Sobre o «Trans-iberism.o» como Metanarrativa.José Saramago entre Universalismo e Pós-colonialismo

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Orlando Grossegesse (org.)

«o estado do nosso futuro» Brasil e Portugal entre identidade e globalização

edition tranvía· Verlag Walter Frey Berlin 2004


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Índice geral Orlando Grossegesse O estado do nosso futuro. Um epílogo como prólogo Onésimo Teotónio Almeida Identidade nacional- a doce tirania do passado

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Fernando Clara O futuro foi ontem. Tempo e Identidade nacional

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Eduardo Subirats Antropofagia contra globalização

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Eneida Leal Cunha Comemorações dos Descobrimentos: reconfigurações contemporâneas da nacionalidade no Brasil e em Portugal

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Albert von Brunn Cidade de Deus ou Sodoma? A visão apocalíptica da cidade em Caio Fernando Abreu

88

Isabel Pires de Lima Como a gente se vai (des)entendendo: interrogações identitárias em Madame de Maria Velho da Costa

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Burghard Baltrusch Sobre o «Trans-iberismo» como Metanarrativa. José Saramago entre Universalismo e Pós-colonialismo

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Ruth Tobias O regresso de Dom Sebastião? Metamorfoses do mito na literatura contemporânea

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português e brasileiro de Eça e Machado. Alguma ponte utópica (?) poderá ser lançada através de uma cultura que do texto se faça mediática, que envolva Evas e Eunices, teatros, telenovelas e o mais que permita que Eulálias e Franciscas conversem assim (p. 44): EULÁLIA ( ... ) Olha rapariga ... FRANCISCA Ah,· isso aí eu não sou, não. Rapariga na fala da gente é mulher da vida. EULÁLIA Pois na nossa é moça em flor, coisa que tu já não és. FRANCISCA Nem vosmicê é isso mais, 'irge Maria! (Pausa. Imitando Eulália:) Carago! EULÁLIA Ora vês como a gente já se vai entendendo?

Bibliografia COSTA, Maria Velho da (1999), Madame, Lisboa: Dom Quixote. COSTA, Maria Velho da (2000), Madame, Lisboa: Edições Cotovia / Porto: Teatro Nacional de S. João. LIMA, Isabel Pires de (1987), As Máscaras do Desengano - Para uma abordagem sociológica de Os Maias de Eça de Queirós, Lisboa: Editorial Caminho.

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Burghard Baltrusch

Sobre o «Trans-iberism.o» como Metanarrativa. José Saramago entre Universalismo e Pós-colonialismo Um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. (José Saramago, 1997) No que se refere à Europa, continuo a acreditar que ela é um grande engano. (José Saramago, in Reis, 1998a: 146) A grande descoberta dos portugueses é que o mundo é um arquipélago. (Agostinho da Silva, 1988: 40)

É sabido que o discurso literário e ensaístico de José Saramago alberga um empenho de desmitificação, não só da história portuguesa e da sua imagologia, mas também de conceitos universais e modernos como o Cristianismo, a Democracia ou a Europa. No que diz respeito à Península Ibérica salienta-se, por exemplo, a crítica saramaguiana à integração europeia, que, depois da publicação do romance A Jangada de Pedra (1986, cit. JdP), culminou no lançamento do conceito do trans-iberismo. Saramago reincidiu em várias ocasiões na importância da manutenção do espelho que representariam as culturas americanas e africanas de fala portuguesa e espanhola para a pluralidade sócio-histórica da Península e da sua diferença cultural em relação à Europa central.

.' A Dissolução dos Níveis Narrativos

Entre as desmitificações saramaguianas de institucionalizações históricas sofridas por escritores portugueses, destacam-se as de Luís de Camões e Fernando Pessoa. Saramago argumenta que o uso, feito pelo respectivo poder político e cultural destas figuras históricas, transfor111


mou-os em 'vacas sagradas' e que agora estariam, praticamente, "a caminho da invisibilidade" (1988: 15). Especialmente em O ano da Morte de Ricardo Reis C1984, cit. AMRR), e nas entrevistas dadas por ocasião da sua publicação, Saramago denunciou a continuada exploração política d'Os Lusíadasao longo da história, a qual teria confluído numa paralisação e mutilação do imaginário português. 1 A crítica saramaguiana mais significativa dos discursos literários tradicionais consiste numa ferramenta estética que é a dissolução dos níveis narratiyos. Saramago pretende que seja um mito que 'tenha de existir uma diferença entre os sujeitos do autor, do narrador e do crítico. Levado pela intenção de ressaltar a imprescindibilidade do carácter lúdico e ritual da escrita2, Saramago emprega como elemento estrutural de toda a sua narrativa romanesca desde 1980 um complexo de vozes que descrevem, desmontam, sentenciam, dialogam, profetizam, se apagam, manipulam, ironizam, dominam, etc. Cc! também Real, 1995), substituindo, assim, os sujeitos narrativos tradicionais. O exemplo de um aspecto do funcionamento deste coro pósmoderno, metanarrativo e metalinguístico dá-se em AMRR. Este romance oferece uma revisão de vários aspectos do imaginário nacional português a partir da confrontação do heterónimo neo-helenista de Fernando Pessoa com a realidade histórica de 1936. É uma revisão construída como um palimpsesto. As caracterizações próprias e alheias de Reis transluzem, através da densa textura, composta de poesia citada e parafraseada, e da narração 1) Mas também Saramago ele-próprio já está sendo o alvo das mais variadas tentativas de institucionalização e mitificação. O académico e crítico Carlos Reis, p. ex., que publicou uma colecção de entrevistas com o autor (Diálogos com José Saramago, 1998), deriva da circunstância de Saramago ser, já, um escritor transnacional que para a literatura portuguesa seria nocivo se o "efeito literário deste Nobel" resultasse no surgimento de uma escola epígona (Reis, 1998b: 22). Estas opiniões e, sobretudo, as suas publicações por críticos influentes, constituem uma operação semântica nefasta em dois sentidos: Por um lado imobiliza-se o autor num estrado dourado, dificultando para a futura geração literária o jogo sem preconceitos com as suas propostas narrativas e ideárias; pelo outro lado desacredita-se a condição 'transnacional' de um escritor, restando demasiada importância às características nacionais das literaturas, um perfil que na contemporaneidade está a perder cada vez mais valor argumentativo.

2) Cf: "O jogo é, talvez, a mais séria das actividades humanas" (Saramago, 1990: 17).

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que a interpreta e valoriza, como variações sobre um só tema: a inaceitabilidade do cinismo de um observador aparentemente sereno do mundo, de um voyeur sossegado do "espectáculo do mundo". Reis é incapaz de sentir compaixões das quais poderiam resultar actuações comprometidas com a realidade histórica: "Sou somente o lugar onde se pensa e sente" (c! Pessoa: 180), são os versos da sua própria ode que relê no romance e pensa: Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. (AMRR: 24)

Porém, o 'narrador' sugere uma consciência metanarrativa do protagonista, produzindo, ao mesmo tempo, uma autêntica embrulhada dos sujeitos narrativos no enredo textual: Reis I poeta como fingimento de Pessoa, Reis I poeta como palco dos "inúmeros" que sente em si, Reis I poeta como ficção I fingimento de Saramago, Reis I poeta como personalidade independente, etc. Mas sobre toda esta encruzilhada de níveis narrativos paira a confissão de um autor que se serve desta para fins ressentidos, porque lhe irritava profundamente a indiferença de Reis e a vontade deste de ser um mero espectador dos acontecimentos (c! Saramago, 1985a: 8). O jogo com a ficção enleada por outras ficções obedece, portanto, a directivas tanto estéticas como éticas. Assim, a sobreposição subversiva do autor ao narrador, que Saramago ultimamente vem propagand03 , e devido à qual já tem sido criticado (c! Batista, 1998), pode ser considerada uma tentativa de unificar o ideário pessoal com o ficcional. No seu discurso nobilístico Saramago eleva esta sobreposição a uma identificação de vida e arte: "Em certo

3) Cf "a [... ] aceitação muito consciente do papel do autor como pessoa, como sensi-

bilidade, como inteligência, como lugar particular de reflexão, na sua própria cabeça" (Saramago in Reis, 1998a: 97).

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sentido poder-se-á mesmo dizer que [... ] tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei." (Saramago, 1998: 4) A identificação -entre vida e obra, que Saramago parece querer empreender, também se verifica em níveis metanarra~ivos. Saramago começou nos últimos anos a nadar contra a corrente de opinião que defende a ideia de que um escritor nunca deveria interpretar a sua obra. Isto tornou-se um discurso político-cultural geralmente aceite na medida em que aqueles que o empregam também exercém, através dele, um certo poder. Saramago, porém, iniciou com os seus ensaios, intervenções públicas, nas entrevistas e nos Cadernos de Lanzarote (1994 ss.) um auto-comentário dos grandes temas e das grandes ideias que motivam a sua escrita. As suas auto-exegeses demonstram, também, que ele incorpora no seu discurso certos conceitos que a crítica académica maneja na explicação da sua narrativa (cf Saramago in Reis, 1998a). Estabeleceu-se um diálogo reflexivo e cônscio da sua responsabilidade que Saramago mantém quer com os seus leitores normais, quer com os seus intérpretes académicos. A confabulação de ética e estética deste diálogo intertextual está relacionada com o sonho de totalidade do seu conceito romanesco e do romance, nas mais vastas amplitudes dos seus significados (carácter de romance, romântico, maravilhoso, devaneador, apaixonado, fabuloso; ou novela, conto, fantasia, objecto imaginário e enredo de falsidades ). Mas Saramago vai ainda mais longe na sua remodelação dos mitos literários: questiona não só a veracidade da existência do género do romance histórico, mas também a função de género do romance em si 4 , definindo-o como simples "lugar literário" (Saramago in Reis 1998 a: 138). A pretensão do seu romance seria, então, a "tentativa de uma des_4) Esta crítica do género traduz-se, p. ex., no emprego da ironia como meio de indeterminação ou como jogo com a "semiose e deriva ilimitada" (Eco, 1992: 425-442). Eco exemplificou esta prática nos seus romances, depois de analisar já em Opera aperta a arte modema em termos de uma "frustração dos instintos romanescos" do leitor / espectador (1973: 203), supondo que "a abertura, no sentido de uma ambiguidade fundamentai da mensagem artística, seria uma constante de todas as obras e em todas as épocas" (ibid.: II, as traduções são minhas).

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crição totalizadora"s, de "dizer tudo" (ibid.). Saramago recria com estas aspirações a ideia romântica da obra de arte total,6 incluindo o próprio leitor / espectador que as teorias wagnerianas ainda não tinham tomado em consideração. 7 A mitificação da inexistência do narrador 8 faz também que o romancista se substitua ao "lugar literário": "o leitor não lê o romance, o leitor lê o romancista" (ibid.: 97), uma vez que "um livro é, acima de tudo, a expressão [... do] seu autor". 9 Saramago fornece indicações para a leitura, como se quisesse adaptar certas intenções do teatro épico: 1) A autocrítica inerente nas vozes narrativas dos seus romances destaca sempre algumas das precaridades dos papéis que se protagonizam; 2) as vozes têm um carácter altamente explicativo que convida à crítica; e 3) o conhecido através da história tradicional e através do imaginário colectivo é enleado e reavaliado. Outro aspecto do discurso literário que Saramago emprega: as já referidas interacções de indeterminação e ironia. 10 Um caso seria a ironia da "História como ficção" (Saramago, 1990: 17) e do historiador como "escolhedor de factos" que "substitui o que foi pelo que poderia ter sido" (ibid.). A ironia subversiva desta ideia obedece, no entanto, a uma intenção didáctico-iluminista que retoma, até, algum ideário do neorealismo: Uma consciência histórica crítica gera, através do meio de comunicação romance, a narração de uma outra história, que manipula, 5) Cf também: "quando convoco o romance, no fundo entendo-o como uma tentativa de o transformar numa espécie de soma." (ibid). 6) Cf: "aquilo a que eu aspiro é traduzir uma simultaneidade, é dizer tudo ao mesmo

tempo. [.. ] Isto mostra até que ponto os escritores [... ] aspiramos a essa forma de expressão total" (ibid.: 99 s.). 7) Cf: "ele [o leitor] só pode entender o texto se estiver 'dentro' dele, se funcionar como alguém que está a colaborar na finalização que o livro necessita" (ibid.: 101 s.); acerca da ad'aptação do conceito da obra de arte total (Gesamtkunstwerk) no modernismo cf Baltrusch (1997: 356 s).

8) Cf: "como o meu romance é um romance em construção contínua, é um romance que se vai fazendo a si mesmo" (ibid.: 133) e: "a figura do narrador não existe" (Saramago, 1997, 7). 9) Cf também a sua ideia de os romances serem "o sinal de uma pessoa" (ibid.: 98).

10) Também Real considera o narrador saramaguiano nascido "justamente do cruzamento singular entre uma consciência determinista e uma consciência contingente da História" (Real, 1995: 29).

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retroactivamente, a consclencia do leitor em consonância com esta consciência histórica crítica, incitando-o a reler e reavaliar a própria História (c! Baltrusch, 1997: 201ss). A aparência do autor, oscilando entre o carácter lúdico e o impulso ético [... ] produzirá uma espécie de jogo contínuo em que o leitor participa directamente, por meio duma sistemática provocação que consiste em ser-lhe negado, pela ironia, o que lhe fora dito antes, levando-o a perceber que se vai criando no seu espírito uma sensação de dispersão da matéria . histórica na matéria ficcionada, o que, não significando desorganização duma e outra, pretende ser uma reorganização de ambas. (ibid.: 20)

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Meio essencial de uma determinação relativa, a ironia aparece, assim, como tentativa de harmonização da oposição dialéctica de História e Verdade, de carácter lúdico e seriedade, de auto-relativização e reclamação universalista e essencialista. Esta ânsia de síntese alberga um impulso ético que também se oferece como modelo de identificação positiva para o público leitor. A História do Cerco de Lisboa (1989, cit. HCL) constitui um bom exemplo de como se realiza esta teoria estética da indeterminação e ironia na sobreposição de ficção e realidade. O protagonista, o revisor Raimundo Silva, introduziu durante a correcção de uma obra historiográfica sobre o cerco da Lisboa 'moura no século XII um "não" numa passagem decisiva. Depois de a sua alteração ter sido descoberta, o revisor começa, insatisfeito pela historiografia tradicional, por escrever a sua própria versão do cerco. Dão-se interferências entre o narrador reflexivo Raimundo Silva e as vozes reflexivas e auto-referenciais do autor (c! Baltrusch, 1990). A análise da técnica irónica do narrador Silva, empreendida pelo autor / narrador, é um irónico exercício estilístico, cuja complexidade pretende evocar, na consciência do público leitor, aquela "sensação de dispersão da matéria histórica na matéria ficcionada" (Saramago, 1990: 20) para que adopte uma nova perspectiva histórica: Raimundo Silva encontra-se numa interessante situação, a de quem, jogando o xadrez consigo mesmo e conhecendo de antemão o resultado final da partida, se empenha em jogar como se o não soubesse e, mais ain-

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da, em não favorecer conscientemente nenhuma das partes em litígio, as negras ou as brancas, neste caso os mouros ou os cristãos, segundo as cores. E muito abertamente o tem vindo a demonstrar, haja vista a simpatia, diríamos mesmo o apreço, com que tem tratado os infiéis, em particular o almuadem, sem falar no respeito que manifestou quando se referiu ao porta-voz da cidade, aquele tom, aquela nobreza, em contraste com uma certa secura, uma impaciência, uma ironia, até, que sempre vêm à tona do discurso quando se trata dos cristãos. (HeL: 233)

A ironia contamina aqui a respectiva posição contrária sem a destruir, apresenta a própria posição sem reclamar a verdade absoluta., Ela distancia o narrador da sua narração, distancia o narrador na narração da sua narração dentro da narração, distancia, finalmente, o público leitor da sua leitura e percepção histórica habitual e provoca, além disso, em ambos consternação e compromisso. A ironia obedece aqui a um impulso ético; revela-se, ao mesmo tempo, como ,característica ideológica de um pensamento estético e da sua expressão crítica, empregando-se esta como outro modelo de identificação positiva para o público leitor, como metanarrativa 'reescrita'.

A Crítica Imagológica

Ao contrário do que se tornou opinião geral, desde António Sérgio até Eduardo Lourenço e António José Saraiva ll , as interpretações aqui expostas partem da assunção, de que é possível entrever uma tradição alternativa de filosofia portuguesa. Não se podem agora desenvolver as respectivas perspectivas metodológicas ou argumentos históricos. Mas já a longa e ramificada tradição das ideias, utopias e exegeses a respeito do imaginário português so"re o destino nacional representam, em si, um testemunho da perpétua inclinação filosófica da cultura portuguesa. Outro aspecto a ter em conta é o facto de o pensamento filosófico de alguma repercussão em Portugal sempre ter estado inserido num contexto literário, ou artístico

11) Cf também Real (1998: 11-152).

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em geral, ou seja, de nunca ter distinguido entre a estética e o perguntar filosófico. 12 Uma tal reavaliação da história das ideias, na linha das propostas dos métodos pós-coloniais, requereria também desfazer-se da colonização sofrida pelo conceito franco-anglo-germânico da filosofia. Em oposição a isto, dever-se-ia analisar o perguntar filosófico português nas suas revelações e interdependências estéticas, como um discurso metanarra. tivo, p. ex., em obras literárias (existe uma rica tradição se observarmos, simplesmente, a respectiva continuidade da póesia filosófica desde os finais do séc. XIX, passando por Antero, Pessoa e Sena até à actualidade pós-revolucionária). Assim, seria inevitável denotar também nos romances de Saramago uma constante inquietação filosófico-ética, que o autor conota com elaborados elementos estéticos e que continua a explicitar em trabalhos ensaÍsticos. A mitologia relacionada com o destino nacional tem sido, certamente, um dos mecanismos mais relevantes da memória cultural portuguesa. Recentemente, Miguel Real tentou sintetizar os respectivos ideários e propôs o conceito dos centros históricos imaginários para denominar aquelas apropriações do passado pelo futuro (1998: 18), que vão institucionalizando o Mito como uma realidade superior e teleologicamente ordenada (1998: 19). Real advertiu, ainda que não tenha sido o primeiro mas com toda a razão aliás, que as obras de Eduardo Lourenço e António José Saraiva representam um autêntico "tournant do imaginário filosófico português" (1998: 63), uma vez que introduziram um diálogo crítico, mas ao mesmo tempo normalizado, com o pensamento europeu contemporâneo. Assim, Lourenço tinha introduzido o conceito da "imagologia" como "discurso crítico" sobre a autognose portuguesa (1978: 14), dirigindo-se abertamente contra o que chamou o "irrealismo prodigioso" (1978: 17) do imaginário nacional. Se quiséssemos incluir o discurso de Saramago neste debate imagológico, quase teríamos de falar duma 'nova Mensagem', não querendo estabelecer através desta conotação com Fernando Pessoa um parale-

12) Talvez seja a "Estética não-aristotélica" de Álvaro de Campos uma das melhores ilustrações de certos aspectos desta peculiaridade do pensamento português (cf também Baltrusch, 1997: 142-153).

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lismo semântico, mas sim um antagonismo. Mensagem não constituiu uma renovação imagológica da memória colectiva relativa ao destino nacional. Esta obra transferiu-a, antes bem, em metanarração esotéricognóstica em termos de um universalismo cultural, seguindo as tendências messiânicas e esteticistas do Bandarra, do Sebastianismo e da História do Futuro de Vieira. Seguiu-lhe, mais tarde, na renarração deste imaginário providencialista, Agostinho da Silva com a concepção da missão messiânica do Império do Espírito Santo que Portugal teria que cumpnr. Segundo Lourenço, este desejo de superioridade deriva de um profundo complexo de inferioridade, surgido de três traumatismos históricos: o "acto sem história" e "injustificável" do surgimento de Portugal como estado, o impacto psicológico de Alcácer Quibir e a perda definitiva dos restos do império colonial em 1974/75. Saraiva adjudica esta interacção de imaginários antagónicos ao "eterno balanceamento do português entre a solicitação de 'aventura' e o 'complexo de ilhéu'" (cf também Real, 1998: 152) surgidos do Espírito de Cruzada e da limitação geográfica. Contra o providencialismo, tanto Saraiva como Lourenço argumentam que Portugal sempre tinha sido uma parte da Europa, que interagiu com ela, verificando-se, somente, um afastamento durante os quatrocentos anos entre o século XVI e o século XX. Porém, o reencontro com a Europa, depois da sua formalização política em 1986, consumiu-se quando esta Europa já se encontrava "vazia por dentro de qualquer intenção e desígnio que transcendam a realidade quotidiana das suas performances, da sua existência infantilmente paradisíaca de Disneyland" (Lourenço, 1984: 34), quando ela já se revelava "imageticamente desequilibrada" (Real, 1998: 82). Se enc'arássemos os imaginários do destino nacional, ou seja a imagologia portuguesa, como uma meta-literatura ou como um metadiscurso estético e auto-reflexivo da memória colectiva, ser-nos-ia possível encadear com ela o pensamento saramaguiano, seja o ensaístico seja o deduzido da obra literária. Em geral, pode-se dizer que a autognose de Saramago reduz a interacção entre os imaginários de inferioridade e superioridade àquilo que ele denominou, com extremo pragmatismo, como o "emblemático bifronte humano do possível e do dese119


jável, a realidade e a utopia, máscaras que para ocultar o rosto o repetem, rostos que sempre acabam por imitar a máscara" (1993: 22). Em substituição de uma memória de inferioridade, ainda que tivesse sido suavizada pela mitificação do 25 de Abril, este autor propõe indirectamente introduzir no imaginário colectivo português um sentimento de culpabilidade europeia, perante aquilo que se costuma chamar o Terceiro Mundo. O último testemunho deste empenho ofereceu-o no seu discurso ante a Real Academia Sueca, no qual falava da necessidade de uma "nova utopia" (1998: 6), ou seja, de uma Europa que se devia orientar "para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética" (ibid.: 7). Três meses antes, numa conferência proferida durante o 11 0 Congresso Iberoamericano de Filosofia em Cáceres, também já tinha reivindicado que a Europa assumisse as responsabilidades das injustiças cometidas durante os descobrimentos. Saramago inclui, até, o actual sistema político na sua crítica pós-colonialista, quando em 1993 advertiu num ensaio da ilusão democrática que encobriria· a inexistência de uma verdadeira democracia na Europa, uma ilusão que estaríamos a exportar ao resto do mundo (1993: 34). A grande crítica cultural, aqui inerente, provém de JdP, onde a ficção faz que a Península Ibérica se desprenda do continente para flutuar oceano abaixo até, metaforicamente, parar entre a África e a América. Saramago ignora deliberadamente as advertências de Lourenço e de Saraiva, de que seria imprescindível situar a imagologia histórica e futura de Portugal no contexto europeu. 13 Ele até admitiu, no seu discurso nobelístico, que JdP tinha sido o "fruto do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa" (1998: 6), alçando-se com tal afirmação o porta-voz contemporâneo da memória colectiva portuguesa. Porém, a sua reclamação da existência de factos diferenciais entre a cultura ibérica e a europeia l4 não fica por aí. A jangada ibérica, como

13) Aos quais se juntou recentemente Real, 1998: 152-153 (cf também Saramago, 1988: 24).

14) Cf: "Neste livro [JdP] tentei mostrar duas coisas; primeiro: a Península Ibérica tem pouco a ver com a Europa no plano cultural. Dir-me-ão que a língua vem do latim, que

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alegoria de um renovado iberismo, diferencia-se de maneira significativa dos simbolismos nacionalistas ou providencialistas de um 'brave new world' shakespeariano, de uma 'Ilha dos Amores' camoniana ou do nacionalismo atlântico de um Sarmiento de Gamboa (c! VidalNoguet, 1988). Dois anos depois da publicação de JdP, devido às críticas por anti-europeismo que lhe foram feitas, Saramago sentiu a necessidade de esclarecer a sua posição num artigo titulado "O meu iberismo" (1988). Nele separa-se o ideário do iberismo português do elemento providencialista-irrealista como também das suas raízes nacionalistas e rácicas, que culminaram no século XIX na ideia da União Ibérica (c! Marques III: 35-36). Da apreensão da "constelação socio-histórico-cultural pluriforme" da Península Ibérica l5 , que ainda assim constituiria "uma cultura fortemente caracterizada e distinta" da europeia, Saramago deduz a necessidade de uma "harmonização dos interesses" ibéricos e um "previlegiamento das permutas culturais" (1986b: 24). Ante o temor de uma, ainda que utópica, permutação cultural ibérica se dissolver no caldo europeu, o autor chega à conclusão que a "Península Ibérica não poderá ser hoje plenamente entendida fora da sua relação histórica" com as culturas da América Latina e da África (ibid.). Estes representarIam, então, o futurível da própria pluralidade cultural, de maneira que, e continuando a pensar nesta linha, a utopia do trans-iberismo requereria para a manutenção da identidade cultural ibérica uma continuação crítica do cami-

II

o Direito vem do Direito Romano, que as instituições são europeias. Mas o certo é que, com este material comum, fez-se nesta península uma cultura fortemente caracterizada e distinta. Segundo: há na América um número muito grande de povos cujas línguas são a espanhola e a portuguesa. Por outro lado, nascem em África novos países que são as nossas antigas colón.ias. Então imagino, ou antes, vejo, uma enorme área ibero-americana e ibero-africana, que terá certamente um grande papel a desempenhar no futuro. Esta não é uma afirmação rácica, que a própria diversidade das raças desmente. Não se trata de nenhum quinto nem sexto nem sétimo império. Trata-se apenas de sonhar - acho que esta palavra serve muito bem - com uma aproximação entre estes dois blocos, e com o modo de o demonstrar. Ponho a Península a vogar para o seu lugar próprio, que seria no Atlântico, entre a América do Sul e a África Central. Imagine, portanto, que eu sonharia com uma bacia cultural atlântica." (l986b: 24) 15) Saramago (1988: 32). Cf também: "Pude sair duma visão histórica globalizada para a apreciação dinâmica das diferenças" (ibid.).

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nho empreendido pela expansão providencialista dos descobrimentos, assumindo, esta vez, responsabilidades laicas e pós-coloniais.

A Utopia Pós-colonial Saramago é, talvez, um dos primeiros escritores portugueses ou até ibéricos, que se aperceberam, e que defenderam com bastante clareza, que vivemos numa época em que o conflito pós-colonial de sistemas (p.ex. comunismo vs. capitalismo) se está deslocando cada vez mais para o que se pode passar a conceituar, desde uma perspectiva dos estudos culturais, como "cultural conflict" (S. Huntington, c! Turk, 1994: 244). Este conflito cultural desenvolve-se tanto no âmbito intra-ocidental como na relação Ocidente -Oriente ou Ocidente -África. A situação ibérica na Europa, e de Portugal em concreto, é, portanto, um balanceamento precário, uma vez que os laços imagéticos com as ex-colónias parecem ter sido mais profundos e duradoiros do que os que permaneceram, p. ex., depois do declive dos imperialismos inglês e francês. Saramago tenta manter o equilíbrio imagético através da introdução do conceito da culpabilidade de toda a Europa em relação aos países colonizados por ela, um discurso ainda bastante inovador no que diz respeito à imagologia portuguesa literariamente tratada. Por conseguinte, a sua utopia literária do futuro ibérico também retoma alguns fios estéticos procedentes da suposição de um destino messiânico português que partia da premissa "que a humanidade é espiritualmente [... ] uma só" (Real, 1998: 36). Mas o providencialismo de Saramago substituiu a unidade simbólica do povo português, como a defendia Agostinho da Silva (c! 1994), pela unidade simbólica de povos ibéricos dentro de um discurso global trans-ibérico, dentro de uma "bacia cultural atlântica" (Saramago, 1986b: 24). No que diz respeito à vertente do complexo de inferioridade e de pessimismo nacionaJl 6 , a qual Lourenço via resumida naquela interrogação de Garrett: "que ser é o meu, se a pátria a que pertenço não está segura de possuir e ter o

16) Cf a suposição de Agostinho da Silva que, desde o século XVI, o melhor de Portugal se tivesse mudado para o Brasil.

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seu?"l7, Saramago reveste-a de uma escatologia positiva: a permutação cultural ibérica e a dissolução numa trans-ibericidade . O conceito imagético do trans-iberismo aproxima-se, assim, de uma forma muito interessante do conceito cultural universalista de Ernst Cassirer. Este filósofo alemão pretendia chegar, a partir de um "conceito geral do mundo", a um "conceito geral da cultura", ou seja, considerando a língua, o conhecimento científico, o mito, a religião, a arte, enfim, todas as "produções da cultura mental" como partes de um grande contexto problemático, como uma tarefa comum (c! Turk, 1995: 18). A "Europa finalmente como ética", que Saramago reclama, implica não só um tal alargamento do conceito cultural, mas também um actualizado modelo de percepção a grande escala: se a teoria, de que a/orma mentis portuguesa sempre se tivesse alimentado "imageticamente do Outro (mouro, castelhano, índio oriental e ocidental, espanhol, francês, Europa)" (Real, 1998: 152), se esta teoria fosse certa, então encontraríamos no conceito imagético do trans-iberismo uma importante inovação semântica, já que viabiliza, intencionalmente, um interrelacionamento das representações próprias e das representações alheias do próprio. E isto é considerado pelos estudos pós-coloniais da actualidade justamente COlno o grande problema cultural do Ocidente no seu diálogo racional e humanitário com culturas, que, depois da sua colonização moderna, adquiriram a capacidade de combinar a crítica social com a defesa das suas culturas e tradições não-modernas (c! Turk, 1994: 245).18 Como agora Saramago, também Cassirer pretendia que se respeitasse a diversidade dos fenómenos culturais e que se conceitualizasse o significado das diferentes unidades subjacentes à cultura (c! Orth, 1988). Neste contexto semiótico-filosófico dever-se-ia situar, p. ex. a crítica ao discurso europeu em JdP, ou seja, a interdependência da diversidade cultural pen'insular com o 'facto diferencial' ibérico perante a Europa.

17) Lourenço (1978: 86). Se Lourenço revisasse O Labirinto da Saudade, escrito entre 1973 e 1978, certamente incluiria a obra de Saramago entre as poucas obras capitais da autognose nacional que ali citou, à parte de O Delfim de José Cardoso Pires (ibid.: 68). 18) Cf por exemplo, o projecto da análise de uma Europa vista de fora que se deixa entrever na obra de Salman Rushdie.

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A confabulação de ética e estética, que Saramago emprega como elemento discursivo pós-moderno (c! Baltrusch, 1998), é também utilizada para denunciar certos discursos de poder que actuam sobre e nas memórias colectivas. Em JdP e posteriormente no ensaio "O meu Iberismo" (l988), como também recentemente no seu discurso nobelístico, o autor defendia a "nova utopia" de uma "Europa finalmente como ética" (1998) que se devia orientar para o Sul, a fim de assumir as responsabilidades pelos estragos causados durante a colonialização e ., descolonialização. Consequentemente, e ao contrário daquilo que propagara o providencialismo, Saramago reduz os conceitos da Nação e da Identidade Nacional a uma linguagem cultural, dissolvendo-a na necessidade multicultural de uma trans-ibericidade. Na linha do já mencionado Cassirer, Saramago propõe um actualizado modelo de percepção a grande escala, reclamando um interrelacionamento das representações próprias e das representações alheias do próprio. A grande crítica saramaguiana às consequências tidas como negativas das identidades nacionais e das memórias colectivas, e da portuguesa em concreto, poderia ser estruturada por três aspectos: O primeiro visaria as sínteses feitas pelos estudos pós-coloniais que alertam para os processos de re-possessão dos processos de imaginação depois das imposições coloniais europeias. 19 O segundo seria a percepção de uma pós-modernidade como fenómeno global e globalizador que tem como consequência uma desterritorialização cultural tanto de pessoas como de valores e de ideários que antes viabilizavam os processos de identificação. O terceiro aspecto, consequência do segundo, parte da ideia de a identidade (tanto cultural como da personalidade) aparecer, na actualidade, em muitos âmbitos como uma ficção, uma utopia inverosímil que retrocede ante o anti-miticismo do hibridismo cultural. Na JdP, por exemplo, Saramago joga com os referidos níveis da desterritorialização, quer negativa quer positivamente, e propaga um hibridismo cultural ibérico como substituto identificatório. John R. Gillis definiu a identidade constituída pela interdependência com a memória,

19) Cf as análises de autores como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha, entre outros.

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um processo no qual a história actuaria corno intermediário. Saramago acrescenta a este modelo a possibilidade e o dever do sujeito contemporâneo de questionar a identidade através de urna reavaliação e 'correcção' da História e da historiografia oficial e colonizadora. 20 Assim, a atitude ateísta de Saramago combina-se frequentemente com a ideia materialista de urna História modulável e com a ideia neo-existencialista de adquirir segurança e identidade ontológica através da actuação e do compromisso humanitário: "O homem não se deve contentar com o papel do observador. Tem responsabilidade perante o mundo, tem que actuar, intervir".21 Porém, Saramago não encadeia os factos-signos e mitemas da História, mantendo uma ordenação totalmente teleológica, corno o requereria a sistemática de urna formação corno a dos centros históricos ima- . ginários (Real, 1998: 19). O seu discurso inverte estes processos no sentido de a reordenação e remitificação da história, por ele empreendidas, partirem de urna percepção por vezes não-linear do tempo histórico. As repetidas afirmações do autor, de o historiador / narrador ser um "escolhedor de factos" (1990: 19) que "faz a História", que a corrige deliberadamente para perturbar e que "toda a apreensão do mundo e da vida é ficcionante" (1989: 45), oferecem um perspectivismo atemporaI. 22 Saramago sintetizou esta tentativa de renovação do imaginário mítico português com a "ideia do tempo como urna tela gigante, onde tudo

20) Um exemplo deste processo, e também para a crítica dos discursos de poder na obra saramaguiana, é o tratamento do cristianismo. Assim, em AMRR e no Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), o autor desmitifica quer os conteúdos religiosos do fascismo europeu quer os asp~ctos totalitários do ideário cristão. Em AMRR, a peregrinação a Fátima, presenciada por Ricardo Reis, é apresentada como exemplo da paralisada e mutilada mentalidade nacional que o Estado Novo institucionalizara. Através da boca de Pessoa, o autor rejeita tanto a ânsia passiva de redenção como a ordenação teleológica da História: "perturbar a ordem, corrigir o destino, [... ], Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino" (AMRR: 334). 21) Saramago (1987: 49), tradução do alemão minha. 22) No que diz respeito à sobreposição de estética e observação historiográfica, estas ideias alinham com as teses de historiógrafos e críticos contemporâneos como Hayden White e Northrop Frye.

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está projectado (o que a História conta e o que a História não conta)".23 Esta "arrumação caótica"24, ou "transversal" (c! Welsch 1996) da História'permite-Ihe, depois, "a reinvenção do passado", isto é, a "reavaliação dos factos progressos, como condição, inclusive, de futuro" (Saramago, 1989: 45). A utopia de uma "Europa ética" e a pretensão de perturbar o leitor para "reclamar a presença" histórica (Saramago in Reis, 1998a: 85) daqueles que não foram registados pela historiografia, oriunda, porventura, da discussão sobre o "Novo Humanismo" neofealista que chegou a definir a literatura como um "meio de consciencialização do homem humano" (Alberto, 1940), ainda que na reformulação do imaginário português o neo-realismo tenha sido pouco revolucionário (c! Lourenço, 1978: 31 e Saraiva, 1963; 1973) e demasiado androcêntrico. O trans-iberismo de Saramago alberga, portanto, tanto um humanismo moderno - ou até pós-moderno, dado· que as vozes narrativas dos romances sempre oferecem um perspectivismo crítico e relativista. Também contém uma refutação do fim da História2S , uma vez que seria disparatado aplicar a estética do posthistoire à realidade histórica global. Quer dizer: segundo o discurso cultural desenvolvido em JdP, a integração na UE não significaria o fim da história do imaginário nacional, nem o posthistoire cultural ibérico. O ideário é mais filosófico, pois é justamente a consciência dolorosa do presente, do presente "inexistente" segundo Saramago, que leva a interrogar o passado e que, através de uma "rarefacção" e reavaliação do referencial histórico, viabiliza a imaginação como suporte da História, oferecendo novas vias imagéticas de futuro (c! 1990: 19).26 A revisão crítica do mito de Camões em AMRR - centro histórico imaginário que simboliza, para Saramago, a paralisação imagética nacional - é exemplar para o dito processo de consciencialização. Neste

23) Saramago in Reis (l998a: 80), fazendo referência a Jacques Le Gofr.

24) Ibidem.

25) Cf Saramago in Reis (l998a: 45) e Grossegesse (1999: 79 ss). 26) Porém, o Iberismo e, em maior medida ainda o trans-iberismo, representam, por enquanto, um discurso irrealista, tanto em Portugal como em Espanha, por mor da estreiteza dos conceitos gerais da Europa e da cultura vigentes.

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romance, a consciência histórica reflexiva do autor identifica Camões, com cuja estátua Ricardo Reis se vê confrontado quotidianamente, com uma novela que Reis subtraiu da biblioteca do navio que o levou a Lisboa. O título e o nome do autor, The God of the Labyrinth de Herbert Quain, provêm do conto "Examen de la obra de Herbert Quain" das Ficciones de Jorge Luis Borges. Camões é no meandro de Lisboa, como também o é na maranha da literatura portuguesa, o deus deste labirinto, o objecto de um culto instrumentalizado pelo Estado Novo, da mesma maneira que Fernando Pessoa vem sendo institucionalizado pela Segunda República. Para desmitificá-los, o narrador ironiza-os, falando de Camões como de uma "espécie de D' Artagnan, premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal" (AMRR: 70).27 Saramago entrevê nestas estilizações de autores consagrados ainda outro perigo para a forma mentis portuguesa, uma postura da qual se deriva a sua renovada leitura d' Os Lusíadas: estes seriam "o recado de um grande desígnio nacional que nos paralisou naquele tempo e que, pior ainda, nos manteve paralisados" (Saramago, 1986a: 36). O texto épico, na sua função de fundador de um imaginário nacional, revaloriza-se, portanto, como espelho esperpêntico de uma época cheia de falsos valores. Saramago apelida-o de "imensa galeria de poses" (ibid.) e responsabiliza a sua mitificação pela fixação melancólica do imaginário nacional na grandeza perdida do passado. A crítica da paralisação e mutilação do imaginário colectivo através deste mito pode ser considerada um topos na obra de Saramago, do que também dão prova as numerosas entrevistas. Em contraposição ao mito rácico da "progénie forte e bela", descendente da deusa marina Thétis, ,.

27) A alusão visa aquela coincidência, sobradamente explorada, de Camões ter salvo com muito custo o seu manuscrito de um naufrágio, como também a de o ter conseguido publicar exactamente antes da queda do império em Alcácer Quibir. Cf: "Seria bom que soubesse que dele se servem, à vez ou em confusão, os principais cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência" (AMRR: 70). Cardoso Pires comentou estas estilizações de autores consagrados em ocasião do cinquentenário da morte de Pessoa: "quando oficialmente descobrem um herói utilizam-no para castrar o futuro" (in Saramago] 985b: ] 54, tradução do castelhano minha).

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predestinada a servir de exemplo ao mundo (Lusíadas, IX, 42), a reescrita saramaguiana situa os portugueses como "descendentes do rei D. João Veda sua amante, a freira Paula de Odivelas, frutos de amores de sacristia, procriados pelo poder absoluto e a corrupção da igreja" (Saramago, 1985a). Os elementos submissos e fatalistas, para não dizer cristãos, do imaginário português, se continuássemos a insistir nesta linha, teriam favorecido a mitificação labiríntica das 'vacas sagradas' do respectivo discurso político ou cultural no poder: Camões, D. Sebastião, a Saudade, o Quinto Império, o Império do Espírito Santo, Pessoa28 , Europa e, recentemente, a Lusofonia. Em AMRR, a incarnação de Ricardo Reis surge como a alegoria da passividade da burguesia portuguesa, e lisboeta em concreto, ante a deformação fascista da sociedade pelo Estado Novo. Saramago identifica esta "capacidade de esperar" com um "desejo de pospor" (Saramago, 1985a: 8), uma indecisão e incoerência, também imanente em Reis, que incapacita a forma mentis para qualquer esperança, condicional de actuações assertórias. 29 Desta arqueologia crítica da mentalidade portuguesa, depreende-se que a paralisação e mutilação mental, derivada das instrumentalizações diferentes que se fizeram d' Os Lusíadas, levara o imaginário nacional a uma incapacidade de autognose e renovação, da qual o Ricardo Reis do romance seria o símbolo supremo. Enquanto Camões tinha pessoalizado Portugal (c! Lourenço, 1978: 81) e Pessoa o tinha enigmado, Lourenço psicanalisou a Nação pessoalizada que Saramago agora despessoaliza e desconstrói, reduzindo-a a uma linguagem cultural e dissolvendo-a no trans-iberismo. José Sara-

28) AMRR publicou-se no ano anterior ao cinquentenário da morte do poeta (1984) e no ano da mudança da sepultura do Cemitério dos Prazeres ao Mosteiro dos Jerónimos, símbolo por excelência do mito messiânico-colonial dos Descobrimentos, vis-à-vis do Monumento dos Descobrimentos, erigido em tempos de Salazar. Saramago definiu o acto como uma "grandilocuencia" e como "la típica ídea de político. En vez de entender lo que Pessoa es para los portugueses de hoy, se cae en el culto necrófilo de las apariencias. No el culto a los muertos, [... ], sino el comerse ai muerto" (Saramago, 1985b: 156). 29) Cf "A esperança é uma atitude activa, mas nos portugueses é uma fonna cómoda de projectar para um futuro cada vez mais longínquo o que deveríamos fazer agora, de pospor até ficarmos sem saber se desejamos ou não o entretanto acontecido" (ibid.).

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mago continua, no entanto, a "gesta de consciência universal" (Lourenço: 107) que Pessoa empreendera, e é, talvez, por isso que ele ironi~ cam ente reproduz na JdP o célebre dito de Unamuno que Portugal representa a"proa da Europa".30 A 'nova Mensagem', ou seja, a grande metanarração da sua confabulação de ética e estética do imaginário nacional é a utopia de um humanismo universalista e, simultaneamente, uma advertência contra a paralisação do imaginário europeu que deveria multiplicar a importância conferida às representações alheias do próprio ser.· Este novo humanismo universalista também envolve uma modernização ou, melhor dito, uma pós-modernização da memória cultural portuguesa. Através da estética da dúvida e da relatividade que Saramago cultiva com o perspectivismo crítico das suas vozes narrativas, ele aproxima-se de um juízo que a filosofia pós-moderna designa como "transversal" (cf Welsch, 1996). Esta "razão transversal" consiste na sua capacidade de pensar os paradoxos (cf Derrida, 1967), enlaçando o heterogéneo e encarando a realidade como pluralidade e transição (Welsch, 1996: 762), sem que se perca o impulso ético (c! Baltrusch, 200Ia). Não é só com estas inovações semânticas e operativas do imaginário nacional que o próprio Saramago nos sugere, ainda que involuntariamente, a ideia de que, antes, poderia ser ele um Super-Camões, bem diferente daquele com quem Pessoa sonhara, sem que se tivesse ousado identificar abertamente com a ideia - ao contrário do que tinha afirmado no seu discurso nobelístico (Saramago, 1998: 5): um Super-Camões trans-iberista e decididamente pós-colonial. 3l

30) JdP: 93. Aqui caberia, naturalmente, uma interrogação crítica da lógica universalista e essencialista contida no discurso saramaguiano desde uma perspectiva feminista (cf. Baltrusch, 2001 b). 31) De qualquer modo, a sua consagração nobilística tem sido um golpe de efeito feliz, voluntaria ou involuntariamente, porque o primeiro prémio Nobel a um escritor português não distinguiu a tópica veia poética da literatura portuguesa, como era de esperar, mas, curiosamente, o romance e com ele a continuação do histórico elemento oral e popular.

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Conclusão Em resumo, ficamos com duas características centrais e inovadoras, desde um ponto de vista discursivo, na obra saramaguiana. Por um lado, entrevê-se um esboço, cada vez mais concretizado e teorizado, de • uma teoria literária e / ou historiográfica que parte de um perspectivismo atemporal, exemplificado através da continuada crítica dos discursos e dos níveis narrativos institucionalizados. Por outro, oferece-se-nos uma crítica imagológica da memória cultural e colectiva (portuguesa e europeia), à qual se contrapõe uma utopia cultural e de identidade, motivada por um ideário próximo das teorias pós-coloniais. 32 A' crítica das meta-narrativas históricas, dos níveis narrativos tradicionais e das imagologias culturais repete-se na obra através de certas características topológicas. O seu emprego é intencional e obedece a um propósito ilustrado e claramente político. Desde a perspectiva artística sobressaem, sobretudo, o interrelacionamento de ética e estética e a inclinação para uma renovada ideia da obra de arte total (no sentido de um entretecimento de vida e arte). Este ideário manifesta-se nas seguintes características topológicas antes mencionadas: o enleio da ficção / narrativa através doutras ficções / narrativas que lhe são sobrepostas ou subordinadas; a tentativa de estabelecer um estilo de representação universalista, através do qual transluz um sonho de totalidade (pós-)moderno da narrativa literária; a sobreposição, intencionalmente subversiva, do autor ao narrador; uma redefinição humanitária da crítica pós-moderna dos discursos, entretecida com uma reorientação do ideal romântico da obra de arte total; o emprego de certas técnicas do teatro épico; a modernização do ideal neo-realista de um "Novo Humanismo"; a interacção entre ironia e indeterminação para deixar margens de interpretação;

32) Pode-se acrescer um terceiro elemento inovador (dentro do discurso androcêntrico reinante na literatura) que é a recriação pós-moderna de um mito feminino e matriarcal (cf Baltrusch, 200 I b).

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uma auto-interpretação que envolve a crítica literária académica; a contínua re-avaliação e 'correcção' da história e da historiografia, que se aproxima da dialéctica da filosofia das luzes de Adorno e Horkheimer (1944; 1986); a tentativa de dissolução dos discursos de poder 1) da identidade apoiada no conceito da nação-estado, 2) da perspectiva neo-colonialista em geral e 3) da perspectiva eurocêntrica em especial; a utopia de uma identidade pós-colonial a partir da "bacia cultural atlântica'" , a reclamação de permutação cultural, de identidades híbridas e supranaCIOnaiS; a tentativa metanarrativa de uma re-ocupação positiva do conceito ideologia através das exigências trans-individuais e trans-culturais antes mencionadas.

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