.


― Dublin, na Irlanda ― disse Calvin Carter, como se sua voz saísse de um túnel longo e ecoante, enterrando de uma vez por todas a última esperança de Lisa. Não acredito que isso esteja acontecendo comigo. ― Irlanda? ― Um lugarzinho chuvoso do outro lado do mar da Irlanda ― informou Barry, solícito. ― Onde bebem à beça ― disse Lisa, num fio de voz. ― E falam pelos cotovelos. É esse o lugar. Uma economia em pleno crescimento e uma grande população de jovens. A pesquisa de mercado indica que o lugar está em ponto de bala para uma nova revista voltada para a mulher independente. E queremos que você crie essa revista para nós, Lisa. Olhavam para ela, cheios de expectativa. Ela sabia que a praxe seria gaguejar murmúrios chorosos e surpresos sobre a gratidão que sentia pela imensa confiança que depositavam nela e a grande esperança que nutria de justificar a fé que tinham em sua pessoa. ― Hum, que bom... Obrigada. ― Nosso portfólio irlandês é impressionante ― gabou-se Calvin. ― Editamos a Noiva Hibérnica, a Saúde Celta, a Interiores Gaélicos, a Jardinagem Irlandesa, a Juízo Católico... ― Não, a Juízo Católico está para fechar ― interrompeu-o Barry. ― As vendas estão despencando. ― a Tricô Gaélico ― prosseguiu Calvin, que não se interessava por más notícias ―, a Carro Celta, a Batata, que é a nossa revista irlandesa de culinária, a Bricolagem à Moda da Casa e a Super Hiber. ― Super Hiper? ― Lisa se forçou a perguntar. Era recomendável não parar de falar. ― Super Hiber ― corrigiu-a Barry. ― Abreviatura de Super Hibérnico. Uma revista para o homem jovem. Uma mescla da Loaded com a Arena. ― Qual vai ser o nome? ― Pensamos em Garota. Jovem, batalhadora, descolada, sexy, é assim que a imaginamos. Principalmente sexy, Lisa. Mas não intelectual demais. Pode ir tratando de esquecer as matérias deprimentes do tipo circuncisão feminina ou a falta de liberdade das mulheres no Afeganistão. Essa não é a nossa leitora-alvo. ― Você quer uma revista burra?


― Agora você disse tudo! ― Calvin ficou radiante. ― Mas eu nunca estive na Irlanda, não sei nada sobre o lugar... ― Exatamente! ― concordou Calvin. ― É justamente o que queremos: nenhum preconceito, só uma abordagem original e honesta. O mesmo salário, um pacote de remanejamento generoso, você começa daqui a duas semanas, na segunda. ― Duas semanas? Mas isso quase não me deixa tempo... ― Ouvi dizer que você tem uma capacidade de organização fantástica. ― Os olhos de Calvin brilharam, cruéis. ― Me impressione. Alguma pergunta? Ela não conseguiu se conter. Normalmente sorriria enquanto a faca era revirada, porque a dor era um preço pequeno a ser pago, comparada com o que estava em jogo. Mas agora estava em estado de choque. ― E o cargo de redatora-chefe na Manhattan? Barry e Calvin se entreolharam. ― Tia Silvano, da New Yorker, foi a candidata escolhida ― admitiu Calvin, malhumorado. Lisa assentiu. Sentia-se como se seu mundo tivesse acabado. Como uma autômata, levantou-se para sair. ― Quando tenho que dar uma resposta? ― perguntou. Barry e Calvin tornaram a se entreolhar. Por fim, Calvin se incumbiu de responder: ― Já contratamos alguém para seu cargo atual. O mundo entrou em câmera lenta quando Lisa compreendeu que se tratava de um fato consumado. Não tinha absolutamente nenhum poder de decisão sobre o assunto. Presa no grito que não conseguia soltar, demorou vários segundos para compreender que não lhe restava mais nada a fazer, a não ser sair mancando do aposento. ― Está a fim de uma partida de golfe? ― perguntou Barry a Calvin, quando ela saiu. ― Adoraria, mas não posso. Tenho que ir a Dublin entrevistar os candidatos para os outros cargos. ― Quem é o diretor superintendente irlandês atual? ― perguntou Barry.


Calvin franziu o cenho. Barry deveria saber. ― Um cara chamado Jack Devine. ― Ah, aquele. Meio rebelde. ― Não acho. ― Calvin era inimigo ferrenho dos rebeldes. ― Pelo menos, acho bom não ser. Lisa tentou dourar a pílula. Jamais admitiria que estava decepcionada. Ainda mais depois de todos os sacrifícios que fizera. Mas não se pode tapar o sol com a peneira. Dublin não era Nova York, não importa de que ângulo se olhasse para a questão. E o "generoso" pacote de remanejamento justificaria um processo por propaganda enganosa. Pior ainda, ela teria que renunciar ao seu celular. Seu celular! Era como se um membro de seu corpo fosse ser amputado. Nenhuma das colegas de Lisa ficou exatamente inconsolável com sua partida. Ela jamais deixara nenhuma delas usar seus sapatos Patrick Cox uma vezinha sequer, nem mesmo as que calçavam trinta e oito. E a prodigalidade de seus comentários venenosos e maledicentes havia lhe granjeado o apelido de Boa Peçonha. Não obstante, no último dia de Lisa, a equipe foi obrigada a se reunir na sala de reuniões para o bota-fora de praxe ― copos descartáveis, um vinho branco morno que poderia ser usado como removedor de tinta, uma bandeja com um leque medíocre de biscoitos salgados e o boato ― jamais concretizado ― de que os aperitivos de salsicha já estavam a caminho. Quando todos já estavam no terceiro copo de vinho e, por esse motivo, podia-se confiar que demonstrariam um pouco de entusiasmo, alguém pediu silêncio e Barry Hollingsworth fez seu clássico discurso, agradecendo a Lisa por tudo e desejando-lhe muitas felicidades. Todos concordaram que ele se saiu maravilhosamente bem. Principalmente porque conseguiu acertar o nome dela. Da última vez que alguém fora embora, ele fizera um discurso lacrimogêneo de vinte minutos louvando os talentos sem igual e a contribuição dada por uma certa Heather, enquanto Fiona, a homenageada, assistia, morta de vergonha. Então chegou a hora de dar a Lisa o vale de vinte libras em compras na Marks & Spencer e um grande cartão com o desenho de um hipopótamo e as palavras "Que pena que você vai embora!". Ally Benn, a redatora-chefe da Femme, escolhera o presente de despedida com todo o cuidado. Quebrara a cabeça imaginando o que Lisa mais odiaria e, por fim, concluíra que nada lhe daria maior desgosto do que o vale da Marks & Spencer. (Ally Benn calçava trinta e oito certinho.) ― Um brinde a Lisa! ― concluiu Barry. A essa altura todo mundo já estava bêbado e agitado, de modo que ergueram seus copos de plástico, entornando vinho e lascas de cortiça nas roupas e, às risadinhas e cotoveladas, berraram: "A Lisa!"


Lisa só se demorou estritamente o necessário. Há muito andava ansiosa por esse botafora, mas sempre pensara que sairia por cima, já com o pé em Nova York. E não escorraçada para uma revista que era a versão jornalística da Sibéria. Era um pesadelo completo. ― Preciso ir ― disse ela às aproximadamente doze mulheres com quem trabalhara durante os últimos dois anos. ― Tenho que terminar de fazer as malas. ― Claro, claro ― concordaram, numa algaravia bêbada de votos de felicidades: ― Bom, boa sorte, divirta-se, aproveite a Irlanda, se cuide, não vá trabalhar demais... Assim que Lisa chegou à porta, Ally gritou: ― Vamos sentir sua falta... Lisa assentiu, séria, e fechou a porta. ― ...no dia de São Nunca! ― Ally não perdia uma. ― Sobrou vinho? Ficaram até a última gota de vinho ser bebida e a última migalha de biscoito limpa da bandeja com um dedo lambido, e então voltaram-se umas para as outras e perguntaram, num tom perigosamente animado: "E agora?" Despencaram-se em peso para o Soho, invadindo os bares e bebendo tequila, a típica farra das executivas nas noites de sexta. A pequena Sharif Muntaz (editora assistente de variedades) perdeu-se do grupo e voltou para casa graças à ajuda de um bom homem, com quem se casou nove meses depois. Jeanie Geoffrey (editora assistente de moda) ganhou uma garrafa de champanhe de um homem que declarou que ela era "uma deusa". A bolsa de Gabbi Henderson (saúde e beleza) foi roubada. E Ally Benn (recém-nomeada diretora) subiu numa mesa num dos bares mais animados de Wardour Street e dançou feito uma louca até despencar e sofrer fraturas múltiplas no pé direito. Em suma, uma grande noite.


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