“Breve interpretação d’O Mandarim de Eça de Queirós”
Burghard Baltrusch
“Breve interpretação d’O Mandarim de Eça de Queirós” (Burghard Baltrusch)
Caricatura a O Mandarim: «Eça de Queiroz (o seu último romance O Mandarim em publicação no Diário de Portugal)», in O António Maria, Jul. 1880, p. 230
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“Breve interpretação d’O Mandarim de Eça de Queirós”
Burghard Baltrusch
Ainda que pertença à segunda fase da criação literária de Eça de Queirós, O Mandarim (1880) foge em alguns aspectos ao conceito de um realismo como mera "anatomia do carácter" e "crítica do homem", como o tinha postulado nos tempos das Conferências do Casino e, depois, realizado nos grandes romances dos anos 1871 a 1880. Os elementos fantásticos deste romance, que têm certas afinidades com A Relíquia (1884), lembram as ainda románticas Prosas Bárbaras (postumamente publicado em 1903) da sua juventude. Assim, n'O Mandarim confrontamse dois mundos: Por um lado temos o Portugal do constitucionalismo paralisador, a mesquinhez e a hipocrisia da burguesia portuguesa oitocentista e, por outro lado, o devaneio estético da fantasia, justificado já na "carta que deveria ter sido um prefácio", o exotismo asiático, dois mundos que se desvalorizam mutua e ironicamente. Fantasia e descrição naturalista fundem-se - um traço estilístico que se intensifica nos últimos romances de Eça: Em A Relíquia será a Palestina bíblica e n'A ilustre Casa de Ramires (1897) a Idade Média portuguesa. As reminiscências do romantismo revelam-se também na concepção panteísta, segundo a qual a vida e a consciencia moral são atributos de uma substância comum. O ateu Teodoro considera, em consonância com o diabo, vida e morte como banais transformações da matéria. Esta
ideia
oriental
e
pitagórica
da
metempsicose entra em conflito com a concepção idealista de que existe uma consciência moral humana com uma intuição da justiça. Teodoro sofre, assim, da
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manifestação de visões alucinatórias do Mandarim que o Diabo lhe permitira assassinar, a fim de lhe herdar a fortuna. As fontes do mito de um crime perfeito remontam até à antiguidade (Cícero, Quintiliano), onde já estava demarcada a ideia de que este só podia ser impedido por um Deus omnisciente, que estivesse espelhado na consciência individual sob a forma de moral ou remorso. Eça chegou a conhecê-lo, seguramente, em Rousseau e Balzac, ainda que as primeiras referências se encontrem em Le génie du christianisme (1803) de Chateaubriand. Mas “Tuer le mandarin”
foi Balzac que, no Père Goriot (1834), deu origem ao provérbio “tuer le Mandarin” (que aparece em 1873 no dicionário Larousse), no sentido de praticar um crime perfeito por causa de uma ambição pessoal, um tema que, depois, teve grande êxito nos romances franceses oitocentistas. A concepção fantasista, no entanto, não diminui as componentes realistas desta novela. Já no prólogo dialogal de dois amigos, o segundo locutor aceita a proposta do primeiro de fazer fantasia, mas recomenda sobriedade e uma moralidade discreta. Desta maneira, o diabo, um cavalheiro bem educado, adverte que o assassínio é somente um método de equilibrar as necessidades universais, um desorganizar-se da matéria, cujos átomos se reconstituirão novamente à favor das necessidades
de
outra
pessoa.
Neste
panteísmo
"diabólico", o diabo e as suas sugestões perdem tudo o que poderiam ter de assustador. Comparado com o mito de Fausto, não há acções violentas, nem pacto assinado com sangue. O pacto consume-se subtilmente com o simples tocar de uma campainha. Teodoro já superou, de certa maneira, aquela busca do conhecimento e do mais profundo sentido das coisas, que ainda está na base dos 3
On lit dans le Père Goriot, de Balzac, roman qui date de 1835, ce dialogue entre Rastignac et Bianchon : « — As-tu lu Rousseau ? » — Oui. » — Te souviens-tu de ce passage où il demande à son lecteur ce qu'il ferait au cas où il pourrait s'enrichir en tuant à la Chine un vieux mandarin, sans bouger de Paris...» (Édit. Houssiaux, 1870, 9me vol., p. 411.) Rastignac était-il bien sûr d'avoir vu cela dans Rousseau, et ne confondait-il pas avec un passage du Génie du christianisme, où Chateaubriand s'exprimait ainsi : « O conscience ! ne serais-tu qu'un fantôme de l'imagination, ou la peur des châtiments des hommes ? je m'interroge ; je me fais cette question : « Si tu pouvais par un seul désir, tuer un homme à la Chine et hériter de sa fortune en Europe, avec la conviction surnaturelle qu'on n'en saurait jamais rien, consentirais-tu à former ce désir ?» (Ire partie, livre VI, chap. II : Du remords et de la conscience.) Une chanson de Louis Protat, intitulée : Tuons le mandarin, évidemment postérieure au roman de Balzac, porte comme épigraphe ces quelques lignes que le chansonnier attribue à Rousseau : « S'il suffisait, pour devenir le riche héritier d'un homme qu'on n'aurait jamais vu, dont on n'aurait jamais entendu parler, et qui habiterait le fin fond de la Chine, de pousser un bouton pour le faire mourir... qui de nous ne pousserait pas ce bouton et ne tuerait pas le mandarin ?... » Enfin, MM. Albert Monnier et Edouard Martin ont donné au Palais-Royal, le 20 novembre 1855, sous le titre : As-tu tué le mandarin ? un petit acte dans lequel ils ont reproduit de confiance (scène II) la prétendue citation de Rousseau. Si donc, comme cela paraît à peu près certain, il y a ici une erreur d'attribution, c'est Balzac qui a été le premier coupable, et c'est de son roman qu'est née la formule : tuer le mandarin, qui n'existe qu'à l'état embryonnaire dans le passage de Chateaubriand. (http://www.dicoperso.com/term/471,10,xhtml)
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conflitos dos Faustos de Goethe e de Lenau e ainda continuará presente, depois, no Fausto - Tragédia Subjectiva de Fernando Pessoa. O seu impulso não é nenhum desejo espiritual, mas, pelo contrário, o "ennui" (tédio), que constituia já o ponto de partida dos Fleurs du Mal (1857) de Baudelaire. No tédio do dia a dia medíocre e monótono do amanuense do Ministério do Reino, aparece o diabo como uma realidade humana: Impele a Teodoro a tocar a campainha, mas tem de limpar uma lágrima, quando o Mandarim cai morto e quase reza pela sua metempsicose. Esta carácteristica dialéctica do diabo sugere a sua íntima relação panteísta com a consciência de Teodoro e a aspiração materialista deste. O que Teodoro lê num livro comprado na Feira da Ladra, realiza-se palavra por palavra, a ficção de segundo grau sobe ao primeiro plano, o que corresponde à fusão de fantasia e realidade nesta novela num jogo às escondidas do autor/narrador/protagonista. (A possibilidade de Eça ter-se identificado com Teodoro sugere, por exemplo, o facto de os dois terem sido ateus muito supersticiosos e terem sofrido de constantes crises financeiras). A duplicidade da forma narrativa e do conteúdo narrado é constantemente variado, até ao paradoxo final entre o remorso inextinguível e a sua única consolação possível, que é a da certeza que nenhum dos leitores se comportaria de maneira diferente. No final, ao evocar outra vez o poema inicial dos Fleurs AU LECTEUR
du Mal, Teodoro atribui ao público leitor os mesmos impulsos egoistas e materialistas e confronta-o com a pergunta insinuante de um romance dentro do romance: "tocarás tu a campainha?". Esta construção antitética é levada até as suas últimas consequências que consistem em Teodoro supor que o leitor o fará e advertendo-o, ao mesmo tempo, que não faça semelhante coisa.
[...] Mais parmi les chacals, les panthères, les lices, Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents, Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants Dans la ménagerie infâme de nos vices, Il en est un plus laid, plus méchant, plus immonde! Quoiqu'il ne pousse ni grands gestes ni grands cris, Il ferait volontiers de la terre un débris Et dans un bâillement avalerait le monde; C'est l'Ennui!--L'oeil chargé d'un pleur involontaire, Il rêve d'échafauds en fumant son houka. Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat, --Hypocrite lecteur,--mon semblable,--mon frère! (Charles Baudelaire, Les fleurs du mal
N'O Mandarim temos, portanto, um tratamento bastante inovador da situação fáustica do ser humano em geral. O conflito já não lhe é legado por uma entidade 4
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divina externa, mas é, desde já, internalizado. O diabo não torna a aparecer no final e o testamento que lhe lega toda a fortuna de Teodoro é, somente, um símbolo de esta ficar no mundo para uso de futuros desgraçados e desgraçadas como ele. A moralidade discreta que o prólogo requeria, que se baseia numa concepção idealista de integridade moral e de sobriedade, é aguada, senão desmentida, pelas restantes intenções realistas da novela. A apresentação exótica de uma China semicolonizada evoca, em primeiro lugar, uma crítica anti-colonialista e anti-imperialista, facto que se demonstra pela dependência da burocracia chinesa das exigências do embaixador Camilof. As Cartas de Inglaterra e os Ecos de Paris, postumamente publicados, revelam o desejo de Eça, que surgiu, possivelmente, da sua experiência diplomática, de demascarar o imperialismo mesmo em pormenores idílicos. Tal acontece com a missão católica no meio da China, onde crianças chinesas são obrigadas a decorar as declinações latinas para poderem seguir a liturgia católica, o que é contrastado com o ambiente acolhedor em que repousa Teodoro. A sátira do servilismo a uma sociedade de classes, que adora o poder do dinheiro como um deus, estabelece-se
Delegação Britânica na China, «The british consulate from the Peiho river» in The llustrated London News, 1873 “Esquecia-me dizer que mudámos de padeiro: fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada inglesa: deixámos a da Embaixada francesa para não Ter comunicações com o galho seco ... Aí estão os inconvenientes de não termos aqui na Embaixada russa uma padaria - apesar de tantos relatórios, tantas reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito para a chancelaria de S. Petersburgo! Eles sabem bem que em Pequim não há padarias, que cada legação tem a sua própria, como um elemento de instalação e de influência.” (O Mandarim)
numa confrontação irónica da burocracia chinesa com a pequena e alta burguesia portuguesa. O quadro de costumes da pensão da Madame Marques, onde Teodoro mora, lembra-nos a "pension Vauquer" do Père Goriot de Balzac que, em oposição à ironia enternecida que envolve a sua correspondente portuguesa, é descrita com um cepticismo irónico bastante mais severo. O carinho com que o narrador trata a brandura de costumes lusa sugere, outra vez, uma certa auto-ironia queirosiana, uma certa identificação do autor com Teodoro. O paradoxo tem uma presença constante nesta novela: A hipocrisia moral do ateu Teodoro que ergue uma catedral a Nossa Senhora das Dores; o seu patriotismo sentimental que contrasta com o exibicionismo cínico que demonstra, como narrador, relativamente a Portugal (especialmente nos
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diálogos com Camilof). Esta têcnica narrativa alastra-se até ao nível linguístico. Teodoro intenta comprar tudo, até as mulheres. O verbo "amar" emprega-o simplesmente no sentido de relação sexual, ainda que no Portugal oitocentista "amar" tenha tido uma conotação exclusivamente ideal e sentimental. Com este uso fora do comum, o autor desvenda a atitude hipócrita da sociedade perante a realidade quotidiana. A dialectização contínua das intenções humanas, as inconsequências do comportamento efectivo humano, indicam que nos seres humanos não há inteira consciência do que estão a fazer. Disto advêm consequências tão graves como as que Teodoro causou tocando a campainha: colonialismo, imperialismo, injustiça social e o uso da religião pelos detentores do poder para desviar a atenção da plebe dos seus problemas. A falta de reflexão em Teodoro inicia, de certa maneira, a morte do mandarim. Por outro lado, esta mesma reflexão, depois de realizar os efeitos da própria acção, desencadeia um conflito na sua consciência. Através da morte do mandarim, Teodoro é confrontado com a ideia da Morte. A imaginação que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo como algo perfeitamente real, tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua família e com a visão do Mandarim morto. A sua decisão de tornar-se dono do seu próprio destino, coincide com o despertar da sua consciência (em ambos sentidos). A única solução deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma será, afinal, a morte e a conciliação com o facto de o seu público leitor, de todo o ser humano resultar-lhe igual na sua condição de "criatura improvisada por Deus, obra má de má arguila, meu semelhante e meu irmão" e que destruiria o mundo se pudesse fugir do "ennui".
Loja Chinesa, in The Illustrated London News, 1873 “A cada momento parávamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas verticais de letras douradas sobre fundo escarlate: os fregueses, num silêncio de igreja, subtis como sombras, vão examinando as preciosidades porcelanas da dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swaton (...) ao fundo o mercador, aparatoso e imóvel, escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de sândalo: e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e entristece...” (O Mandarim)
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