Estudos sobre utopia e ficção em José Saramago

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Ibero-Romance Studies in Literature and Translatology – Studies in Contemporary Literature, vol. IV Series editors: Camiño Noia Campos, Burghard Baltrusch, Teresa Bermúdez and Gabriel Pérez Durán

iBroLiT Estudos Iberorrománicos de Literatura e Tradutoloxía Ibero-Romance Studies in Literature and Translatology

Honorary Editor: Camiño Noia Campos

Editorial Board: Burghard Baltrusch, Teresa Bermúdez Montes, Gabriel Pérez Durán

Advisory Board: Silvia Bermúdez Ana Paula Ferreira Susana Kampff Lages Ria Lemaire Mertens Inocência Mata Lênia Márcia Mongelli Cláudia Pazos Alonso John Rutherford Kathrin Sartingen Fernando Venâncio Yara Frateschi Vieira Michaela Wolf

(University of California, Santa Barbara) (University of Minnesota) (Universidade Federal Fluminense) (Université de Poitiers) (Universidade de Lisboa) (Universidade de São Paulo) (University of Oxford) (University of Oxford) (Universität Wien) (Universiteit van Amsterdam) (Universidade Estadual de Campinas) (Karl-Franzens-Universität Graz)

Editorial Contacts: GAELT Universidade de Vigo, Facultade de Filoloxía e Tradución 36310 Vigo, Galiza / España bermudezteresa@uvigo.es | http://gaelt-uvigo.blogspot.com


Burghard Baltrusch (ed.)

“O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” Estudos sobre utopia e ficção em José Saramago

Verlag für wissenschaftliche Literatur


© Series Design: X. Bieito Arias Freixedo & Gabriel Pérez Durán © Photographs of Casa dos Bicos/Fundação José Saramago: Burghard Baltrusch.

This edition has been funded by the GAELT research group of the University of Vigo (H012, 2010–2013). Revision of the texts: Burghard Baltrusch & Ana Bela Almeida. Layout: Rita Bugallo.

ISBN 978-3-86596-494-6 ISSN 2194-752X © Frank & Timme GmbH Verlag für wissenschaftliche Literatur Berlin 2014. Alle Rechte vorbehalten. Das Werk einschließlich aller Teile ist urheberrechtlich geschützt. Jede Verwertung außerhalb der engen Grenzen des Urheberrechtsgesetzes ist ohne Zustimmung des Verlags unzulässig und strafbar. Das gilt insbesondere für Vervielfältigungen, Übersetzungen, Mikroverfilmungen und die Einspeicherung und Verarbeitung in elektronischen Systemen. Herstellung durch das atelier eilenberger, Taucha bei Leipzig. Printed in Germany. Gedruckt auf säurefreiem, alterungsbeständigem Papier. www.frank-timme.de


Konkrete Utopie steht am Horizont jeder Realität; reale Möglichkeit umgibt bis zuletzt die offenen dialektischen Tendenzen-Latenzen. A utopia concreta encontra-se no horizonte de toda realidade; a possibilidade real compreende, até ao último instante, as tendências-latências dialécticas abertas.

(Ernst Bloch 1959: 258)


Índice “O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” – sobre utopia e ficção em José Saramago Burghard Baltrusch

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Apresentação dos estudos

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Utopia e ficção em José Saramago

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José Saramago: da realidade à utopia. O Homem como lugar onde Ana Paula Arnaut

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A nova Mensagem do trans-iberismo – sobre alguns aspectos utópicos e metanarrativos no discurso saramaguiano Burghard Baltrusch

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Tradução e utopia pós-colonial – a intervenção invisível de Saramago Ana Paula Ferreira

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José Saramago e a iberização do português. Um estudo histórico Fernando Venâncio

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Memorial do Convento de José Saramago: crítica e utopia no uso da técnica da enumeração José Cândido de Oliveira Martins

127

Mulher e utopia em José Saramago – a representação da Blimunda em Memorial do Convento Burghard Baltrusch

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O Conto da Ilha Desconhecida – possibilidades imaginárias Rosângela Divina Santos Moraes da Silva

181

O labirinto da memória: a Guerra Civil de Espanha em O Ano da Morte de Ricardo Reis Ângela Maria Pereira Nunes

197

José Saramago: “Cadeira” ou a queda de Salazar Isabel Araújo Branco

217

Sobre a convergência do espaço literário, cultural e político como questionador de uma identidade social em José Saramago Raquel Baltazar

227

“Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso” – realidade e ficção no romance A Viagem do Elefante de José Saramago Yvonne Hendrich

241

Nationale und koloniale Identitäten im historischen Roman: José Saramagos A Viagem do Elefante Verena-Cathrin Bauer

263

Autoras e autores

279

Bibliografia 285 Índice temático-onomástico

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“O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia” – sobre utopia e ficção em José Saramago Burghard Baltrusch

A vontade utópica autêntica não é de modo nenhum uma ambição infinita, pelo contrário, ela quer o meramente imediato e, dessa forma, o conteúdo não possuído do encontrar-se [Sich-Befinden] e do estar-aí [Da-Sein] finalmente mediado, aclarado e cumprido, cumprido de modo adequado à felicidade. (Ernst Bloch)1

Sobre a crítica do discurso utópico em Saramago O título deste volume parte de uma intervenção de José Saramago durante a conferência “Quixotes hoje: utopia e política”,2 aquando do V Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2005): “Atenção, muita atenção, porque eu vou pronunciar uma frase histórica: o que transforma o mundo é a necessidade “Der echte utopische Wille ist durchaus kein unendliches Streben, vielmehr: er will das bloß Unmittelbare und derart so Unbesessene des Sich-Befindens und Da-Seins als endlich vermittelt, erhellt und erfüllt, als glücklich-adäquat erfüllt” (1959: 20, trad. minha). 2 Onde partilhou palco com Ignacio Ramonet, Federico Mayor Zaragoza, Eduardo Galeano, Luiz Dulci e Roberto Savio; parcialmente disponível em formato vídeo em Saramago 2005c (as transcrições seguintes são minhas). 1

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e não a utopia”.3 Tanto neste debate como também nas entrevistas dadas por ocasião da sua participação no Fórum, Saramago defendeu uma postura aparentemente paradoxal em relação ao conceito de utopia, uma das ideiaschave escolhidas para aquele congresso (“Um outro mundo é possível”). Embora uma versão abreviada acabe de ser publicada, de forma póstuma, na revista Blimunda (Saramago 2014), preferimos transcrever algumas das passagens centrais do discurso oral do autor, uma vez que se trata de uma intervenção de grande impacto nos meios de comunicação social e que resulta especialmente significativa para o tema deste volume: Tenho uma má notícia para vos dar […]: eu não sou utopista. E, pior notícia ainda, considero a utopia, ou o conceito de utopia, não só inútil como também tão negativo […] como a ideia de que quando morremos todos vamos para o paraíso. A utopia, segundo se diz, começou com Thomas More, com o seu livro Utopia, publicado em 1516, e isso coloca o nascimento de uma palavra, de uma ideia, mas podíamos ir muito mais atrás, podíamos ir a Platão. No fundo, a utopia nasce sem nome. E talvez o que esteja a atrapalhar aqui tudo isto seja o nome porque, curiosamente, tudo quanto foi dito antes podia ter sido dito com igual rigor […] sem a introdução da palavra utopia. Demonstrarei, ou pelo menos tentarei demonstrar mais adiante, [que] há uma questão que é indissociável da utopia […], ou do anseio do ser humano por melhorar a vida (e não só no sentido material), [por] melhorála também no sentido […] da dimensão espiritual, [da] dimensão ética, [da] dimensão moral. Está indissociavelmente ligada, e parece que não, à revitalização e, se quiserem, à reinvenção da democracia. [Para] os 5 milhões de pessoas que vivem na miséria […] a palavra utopia não significa rigorosamente nada. (Saramago: 2005c)

A sua “frase histórica”, no sentido de o que transforma o mundo ser a necessidade e não uma utopia, relacionou-a, também, com o D. Quixote que, no final da sua trajectória fictícia resolve voltar a ser Alonso Quijano, […] por regressar aonde principiou: à humilde razão humana com a qual temos que viver e com a qual temos de trabalhar. Curiosamente, muitíssimos anos Não existe um registro escrito por Saramago desta frase. Foi pronunciada já na fase das perguntas da intervenção referida e recolhida, de forma independente, e com ligeiras variantes, em Gutkoski 2005, Joffily 2005: 36 (que é a que aqui reproduzimos), Reis 2005 e Santiago 2005. 3

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depois de Platão, e muitíssimos anos depois de Thomas More e bastantes anos depois também de Fourier, […] outro ideólogo da utopia, aparece um poeta francês chamado Rimbaud que escreveu meia dúzia de palavras que são essenciais em tudo isto quanto estamos a dizer aqui. Esse verso diz simplesmente isto: “la vraie vie est ailleurs” […]. Por aqui se podia estabelecer um nexo de utopia entre, por exemplo, Thomas More e o que haja de utópico em D. Quixote […]. No fundo D. Quixote é um pragmático. (Saramago: 2005c)

Também José Saramago tem sido, neste sentido, um pragmático ao insistir que a importância da utopia não reside no seu significado etimológico como ‘não-lugar’, como esperança espácio-temporal sempre adiada para um futuro longínquo, mas na sua possível transformação em “acção contínua” imediata, o que chegou a definir como “a minha utopia” (Saramago 2005b):4 Quando vos digo que não sou um utopista e que até tenho que dizer, com toda a franqueza, que me desagrada […] o discurso sobre a utopia porque […] é o discurso sobre o não existente. […] O grande equívoco em que caímos todos [que falamos de utopia] é imaginar que aquilo que nós precisamos hoje, mas que não podemos ter por faltarem os meios […], [é] um pormenor muito simples: quem é que nos garante que as pessoas que então estejam no mundo […] — porque daqui em 150 anos ninguém de nós estará vivo para o ver —, quem é que nos garante que eles estarão interessados em aquilo em que nós agora estamos interessados? […] Então, aquilo que a mim me parece como mais sobriamente, menos retoricamente e, se permitem, até menos demagogicamente, é dizer que o único lugar no tempo onde […] o nosso trabalho pode ter um efeito, e que esse possa ser reconhecido por nós, discutido por nós, contrastado por nós, para passar ao futuro imediato, é o dia de amanhã. O dia de amanhã é a nossa utopia. (Saramago 2005c; cf. também 2005b) Cf. também: “[Que se] teria de inventar, em Porto Alegre, enfim, algo que não fosse uma ONG, que se dilui na quantidade quase astronómica de ONGs, mas que fosse, efectivamente, que se apresentasse como um fórum de debates de ideias não simple[s]mente que as pessoas se encontram e vão ter ideias e ficam, enfim, contentes com isso e vão aprender algo, e comunicar algo, mas que seja mais do que isso. Que seja um instrumento para a acção.” (Saramago 2005b). 4

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Há nestes enunciados bem mais do que uma retórica graciosa, uma vez que remetem para a histórica controvérsia ideológica entre socialismo (utópico) e marxismo. Em Porto Alegre, antes de colocar a questão de uma prevalência da necessidade do ser sobre as ideias e a boa-fé transformadoras, Saramago fez algumas referências muito breves aos textos fundadores do pensamento utópico, porém, eram suficientes para deixar entrever a sua intenção: em Platão ainda não constava um emprego do conceito de utopia, embora A República apresente a ideia de um estado perfeito, associado à perfeição das ideias, da qual o mundo terrenal é só uma imitação inconclusa. Muitos séculos depois, inspirada por esses princípios platónicos, a Utopia de Thomas More (1516) esboça uma ilha imaginária, onde uma sociedade perfeita daria direito à educação e à saúde, sem necessidade de propriedade. Esta utopia surge em paralelo com a chegada de navios europeus a outras terras no Atlântico, onde More acaba por situar a sua ilha descrita, precisamente, por uma personagem portuguesa, Rafael Hythloday, companheiro de viagem de Américo Vespúcio. Este Rafael faz uma crítica da sociedade europeia da época e da sua economia pré-capitalista, com cuja actualidade Saramago talvez tenha concordado: Though, to speak plainly my real sentiments, I must freely own that as long as there is any property, and while money is the standard of all other things, I cannot think that a nation can be governed either justly or happily: not justly, because the best things will fall to the share of the worst men; nor happily, because all things will be divided among a few (and even these are not in all respects happy), the rest being left to be absolutely miserable. (More 2005: 35)

Embora haja quem diga que, até certo ponto, a utopia de More talvez tenha tido uma intenção meramente satírica, a sua influência sobre o uso do conceito e a posterior evolução de uma literatura utópica e distópica provou ser fundamental. A partir de Utopia, o termo penetrou no vocabulário político-social da época, designando qualquer sistema de governo imaginário, incluindo, em retrospectiva, a República de Platão. Porém, uma utopia como conceito uniforme e universal sempre acabaria por ter um carácter totalitário. É justamente esta apreciação crítica que 12


transparece nas palavras de Saramago quando designa, como única utopia válida, o impulso de mudar a realidade (através da “acção contínua”, cf. supra), uma ideia que também ilustram, de uma forma muito plástica, os enredos e as principais personagens dos seus romances. No entanto, a sua crítica da utopia continua a ser uma contribuição para o debate iniciado pelos fundadores do marxismo (cf. Joffily 2005) que se tinham dirigido, no seu Manifesto do Partido Comunista (1848), contra os “diferentes sistemas utópicos” (Marx & Engels 1973: 58) no contexto do socialismo e comunismo novecentistas. Concretamente, Marx e Engels tinham questionado as propostas e iniciativas social-utopistas de Henri de Saint-Simon, Robert Owen e Charles Fourier, por estes não terem reconhecido a capacidade do proletariado para a organização e acção históricas auto-determinadas (cf. ibid.: 490). Assim, os fundadores do marxismo aproximaram o utópico do reaccionário, uma crítica que ainda subjaz, embora de forma bastante actualizada, às reflexões saramaguianas. Em “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, Friedrich Engels (1880) chegou a consolidar a conotação pejorativa do conceito, constatando que o socialismo científico representaria o fim da utopia. Embora Saramago tenha reclamado, reiteradamente, uma revisão integral do conceito de esquerda (cf. 2005c), a sua crítica da utopia ainda lembra, vagamente, o discurso novecentista de Engels: “As causas fundamentais de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas […] na filosofia mas na economia da época em questão” (Engels 1973: 210, trad. minha), ou seja, por extensão, na práxis em geral. É este pragmatismo que reaparece, transformado e adaptado às circunstâncias políticas e sócio-económicas da globalização, na defesa que realizou Saramago das figuras de Sancho Pança e D. Quixote (2005c). Como era de esperar, o autor de Jangada de Pedra não ficou ancorado na perspectiva marxista que ainda vigora em certos autores actuais que, como Jameson, consideram que a utopia não nos ajuda a imaginar um futuro melhor e só demonstra a “nossa total incapacidade de imaginar tal futuro” (2006: 169). Saramago, porém, ao reduzir o valor da utopia à imediatez do amanhã, deixou uma porta aberta para a salvação de certos aspectos positivos da ideia utópica: 13


Se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários. Mas claro, não posso, não devo e nem o faria. [...] [H]á que reconhecer que os jovens são muito sensíveis à ideia da utopia. [...] se eu tivesse que substituí-la, então, enfim, substituí-la-ia por uma palavra que já existe: esta palavra é simplesmente amanhã. [...] Porque o amanhã é a única utopia [...]. (Saramago 2005b)

Saramago estava consciente de que uma substituição completa da utopia pelo pragmatismo, como a propõe uma corrente central do marxismo, viria desembocar em discurso neo-liberal. O slogan “there is no alternative”, exaustivamente usado por Margaret Thatcher, nos anos de 1980, para enfatizar a bondade da globalização capitalista e do livre comércio para as sociedades modernas, poderia ser invocado como exemplo de um discurso pragmático radicalizado. Assim, a crítica saramaguiana da utopia não pretende excluir certas possibilidades de reabilitação, como aquela exposta por Karl Mannheim que, em Ideologia e Utopia (1929), adverte para o perigo de que um “desaparecimento da utopia conduza a um estado de coisas estático, no qual o próprio ser humano é transformado em coisa” (1965: 225, trad. minha). O discurso de Saramago aproxima-se, assim, do conceito utópico de Ernst Bloch que se tinha distanciado, em O Princípio Esperança (1959), da crítica realizada por Marx e Engels, como também das noções abstractas de More e Fourier, entre outros. O filósofo neomarxista propunha o oximoro de uma “utopia concreta” que estaria “no horizonte de toda a realidade” como uma “possibilidade real” (1959, 3: 258). Ao colocá-lo neste contexto, o discurso saramaguiano de uma resistência antiglobalização ultrapassa o debate histórico entre os socialismos utópico e científico. Na sua intervenção de 2005, o Nobel português também usara a metáfora do Quixote reescrito por Pierre Ménard, do conhecido conto de Borges, relacionando-a com a necessidade de redefinição ou retradução constante dos conceitos de utopia ou justiça, entre outros (cf. Saramago 2005c). A sua distância crítica a respeito de um conceito tradicional da utopia reflecte, além disso, a tensão contínua entre pessimismo e optimismo numa obra que sempre oscilou entre uma concepção marxista da História e a sua transformação ou em “dialéctica negativa” (Adorno 1966) ou em semiótica da resistência (cf. p. e. Tarasti 2009). Partindo de uma atitude relativamente próxima do “optimismo militante” de Bloch (1959, 1: 144),5 Saramago 5

Cf. também a proposta de I. Rocha 2009.

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sempre fez questão de pôr em causa as grandes metanarrativas e estruturas sócio-culturais como a religião ou a própria democracia. Em relação a esta última, poderíamos tornar a evocar a conferência de 2005 em Porto Alegre, onde entreteceu as grandes questões da utopia e da democracia na actualidade.6 Em consequência, no pensamento ideológico e literário de Saramago a utopia de uma organização social baseia-se, antes, na ideia de solidariedade, de resistência popular e de activismo anti-sistémico, tal como o ilustram A Jangada de Pedra (1986) ou o Ensaio sobre a Cegueira (1995), por exemplo. É uma “utopia como práxis” (I. Rocha 2009: 8), cuja literarização tem vindo a questionar as diferentes institucionalizações sistémicas do conceito de realidade, uma realidade à qual só podemos aceder através das suas representações culturais. Quando Linda Hutcheon observou, em 1988, que “the relation of power to knowledge and to historical, social, and ideological discursive contexts is an obsession of postmodernism” (86), já era evidente que a obra saramaguiana até então correspondia a esta interpretação, para não falar da obra posterior. Porém, o que o autor português acrescenta a um certo mainstream na teorização pós-modernista da literatura, e da cultura em geral, motivado talvez pela própria experiência sócio-cultural, é o ímpeto semiótico, estético e político da resistência:7 Só podemos mudar as representações culturais institucionalizadas ao demonstrarmos, incessantemente, o seu carácter de construção, sempre artificial e ideológico, ou seja, ao praticarmos, crítica e continuadamente, uma tradução cultural, histórica e sócio-política do legado sistémico.8 “Não se repara em que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar o governo de que não gosta, e é por outro de que talvez venha a gostar, nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos qual é: as grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial de Comércio, os bancos mundiais, a OCDE, tudo isso; nenhum destes organismos é democrático. […] Quem é que escolhe os representantes dos países nestas organizações? Os respectivos povos? Não. Onde é que está então a democracia?” (Saramago: 2005c, cf. também 1993 ou 2002b). 7 Cf. também Arnaut: “no que diz respeito à cena literária portuguesa, não julgamos ser conveniente aceitar as teorias relativas ao facto de, no (re)aproveitamento que fazem do passado histórico, os textos post-modernistas consubstanciarem uma redução apolítica da História à estética, com o consequente afastamento em relação a qualquer forma de ideologia” (2010b: 137). 8 Em termos identitários, por exemplo, Saramago fê-lo através da revisitação do imaginário nacional português e, concretamente, do iberismo (cf. também “A nova Mensagem do trans6

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Também o próprio acto de ler surge, na obra do Nobel português, como uma afirmação dupla de colaboração e resistência ou, até, de interrupção da História. Nos seus romances, as vozes narradoras, em constante diálogo com o público leitor, costumam evocar o pano de fundo de um programa ético-político e de uma crítica da cultura (ocidental), com o qual Saramago sugere a necessidade de um processo revolucionário a partir do interior do próprio sistema, apesar de todas as cumplicidades inevitáveis. Estas e outras concepções utópicas particulares viram o significado etimológico grego de utopia, como “não-lugar” ou “lugar nenhum”, do avesso, como acontece no caso daquela Península Ibérica que se transforma em jangada e acaba por ser colocada num lugar tão simbólico como concreto entre a América e a Europa. Mas a obra saramaguiana também convoca, em termos pós-coloniais, a ideia do lugar do Outro e, também, de um outro mundo possível, da passagem da identidade à alteridade, a fim de se alcançar uma significação nova e liberta dos padrões do passado. Saramago não quis entender a utopia como um futuro longínquo ou uma via paralela à realidade, mas como extensão do presente histórico no amanhã, uma vez que, nas palavras de Bloch, “o conteúdo histórico da esperança [...] é a cultura humana na relação com seu horizonte concreto-utópico” (1959, 1: 108, trad. minha). É também neste sentido da “utopia concreta” e da “imaginação construtiva” (Bloch 1959) que a obra literária surge, nas palavras do Saramago bloguista de 2009, como o “trabalho de quem traduz”, como um “texto-tradução”, cuja instância autoral assume a responsabilidade, “inevitavelmente ambivalente”, de transportar “uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural” para um “entramado linguístico e semântico”, igualmente ambivalente (Saramago 2009d: 152-153). O facto de as intervenções de Saramago incluírem, sobretudo na última década da sua vida, um importante discurso tradutológico9 ilustra como o autor sempre soube tomar o pulso aos debates e aos desenvolvimentos teóricos mais inovadores do momento, fossem estas mais académicas ou políticas. A adopção da ideia de que todas e “todos somos traduzidos e iberismo” e “José Saramago e o idoma português”, neste volume). 9 Para uma análise da faceta do tradutor literário cf. Ferreira, neste volume.

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todos somos tradutores” (Saramago 2003), está intimamente relacionada com o projecto de politização de uma cultura estética só aparentemente autónoma, uma ideia já presente na obra saramaguiana com anterioridade ao Manual de Pintura e Caligrafia, e que relaciona a ideia de tradução com a tarefa da “acção imediata” da “utopia concreta”. Neste sentido, praticamente toda a obra de José Saramago encontrase inserida no contexto da problemática relação entre juízos estéticos e políticos.10 O autor sempre se mostrou consciente do facto de o político já não poder representar um modelo estético em termos de categoria unificadora e que o estético, em princípio, já não serve como modelo para o político. Ainda assim, a obra saramaguiana sugere uma literatura que se reveste de um estatus estético paradigmático, uma vez que subverte autoridades e estruturas de poder, podendo transformar-se num discurso cultural e político alternativo. Em certo sentido, o discurso estético saramaguiano até poderia estar a reclamar uma reescrita ou reinvenção politizada do sensus communis aestheticus kantiano (Crítica do Juízo, §40) através da noção do “texto-tradução”. A sua proposta de tradução entre os juízos estético e político é uma tarefa sempre alternativa e permanente; é a tarefa de quem traduz visando a utopia muito concreta da “acção contínua”.

Para uma abordagem deste problema no contexto do pós-estruturalismo cf., por exemplo, Carroll 1984. 10

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Apresentação dos estudos Como é natural, o presente volume não poderá satisfazer todas as expectativas em relação a um tema tão vasto e exigente no contexto de uma das obras literárias mais importantes do período pós-revolucionário em Portugal. Embora queira contribuir a desenvolver novas perspectivas, não poderá analisar, de forma sistemática, todo o complexo da questão de ‘utopia e ficção’ em José Saramago. Portanto, os estudos aqui reunidos restringirse-ão à exploração de temas concretos, embora inter-relacionados, com a esperança de estimular futuros debates e continuações. Uma primeira abordagem do tema desta colectânea de estudos realiza-se em “José Saramago: da realidade à utopia. O Homem como lugar onde”, de Ana Paula Arnaut. Este trabalho parte de alguns textos fundadores do conceito utopia para pôr em evidência que, no caso de José Saramago, em regra, a procura de uma (im)possível sociedade livre e perfeita assume contornos de tonalidades diversas. O desejo de cenários diferentes daqueles em que vivemos, mais justos e fraternos, não acarreta, necessariamente, a ideia de deslocalização ou de relocalização espacial implicada nas tradicionais utopias. Pelo contrário, parte-se da ideia que o ideal utópico saramaguiano, ou o que entendemos como tal, supõe uma busca que se traduz num processo de (re)aprendizagem que começa e acaba no próprio ser humano. Para tal, há que acreditar na capacidade e no poder do ser humano para lutar contra várias espécies de adversidades, de obstáculos e de violências. Destaca-se a presença (aparente) de afinidades 19


com alguns vectores da tradição religiosa que o autor sempre recusou e a aproximação (efectiva) de uma outra dimensão espiritual: a de certos rituais maçónicos. Defende-se a teoria que a conceitualização de um apocalíptico real a vir reforça a ideia de que o ser humano se torna o centro, o local, o não espaço tornado espaço da própria utopia. Quer o autor o tenha pretendido ou não, a ancestralidade da aliança espiritualidade/utopia, ou a permanência de sonhos e de desejos velhos como a própria Humanidade, sonhos e desejos como este de sociedades justas e perfeitas ou aquele da imortalidade, encontram eco no espaço-tempo dos romances escritos. Afinal, como disse, em 1997: “Sabemos mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos” (Saramago in Gómez Aguilera 2010: 155). Desde uma perspectiva imagológica e pós-colonial, Burghard Baltrusch destaca em “A nova Mensagem do trans-iberismo – sobre alguns aspectos utópicos e metanarrativos no discurso saramaguiano” dois aspectos que podem ser considerados inovadores na obra saramaguiana. Por um lado, constata-se uma crítica imagológica da memória cultural e colectiva (portuguesa, ibérica e europeia), à qual se contrapõe, através da ideia de “trans-ibericidade” uma utopia cultural e de identidade, motivada por um ideário próximo das teorias pós-coloniais. Pelo outro, analisam-se exemplos da reflexão teórica de Saramago em relação à literatura e à historiografia, com a intenção de demonstrar como esta costuma partir de um perspectivismo atemporal, exemplificado através da continuada crítica dos discursos e dos níveis narrativos institucionalizados. A crítica destas imagologias culturais, das metanarrativas identitárias e históricas como também da narratologia tradicional repete-se na obra através de certas características topológicas. Neste contexto, a sobreposição subversiva do autor ao narrador pode ser considerada uma tentativa de unificar o ideário pessoal com o ficcional e, em extensão, de relacionar o imaginário cultural e/ou particular com o universal. Esta confabulação utópica de ética e estética visa um humanismo pós-moderno, com um propósito ético e claramente político, uma ‘nova Mensagem’ materialista, ironicamente oposta ao imaginário metafísico e providencialista de Fernando Pessoa. No seu estudo “Tradução e utopia pós-colonial – a intervenção invisível de Saramago”, Ana Paula Ferreira desenvolve uma perspectiva tradutológica ao perguntar o que acontece quando em vez de Saramago como autor do “texto-tradução” (2009d: 152-153) nos deparamos com 20


Saramago autor de uma “tradução-texto”. A pertinência desta pergunta fica evidente em relação a textos especificamente anti-coloniais, em cuja força política e imaginativa se anuncia a utopia ou “singularidade” pós-colonial. Ainda que Saramago não se tenha ocupado directamente do colonialismo português nem dos problemas económicos, sociais e morais dele advindos, a sua intervenção como tradutor de obras referentes a um colonialismo outro, neste caso específico, o francês, poderá apontar para a sua posição relativamente a uma temática que, muito embora cabendo no imperialismo em termos estruturais, toca especificamente à cultura portuguesa colonial e àquela que se vai construindo no período após as descolonizações, em 1975. Entre as mais de sessenta obras de uma variedade de áreas de saber e de géneros que Saramago traduziu entre os anos 1950 e 1980, este estudo destaca Une vie de boy, de Ferdinand Oyono. O romance é considerado um clássico da literatura africana, tendo sido traduzido em pelo menos treze línguas e em diferentes épocas, respondendo portanto a muito diversas realidades políticas, sociais e culturais. Verifica-se como a ‘domesticação’ por parte de Saramago do original francês vai ao encontro da realidade política e cultural portuguesa dos finais dos anos de 1970 e princípios da seguinte década. Nesse sentido, o que ‘é’ no texto de Oyono retorna intacto no de Saramago. O aceno à utopia absoluta e singular revela a dimensão utópica da literatura pós-colonial: um “utopianism deeply embedded in critique, a tentative hope for a different world emerging from a clear view of the melancholic state of this one” (Ashcroft 2009: 14). Desde a perspectiva de um historiador da língua, Fernando Venâncio analisa em “José Saramago e a iberização do português. Um estudo histórico” a castelhanização progressiva da escrita ficcional saramaguiana considerando que esta tem de ser entendida num contexto ideológico, favorecedor da integração política e cultural ibérica. No fundo, trata-se de aquilo que já entusiasmara António Vieira: o programa vieiriano previa a criação de um português tão próximo quanto possível do castelhano, e por isso ‘iberizável’, uma condição para vir a ser, tal como o idioma de Castela, internacionalizado. A castelhanização do português, na pena de Vieira e na de Saramago, seria posta ao serviço de um sonho maior, a ‘iberização’ do idioma. A partir de um estudo pormenorizado de múltiples ocorrências identificadas em romances e contos, conclui-se que em Saramago se repetem os vários mecanismos históricos da castelhanização portuguesa: 21


uma rápida assimilação, uma ausência de rejeição, uma desatenção do processo e uma assimetria. Sugere-se que o seu arraigado seiscentismo pode ter criado em José Saramago uma suplementar predisposição para abrir as portas ao idioma vizinho. O significado último de um idioma ibérico como utopia implícita é, decerto, especulativo, uma vez que Saramago nunca associou os seus sonhos políticos ibéricos a uma convergência linguística com o espanhol, convergência em que decerto colaborou, mas provavelmente sem consciência disso. Contudo, o estudo argumenta haver uma conexão ‘objectiva’ dos dois planos. Sabe-se que José Saramago não alimentava reservas mentais no referente à integração política de Portugal num conjunto peninsular. O resultado dessa ausência de objecção mental está à vista e pode-se, até, supor que, ao sentir — ao sentir ‘dentro’ — o português cada vez mais próximo do idioma do Estado vizinho, ele visse mais realizado esse grande sonho ibérico, que era o seu. Em “Memorial do Convento de José Saramago – crítica e utopia no uso da técnica da enumeração”, José Cândido de Oliveira Martins analisa uma das manifestações da composição linguística e ficcional do romance de José Saramago, em Memorial do Convento — o manifesto uso da técnica da enumeração. Apesar de a dimensão da língua e do estilo ter merecido a atenção de vários estudos, o recurso à técnica da enumeração tem sido bastante ignorado, apesar da sua enorme frequência ao nível da escrita saramaguiana. Em primeiro lugar, ilustra-se o número e a variedade das enumerações na escrita do Memorial do Convento, ao mesmo tempo que se propõe uma definição da sua natureza linguístico-retórica. Seguidamente, partindo sempre das ocorrências saramaguianas, propõe-se uma gramática e tipologia possível do uso desta técnica. Por fim, contrariando uma visão redutora da enumeração — como técnica de matriz barroca —, sustenta-se que o seu uso tem uma indiscutível funcionalidade semântico-ideológica. Conclui-se que a enumeração saramaguiana impede-a de ser vista como um estático ou gratuito ornamento barroco; ou de desempenhar uma função dilatória em relação ao desenvolvimento da diegese. Integra-se, assim, na estratégia de re-visão crítico-paródica da História do Portugal joanino. Outro aspecto deste romance trata-se em “Mulher e utopia em José Saramago – a representação da Blimunda em Memorial do Convento” de Burghard Baltrusch. Analisam-se os discursos que constroem a 22


representação de Blimunda em Memorial do Convento (1982) no que diz respeito a duas questões centrais: em que medida esta figura impar na obra saramaguiana poderia estar a (re)construir um mito feminino universal, no qual a mulher simbolizaria a “essência do ser humano” (Saramago & Viegas 1989); e até que ponto a sua representação poderia estar a ser condicionada, ainda, por estéticas e discursos androcêntricos? Realizase uma releitura de uma das mais canónicas obras do autor a partir de perspectivas clássicas do feminismo como também a partir da questão do sublime e, concretamente, do “sublime feminino” (Freeman 1995). Não se encontram evidências para pôr em questão a coerência interna da figura de Blimunda e a sua adequação a uma concepção do sublime. Constatase, porém, que a sua construção se caracteriza por uma certa objectivação e reificação do conceito e da alegoria da mulher como sujeito idealizado, aspectos que podem estar a perpetuar certos discursos de poder históricos. Porém, este resultado não invalida a clara intenção compensatória e de reabilitação histórica, social e política da mulher numa obra que contribuiu, substancialmente, para a revalorização da representação das mulheres na história da cultura e literatura portuguesas. Sob a perspectiva crítica do imaginário proposta por Gilbert Durand (1997), Rosângela Divina Santos Moraes da Silva oferece no seu estudo “Conto da Ilha Desconhecida – possibilidades imaginárias” uma análise simbólica deste conto de José Saramago. O imaginário torna-se o ponto de equilíbrio entre a precariedade da vida e a vontade do ser humano de transcender-se, vencendo o tempo e, consequentemente, a morte. Neste sentido, “O Conto da Ilha Desconhecida” constitui-se em exemplo perfeito, pois metaforiza, através das imagens místicas, a trajectória a ser percorrida por qualquer ser humano ao fazer a travessia da vida para a morte, quer se a deseje ou não. Trata-se de uma abordagem do imaginário respaldada no semantismo das imagens, na qual se busca reconhecer a organização dinâmica do mito, sobretudo, o da morte, sob o feixe de constelações de imagens estruturadas por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes, desenvolvidos dentro de um mesmo tema arquetipal. Conclui-se que, no plano do imaginário, pode ser inferido do conto que ao ser humano compete a responsabilidade do mundo que cria, num processo de dessacralização da história divinamente legitimada. 23


Dessa forma, na tentativa de harmonizar os contrários, surge, no final da narração, o arquétipo andrógino na fusão dos corpos do homem e da mulher como também o motivo universalizante do ser humano como uma ilha em busca de si próprio. Em “O labirinto da memória – a Guerra Civil de Espanha em O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Ângela Maria Pereira Nunes parte do ensaio “História e Ficção”, onde Saramago evidencia que a história, “tal como a fez o historiador, é o primeiro livro, não mais que o primeiro livro. [...] Restará sempre, contudo, uma grande zona de obscuridade, e é aí [...] que o romancista tem o seu campo de trabalho” (1990: 19). Analisa-se a tensão muito singular entre a história e a ficção concebida pelo romancista que Saramago cria em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Mantendo-se fiel à figura literária idealizada por Fernando Pessoa, Saramago empenha-se em confrontar Ricardo Reis e a sua filosofia inerente com a situação históricopolítica do ano de 1936, ano em que o Estado Novo se consolida, devido em muito à evolução dos acontecimentos na vizinha Espanha. Destacamse os temas da memória e da necessidade de uma arte empenhada em causas políticas e sociais que são, sem dúvida, centrais no romance. A sua tessitura híbrida, minuciosamente arquitectada como mosaico de citações, resulta numa narrativa labiríntica e polifónica que veicula uma sensação generalizada de desorientação. O motivo do espelho, e do jogo de espelhos, intimamente ligado ao do labirinto, permite, não só a expansão do espaço e do tempo, como também a inversão da ficção em realidade e da realidade em ficção. É na alternância destes dois planos que irrompe um alto-relevo labiríntico que, no sentido concebido por Jorge Luis Borges, exorta o púbico leitor a desvendar o enigma dos acontecimentos de 1936, nomeadamente dos acontecimentos da Guerra Civil de Espanha. Sobre outro tema de carácter histórico debruça-se o estudo “José Saramago: “Cadeira” ou a queda de Salazar”, de Isabel Araújo Branco. O conto “Cadeira”, inserido em Objecto Quase (1978), corresponde a uma leitura profunda do significado simbólico e prático da queda real da cadeira do ditador português Oliveira Salazar dez anos antes, em 1968. O conto é analisado na sua condição de reflexão literária sobre a ditadura, a ideologia fascista e o estado do País ao longo dessas quase cinco décadas, mas também sobre o império português então quase a desaparecer. 24


Atentando no rigor semântico com grande ironia, o narrador apresenta-nos traços de intertextualidade com Luís de Camões e Alexandre Herculano, entre outros. O estudo centra-se, também, na imagem de Portugal e do poder político durante a ditadura presente em «Cadeira» e nas estratégias narrativas adoptadas. Verifica-se um processo de personificação do bichoda-madeira em paralelo com um processo de animalização de Salazar através da adjectivação e da comparação. Assim, o narrador retira-lhe a sua humanidade, realizando uma leitura simbólica da ditadura, do poder e do contrapoder. “Sobre a convergência do espaço literário, cultural e político como questionador de uma identidade social em José Saramago”, de Raquel Baltazar, centra a sua atenção sobre a questão identitária em três romances. Levantado do Chão (1980) de José Saramago concretiza o paradoxo metaficcional da consciencialização do ser humano sobre a sua alienação sócio-política, centrada na ditadura de Salazar por converter uma interpretação social de um mundo em colapso ideológico. A Caverna (2000) representa uma metáfora do obscurecimento da razão que incapacita a criação do conceito de comunidade ao apresentar uma indagação constante sobre a adaptação do ser humano a uma realidade política, que aprisiona mental e fisicamente os indivíduos. Finalmente, o estudo argumenta que Ensaio sobre a Cegueira (1995) completa esta viagem de libertação política, ideológica e social através de um exercício de autognose em forma de literatura de denúncia, em que ocorre o resgate da experiência humana através de situações de epidemia e prisão sugerindo uma epifania de cariz político. A análise destas obras permite discutir a anulação da identidade como elemento fundamental para a construção de uma ideologia e procurará evidenciar a convergência do espaço literário, cultural e político como questionadores de uma identidade social. Em “«Vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso» – realidade e ficção no romance A Viagem do Elefante de José Saramago”, Yvonne Hendrich analisa as fontes históricas da viagem e da chegada do arquiduque Maximiliano da Áustria e da sua comitiva a Viena, em 1552, acompanhados por um elefante. A partir das circunstâncias que inspiraram o penúltimo romance de José Saramago, o estudo centra-se no processo de (re)invenção d’A Viagem do Elefante desde a perspectiva da “metaficção historiográfica” 25


(cf. Hutcheon, 2005a). Confronta-se o romance e a escrita saramaguiana com as questões da ‘realidade histórica’ como mediação de discursos e de interpretações de agentes historiadores, e com o grau de ficção já contida na própria representação historiográfica. Conclui-se que, através das intromissões metanarrativas, a suposta objectividade e imparcialidade da historiografia/história é questionada e levada ao absurdo. Embora em A Viagem do Elefante desempenhe uma função menos relevante do que em romances como História do Cerco de Lisboa, destaca a problematização da relação entre os métodos da historiografia e a metaficção historiográfica como medium de auto-reflexividade e auto-referencialidade. Em relação ao mesmo romance, Verena-Cathrin Bauer observa, em “Nationale und koloniale Identitäten im historischen Roman – José Saramagos A Viagem do Elefante”, como Saramago, além de tratar certos estereótipos nacionais, chama a atenção para o contacto entre identidades e nacionalidades europeias, ironizando costumes e crenças e questionando os mecanismos da construção identitária e de uma história oficial. Neste sentido, analisa-se, por um lado, a visão saramaguiana da história europeia, tendo em conta o seu ideário iberista (Saramago 1988) e, pelo outro, a (dupla) apropriação da pessoa colonizada. O estudo propõe uma leitura do romance a partir das possibilidades que Homi K. Bhabha deduz do hibridismo produzido pelos fluxos migratórios e transnacionais, e do respectivo espaço “in-between” (cf. 1994: 1, 9), onde as questões identitárias são negociadas. A própria viagem surge, assim, como a utopia de um third space, ainda que, na cooperação harmónica e utópica entre o Mahut e o elefante, também permaneça o aspecto da desterritorialização forçada. Conclui-se que o motivo da viagem como momento transitório simboliza a permeabilidade das estruturas culturais e o processo de intercâmbio, em termos de uma utopia tão condicionada pelo contexto histórico como efímera.

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The iBroLiT series | A colección iBroLiT

iBroLiT is a peer reviewed book series founded by the GAELT research group at the University of Vigo. The library aims to stimulate research in IberoRomance cultures and literatures. It is located at the methodological crossroads between literary and translation studies among other (sub)disciplines. This transdisciplinary conception is thought to approach the many different forms and manifestations of Ibero-Romance cultural phenomena, with a special focus on Galician and Lusophone Studies, along with the related gender and translatological aspects.

The Contemporary Literature Studies (LiCo), the Medieval Studies (MedS) and the Translatology Studies (TranS) subseries are specific publication channels within iBroLiT to optimize its function as a forum for the Ibero-Romance contemporary literature and translation research community.

iBroLiT é unha colección creada polo Grupo de investigación GAELT da Universidade de Vigo, dentro dos estándares da revisión por pares. O seu obxectivo principal é estimular a investigación no eido dos estudos literarios iberorrománicos, dos estudos de tradución e da intersección entre ambos, xunto con outras (sub)disciplinas. A súa concepción transdisciplinar tenta aproximar as diferentes formas e manifestacións de fenómenos culturais iberorrománicos, con especial atención ao galego, a lusofonía e os estudos de tradución. Estudos de Literatura Contemporánea (LiCo), Estudos Medievais (MedS) e Estudos de Tradutoloxía (TranS) son as tres subseries mediante as cales se artella iBroLiT e que pretenden constituír un punto de encontro da comunidade investigadora no campo da literatura iberorrománica e da tradutoloxía.


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The series welcomes submissions in English, French, Galician, German, Portuguese or Spanish language. Book proposals can be sent to the acquisition editor, Teresa Bermúdez Montes (bermudezteresa@uvigo.es), and will be submitted to a peer review process. More information at <http://gaeltuvigo.blogspot.com>. A colección está aberta a propostas de edicións en inglés, francés, galego, alemán, portugués e español. As propostas enviaranse á responsable da coordinación editorial, Teresa Bermúdez Montes (bermudezteresa@uvigo.es) e serán sometidas a un proceso de revisión por pares. Máis información en <http://gaelt-uvigo.blogspot.com>.

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X. Bieito Arias Freixedo: “Per força de foder”. O sexo nas cantigas de escarnio galego-portuguesas (MedS, vol. I). Manuela Palacios González: Us & Them: Women Writers’ Discourses on Foreignness in Irish and Galician Literature (LiCo, vol. V). Mônica Heloane Carvalho de Sant’Anna: Presenças e novas representações do corpo e da mulher: uma (re)visão na obra de Maria Teresa Horta (LiCo, vol. VI). Teresa Bermúdez Montes & Mônica Heloane Carvalho de Sant’Anna (eds.): Letras escarlate. A representación da menstruación e do corpo feminino na literatura contemporánea (LiCo, vol. VII). Ana Acuña (ed.): Letras nómades. Experiencias da mobilidade feminina na literatura galega (LiCo, vol. VIII).


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