Cândido Mariano & Canudos

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2ª EDIÇÃO • REVISTA E AMPLIADA

Roberto Mendonça



Cândido Mariano

CANUDOS 2ª EDIÇÃO • REVISTA E AMPLIADA

Roberto Mendonça


© 2017 Roberto Mendonça. © Todos os direitos desta edição são reservados aos autores.

Texto e revisão Roberto Mendonça Projeto gráfico Marcelo Menezes Fotos Acervo pessoal do autor Flávio de Barros / Acervo Museu da República


SUMÁRIO

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AO LEITOR

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NOTAS DO CENTENÁRIO

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DO SUL DE MINAS

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COMBATES DO INFANTE E DO ENGENHO

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CASAMENTO E FAMILIARES

34

CAMPANHA DE CANUDOS

50

NAVEGANDO PELO LITORAL

64

CERCO DA CIDADELA SAGRADA

70

DELENDA CANUDOS

76

DA BAHIA AO AMAZONAS

88

FESTAS DA CHEGADA

98

DEMISSÃO DAS FORÇAS

106

HONRARIAS DO REGIMENTO

118

POLÍTICO NA AMAZÔNIA

124

SENA MADUREIRA (AC)

132

“CONTRADITA A UM INGRATO E CALUNIADOR”

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CRONOLOGIA

146

ANEXO: O ALTO PURUS

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RELATÓRIO

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EPÍLOGO

198

IMAGENS




Ao Leitor

Ao leitor

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Ao Leitor

Ao ingressar na Polícia Militar do Amazonas (PMAM) em meados de 1966 encontrei, a despeito da escassez de subsídios, o culto a um incensado “herói” de Canudos: Cândido José Mariano. Quase nada se conhecia ou existia publicado a seu respeito, quando em 1972 esta corporação encomendou a um historiador uma síntese histórica. Foram essas primeiras informações biográficas que me impulsionaram a desvendar a origem e o destino deste paladino. Em frente! Quando servia na Casa Militar do Governo (1983-84), despertou minha curiosidade e impeliu-me a desvendar a substância da PMAM uma máquina leitora e copiadora de microfilmes disponivel no Palácio Rio Negro. Tardes e tardes inquietei-me diante do visor luminoso à cata de fatos e datas, de nomes e de feitos. As anotações acumularam-se, pois a leitora dispunha de recurso reprodutivo em cópias ampliadas; assim o trabalho de pesquisa tornou-se mais franco e asséptico. Apesar da assepsia, estou convencido de que, naquele instante, fui inoculado com um veneno da pesquisa. Daí em diante, decidi recuperar de páginas amareladas de compêndios e de fontes disponíveis, o ilustre desconhecido Cândido Mariano. De partida, reli e anotei todos os dados existentes em arquivos da cidade de Manaus. Visitei (e aqui registro meu agradecimento) todos os departamentos estaduais, todos os locais onde fosse possível colher algum apontamento acerca do campeador de Canudos. Somente quando esgotada a pesquisa local, e ainda pela inexistência de dados básicos, como datas de nascimento e de morte do biografado, viajei ao Rio de Janeiro com a vã esperança de recolher no principal cemitério daquela cidade os pormenores que me afligiam. Ledo engano. Descobri, então, que ali os mortos desafortunados ainda não estavam “atendidos” por esse recurso tecnológico. Contudo, não perdi a viagem, o Arquivo do Exército cedeu-me cópias de todos os documentos existentes na pasta do ex-capitão Cândido Mariano, alguns dos quais ilustram este trabalho. De retorno a Manaus, certo dia, caminhando solitário (como atleta frustrado) veio-me a idéia de repetir a experiência realizada em A Crítica, jornal da cidade. Inquiri-me: por que não endereçar uma carta a um jornal carioca? Assim, no início de dezembro de 1993, remeti com certa descrença uma carta ao leitor para 9


Ao Leitor

O Globo. Resumindo: como presente natalino, recebi um telefonema de Jorge Torres, neto de Cândido Mariano. E, para meu cabal entusiasmo, ele anunciava que sua mãe adotiva – nonagenária – era filha de Cândido Mariano, e estava viva e me aguardando. Alvorocei-me para encontrar tão preciosa descoberta. Viajei ao Rio, onde dialoguei durante uma semana (vou explorar isso à exaustão no decurso desta retrospectiva) com dona Lucy Mariano, que me proporcionou uma incomensurável dádiva. A de-ser o último (e único) policial militar do Amazonas a conversar com a filha de Cândido Mariano. O privilégio recompensou-me de tantas andanças e de horas e horas enfurnado em pesquisas, nem sempre em ambiente acolhedor, como também postado a frente do computador. A partir desse diálogo, localizei no cemitério de São João Batista, do Rio de Janeiro, a arca contendo os restos mortais de Cândido Mariano; no extremo do campo santo, constituindo a parede para a rua fronteiriça. Ao retornar a Manaus, fiz gestão junto ao comandante-geral no sentido de que a PMAM efetuasse a remoção dos restos mortais de seu “patrono”. Já ponderei essa sugestão a mais outros comandantes. Contudo, nunca obtive sucesso. Oxalá, a urna ainda esteja perpetuando o combatente de Canudos. E avancei na empreitada. Em busca de maiores detalhes sobre o homenageado, visitei Rio Branco e Sena Madureira, no Acre, e Porto Velho, capital de Rondônia, onde vasculhei arquivos de organizações, sem muito alcançar. O arquivo rondoniense estava a merecer maior espaço e organização (1994), e os apontamentos sobre funcionários da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré estavam sendo processados para se constituir em acervo de futuro museu. Ainda há muito a pesquisar, pois o comandante do batalhão do Amazonas operou por diversas cidades do sul ao norte do País. Espero que a divulgação deste trabalho ajude aos interessados a recompor a trajetória deste combatente. Por fim, aventurei-me em uma particular quinta expedição. Para isso, retornei a Salvador (BA), quando mantive contato com o saudoso mestre José Calasans Brandão da Silva (1915-2006) e com professores do Centro de Estudos Euclides da Cunha (CEEC), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), para recolher informações sobre Canudos. Fiz uma parada em Juazeiro (BA), aonde recebi o apoio do 3º Batalhão Policial ali instalado, que me permitiu madrugar em direção a Canudos. Embora estivesse em veículo policial, a turma da Associação Canudense de Estudos e Pesquisas Antônio Conselheiro (Acepac) conduziu-me pelas trilhas sagradas de Belo Monte. Concretizei um sonho! Acerca da campanha canudense, não me propus a produzir uma dissertação acadêmica. Livros a mãos cheias estão expostos, tentando desvendar os mistérios 10


Ao Leitor

insólitos daquela luta às margens do rio Vaza Barris. Meu intento persiste — tão somente — em particularizar a presença amazonense, recolhendo, para isso, de compêndios e de revistas, de diários e de periódicos, a descrição do desempenho da força militar no campo de luta. Bem como a passagem do batalhão de Cândido Mariano por algumas cidades da costa brasileira, em especial, a capital baiana. Valho-me do método de “revelar a História, fazendo falar os personagens, que vêm ao encontro do leitor”, tal como me inspirou Hélio Silva, saudoso historiador. Seja qual for o resultado deste trabalho, a participação da Polícia Militar do Amazonas no evento bélico do final do século XIX, na Bahia de inúmeros Antônios, está posta à disposição de estudiosos ou, simplesmente, de interessados. Sou imensamente grato a quantos me incentivaram a publicá-la.

ROBERTO MENDONÇA

P.S. Escrevi a 1ª edição deste trabalho embevecido pelas conquistas próprias no trânsito de minhas pesquisas e na antecipação do centenário de Canudos. Cada vez mais empolgado pelas leituras consumadas, assim como pelas conversas com os aficionados pelo funesto acontecimento, cheguei a rascunhar o seguinte título para o livro: “A gloriosa epopeia da PMAM em Canudos”. Evoluiu, pouco adiante, para “Cândido Mariano, o herói da PMAM em Canudos”. Ainda bem que uma “consultora” me advertiu do burlesco. Pois... como resume de maneira primorosa Consuelo Novais Sampaio (org.), em Canudos: Cartas para o Barão (São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999), A Guerra de Canudos não foi apenas mais um capítulo da história do Brasil. Ela revela com precisão a grande distância que, neste país, sempre separou – e no limiar do século XXI, ainda separa – o “povo miúdo”, a população pobre e miserável, das classes dominantes. Em todos os níveis de tomada de decisão, o movimento conselheirista foi manipulado para a satisfação de interesses pessoais e de grupos políticos em luta pelo poder.

São passados 20 anos desde o lançamento de meu Canudos & Cândido Mariano (Manaus: Edua, 1997) que serviu, entre outros empregos, para compartilhar o centenário de Canudos em Manaus. Festividade que foi patroneada pela extinta Fundação 11


Ao Leitor

Djalma Batista, dirigida pelo Professor José Seráfico, que volta nesta edição a emprestar seu apego aos movimentos culturais e sociais, com sua palavra culta e diplomática. Passados 20 anos, reformulei meus conceitos (desculpe o leitor o chavão) sobre Canudos e seus personagens. Nesse lapso, quase olvidei ao comandante Cândido Mariano, que espero ainda esteja sepultado no cemitério São João Batista carioca. Outra iniciativa: repassei quase uma centena de livros adquiridos sobre o tema para a Universidade Estadual de Pernambuco – Campus Petrolina, ao tempo da gerência do Professor Ms. Moisés Almeida. Da Polícia Militar do Amazonas, no entanto, não descurei, por uma singular motivação: anualmente, em 8 de novembro, esta corporação perfila-se para relembrar a campanha de Cândido Mariano e dos policiais amazonenses em Canudos. Estou convencido de que se trata da única Força Estadual (as demais participantes dessa refrega são a do Pará, da Bahia e de São Paulo) no país a renovar ciclicamente as acerbas lições canudenses. A fidelização corporativa me impulsionou a elaborar esta nova edição com a indispensável revisão ortográfica e com o acréscimo de substancial material literário elaborado por Cândido José Mariano, e difundido quando de sua atuação na prefeitura de Sena Madureira (AC). Enfim, há cinco anos, elaborei o folheto Canudos em Quatro Tempos: a participação da tropa da Polícia Militar do Amazonas na Campanha de Canudos, 1897 (Manaus: s/ed., 2012) para relembrar a efeméride festiva de novembro. Vivemos novos tempos, sei. O correr do relógio me ensinou, e me levou a percorrer novos caminhos para alcançar o desfecho de Canudos. Acredito ter assimilado as lições, porém, uma questão ainda me inquieta: onde posso encontrar os nomes dos policiais integrantes do Batalhão de Cândido Mariano? Lamentavelmente, mexidas e mais mexidas operadas no extinto Quartel da Praça da Polícia espalharam por estranhos departamentos estaduais os registros históricos. Todavia, eu prometo: ainda os alcançarei. No mais, o tão estudado tema Canudos passa por uma temporada de baixa estação. Oxalá o sesquicentenário, ainda bem distante (em 2047), traga novidades e inovados subsídios. Contudo, diante dessa longínqua distância cronológica, lego com este trabalho minha contribuição.

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Para Beatris e Sofia, o revigorado alicerce do meu entardecer


Intrรณito

NOTAS DO CENTENร RIO

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Notas do centenário

Os acontecimentos e especialmente os personagens da tragédia de Canudos refluem com avassaladora energia no centenário da demolição de Belo Monte, consolidada na terça-feira, 5 de outubro de 1897. Os herdeiros do Bom Jesus Conselheiro estão resgatando este singular movimento com a rediscussão dessa saga, ocorrida no curto período do quatrienio inaugurado em junho de 1893, ou seja, a partir da implantação daquele arraial por Antônio Vicente Mendes Maciel, o sempiterno Antônio Conselheiro.1 Para a Policia Militar do Amazonas (PMAM), no entanto, a data mais significativa desta campanha é a do retorno de sua tropa, em 8 de novembro daquele ano. Naquela ocasião, o 1º Batalhão de Infantaria do Regimento Militar do Estado (RME) foi saudado com flores e com versos; com discursos inflamados de políticos e de literatos; no átrio do quartel da praça da Polícia e das janelas engalanadas dos sobrados; desde o humilde cidadão ao cidadão governador, tenente de engenheiros Fileto Pires Ferreira (sucessor do legendário Eduardo Ribeiro). Manaus saiu às ruas nessa data para aclamar como heróis os policiais barés. Há muito, eu ambicionava desvendar, ao menos, a sina do comandante desses valorosos soldados. Com este propósito suplementar, elaborei este trabalho. Ainda me inquieta a ausência da relação dos combatentes e o destino dos praças, pois os nomes dos oficiais estão grafados no Relatório consagrado pelo comandante, apenso ao qual devolveu a importância de quinze contos de réis ao Governo do Amazonas. O Estado, nutrido pela riqueza produzida pela hevea brasiliensis, teve capacidade financeira de patrocinar aquela empreitada, com a visão suprema de consolidar a nascente República brasileira. Insisto averiguando sobre os 249 combatentes, entre os quais doze músicos, que permanecem desconhecidos, visto que se esfumaram os livros com os assentamentos funcionais.

1  Nascido em Quixeramobim (CE), em 13.03.1810, era filho primogênito de Vicente Mendes Macei e de sua primeira esposa Maria Joaquina do Nascimento, e falecido durante o combate final de Canudos, talvez em 22.09.1897. Constitui uma figura bastante analisada e descrita por inúmeros especialistas. Em 1895, informa Benício (1899:62) que um sobrinho de Conselheiro, Amâncio Maciel de Lima, filho de Francisca Maria e de Lourenço Correia Lima, encontrava-se no Amazonas, em lugar ignorado.

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Do sul de Minas Gerais

CAPÍTULO I

DO SUL DE MINAS

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Do sul de Minas

Na campanha de Canudos, a tropa amazonense esteve sob o comando de Cândido José Mariano, 1º tenente do Exército, comissionado tenente-coronel do Regimento Militar do Estado, para esta finalidade. (É preciso não confundir com o marechal Cândido Mariano da Silva Rondon). O tenente nasceu na cidade de Alfenas (MG),2 em 22 de maio de 1870. Era o segundo dos três filhos do advogado homônimo e de Francisca Leopoldina Gomes Mariano; os demais filhos foram Antônio, o primogênito, e Ricardina. O menino Cândido foi batizado pelo padre Thomaz Gaspar, pároco da matriz de São José e Dores, da cidade.3 Sem que se saiba a data, mas o falecimento do genitor deixou Mariano órfão bem jovem, acarretando como sempre mudanças inesperadas na seio da família. Impelido quem sabe por carência financeira, ou apenas atraído, ele se transferiu para o Rio de Janeiro. Ali, ao ingressar na vida militar pôde desenvolver seu destemor, sua ousadia e alcançar a notoriedade que os acontecimentos nacionais permitiram. Nebulosa é a informação que recolhi sobre uma ajuda recebida de um tio, morador na Corte, por ocasião da mudança de Mariano. Segundo narrativa de sua filha, seu pai estudou as primeiras letras em escola existente no bairro da Lapa, dirigida por padres. Obteve seguramente excelente aprendizado, como bem demonstrou nos escritos elaborados em diversas oportunidades da vida, seja em documentos oficiais, seja em artigos publicados na imprensa das capitais da Amazônia e, com inquestionável repercussão, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1911. O alfenense chegou à Corte em momento propício, em momento de ousar, pois um tempo de mudança refluía no Rio de Janeiro. Ali, propagandeava-se a queda do regime imperial. Os ideais republicanos disseminavam-se com maior fluxo entre os jovens militares, embora também com ampla participação de intelectuais, jornalistas e acadêmicos principalmente de direito e engenharia.

2  Localizada no sul de Minas Gerais, foi fundada em 15.10.1769. Em 1860, passou à cidade com o nome de Formosa de Alfenas, mas em 1871, no ano seguinte ao nascimento de Cândido Mariano, teve o topônimo simplificado para Alfenas. Para mais informações: consultar o site da Prefeitura. 3  A 13 de agosto, com dois meses e 22 dias de idade, tendo por padrinhos: Bernardo José Mariano e Maria Joana Gomes, provavelmente seus tios, a julgar pelo sobrenome.

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Do sul de Minas

A iniciação profissional de Cândido Mariano ocorreu em 23 de março de 1885, com menos de 15 anos de idade, depois de encaminhar vários requerimentos ao ministro dos Negócios da Guerra, pedindo autorização especial para freqüentar o curso preparatório da Escola Militar da Corte. Seu ingresso, porém, não constituiu um privilégio, pois embora o regulamento estabelecesse a idade mínima de dezesseis anos, a lei permitia a admissão de candidatos ainda mais jovens. Aos dezoito anos, após concluir o curso preparatório (obrigatório) de três anos, Cândido Mariano matriculou-se na Escola Militar da Corte. Cheio de idealismo e entusiasmo, engajou-se na refrega política pela proclamação da República, que enredava especialmente os alunos da escola do mestre Benjamin Constant, baluarte dessa luta. Tanto empenho e abnegação proporcionaram a Cândido, quando auxiliava a primeira conferência de Silva Jardim,4 no Teatro Lucinda, graves ferimentos. A narração desse episódio é do próprio conferencista: As injúrias converteram-se em apupos e os desordeiros arremessaram uma pedra que me vem cair aos pés. Então o auditório perde a paciência e reage contra os provocadores. Um grande número de amigos e correligionários sobe ao palco e acerca-se de mim. Num camarote, Martins Torres, o digno juiz de direito da Capital, bradava indignado contra aquela miséria. Quintino [Bocaiúva] que chegara há pouco, com Aristides e Ubaldino [do Amaral], amparava um estudante da Escola Militar, Cândido Mariano, a quem haviam atirado sobre os peitos um banco, com o que perdera os sentidos. Barata Ribeiro dispensava cuidados médicos ao enfermo.

Em 30 de dezembro, quando mais fervilhava a campanha republicanista, Silva Jardim “pronunciou um de seus mais memoráveis discursos. Aconteceu no Rio, na sede da Societé Gymnastique Française, a rua Clube Ginástico (depois Silva Jardim), nº 9, junto a atual Praça Tiradentes. Era o único salão disponível para a véspera da noite de São Silvestre”.5 O resultado foi lamentável. A Guarda Negra invadiu o local depois que foram ouvidos tiros na via pública, provocando no recinto uma batalha, do que resultaram vários feridos. Entre estes, o biografado que, em defesa do referido propagandista, saiu seriamente contundido. 4  Antônio da Silva Jardim (Capivari, hoje Silva Jardim (RJ), 18.08.1860 – Nápoles (ITA) 01.06.1891). Advogado, orador e político brasileiro, é considerado o mais atuante dos propagandistas da República. Estes fatos estão narrados em seu livro Memórias e Viagens I - Campanha de um Propagandista. Lisboa: Cia. Nac. Ed., 1891, p39. E o lutuoso evento aconteceu na noite de 22.08.1888. 5  Carlos Wehrs. Pelo centenário de morte de Antônio da Silva Jardim: 1891-1991. Revista do IHGB; Rio: v.152, nº 372, 1991, p.778.

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Do sul de Minas

Em razão desse engajamento político, Cândido lamuria-se de ter sido “reprovado, preso e transferido”, em abril de 1889, para a Escola Militar do Ceara.6 Todavia, não perdeu tempo, em Fortaleza contribuiu para fundar uma agremiação pré-republicana e abrir na imprensa mais uma campanha contra a monarquia. O desembarque do cadete, em Fortaleza, ocorreu em 11 de abril, conforme registra o jornal Libertador.7 Junto com o cadete viajaram mais de trinta colegas. Em razão desse número, entendo que não houve correção disciplinar para o biografado, essa transferência não se constituiu em exemplar castigo. O Exército, em vista da instalação da escola militar cearense, remanejou alunos para fazer funcionar aquela e, claro, esvaziar parcialmente a congênere da Corte. Em 9 de março, assumia o primeiro comandante da escola, João Nepomuceno de Medeiros Mallet, tenente-coronel de artilharia; o mesmo que, mais tarde, quando general, foi ministro da Guerra de Campos Sales (1896-1900).8 Mallet não tardou na direção da escola. Sete meses depois, a 21 de outubro, passou o comando ao tenente-coronel José Freire Bizerril Fontenelle (professor de matemática), e se afastou para o Rio de Janeiro. A Escola Militar do Ceará bem merece um parêntese mais alongado. Todavia, como não cabe no contexto, seguem apenas algumas notas. A escola foi inaugurada às 12 horas de 1º de maio de 1889. Segundo o programa, e observando-se o costume da época, o banquete foi servido a partir das 18 horas. Au dessert, Dr. Caio Prado, presidente da província do Ceará, levantou a primeira saudação. Destinou-a ao comandante da escola, seguindo-se mais de três dezenas de brindes. As 21h30, brin-

6  Criada pelo Decreto imperial nº 10.777, de 1° de Fevereiro de 1889. 7  O jornal Libertador, Fortaleza, 11 de Abril de 1889. “Escola Militar. No Alagoas, entrado hoje do Sul, vieram para esta capital os Drs. major Feliciano Antônio Benjamin; tenentes Jonatas de Melo Barreto e Alexandre Barbosa Lima, lentes da escola militar desta capital, coadjuvante do ensino prático, cadete Manoel Onofre Muniz Barreto e os alunos: alferes Paulo José de Oliveira, Cicero Franklin de Vasconcelos Monteiro, Raimundo Magno da Silva, cadetes Manoel Liberato Bittencourt, Maximiano José Martins, Joaquim Cândido Cordeiro, Cândido Carolino Chaves, Alfredo Martins Pereira, CÂNDIDO JOSÉ MARIANO, João Teodoro Felício dos Santos, Honorino Antunes de Carvalho, Carlos Peckolt, Antônio Jose Pinheiro Junior, Antônio Pereira Leitão da Silva, Estanislau dos Santos Nunes, Manoel Rosa Soares, Antônio e João Benvindo Ramos, Samuel Augusto de Oliveira, Jose Capitolino Freire Gameiro, Pompeu Loureiro, José Maria de Faria Souza, Carneiro de Moraes, Melquizedech de Albuquerque Lima, Francisco de Siqueira Melo Rego Barros, Ernesto Marcos de Araújo, Antônio Lins, Antônio Fernandes Torres, Joaquim Inácio Pereira do Amaral, Raimundo Irineu de Araújo, Gustavo Sampaio, Marcilio Beviláqua, Francisco de Moraes Cavalcante e Milton Burlamaque”. O jornal Cearense, órgão liberal de Fortaleza, de 13 de Abril de 1889, reproduz em release a nota acima. 8  No final de 1898, no exercício deste cargo haveria de despachar desfavorável o requerimento do capitão Cândido Mariano, que solicitava a “troca de corpos”. Esta decisão apressou a demissão deste oficial do Exército.

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dou-se ao Imperador e, uma hora depois, deu-se início ao baile, com a primeira valsa. Enfim, assegura um cronista da época, relatando o evento em seu jornal, “às 5:30 horas da manhã seguinte, foi encerrado o soirée com o salão repleto como se iniciou”. Na Lembrança Imorredoura,9 recolho a informação de que, em 1894, foram criadas a Academia Cearense de Letras, em 15 de agosto, e a Sociedade Centro Literário, em 27 de setembro, ambas sob a influência inconteste de oficiais e alunos da Escola Militar do Ceará. Ouso acrescentar que Cândido Mariano, certamente, teria se incorporado a esse seleto grupo, pois possuía capacidade intelectual e disposição para a refrega em todos os sentidos, não fora seu retorno a cidade do Rio de Janeiro, no alvorecer de 1890. Na Escola Militar cearense, sob o comando interino do tenente-coronel Bizerril Fontenelle, Cândido Mariano foi aprovado plenamente no ano escolar de 1889, participando em Fortaleza com afinco e entusiasmo do meeting pela instalação da República. Repetia procedimentos anteriores, assim contribuindo de forma supina para a vitória republicana nessa cidade. Não disponho de dados sobre sua participação na tribuna popular, entretanto, sua influência com apenas 19 anos de idade, entre tantos nomes consagrados da política e das letras cearenses, revelada na fundação do Centro Republicano do Ceará, não surpreende. O relato do acontecimento pertence ao memorialista cearense barão de Studart. 26 de julho – É desta data a lei orgânica do Centro Republicano do Ceará. Compõe-se de dezenove artigos, de cuja redação foram encarregados R. Amorim Figueira,10 Manoel Joaquim da Costa Pinheiro Junior, Cândido José Mariano (grifei) e Floriano Florambel. Além desses quatro membros, foram os seguintes os cidadãos [seguem-se 29 assinaturas] que frequentaram o Centro desde a sua fundação até a proclamação da República.

A aludida agremiação, sob a presidência de Joaquim Catunda (mais tarde senador), possuía entre seus adeptos a João Cordeiro (depois governador), Henrique Cals, Papi Junior e outros ilustres políticos cearenses. Na tarde de 24 de novembro, promoveu uma marcha cívica e, à noite, uma sessão solene no Teatro São Luiz, em júbilo pela Proclamação da República. Ambas conduzidas por seu presidente, e

9  Elber de Mello Henriques. Colégio Militar do Ceará: Lembrança imorredoura. Revista do Exército Brasileiro, v.132, 1º trimestre, 1995, p.45. 10  Raymundo de Amorim Figueira, quando tenente, comandou a Polícia Militar do Amazonas em duas ocasiões: a primeira, tida por espúria; e a segunda entre fevereiro e agosto de 1892. Por ocasião do episódio de Canudos, era deputado federal pelo Ceará.

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contando entre tantos, com a presença de Alexandre Barbosa Lima. E, seguramente, de Cândido Mariano. Em 26 de dezembro de 1889, o comandante interino da Escola endereçou telegrama ao coronel Lauro Sodré, secretário do Ministério da Guerra, rogando pela transferência de Cândido Mariano para a escola do Rio de Janeiro. Atendido o pleito, o aluno foi desligado da Escola Militar do Ceará, em 29 de janeiro de 1890. Seguiu para a Capital Federal, matriculando-se, em 29 de margo, no 2º ano da escola da capital. No mesmo ano, em 14 de abril, foi promovido a alferes. Um ano depois, aprovado plenamente, concluiu o curso de infantaria e cavalaria, estabelecido pelo Regulamento de 1889. Antes de concluir o curso, entretanto, incorporado ao 31º Batalhão de Infantaria, seguiu para o Rio Grande do Sul, onde participou de diversos combates e do cerco de Bagé (29 Nov. 1893 – 08 Jan. 1894). Aspirando maior desenvolvimento profissional, Cândido requereu, em 23 de fevereiro de 1891, matricula no 1º ano da Escola Superior de Guerra (externato destinado a instrução técnica dos oficiais). Diversa da destinação hodierna, essa escola era consagrada à formação de engenheiros militares e funcionava onde atualmente está aquartelado o 1º Batalhão de Guardas, no bairro de São Cristóvão, Rio de Janeiro. Honrosos contratempos belicosos obrigaram, todavia, ao futuro líder da milícia amazonense a concluir este curso somente em janeiro de 1896. Em abril de 1892, Cândido Mariano foi escolhido pelo marechal de Ferro (Floriano Peixoto, então no exercício da presidência da República, devido a renúncia do marechal Deodoro) para escoltar presos políticos deportados. Presos no Rio de Janeiro, seguiam para o desterro em Cucui e Rio Branco, apenas distritos do Amazonas, situados no Alto Rio Negro, na divisa com a República da Venezuela. Entre os apenados, oficiais das forças de terra e mar, jornalistas e políticos militantes, salientava-se José Joaquim Seabra (conhecido por J.J. Seabra).11 Após anistiado, Seabra seria ministro da Justiça e da Viação e Obras Públicas e, em decorrência desse estranho episódio, devotaria ao biografado profunda amizade, que se estenderia pelo curso dos anos. Com destino a Manaus, em 22 de abril,12 chegou ao porto de Belém o paquete 11  José Joaquim Seabra, advogado. Nascido na Bahia adepto da política do marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891), apoiou o golpe de 03.11.1891, que dissolveu o Congresso. Com a renúncia de Deodoro, passou a mover cerrada oposição ao marechal Floriano Peixoto, participando, em 1892 das manifestações públicas contra o Presidente. Fracassada a rebelião, foi deportado. Perdeu, então o cargo de diretor da Faculdade de Direito do Recife. Reabilitado, foi ministro do Interior e Justiça (1902-1906) e da Viação e Obras Públicas (1910-1912). 12 Jornal A Província do Pará. Belém, 23 de Abril de 1892.

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nacional Pernambuco, armado em transporte de guerra. Conduzia entre os deportados, além do já citado J. J. Seabra, Gregório Taumaturgo de Azevedo, tenente-coronel, ex-governador do Amazonas; Felisberto Piá de Andrade, capitão de artilharia (ambos do Exército), e José do Patrocínio, redator-chefe do jornal A Cidade do Rio. Os exilados viajavam escoltados por uma tropa de segurança formada por oficiais e cadetes da Escola Militar, sob o comando do tenente Sezefredo Francisco de Almeida, incluindo, entre outros, João Miguel Ribas, tenente de artilharia,13 e Cândido Mariano, alferes. O paquete saiu no dia imediato para Manaus aonde aportou a 28. Dois dias depois no vapor Imperatriz Thereza, escoltado por uma lancha da flotilha, que conduzia um destacamento do 36° BI, comandado pelos alferes João Xavier do Rego Barros, Manoel Henrique e Cândido Mariano, os exilados zarparam para Cucui.14 Em 9 de março, pouco antes da missão ao Amazonas, foram matriculados na Escola Superior: no 4° ano, João Miguel Ribas, pertencente ao 4° Regimento de Artilharia, e no 2° ano, Cândido Mariano, integrante do 31° Batalhão de Infantaria. Esta aproximação profissional, com uma consequente amizade, geraria bons proveitos para o biografado, como adiante se descreve. ***

13  De tradicional família sul-rio-grandense, Miguel Ribas nasceu em 1864 (cujo sobrinho, general Emilio Rodrigues Ribas Junior, nascido em Manaus, em 07.01.1897, foi chefe do Estado-Maior do Exército, no biênio 1961-62, e Interventor em Goiás, entre 1965-66). Concluído o curso de artilharia, foi nomeado auxiliar das obras militares no Amazonas, em 23.04.1893. Demitiu-se do serviço do Exército, em 16.12.1895, para permanecer em Manaus, como proeminente auxiliar da administração de Eduardo Ribeiro. Foi ainda deputado no Congresso Estadual. Proprietário da firma Ribas & Cia., explorando seringais no interior. Na condição de engenheiro militar, construiu em Manaus algumas obras. Tais atividades possibilitaram-lhe acumular vasta fortuna, mas acabou assassinado por um desconhecido nesta cidade. Seu nome identifica uma rua no bairro Santo Antônio da Capital (CEP 69029-070). Ribas representou para o biografado importante elo, capaz de entusiasmá-lo para a fartura que as capitais amazônicas franqueavam aos adventícios. Mariano contraiu núpcias com Lucy, irmã de Ribas, pouco antes de seguir para Canudos. 14 Jornal Amazonas, órgão do Partido Republicano Democrático. Manaus, 30 de Abril de 1892.

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Combates do infante

CAPÍTULO II

COMBATES DO INFANTE

Os jagunços lutaram até o final Defendendo Canudos Naquela guerra fatal. Os Sertões (Grêmio Recreativo Escola de Samba “Em Cima da Hora”, 1976) 24


Combates do infante

No período consagrado à Campanha do Paraná (1893-95), o cadete Cândido Mariano foi comissionado no posto de major fiscal para integrar o batalhão patriótico Silva Telles, sob o comando do capitão Bonifácio Silva Telles, do 10° Regimento de Cavalaria, atribuindo-lhe o posto de tenente-coronel. O relato do episódio é do próprio major fiscal: “Por ordem de Floriano [Peixoto] e lembrança do coronel Firmino Pires Ferreira, comandante das forças legais em Itararé, assumi o comando da Polícia Militar de São Paulo e com ela invadi o Paraná, concorrendo para a vitória da legalidade”. Não lhe coube, decerto, comandar as tropas dispostas pela força estadual paulista naquela campanha, muito menos o comando da Polícia Militar de São Paulo. A dúvida gerada acerca desta asserção, submeti-a à apreciação de estudioso daquela corporação, que me esclareceu tratar-se do comando do 1° Batalhão engajado na campanha. Ainda para melhor esclarecimento, colijo a organização do Corpo de Exército em operações: a 1ª Divisão, composta de duas brigadas, estava sob o comando do coronel Firmino Pires Ferreira. A segunda, comandada pelo coronel João Teixeira da Silva Braga (da Polícia Militar de São Paulo), tinha em seu efetivo o 1°, o 2° e o 4° batalhões da polícia paulista e o batalhão n° 7 (Silva Telles).15 Outra informação expressa no mesmo documento: dirigia os trabalhos de engenharia o capitão Augusto Ximeno de Villeroy (ex-governador do Amazonas, em 1890). Em Ordem do Dia n° 85 (s.d.), o general de brigada Francisco Raymundo Ewerton Quadros, comandante do Corpo de Exército, promoveu a substituição do coronel Silva Braga do comando da 2ª brigada, ao incumbi-lo de comandar o 1° batalhão paulista, com o qual deveria retornar à Capital. Nesse ensejo o comandante superior fez registrar este elogio “Ao major Cândido José Mariano, que ora deixa o comando do batalhão e cujo nome já por mais de uma vez tem sido citado como de um entusiasta defensor da República, louvo por sua energia, inteligência e sabida dedicação à causa da lei e da justiça”.16 A 9 de março de 1894, enquanto combatia, Mariano foi promovido a 1° tenente 15  Ordem do Dia n° 11, de 14 de Abril de 1894, expedida na vila de Itararé (SP). 16  Euclides Andrade e Hely F. da Câmara. A Força Pública de São Paulo: esboço histórico (18311931), fac-similada. São Paulo: Imprensa Oficial, 1982, p.210.

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de infantaria. Um ano depois, a 23 de março, o batalhão patriótico Silva Telles recolheu-se ao Rio, sendo dissolvido dia 30. Na ocasião, “foram em nome do governo, louvados todos os oficiais e praças, pelo denodo, patriotismo e disciplina de que deram constantes provas durante as operações de guerra nos Estados do Paraná e Santa Catarina”.17 Cândido Mariano certamente pôde retornar à Escola Superior de Guerra, onde estava matriculado. Seu desempenho permitiu-lhe concluir o curso e receber, em 11 de janeiro de 1896, o grau de bacharel do Estado-Maior e Engenharia Militar. A conquista qualificava-o na estrutura superior do Exército, pois os concludentes desse curso eram reputados como os de melhor formação intelectual - os doutores, em contraponto aos tarimbeiros. Os formandos desse curso compunham a 1ª classe do Estado-Maior. No Amazonas, apenas para ilustrar esta exposição, compartilhavam desta classe os coronéis Joaquim Leovigildo Coelho e Antônio Constantino Nery (participe, na condição de major, da brigada Savaget contra Canudos) e o capitão Eduardo Gonçalves Ribeiro, os quais prestaram inolvidáveis serviços à terra de Ajuricaba – os dois últimos na condição de governadores do Amazonas. O primeiro mencionado desembarca aqui ainda tenente, ao tempo da Guerra do Paraguai (1865-70) e, provavelmente, foi o primeiro engenheiro militar a servir no 3° Batalhão de Artilharia a pé, sediado em Manaus. Concluído o curso de engenharia militar, tenente Cândido Mariano, pertencente ao efetivo do 18° BI, com sede em Alegrete (RS), obtém autorização do ministro da Guerra para estagiar na Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio.18 Escasso tempo permanece nessa repartição, pois logo requer permissão para prosseguir o aprendizado na então Repartição Central dos Telégrafos.19 Ainda assim, permanece reduzido período nesse emprego, porquanto o governador do Amazonas, tenente Fileto Pires Ferreira,20 oficia ao referido ministro solicitando a designação do tenente Cândido Mariano, do 11° BI, para servir neste Estado. Detalhe curioso a respeito desta solicitação: a Ordem do Dia n° 768, de 9 de setembro de 1896, do Ministério da Guerra, autoriza que o referido oficial “seja posto à disposição do governador do Estado do Amazonas, [...] a fim de comandar 17  Ordem do Dia n° 631, de 7 de Abril de 1895. 18  Ordem do Dia n° 702, de 19 de Janeiro de 1896. 19  Atendido, conforme Ordem do Dia n° 753, de 8 de Junho de 1896. 20  Empossado no governo do Amazonas em 23 de Julho de1896, graças ao golpe da eleição indireta celebrizada pelo epiteto de Congresso Foguetão. Para saber mais: Agnello Bittencourt. Dicionário biográfico amazonense: vultos do passado. Rio, Conquista, 1973, p.221.

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a força policial do dito Estado”. Julgo, no entanto, que seu contemporâneo, tenente Arthur Cezar Moreira de Araújo, aportou primeiro na “capital da borracha” e dividiu com o biografado o comando dos batalhões policiais, afinal, o comandante do Regimento Militar do Estado era o capitão EB Pedro Henrique Cordeiro Junior. Mais outra indiscrição: Fileto Pires Ferreira, governador do Amazonas, seria filho do coronel Firmino Pires Ferreira, comandante do tenente Cândido Mariano, na Campanha do Paraná? Talvez. Apesar de meus esforços, não obtive a data precisa do desembarque do biografado na capital do Amazonas. Presumo que tenha ocorrido em setembro de 1896, tão pronto ele obteve permissão ministerial. O trajeto cumprido em navio obrigava vencer o Atlântico desde o Rio de Janeiro até Belém e, desse porto, pelo mare dulce, até Manaus. A viagem podia consumir cerca de trinta dias. De concreto, sei que a nomeação de Cândido Mariano para o comando do 1° Batalhão policial ocorreu por ato de 1° de outubro do mesmo ano. E logo se depara com o requerimento datado de 7 de outubro, com o qual o nomeado solicita ao governo ajuda de custo, assim como indenização de transporte próprio e da família, composta da mãe e irmãos. Outros colegas seus de Escola Militar, na oportunidade, realizaram o mesmo itinerário. São lembrados, Arthur Araújo e Felisberto Piá de Andrade, tendo este comandado o Corpo de Bombeiros, e aquele, o 2° batalhão do Regimento Policial Militar (1897-98). Engajando-se na vida política local, Arthur Araújo exerce o cargo de superintendente (prefeito) de Manaus (1899-1902). Cabe ainda assinalar a presença dos tenentes João Miguel Ribas e Eugenio Ramos Villar no quadro administrativo do Estado. Quando da admissão de Cândido Mariano, a força militar estadual, denominada de Regimento Militar do Estado, exibia sua maior formação em termo de efetivo: pouco mais de mil homens. Este número estava distribuído em dois batalhões de infantaria, um piquete de cavalaria, em tudo plagiando a estrutura da Força Terrestre, e uma companhia de Bombeiros. O local do aquartelamento era bem nobre: à Praça da Constituição que, depois de outras denominações, hoje se intitula de Heliodoro Balbi, no entanto, os frequentadores a conhecem e mantém a alcunha de Praça da Polícia. Neste quartel funcionou o Comando-Geral até 2002; em nossos dias (outubro de 2017) a secretaria de Cultura, reformando o prédio, o denominou de Palacete Provincial, e nele abriga um centro cultural de variadas utilidades. Em 1° de outubro de 1896, conforme relatório do Departamento de Justiça, Cândido Mariano, comissionado no posto de major, assumiu o comando do 1° Batalhão de Infantaria do Regimento Militar do Estado. Esta unidade seria indicada no ano subsequente para combater a cidadela messiânica de Antônio Conselheiro.

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Combates do infante

A notícia vem em parte confirmar o desembarque do mencionado no mês anterior. E mais: constitui a primeira referência à sua presença na Corporação. Outros esforços próprios foram debaldes; não alcancei qualquer outra nota porque os assentamentos dispostos em livro apropriado tomaram destino “incerto e não sabido”. No último dia desse ano, todavia, há um registro lisonjeiro a consignar: trata-se da inauguração do Teatro Amazonas. Ao conferir a Ata de Inauguração, nela deparei com a assinatura do biografado, juntamente com outros oficiais da Polícia Militar. Retorno ao professor Monteiro21 que, ao divulgar este respeitável documento, proporciona aos conterrâneos a oportunidade de observar certos costumes da época. O primeiro destes, das 54 assinaturas registradas, apenas uma era feminina, a de Maria Bony. O segundo, a presença de expressiva delegação policial militar, pois são dezesseis as assinaturas de oficiais constantes da ata; entre as mesmas, vê-se a do coronel Pedro Henriques Cordeiro Junior, comandante do Regimento; de Arthur Cezar Moreira de Araújo, comandante do 2° Batalhão; de Pedro José de Souza, Pedro Vidal de Negreiros e Raymundo Afonso de Carvalho, que viriam a comandar a corporação; do regente Aristides Emídio Bayma; de Severino Correa da Silva, futuro comandante do Corpo de Bombeiros, cujo filho Manoel seria, na década de 1950, comandante da Polícia Militar; de Raimundo Lemos Braga, Benjamin Rodrigues Sodré e Evaldo Rodrigues França Leite, futuros combatentes em Canudos, e Talismã Guiomar Floresta, falecido durante a mesma campanha. Propositalmente, adiei a redação deste texto para a data do centenário de inauguração do Teatro Amazonas. Reinava em meu peito uma emoção latente, como se fosse possível acompanhar os passos do biografado, como se estivesse em companhia de colegas de farda, no maior evento do esplendor do látex. ***

21  Mario Ypiranga Montelro. Teatro Amazonas, ed. Governo do Estado. Manaus: Sergio Cardoso, 1965, p.255

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Casamento e familiares

CAPĂ?TULO III

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Entre sua chegada a Manaus (setembro 1896) e a data de seu casamento (22 maio 1897), quando completava 27 anos de idade, o lapso de tempo acanhado torna simpático repetir o bordão: foi amor à primeira vista. Pode igualmente ter acontecido por conveniência de família, em obediência aos cânones do fin de siécle. Suposição, meramente. Cândido Mariano contraiu núpcias com a senhorita Fanny Ribas (20 anos), solteira, natural de Pelotas (RS), filha legítima de João Rodrigues Ribas e de Camila Paquet Ribas (de nacionalidade suíça). O ato foi presidido pelo Dr. Manoel Agapito Pereira, juiz de direito da Capital, mais tarde desembargador. Serviram de testemunhas, entre outros, o Dr. João Miguel Ribas e Emilio Ribas, irmãos da noiva.22 Nasceram dois filhos do casal, ambos em Manaus. A primogênita, Lucy Ribas Mariano,23 às onze horas de 3 de novembro de 1901, na residência dos pais, à Estrada (atual avenida) Epaminondas, nº 11. Foi registrada no 1° Cartório Civil, servindo de testemunhas os cidadãos Caetano Monteiro da Silva (genitor de monsenhor Manoel Monteiro da Silva) e Henrique Eduardo Weaver, engenheiro civil. Singular coincidência: ambos construtores de obras, ao tempo em que Mariano exercia a diretoria de obras públicas. Com ela tive o deleite de palestrar em uma semana de fevereiro de 1994. Na ocasião, recolhi dela algumas incríveis notícias e diversos documentos, além de fotos do álbum de família. Também pude ver o brilho em seus olhos de amazonense por circunstâncias, porquanto adorava a Cidade Maravilhosa, o desejo de rever a terra natal, donde havia se retirado aos três anos de idade. Para tanto, organizei com a aquiescência do comando da PMAM uma homenagem policial militar, com a pretensão de outorgar-lhe a Medalha Cândido Mariano, condecoração excelsa da Polícia Militar do Amazonas. O coração de dona Lucy, entretanto, não resistiu e, para meu pesar, faleceu antes de rever o encontro dos rios Negro e

22  Registro Civil de Casamento, livro nº 2-A, termo n° 375, Cartório Antônio Soares Raposo, de Manaus. 23  Certidão de Nascimento nº 3, termo 350, folhas 193/194, de 23 de Janeiro de 1942, expedida pelo Registro Civil de Nascimentos, Casamentos e Óbitos da cidade de Manaus (AM).

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o Solimões. Solteira por conveniência, dona Lucy teve a honradez de adotar dois filhos: Jorge e Beatriz Torres, aos quais, pela dedicação e empenho em recolher outros elementos que favoreceram esta publicação, rendo as minhas homenagens e os meus agradecimentos. Dona Lucy Mariano faleceu dia 1º de junho de 1994, aos 93 anos, na residên24 cia ocupada desde 1935. No mesmo endereço, faleceram Cândido Mariano, em 21 de novembro de 1941 (causa mortis: caquexia cancerosa),25 e a esposa deste, dona Fanny, em 26 de dezembro de 1957. Todos estão sepultados no cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro. O outro descendente, Floriano Ribas Mariano, nasceu dia 17 de agosto de 1903. Seu nome representa uma homenagem ao consolidador da República, marechal Floriano Peixoto (1839-95), a quem Cândido Mariano devotava irrestrita e imorredoura admiração. Tanto assim que encabeça a manifestação realizada em Manaus pelo transcurso do 3º aniversário de morte do marechal.26 Marechal Floriano Peixoto. A Comissão abaixo assinada convida a todos os amigos e admiradores do ínclito e inolvidável Marechal Floriano Peixoto para uma sessão cívica em homenagem ao grande Morto, sessão que realizar-se-á no edifício da Intendência Municipal, às 7h30 da noite de 29 do corrente. Manaus, 26 de junho de 1898. a) Pedro Henrique Cordeiro Junior, Guido Gomes de Souza, Cândido José Mariano, Pedro Freire, Henrique Álvares Pereira e Raul de Azevedo.

Levado para o Rio de Janeiro juntamente com a família, Floriano graduou-se em engenharia civil e exerceu a profissão na Estrada de Ferro Central do Brasil. Casou-se com Madalena Areosa Mariano, com quem teve uma filha – Sônia (deficiente física). Faleceu naquela cidade, em 4 de outubro de 1960. Entrevistei dona Madalena no dia em que completava 90 anos, cuidando da filha, que seguia acamada. Em resumo, a descendência direta de Mariano feneceu. 24  Edifício Lartigau, 12, apto 02, Largo da Glória. Contrato de locação de apartamento por prazo de um ano, com aluguel mensal de Rs. 460$000. Fiança da firma Ascensão Santos & Cia., (situada no Largo José Clemente,16, Rio), com validade de 27.06.1935. 25  Certidão de Óbito de fls. 33 do Livro C-111 expedida pela 4ª Circunscrição do Registro Civil das Pessoas Naturais da Justiça da Guanabara (RJ), freguesia da Glória, de 05.10.1971. O corpo de Cândido Mariano foi inicialmente inumado na cova rasa n° 3787-A, da Quadra 5; e exumado, em 02.12.1946, para ocupar desde então o nicho 153, da quadra 41, do cemitério de São João Batista, na cidade do Rio. 26  Diário Oficial do Amazonas. Manaus, 28 de junho de 1898.

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Casamento e familiares

Ainda acerca de seus familiares, é provado que Cândido Mariano conduziu a mãe e os irmãos para Manaus, onde assistiram ao seu casamento e ao nascimento dos filhos.27 Posteriormente, ao assumir a prefeitura de Sena Madureira, no então Território Federal do Acre (1905-10), guiou-os para esse município onde, para sua consternação, em 1909, faleceu seu irmão Antônio, comerciante bem sucedido na região.28 Da mãe e da irmã desconheço o destino, porém, tive conhecimento de que sua mãe morou algum tempo no Rio. ***

Casal Cândido (Fanny Ribas) Mariano, cerca de 1905

27  Diário Oficial do Estado. Manaus, 11 de Agosto de 1900. Publica a nomeação do coronel (GN) Pedro Calmont Freire Bittencourt, para o cargo de diretor da Colônia Campos Sales, e de Antônio Gomes Mariano (grifo do autor), seu ajudante. 28  O Alto Purus, Ano II n° 54. Sena Madureira, 7 de Março de 1909. “Anteontem, 5 do corrente, ao cair da noite, sucumbiu a uma fimatose [tuberculose], o digno moço capitão [GN] Antônio Gomes Mariano, ativo comerciante desta cidade, onde gozava de geral estima, é irmão do Dr. Cândido José Mariano, prefeito do Departamento. Contava 40 anos de idade e era inupto [solteiro]. Sua família, como todos sabem, é uma das mais numerosas e distintas do sul de Minas. O saimento para o cemitério de S. José, onde foi inumado, realizou-se ontem às dez horas do dia, com um acompanhamento extraordinário, preito afetuoso que a nossa população inteira prestou ao morto e ao seu ilustre irmão. (...) Fechou todo o comércio desta cidade e da vizinha vila de Caiaté, arvorando algumas casas comerciais as suas bandeiras a meio pau”.

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A campanha de canudos

CAPÍTULO IV

a campanha de canudos

Sabeis, o comandante que acompanha aos bravos viajantes não é novo nos sofrimentos e nas refregas, seu nome já é sagrado nas lutas pela República. Fileto Pires Ferreira, governador do Amazonas 34


A campanha de Canudos

A cidade de Manaus em 1897 era somente esplendor. Desde o início da década a capital amazonense fervilhava de encantos, usufruto do fausto econômico provocado pela comercialização da borracha, cotada no mercado internacional em libra esterlina. Ao Governo tudo era possível adquirir. A mostra mais extremada desse poder ainda se vislumbra na construção do Teatro Amazonas, com toda sua imponência, em 1896. Devido à valorização da borracha, Manaus muito cedo se colocou na dianteira das cidades mais desenvolvidas do País. Insinuava um alvo apropriado para o enriquecimento instantâneo. Daí ter se transformado no Eldorado tão vorazmente buscado. Tantos fascínios seduziram por inteiro a civis e militares, da mesma forma, nacionais e estrangeiros. No meado desse ano, o governador Fileto Pires reorganizou o Regimento Militar do Estado,29 composto do 1° e 2° Batalhão de infantaria, do Piquete de cavalaria e do Corpo de Bombeiros. Ao tempo, a 4ª Expedição contra Canudos estava em plena diligência, flamejando a luta fratricida nos sertões baianos. As notícias, porém, que circundavam o país catalisavam apreensão e temor, “após uma série de desastres impostos pelos jagunços de Antônio Conselheiro – uma espécie de Dom Quixote místico dos sertões”.30 No Rio de Janeiro, a rua do Ouvidor transformara-se em outro campo de lutas. O embate entre os partidários do presidente da República, o civil Prudente de Moraes, e os florianistas, ou seja, os adeptos do retorno dos militares ao poder. Instava, pois, envidar esforços para a concretização do regime republicano, e o Amazonas, por sua pujança econômica e sua força policial, correspondeu. Exato um mês após a organização de sua força policial, o governador telegrafa ao comandante do 1º Distrito Militar, sediado em Belém (PA), assegurando o empenho do Amazonas à causa republicana. Expõe em sua mensagem uma ânsia incontida de destruir os inimigos desta causa, enquistados nos sertões da Bahia: os seguidores do místico Conselheiro. Na mesma data, sob o comando do major José Pedro de Oliveira, “embarcava para São Salvador o 1° Batalhão de infantaria da Força Pública paulista, a fim de reunir-se à expedição que naquela capital se organizava para invadir os sertões 29  Decreto n° 170, 1° de Julho de 1897 30  Leandro Tocantins. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Manaus: Ed. Governo do Estado/ Sergio Cardoso, 1966, p.17

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A campanha de Canudos

dominados por Antônio Conselheiro”.31 Igualmente se deslocava para o mesmo destino e com a mesma finalidade a tropa da Policia Militar do Pará, constituída de dois batalhões, sob o comando do coronel EB José Sotero de Menezes. A tropa amazonense por algum desígnio, também deveria ter embarcado nessa data, não fora o deslocamento antecipado do transporte de guerra Carlos Gomes do porto de Manaus. Ainda assim, alcançado em Belém (PA), conduziu a tropa de Cândido Mariano até Salvador (BA), do qual falarei em tempo. Bem antes, o Governo Federal já havia convocado a Armada (Marinha) para a luta, a qual, em 9 de abril, fez ancorar no porto de Salvador, “para apoiar as operações militares em Canudos, uma divisão naval, ao mando do contra-almirante Carlos Frederico de Naronha”.32 À propósito, restam duas indagações: 1) qual razão extrema levou o Amazonas a participar da refrega canudense? 2) não seria mais coerente o Governo Federal dispor dos efetivos policiais do Nordeste, todos a um passo da capital baiana? Uma resposta para o par de indagações: estou convencido de que foi a vantajosa capacidade econômica do Amazonas, auferida pela comercialização da borracha in natura, que impulsionou a aventura. Os cofres dos Estados amazônicos dispunham de superávit para sustentar o deslocamento do considerável efetivo empregado (pouco mais de mil homens), sem sacrificar o sempre combalido Tesouro da Nação. É relevante aqui salientar a longa discussão no Congresso (entre 13 de março e 13 de agosto de 1897) para aprovar as verbas (dois mil contos de réis) destinadas ao suporte da tropa federal nesta campanha. Nesse sentido, o comandante da força amazonense dispunha de quarenta contos de réis para gastos com a tropa (menos o pagamento de salários). Como sustenta Cândido Mariano em seu Relatório, o marechal Machado Bittencourt ao dispensar o batalhão do Amazonas, em Monte Santo (BA), “declarou a este comando que nenhum vencimento tínhamos a receber do Governo Federal, relativo aos meses decorridos – agosto, setembro e aos mais que estivéssemos fora do Amazonas – visto ter o governador deste Estado telegrafado, declarando-lhe que o Batalhão em seus vencimentos, seria pago exclusivamente pelo Estado do Amazonas”. E assim se sucedeu. De igual maneira procedeu o Governador, justificando em Mensagem aos congressistas amazonenses sua decisão de remeter uma tropa miliciana ao cerco dos seguidores do Conselheiro. Enfraquecido o Exército com erro ou má previsão dos homens públicos, viram-se os generais na contingência de sérios e profundos dissabores. (...) O Amazonas, estranho à luta pela distância e pela falta de responsabilidade nos 31  Euclides Andrade e Hely F. da Câmara. A Força Pública de São Paulo: esboço histórico (18311931), fac-similada. São Paulo: Imprensa Oficial, 1982, p.210. 32  Aristides Milton. A Campanha de Canudos. Rio: Imprensa Nacional, 1902, p.110.

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A campanha de Canudos

acontecimentos que o ocasionaram, estranho às questões, que se não a motivaram, favoreceram-na, sentiu-se, contudo, na obrigação de opor barreiras ao enfraquecimento da República. (...) Reunido o povo que solidário com o governo se mostrou, apressei-me em telegrafar ao Presidente da República, comunicando-lhe que o povo amazonense protestava apoio incondicional ao governo no intuito de defender em todo e qualquer terreno as instituições republicanas. (...) Passaram-se dias, e a crise aumentando forçou o Presidente da República a solicitar o apoio dos Estados. (...) garantindo ao Governo Federal que o Estado do Amazonas faria marchar as suas forças em defesa da República.33

Em discurso proferido na Câmara dos Deputados,34 um dos representantes do Amazonas usou a tribuna para, sobre Canudos, informar: O Paiz, um dos mais importantes órgãos da imprensa desta capital insere hoje este telegrama: Manaus, 1 (via Pará) – As notícias recebidas de Canudos impressionaram a população. O governador logo conferenciou com o comandante da guarnição. A população procurou o governador, a fim de testemunhar-lhe dedicação ao serviço da causa da República. (...) Está pronto para servir em Canudos o 1º batalhão de segurança, comandado pelo valente republicano Cândido Mariano. Oficiais e praças estão animados e ansiosos de prestar serviços à República.35 Cabe um questionamento: teria o presidente da República solicitado colaboração das forças militares dos Estados? E qual o pretexto para que o governador do Pará se pronunciasse pelo do Amazonas? Esta proposição se fundamenta em decorrência do serviço telegráfico do Amazonas apenas atingir a capital paraense pelo cabo subfluvial, instalado pela concessionária The Amazon Telegraph Co., cujo serviço foi inaugurado em 16 de fevereiro de 1896. As queixas contra este, porém, eram de monta, especialmente na época das safras, devido as constantes interrupções.36 Para sanar a primeira questão, extraí do Diário de Pernambuco (o mais antigo jornal em circulação na América Latina)37 a notícia veiculada sob a responsabilidade de “nosso correspondente no Pará”: Belém, 27 de julho – Depois de longa conferência do governador com o coronel Sotero de Menezes, ficou resolvido que o governador telegrafasse ao 33  Fileto Pires Ferreira, governador do Estado, in Mensagem à Assembleia Legislativa, em 06.02.1898. 34  Deputado Carlos Marcelino, em 6 de Agosto de 1897. 35  Anais da Câmara dos Deputados, 1897, p.86 36  Antônio José Souto Loureiro. A grande crise. Manaus: Umberto Calderaro, 1986, p.13 37  Recife, 30 de Julho de 1897.

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A campanha de Canudos

Presidente da República, em resposta a um telegrama de ontem de S. Exa., oferecendo para auxiliar as forças legais em operações no sertão da Bahia um contingente (...) sob o comando do coronel Sotero de Menezes. O Dr. Paes de Carvalho ofereceu também ao Sr. Presidente da República, em nome do governador do Amazonas, um contingente das forças daquele Estado.

Outra publicação vem-me assistir: o Jornal de Notícias, da Bahia, ao transcrever o seguinte telegrama: “O Governo [federal] pediu, por telegrama ao Dr. Paes de Carvalho, governador do Pará, os serviços do batalhão que, com o nome de S. Exa. ofereceu-se, logo após a derrota da 3ª Expedição a Canudos, para servir à República”.38 Ainda mais outra nota. Sabia-se que muitos e variados motivos concorriam para o retardamento das operações militares em Canudos. “A opinião pública, porém, não se mostrava satisfeita; ela exigia muito mais. A demora em se pôr termo a uma luta que tanto emocionava o espírito nacional, dava lugar à comentários de toda ordem”, ressalta Milton.39 E mais adiante: “Importa sobre que o Governo Federal, tendo resolvido mandar para o centro das operações o ministro da Guerra, deliberava simultaneamente mobilizar 5 batalhões de infantaria, assim como aceitar os oferecimentos, que das forças policiais respectivas lhe haviam feito os Estados de S. Paulo, Amazonas e Pará”.40 Entendo, pois, que diante da fragorosa derrota da expedição Moreira César, houve um aprofundamento da revolta entre as forças políticas e militares. Nesse momento, os governos amazônicos ofereceram ao governo da República a ajuda bélica representada por suas Polícias Militares. Então, bastou apenas um instante de fraqueza da Quarta Expedição, para que fosse aceito pelo Governo Central este oferecimento. A profusão de recursos financeiros do Amazonas propiciou ao governador Fileto Pires Ferreira41 a fanfarronice de expedir uma tropa estadual contra Canudos. Fileto, além de tenente do Exército, possuía arraigado jacobinismo, bem manifestado desde a Escola Militar onde fora dileto discípulo de Benjamin Constant. Bem como pupilo de Eduardo Ribeiro que colaborou fortemente para que este assumisse o governo do Amazonas, no ignóbil episódio do Congresso Foguetão, esmagou pretensões legítimas de políticos barés, muitos dos quais paladinos da nova ordem, republicanos de longa data. A participação de Fileto Pires, ainda quando alferes38  Salvador, 28 de Julho de 1897. 39  Aristides Milton, obra citada, p.112. 40  Aristides Milton, idem, p.115. 41  No conceito de Mário Ypiranga Monteiro (Governo do Estado. Negritude & Modernidade, Manaus: Calderaro, 1990, p.128), Fileto “foi um ilustre playboy que, não fosse a mania de grandeza e o desperdício de talento, agravado com a nomeação de seu cunhado para carrasco da Polícia Civil, teria granjeado fama e consideração”.

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A campanha de Canudos

-aluno,42 no movimento pela República está consignada em um Pacto de Sangue de integrantes da Escola Militar, movimento tão comum naquele ambiente de exaltação. Os integrantes do pacto, em favor do mestre, prometiam aderir “sem reservas ao eminente cidadão a quem agora se dirigem selando este compromisso com seu sangue, se necessário fizer derramá-lo nas praças públicas.43 Ainda incipiente, em 1897, a República carecia ser mantida a todo custo. Era este o entendimento nacional, alicerçado pela imprensa da Capital Federal. Motivada por essa percepção, seguiu a força estadual amazonense para combater os conselheiristas do Belo Monte. Acolá, sobejamente soube consolidar a intrepidez e o brio do miliciano baré, ao colaborar com superior afoiteza para a expugnação da cidadela do Vaza Barris. Aconteceu de modo extremamente cruento, é bem verdade, mas se manteve a ordem republicana, aspiração do governador Fileto Pires, corroborada pelo presidente Prudente de Moraes. Para entender a disposição do próprio comandante, Cândido Mariano, em participar da refrega, reescrevo suas palavras: “Requisitado para comandar um dos batalhões da polícia amazonense, com o mesmo segui para Canudos, conforme oferecimento que fiz ao Governo Federal, embora estivesse matrimoniado 30 dias antes e não me competisse tal comissão, devia ao 2º Batalhão sob o comando de Arthur Cézar de Araújo”.44 A ressalva tem certo fundamento, pois Cândido era mais antigo que o colega; quanto ao casamento... uma questão de bom senso. Em 4 de agosto, composta de 24 oficiais e 249 praças, dos quais doze músicos e seu maestro,45 a tropa da milícia estadual recebeu as despedidas dos companheiros no Quartel da Praça da Polícia. E, em marcha regulamentar, dirigiu-se ao local do embar-

42  Alferes-aluno era “um título acadêmico, prêmio concedido aos que no 1º e 2º ano não tivessem tido nota inferior a plenamente em nenhuma matéria - do mesmo modo que só poderiam seguir o curso de engenharia militar os alunos que não tivessem nenhum simplesmente em sua vida escolar preparatória”. Ester de Viveiros, Rondon conta sua vida. Rio: Cooperativa Cultural dos Esperantistas, 1969, p 43. 43  Helio Silva. 1899: A República não esperou o amanhecer. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p.493. 44  Jornal do Comércio. Río, 4 de Agosto de 1911. 45  Trata-se de Aristides Emidio Bayma, que “era professor de música da Escola Normal de Manaus”. Maranhense, veio com Eduardo Ribeiro, sendo contratado mestre da banda do 1º Batalhão do Regimento Militar do Estado. Tomou parte na Campanha de Canudos, no posto de tenente, tendo falecido em Leça de Palmeira, Portugal, a 25 de outubro de 1909”. (Mário Ypiranga Monteiro. Teatro Amazonas, 3º v. obra citada, p.713). Ao retornar da Campanha, como recompensa aos serviços prestados a causa da República, foi nomeado efetivamente para o cargo de professor de música do Ginásio Amazonense (DOE, de 05.12.1897). Ao mesmo tempo, era contratado como “ensaiador da Banda de Música do 1º batalhão, com a gratificação mensal de 300$000”, sendo regente temporário da Banda do 2º Batalhão, o maestro Euclides Nazareth.

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que: o Trapiche 15 de Novembro, onde se achava atracado o vapor Botelho,46 cedido pela Casa A. Bernaud & Cia., que conduziria o batalhão ao seu destino inicial, a cidade de Belém (PA). As palavras de despedida do governador estão repletas de entusiasmo republicano: ao mesmo tempo em que ora aos céuspelos combatentes que partem, conclama os bravos milicianos para bem enfrentar “A Guerra do fim do mundo”.47 Para melhor compreensão do momento, transcrevo excertos de ordens governamentais expedidas para cumprimento pelo chefe do Departamento de Justiça.48 Que sigam, encorajados pelo santo ideal que vão defender e pela certeza que lhes dá seu Governo, de não deixar ao desamparo os entes queridos que aqui ficam. (...) Mandai-os desligar, antes, porém, transmiti-lhes os meus agradecimentos e a grande confiança que neles deposito. Sabeis, o Comandante que acompanha aos bravos viajantes não é novo nos sofrimentos e nas refregas, seu nome já é sagrado nas lutas pela República; assim transmiti aos bons soldados esta notícia. Que sejam felizes e que voltem bravos.

Todos em Manaus estavam ligados no tormentoso acontecimento gestado no sertão baiano, singularmente a partir da decisão de embarcar a tropa da Polícia Militar. E, de alguma forma, expressavam suas preocupações, como um “pequeno” jornal, cuja denominação – O Beijo,49 deixa transparecer com certeza a juventude dos editores. Sob o titulo de Canudos, assim se despediram dos expedicionários: Os nossos corações de moços patriotas, diante de tão truncadas notícias que nos chegam dos sertões da Bahia, entristecem. Apesar da altivez com que avançam as forças republicanas, vê-se, entretanto, que os fanáticos têm resistido energicamente aos combates oferecidos, nos quais têm caído a golpes certeiros, denodados defensores das nossas instituições. (...) Em breve, prevemos nós, o horizonte pátrio regozijar-se-á por este triunfo obtido em prol da República e mostrar aos que alimentam convicções monárquicas, que a República é a única forma de governo compatível com os princípios brasileiros e que não se derrocará por ambições desmedidas para sustentáculos de oligarquias.

46  Construído em 1893, no estaleiro Murdoch & Murray, em Glasgow (Irlanda), desapareceu no rio Acre, após 1914. 47  Título do romance sobre a Campanha de Canudos, escrito por Mário Vargas Llosa. A Guerra do fim do mundo. Rio: Alfaguara, 1988 48  Diário Oficial do Estado. Manaus, 28 de Agosto de 1897. 49  O Beijo (literário, humorístico e noticioso). Manaus, 23 de Julho de 1897. Ano II – Nº 17. Acervo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.

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Um espectador privilegiado, o memorialista amazonense Agnello Bittencourt, narra um detalhe do embarque: “Da atual Praça D. Pedro II, antigo Largo do Quartel, já remodelada pelo Pensador, assisti, em 1897, à partida das tropas amazonenses para Canudos, ocasião em que lhes foi ofertada pelas senhoras da Capital uma bandeira de seda, bordada a ouro, ainda hoje existente no museu da Polícia Militar”. Esta bandeira, de fato, possui as marcas da refrega, mas há uma outra que, de mesmo modelo, guarda suas lendas.50 Os jovens diretores de O Beijo abonam a informação do mestre Bittencourt quando, na véspera da partida, anunciam: “Amanhã, na ocasião do embarque do primeiro batalhão, a senhora do governador — Maria Lucrecia Pires Ferreira, colocará na bandeira brasileira uma coroa de louros, em homenagem ao Sr. coronel Cândido Mariano e à Força Pública - coroa entregue pelo Sr. Rocha dos Santos, nosso colega de imprensa”. Quase três décadas depois veio a público mais outra versão sobre a entrega da Bandeira Estadual à tropa, quando de sua partida. O testemunho pertence a um conhecido cronista amazonense, João Batista Faria e Souza, que se identificava pelas iniciais - J.B. Em duas oportunidades, escrevendo para a imprensa oficial,51 tanto na comemoração do cinquentenário de criação da Força Pública, em abril, quanto ao lembrar a “batalha de 25 de Setembro”, J.B. reproduziu as inflamadas palavras do Governador aos Congressistas de 1898: Conheceis o desenlace das batalhas finais, e sabeis que entre as primeiras bandeiras que tremularam nos mais arriscados redutos, via-se na vanguarda, hasteada nos pontos mais encarniçados da peleja, aquela que o Governo do Estado havia confiado ao intrépido republicano e aos seus destemidos soldados.52

Então, com propriedade, J.B. assegurou que “essa bandeira gloriosa foi entregue ao comandante Cândido Mariano, por ocasião de sua partida para Canudos, pelo 50  Acerca desta bandeira há mais duas versões: uma, conta ter sido prêmio da mulher baiana, daí a faixa que a encima: Da Bahia ao Amazonas. Outra, mais verossímil, recolhida pelo autor junto a Sra. Edayl Cordeiro Antony, filha do coronel Pedro Henrique Cordeiro Júnior, comandante da PMAM, à época de Canudos. A bandeira com os apliques em ouro teria sido confeccionada pelas esposas dos oficiais combatentes, durante o afastamento da tropa (pouco mais de noventa dias), e com a qual galardoaram os combatentes. Qualquer que seja a origem, encontra-se no Museu Tiradentes. Cuidado análogo ocorre com a coroa prateada “que o Pará ofereceu às Forças Amazonenses”. O governador do Amazonas quando a recebeu (Diário Oficial do Estado. Manaus, 20 de Janeiro de 1898), encaminhou-a ao Departamento do Interior “para ser guardada no Arquivo Público com decência e segurança”. 51  Diário Oficial do Estado. Manaus, 25 de Setembro de 1926, sob o título: A Comemoração de hoje. 52  Mensagem do Governador Fileto Pires aos Congressistas, em 6 de Janeiro de 1898.

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[próprio] J.B., a pedido daquele governador”. Enfim, quem entregou o pavilhão estadual ao batalhão do Amazonas: a esposa do Governador ou, a pedido deste, o J.B.? Quaisquer que tenham sido as mãos portadoras deste símbolo estadual, em patrióticas mãos seguiu; foi sob a bênção do pavilhão alvi-rubro amazonense que a expedição embarcou. Na viagem para a capital paraense, o Botelho tocou nos portos de Itacoatiara e Parintins, municípios do Amazonas. Na primeira cidade convalesciam alguns praças. A providência era plausível, pois o conceito médico vigente preconizava como terapia para males somáticos, o afastamento de doentes da capital em busca de novos ares. Para isso, em Itacoatiara, o governo de Silvério Nery (1900-04) fez construir um sanatório militar, destinado ao atendimento dos policiais do Estado.53 Era uma construção em madeira, segundo o relato de antigos moradores da Velha Serpa, retransmitido-me peio historiador Francisco Gomes. O nosocomio existiu onde hoje se encontram os escritórios do serviço de abastecimento de água e esgotos, ao lado da matriz de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da cidade. Em se falando de atendimento clínico, este serviço se constituiu no mais grave problema arrostado pela expedição amazonense. Ainda em Manaus, o médico escolhido para esse mister, Dr. José Leite Barbosa, capitão-cirurgião da Força do Estado, acometido de um branco indizível, adoeceu. O governador determinou a apuração do motivo e, comprovada sua desídia, foi-lhe aplicada a pena de demissão do serviço público por “incapacidade física”. A veracidade do fato encontra-se dissimulada sob este diagnóstico.54 Ofereceu-se para substituí-lo o médico Pedro Juvenal Cordeiro, também natural do Pará. “Este oferecimento foi acolhido pelo governo do Amazonas e pelo coronel Cândido Mariano com visível mostra de agrado”, registra o periódico A Província do Pará, acrescendo: “Registramos este ato de patriotismo do ilustre facultativo, que assim procura enobrecer o nome da terra que o acolheu fidalgamente”. Semelhante registro reproduz o concorrente A República,55 em sua coluna Gazetilha: “O nosso distinto amigo Dr. Pedro Juvenal Cordeiro, visto ter adoecido à última hora o médico da força, ofereceu-se para acompanhá-la, ato esse que foi muito louvado”. Para encerrar o tópico sobre os esculápios: quando a tropa chegou a Belém, ao Dr. 53  Ainda em Itacoatiara, graças as excelentes condições de seu clima e ao conforto de sua vida, gerida com dedicação pelos poderes locais, iniciei e pude concluir a construção de um Sanatório Militar, que já inaugurei e está dando os melhores resultados para a oficialidade e as praças do Regimento, (...) do serviço ativo”. Mensagem do Dr. Silvério José Nery, governador do Estado, em 10.07.1902. 54  Diário Oficial do Estado. Manaus, 25 de Agosto de 1897, publicando Ato do dia 24. 55  Belém, 10 de Agosto de 1897, p.2. Órgão do Partido Republicano - Ano VII - Diretor político: Teotonio de Brito. Redação: Rua Conselheiro João Alfredo, 61/1° andar, fone 418. Oficinas: Travessa da Vigia (antiga da Rosa), nº 44.

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Juvenal Cordeiro acometeu outro mistério. Em seu Relatório, o comandante da tropa amazonense assegura que “muito razoavelmente alegava o ilustre facultativo a necessidade que tinha de tomar algumas disposições no Pará, onde tinha a sua família”. Comprometeu-se em seguir no primeiro navio com destino à Bahia, o que não aconteceu até o deslocamento da tropa em direção ao combate, fato ocorrido em 27 de agosto. Devido a ausência de médico, acentua Cândido Mariano, “proveio grande parte dos sofrimentos por que passou o Batalhão que tendo muitas das suas praças e oficiais acossados pelas febres, malária, tifo e diarréia, não tinha médico que lhes dispensasse os cuidados de que os mesmos careciam”. Não obstante a informação prestada pelo biografado, não me parece ser esta a verdade. Asseguram os jornais editados em Belém, que o aludido médico se deslocou em direção à Bahia e, mais, obteve consagração por seu retorno vitorioso. Seu nome patrocina uma rua da capital paraense, exatamente no bairro de Canudos. “Homenagem à presença da força policial do Pará na campanha de Canudos, contra os cangaceiros, quando os paraenses obtiveram magníficos triunfos, que possibilitaram a queda do derradeiro reduto rebelde”, registra o mestre Ernesto Cruz.56 Ao compulsar as narrações jornalísticas a respeito, vislumbram-se divergências. O periódico A República,57 sob o título Dr. Juvenal Cordeiro, notícia: “Esse ilustre clínico paraense que espontaneamente se pôs a serviço da República, como cirurgião da força policial do Amazonas que está em caminho de Canudos, deve seguir para a Bahia amanhã no ‘São Salvador’, a fim de se juntar ao seu batalhão”. Vislumbra-se a possibilidade de o vapor ter adiado a saída de Belém, pois, dias depois, novamente sob o título Dr. Juvenal Cordeiro, o aludido periódico58 anuncia o embarque do médico, após receber efusiva manifestação de seus pares. “Realizou-se, ontem à tarde, o embarque do nosso amigo Dr. Pedro Juvenal Cordeiro, que se destina a Bahia”. Às 14h, talvez antes da tradicional chuva vespertina, o Dr. Cipriano Santos e diversos amigos estiveram na residência do ilustre médico para, em seus carros, conduzi-lo ao porto. O líder da caravana, depois de rápida alocução, “fez entrega de uma bela espada ao Dr. Cordeiro, agradecendo este, bastante emocionado”. O noticioso assegura que, como habitual, “foi servida uma taça de champagne, depois do que se realizou o embarque no trapiche Central”. O Dr. Juvenal Cordeiro, portanto, embarcou no vapor São Salvador, no final da tarde de 18 de agosto, exatos nove dias após a saída da tropa amazonense do 56  Ernesto Cruz. Ruas de Belém: significado histórico de suas denominações. Belém: Cejup 1992, p.31. 57  Belém, 15 de Agosto de 1897, p.2. 58  Belém, 19 de Agosto de 1897, p.2.

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porto de Belém. O seguinte documento ao Governador do Amazonas consubstancia essa apreciação.59 Telegrama (Pará-17-1897 – Dr. Fileto Pires) Sigo Canudos incorporar-me bravos patriotas amazonenses defensores das instituições republicanas. Ao glorioso Estado sob vossa auspiciosa administração, as minhas saudações e despedidas. Viva a República. Juvenal Cordeiro.

Que terá, pois, ocorrido ao clínico paraense? Terá desembarcado na capital da Bahia? Ou, desembarcando, permaneceu nessa cidade sem ir ao encontro da tropa em Canudos? Ou, ainda, terá ocorrido algum desentendimento deste com o comandante da tropa? Isso, porém, não passam de hipóteses sem valia. Porém, tudo se torna um pandemônio diante de outra publicação do Diário Oficial do Amazonas. Nela, o chefe do Executivo comunica ao comandante do Regimento Militar a exoneração, a pedido, “do Dr. Pedro Juvenal Cordeiro do posto de capitão cirurgião da Força Pública e nomeando para o mesmo posto o Dr. João Ricardo Gomes de Araújo”. Certo mesmo, é a consagração de Juvenal Cordeiro em sua terra natal, com a travessa que reverencia seu nome (CEP 66070-300), no bairro de Canudos. O serviço médico em Canudos constituiu-se, em resumo, uma completa lástima, um tremendo horror, no abalizado depoimento de Martins Horcades. Seu trabalho, seu testemunho encontra-se em livro bastante comovente, como este trecho sobre “os feridos que vimos que havia oito, dez, doze e quinze dias não recebiam nem ao menos a frescura da água sobre a chaga ou chagas, que a sua dedicação havia feito”.60 Outro insuspeito testemunho é de Euclides da Cunha, que assim relata sua visão das dores: Quando, a uma hora da tarde, da porta da Farmácia contemplei o quadro comovedor e extraordinário achei pequeno o gênio sombrio e formidável de Dante. Porque há uma coisa que ele não soube pintar e que eu vi naquela sanga estreitíssima, abafada e ardente, mais lúgubre que o mais lúgubre vale do Inferno: a blasfêmia orvalhada de lágrimas, rugindo nas bocas simultaneamente com os gemidos de dor e os soluços extremos da morte...61 59  Diário Oficial do Estado, Manaus, 25 de Agosto de 1897 60  Alvim Martins Horcades, Descrição de uma viagem a Canudos. Bahia: Litho-Tipografia Toutinho, 1899, p.33. O autor era acadêmico de medicina da Bahia quando, como voluntário, integrou o hospital de sangue em Canudos. 61  Euclides da Cunha, Caderneta de Campo. São Paulo: Cultrix/MEC, 1975, p.31.

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Prossegue Euclides, bem aventurando “os que não presenciaram nunca um tal quadro”. E assim concluindo: “Quanto ideal ali deixei perdido, naquela sanga maldita e quanta aspiração lá ficou, morta, absolutamente extinta, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam cheios de poeira e sangue...”.62 Todavia, de retorno ao beiradão de Itacoatiara, onde os praças ainda que convalescentes rogavam a incorporação no batalhão expedicionário, como ocorreu com o alferes José Florindo Lins. Com este alferes, que é um valente a toda prova, deu-se o seguinte episódio: O coronel Cândido Mariano desembarcou e, seguido de guia, foi bater-lhe à porta. Eram 2 horas da manhã. Ao ouvir a resposta à pergunta que fizera: — Sou o Cândido Mariano, venho convidá-lo a irmos juntos para Canudos — o alferes abriu a porta, vestiu-se num ápice, afivelou o cinturão, entrouxou alguma roupa, e despedindo-se da família, seguiu para bordo, com o seu comandante. Vimos ontem o alferes Florindo. Era um dos que mais radiantes se mostrava aos nossos olhos.63

Não foi possível colher notícias sobre a passagem da tropa por Parintins. O navio pode não ter feito escala, pois havia um açodamento compreensível. O desembarque em Belém ocorreu em 8 de agosto, assim descrito pelo jornal A Província do Pará: O Botelho entrou ao amanhecer do dia 8 e à meia força, deslizando pela nossa baía. Ainda fora do ancoradouro recebeu a visita sanitária. As forças, na pessoa de seu ilustre comandante e sua digna oficialidade, foram então cumprimentadas por um dos nossos colegas de redação, o qual, coincidência felicíssima, é um amazonense distinto, Licínio Silva. Permitido o acesso ao ancoradouro, o Botelho galhardamente executou uma manobra de efeito. Tomando o rumo do matadouro público, veio sempre rente ao litoral até o morro do Castelo e daí se fez em direção ao Carlos Gomes, a cujo bombordo encontrou.64 62  Euclides da Cunha, obra citada, p.32. 63  A Província do Pará, via o jornal Diário de Pernambuco. Recife, 19 de Agosto de 1897, p.2. Transcrito do Diário de Pernambuco, Recife, 19 de Agosto de 1897. 64  O transporte Carlos Gomes estava sob o comando do capitão-de-fragata José Ramos da Fonseca. Em dezembro de 1893, durante a Revolta da Armada, o Paquete Itaipu, da Companhia Nacional de Navegação Costeira, foi incorporado à Esquadra Legal, como transporte armado, tendo como primeiro comandante o primeiro tenente Rodolfo Lopes da Cruz. Terminada a revolta na Guanabara, retornou ao Sul, prestando serviços até o final da luta, quando, desarmado, foi entregue à mesma

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O povo belenense, a despeito da hora matutina, compareceu ao porto e festivamente correspondeu ao aceno dos combatentes amazonenses. Prossegue em sua narrativa o periódico paraense: A música do batalhão, que pode se orgulhar de ser uma das primeiras do norte do Brasil, executava marchas e dobrados alusivos ao ato. O Botelho se aproximava do Carlos Gomes quando o Dr. Paes [de Carvalho] e o general Sólon [Ribeiro], acompanhados dos ajudantes, do comandante interino do Regimento do Estado e corpo de cavalaria [entre outros], Bertino de Miranda Lima, de A Província, tomaram a lancha Purus e se dirigiram ao Carlos Gomes. O Botelho exatamente no momento atracava ao Carlos Gomes. O coronel Cândido Mariano, em voz sonora, ergueu vivas ao Estado do Pará, à República, ao Dr. Paes de Carvalho e ao general Sólon. (...) As bandas de música executaram a um tempo o hino nacional. O coronel Cândido Mariano foi apresentado ao Dr. Governador do Estado, a bordo do Carlos Gomes pelo nosso colega de redação Bertino de Miranda Lima, e sua digna oficialidade, logo em seguida, pelo referido coronel. O transbordo dos praças para o Carlos Gomes fez-se na mais admirável ordem. Tivemos ocasião de ser testemunha e conosco as primeiras autoridades do Pará, da disciplina do batalhão amazonense. Disse-nos espontaneamente o respeitável Sr. Augusto Berneaud, chefe da Casa a que pertence o Botelho, que se lisonjeava de declarar terem os soldados a bordo de seu vapor, durante o trajeto Manaus/ Belém, se conduzido em consumada delicadeza e disciplina.

Gratuito se deu o transporte das tropas, asseguram os cronistas de então. Folheando o Diário Oficial do Estado, entretanto, efetuei a leitura de diversos ofícios com oferecimentos de barcos ao Governo do Estado. É sabido que os contratos para exploração de linhas fluviais, entre o porto de Manaus e os diversos portos do interior, eram subsidiados pelo governo, como forma de atrair novos investidores. Entendo que, de alguma maneira, o próprio Governo pagava de forma transversa tal generosidade. A eterna fórmula de agradar com dinheiro do contribuinte. E prossegue o jornal A Província do Pará: O Carlos Gomes devia partir no dia 8 mesmo, às 10 horas da manhã. O

Companhia. Em setembro de 1896, foi de novo incorporado à Esquadra, para a missão específica de transladar o corpo do maestro Carlos Gomes, de Belém a Santos. Finda a missão deveria ser incorporado, mas o Aviso de janeiro de 1897 deu conhecimento à Marinha de que o Itaipu fora adquirido, passando a chamar-se Carlos Gomes. Assim, para debelar a rebeldia de Canudos, transportou tropas para a Bahia.

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coronel Cândido Mariano, porém, solicitou do Dr. Paes de Carvalho o adiamento da viagem para hoje [9] ao meio-dia, porque desejava ainda legalizar em terra alguns papéis de circunstância, que a presteza do embarque e consequente exiguidade do prazo - menos de dois dias - para por em ordem de marcha o batalhão em Manaus, não deixara tempo. Imediatamente o Dr. Governador, de acordo com o general Sólon, permitiu a transferência. Eram 10 horas, mais ou menos, quando principiaram as despedidas. O coronel Cândido Mariano, rodeado de sua oficialidade, numa alocução feliz, agradeceu ao Governador do Estado e ao comandante do Distrito Militar, alocução a que respondeu o Dr. Paes de Carvalho em frases eloquentes. Depois, o coronel Cândido Mariano pediu permissão para com sua oficialidade acompanhar as autoridades paraenses até o portaló do navio. Os soldados se colocaram em filas, ao longo do Carlos Gomes e, em continência militar, saudaram os que se afastavam do navio. Belo espetáculo!

Suponho que elaborada pelo jornalista Bertino de Miranda, a descrição tão detalhada dos acontecimentos impressiona. Consistia único recurso jornalístico empregado para assegurar o conhecimento de fatos, descrevendo-os assim tão fulgentes como a querer instituí-los definitivamente na memória dos leitores; era o recurso existente um século antes do plim-plim televisivo e da cobertura ao vivo de nossos dias. No mesmo dia, por telegrama ao Governador do Amazonas, Mariano informa: “Seguimos amanhã para a Bahia no Carlos Gomes. Saudamos ao benemérito chefe do Governo do Estado. Grande entusiasmo. Gratidão Governador e Sólon. Pará solidário!” 65 É conveniente recordar, para dignificar, a autoridade acima mencionada apenas pelo “nome de guerra”. Referia-se o biografado ao general Sólon Ribeiro 66 que, no exercício do comando do 3º Distrito Militar, se atritou com o Dr. Luís Viana, governador da Bahia, acerca da repressão à mazorca do Bom Jesus Conselheiro. O desastre da 2ª expedição custou a transferência deste oficial para o 1° Distrito Militar, em Belém (PA), a despeito de o governador baiano assegurar não ter interferido nesta decisão. Essa movimentação foi bem vinda. Sou partidário 65  Diário Oficial do Estado. Manaus, 13 de Agosto de 1897. 66  Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, marechal, falecido a 10.01.1900, em Belém (PA), onde dirigia o Arsenal de Guerra. Quando major, em 1889, foi encarregado de entregar a Dom Pedro II a mensagem do Governo Provisório que determinava a saída do imperador do País. A ação permanece celebrizada em tela de Fria A. da Silveira. Em 10.01.1890, sua filha Ana Emilia (14 anos) casou-se com Euclides da Cunha (24 anos). O genro publicaria, em 1902, o consagrado livro Os sertões, sobre a Campanha de Canudos. Sólon participou desta refrega sendo comandante do Distrito Militar da Bahia e, posteriormente, do Pará.

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de que coube a este general uma bem sucedida gestão junto aos governadores amazônicos para assegurar a ajuda militar e financeira à causa republicana, abalada pelas sucessivas derrotas em Canudos. Daí os provimentos tomados pelo general Sólon em favor dos combatentes amazonenses e paraenses, bastante evidenciados no documento a seguir transcrito.67 Telegrama (Belém, 11 de Agosto de 1897.) Sr. Comandante Guarnição Bahia - Com destino a essa capital, seguiu ontem no paquete de guerra Carlos Gomes, o 1º Batalhão de Polícia do Estado do Amazonas. É um batalhão luzidio e disciplinado, está nas mesmas condições da briosa e destemida força militar do Pará. Para correspondermos a tanto patriotismo e abnegação dessa falange de defensores intransigentes da República, em seu nome vos peço que sejam recebidos com todas as considerações de que são dignos [...] e rendereis um culto de gratidão a esses beneméritos, a quem eu não canso de admirar. Saudações. General Sólon.

A despeito de a expedição amazonense destinar-se a luta armada, o Governo do Pará soube acolher aos legionários. Assim descreve o periódico oficial o banquete servido ao comando do batalhão amazonense: “Às 9 horas da manhã de ontem teve lugar o banquete oferecido pelo Dr. Governador à oficialidade do 1° batalhão policial do Amazonas que seguiu para Canudos, no transporte Carlos Gomes. Ao lado esquerdo do Governador, tomou lugar o tenente-coronel Cândido José Mariano, comandante do batalhão amazônico”.68 No terraço, para animar a festa, toca a pequena banda de música do batalhão policial do Amazonas. No menu, foi servido “filé de camorim à la Richelieu”, como piéce de resistance. Au dessert, aconteceram três brindes: primeiro, do Governador do Estado ao comandante e oficiais do batalhão; segundo, do comandante, agradecendo; e terceiro, de honra, levantado pelo Dr. Paes de Carvalho ao presidente da República. O governador brindou o comandante com respeitosas palavras, das quais recolho pequeno excerto: Por isso o povo dos dois grandes e ricos Estados da Federação, movidos pelo mesmo pensamento, acudiu em ímpetos de generoso patriotismo a prestar o concurso de suas forças para sustentar a ordem pública, prestigiar a República... Paes retemperou: É árdua a vossa tarefa, ingentes sacrifícios podem servos impostos, mas os exemplos de abnegação e bravura daqueles que se têm 67  Diário Oficial do Estado. Manaus, 20 de Agosto de 1897. 68  Diário Oficial do Pará. Belém, 10 de Agosto de 1897.

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sacrificado no interesse da pátria, cujos nomes a história celebra nos seus fastos gloriosos e o povo cobre de bênção, servir-vos-ão de estímulo e incentivo.

Encerrado o almoço, e a descrição pertence ao jornal A Província do Pará, “o Governador ofereceu, em nome das senhoras paraenses, um riquíssimo buquê de flores artificiais ao coronel Cândido Mariano”. Duas fitas pendiam do ramalhete, “uma de cores verde e amarela e outra de cores encarnada e branca, com a seguinte inscrição: Aos patriotas amazonenses, as senhoras paraenses”. Findo esse cerimonial, os convivas acompanham em carruagens especiais ao comandante e demais oficiais do batalhão até um vapor especial, atracado no trapiche da Companhia Amazonas. Este vapor fez o translado dos combatentes para o transporte Carlos Gomes. Ainda em Belém, o aludido jornal contempla o biografado com palavras elogiosas, e ressalta os “rasgos de desprendimento e de amor à República que já nobilitaram o jovem comandante do batalhão amazonense”. Relembra seu casamento ocorrido há pouco mais de dois meses, para evidenciar o desapego deste com “os confortos do lar para se ir expor aos perigos e aos azares da guerra”. Enfim, divulga resumida, porém, truncada biografia de Cândido Mariano. Filho do Rio Grande do Sul (sic), localizou-se em Manaus, após a revolta e depois de, como já tivemos ensejo de frisar, acompanhar, na primeira plana, e em todas as suas fases, os períodos mais agitados do governo do marechal Floriano. Seu culto pela República, bem se vê que é sem jaça. Soldado acima de tudo, ele diz sem rebuço, que não recua nem mede sacrifícios no cumprimento do dever. (...) Acresce ainda que, na vida civil, o coronel Cândido Mariano sustenta sobranceiro, mas justificável apuro, os foros de homem de salão e palestrador atraente.

Desse modo, depois de vivamente festejado, bem mais motivado prosseguiu em viagem o batalhão de Cândido Mariano. ***

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CAPÍTULO V

NAVEGANDO PELO LITORAL

A homenagem cristã à memória de todos os brasileiros que sucumbiram na horrorosa luta de Canudos. Inscrição no monumento aos mortos de Canudos, no cemitério do Campo Santo, Salvador (BA), inaugurado em 1900 50


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De forma muito lacônica, Cândido Mariano descreve em Relatório encaminhado pós-combate ao Governo do Amazonas o trânsito da tropa pelo litoral nordestino, com destino à capital baiana: “Depois de demorar-se por espaço de 24 horas, o Batalhão fez o seu transbordo [em Belém] para o transporte de guerra Carlos Gomes que, depois de ter feito escala pelos portos do Maranhão e de Recife, aportou na capital do Estado da Bahia, em 21 do mesmo mês de agosto”. Variados detalhes se encontram em jornais da época. Na capital maranhense, a 10, um jornal local anunciava vibrante o trânsito “de nosso conterrâneo tenente Aristides Bayma, diretor da banda de música de um corpo da força estadual do Amazonas, que vem a bordo do transporte Carlos Gomes com a força que se dirige à Bahia”. O título da matéria: Parabéns. Felicitações, todavia, por que o Bayma vai à guerra?69 Em 11 de agosto, o biografado telegrafa ao governador do Pará para agradecer os encômios recebidos: “O Batalhão do Amazonas marcha para Canudos. Grato aos favores patrióticos do Governo do Pará”. Incontinenti responde o Governador, cortejando uma vez mais o batalhão: “Faço voto pelo pronto regresso, repleto de glórias. Viva a República”.70 Outro periódico maranhense mantém a expectativa dos leitores descrevendo, sob o título – A força expedicionária do Amazonas, o saimento do transporte conduzindo os amazonenses: No transporte Carlos Gomes, que levantou ferro, hoje às 7h do dia, seguiu com destino à Bahia o batalhão vindo de Manaus, e que se ofereceu para auxiliar o exército federal na campanha sustentada no sertão da Bahia contra os fanáticos e inimigos da Pátria”.71 É ainda o mesmo matutino que, aproveitando o transito do navio de guerra, comenta sobre a boataria de certo circulando não só em São Luís, mas em outras cidades brasileiras. Uma dessas maledicências propalava a existência de um “recrutamento” forçado e extemporâneo, com o objetivo de incorporar mais combatentes contra os conselheiristas. Por isso, é fácil presumir a incontida apreensão estabele69 Diário do Maranhão (jornal do comércio, lavoura e indústria). São Luís, 10 de Agosto de 1897. 70  A República. São Luís, 12 de Agosto de 1897, transcrevendo despacho de Belém (PA). 71  Diário do Maranhão. São Luís, 14 de Agosto de 1897

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cida entre os marmanjos e, evidentemente, entre as famílias. Nada disso aconteceu, para gáudio de todos, tal como analisa o noticioso: “Não se realizou a profecia ou o boato desagradável que se fez lavrar, de que ia haver grande recrutamento, boato que de alguma forma melindrou a oficialidade, cuja missão tão elevada e tão nobre, não podia e nem devia ser interrompida com um ato em nada agradável”. Um dos mais repetidos modelos de cortesia, porém, foi exercitado pelo alferes João Gomes de Matos e Silva, que “teve a amabilidade de vir deixar-nos as suas despedidas e cumprimentos, fineza que muito agradecemos, desejando que todos bons patriotas, que estão prestando relevante serviço à causa pública, tenham feliz viagem e voltem cobertos de glória, protegidos pelo Deus dos exércitos”. Quando o País usufruía temporada de variadas folhas impressas, afinal era essa o único meio de comunicação, a mídia da época, um jornal da capital do Ceará seguia rastreando o batalhão amazonense. Nele se evidencia a passagem da tropa pela capital maranhense, com a propagação de outro telegrama: “O nosso bravo conterrâneo capitão Catingueira enviou o seguinte patriótico telegrama: S. Luís, 11 – Viva a República. Viva a memória do marechal Floriano Peixoto”. No rodapé do western, acrescenta o redator: “o batalhão vem a bordo do transporte de guerra ‘Carlos Gomes’ e é comandado pelo intimorato republicano Cândido José Mariano”.72 Não obstante o vasto noticiário refletido na imprensa cearense, o transportador ali não atracou. A próxima escala, pois, era a cidade do Recife, por isso, a imprensa pernambucana busca manter seus leitores informados da passagem da tropa, entre outras razões, pela ocasião do reencontro ainda que fortuito entre parentes. Os telegramas, por ser o meio mais rápido de comunicação, seguem rastreando o comboio militar amazonense: “Telegrama aqui recebido do Maranhão diz que o transporte nacional de guerra ‘Carlos Gomes’ saiu dali conduzindo a seu bordo o corpo de polícia do Amazonas com destino à Bahia”.73 A edição de 19 de agosto do Jornal do Recife (curiosamente a primeira página do matutino era tomada por anúncios populares) informa, sob o título Corpo de Polícia do Amazonas, que “A bordo do transporte nacional de guerra ‘Carlos Gomes’, acha-se de passagem para a Bahia, com destino a Canudos, o corpo de polícia do Amazonas, que vai comandado pelo tenente-coronel José Cândido Mariano (sic)”. Na mesma edição, sob a epígrafe Carlos Gomes, o jornal procura esclarecer melhor os leitores: “Do Amazonas chegou ontem pela manhã o transporte nacional de guerra ‘Carlos Gomes’, que segue hoje para a Bahia, onde vai deixar o 1° corpo de polícia daquele Estado, o qual se destina a Canudos”. 72  A República. Fortaleza, 11 de Agosto de 1897 73  Jornal do Recife. Recife, 12 de Agosto de 1897.

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Em resumo: a 18 de agosto, o batalhão do Regimento Militar do Amazonas chegou a capital pernambucana. Consulta a jornais da época demonstra que pouco ou nenhum interesse despertou na vida política da cidade a passagem dessa tropa. Os recifenses haviam assistido ao embarque de alguns batalhões de infantaria e, mais exponencial, o do general Artur Oscar, comandante do 2º Distrito Militar, para comandar a 4ª Expedição. A milícia amazonense, deste modo, seria mero reforço. Daí a inexistência de manifestações públicas, como em outras capitais, sustentadas pelos jornais, os condutores da opinião pública. Apesar do desinteresse, a mais graduada autoridade militar compareceu ao atracamento do transporte de guerra, como se infere de publicação jornalística74: A digna oficialidade do 1° batalhão de polícia do Amazonas, que dali veio no transporte ‘Carlos Gomes’, com destino a Canudos, dirigiu-se ontem, acompanhado da respectiva banda musical, ao Quartel General, onde foi cumprimentar o Exmo. Sr. General Roberto Ferreira, ilustre comandante do 2° Distrito Militar, em retribuição à visita que anteontem lhe fizera o mesmo general.75

No mesmo dia da visita, ou seja, em 19 de agosto, prossegue seu deslocamento o navio da Marinha conduzindo a tropa policial para, dois dias depois, aportar na capital baiana. Trata-se da última tropa a desembarcar. Afinal, por “morar longe”, o Amazonas havia contornado intrincados obstáculos, como grande parte do extenso litoral brasileiro. Outros percalços aguardavam os amazonenses. A Imprensa baiana por seus variados jornais que, suponho, em número superior aos editados nos Estados do Rio e São Paulo, com texto bastante expressivo e bem composto, divulgou a primeira informação acerca da força amazonense, em 19 de agosto. Aconteceu no Jornal de Notícias,76 na coluna Canudos, ao confirmar que o corpo policial do Amazonas [é] esperado a qualquer hora”. E adita: “Com a polícia do Amazonas, aproxima-se a 14.000 o número das forças, cujos serviços estão sendo postos em favor do restabelecimento da paz na Bahia”. Na edição imediata, também na referida coluna, o vespertino relaciona o efetivo da força amazonense, e lista nominalmente os oficiais, sob o comando do tenente-coronel Cândido Maria74  Jornal do Recife, Recife, 20 de Agosto de 1897, na coluna Gazetllha. 75  O Quartel General situava-se à Praça 13 de Maio, onde hoje funciona o Hospital Geral do Exército. 76  Redação, Escritório e Oficinas à Rua das Princesas, n° 16. Seu preço era de 100 réis e exibia o slogan: A folha de maior circulação do Estado.

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no. Para rematar, acentua que “traz 300 praças armadas a Comblain”.77 Sob o título Batalhão do Amazonas, o referido jornal descreve o acolhimento dispensado a tropa: A bordo do transporte Carlos Gomes, chegou hoje pela manhã o batalhão de segurança oferecido pelo patriótico governador do Amazonas, como auxílio à pacificação dos nossos sertões. O desembarque efetuou-se de pronto e a uma hora recebiam os filhos daquele Estado homenagens de seus conterrâneos entre nós, que ofereceram ao comandante um grande buquê de flores naturais. Precedida da música de polícia, seguiram todos do Arsenal de Marinha até o Forte São Pedro, recebendo saudações do povo baiano. Ao passar o batalhão por este Jornal, hasteamos o pavilhão brasileiro, enquanto vivas ao Amazonas e à República, sendo atirados confetes. A bandeira do batalhão foi guarnecida pela digna colônia amazonense. Aos nossos irmãos do Norte apresentamos as felicitações de que são dignos pelo seu amor à República.78

No mesmo jornal, de mesma data: “Orou depois em nome da colônia amazonense o acadêmico Jonatas Pedrosa [governador do Amazonas em 1912-16], e numa bela alocução ofereceu ao Comandante um lindíssimo ramalhete de flores naturais, tendo fitas de cores nacionais com a inscrição: Ao batalhão do seu Estado a Colônia Amazonense”. Ainda em Salvador, o mesmo matutino79 informa em matéria intitulada Polícia Amazonense: “amanhã, às 7 horas, deve embarcar a polícia do Amazonas, já tendo recebido a Estrada de Ferro o competente aviso”. Na edição de 27, duas anotações: a curiosidade circulada no diário: o tratamento dispensado ao Dr. Euclides Cunha, correspondente especial do Estado de S. Paulo, futuro autor de Os sertões. E a forma dramática como o periódico descreve o movimento de militares recambiados da frente de luta, quiçá para “estimular” a comitiva policial amazonense: Passam soldados que tornam dos sertões, feridos, convalescentes, trôpegos e alquebrados, fisionomias pálidas e abatidas das quais ressumbra uma resignação estoica; acurvados alguns em bengalas toscas, caminhan77  Arma de fogo de uso individual, de fabricação belga, mas já em desuso no Exército brasileiro por ocasião desta campanha. 78  Jornal de Notícias. Salvador, 21 de Agosto de 1897. 79  Jornal de Notícias. Salvador, 26 de Agosto de 1897.

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do, outros amparados nas muletas ou pelo braço de companheiros mais robustos (...) a população, vivamente emocionada, rodeia-os de uma simpatia respeitosa e espontânea.

Prossegue o aludido jornal, na mesma edição, e sob o cabeçalho: Polícia do Amazonas, o jornalismo descreve o embarque dos soldados amazonenses rumo a Canudos: Às seis da manhã de hoje, saiu de seu quartel provisório, no Forte de S. Pedro, o regimento policial amazonense, aqui chegado ultimamente. Precedido de sua banda musical desfilou pelas ruas Pedro Luiz, Mercês, Piedade e S. Pedro, ruas direita de Palácio, Misericórdia, Colégio, Maciel, Passo, Direita de Santo Antônio até a Calçada, onde chegou às sete horas. Feito o embarque, partiu o expresso: composto de nove carros de 2ª e dois de 1ª classe, conduzido pela locomotiva n° 13, às 7h25 da manhã. Do mundo oficial ninguém se fez representar. O regimento amazonense leva o efetivo de 260 praças e 24 oficiais.

Em contraponto, o comandante Cândido Mariano em seu relato sucinto, assevera que “nessa capital, tendo desembarcado o Batalhão e aquartelado no Forte de São Pedro, este comando apresentou-se ao ministro da Guerra. Mais adiante, a 30 de agosto (grifei) embarcou o Batalhão para os sertões baianos, servindo-se da Estrada de Ferro Central da Bahia, até a estação de Alagoinhas, e desta a de Queimadas, no prolongamento da estrada de ferro”.80 Observa-se, portanto, duas datas para o embarque da tropa na estação de Calçada, com destino ao sertão baiano. A veracidade se encontra com o comandante ou com o jornalismo? Opto pelo testemunho da imprensa, por dois motivos: pela precisa descrição dos acontecimentos, incluindo-se o nome das ruas, o horário da partida e, mais contundente, a numeração das composições. O autor do Relatório mais antigo publicado no País sobre a campanha, equivocou-se. Isto é natural, pois, não tendo anotado os detalhes, escreveu de memória noventa dias depois, estando em Manaus, certamente sob forte emoção decorrente das cruentas cenas vivenciadas e o delírio do próprio retorno. 80  Queimadas, aliás, Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas, é uma povoação insignificante, construída às margens do rio Itapicuruaçu, que serve à população. Tem umas duzentas casas de péssima construção e proporções acanhadas, dispostas em ruas muito irregulares. Além da estação da linha férrea, tem a estação telegráfica e a agência do correio. A população da vila retirou-se toda desde o início das operações de Canudos. Queimadas é hoje um vasto quartel”. (No Calor da Hora, transcrito de Gazeta de Notícias (RJ) - Fávila Nunes).

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Sem dúvidas, foram catorze horas seguidas de viagem até Queimadas, contabiliza o comandante e, muito provavelmente, apreciaram o panorama descrito por frei Sinzig que, dias antes, havia percorrido o mesmo e único trajeto. A primeira estação depois de Plataforma chama-se Escada, cuja igreja situa-se no alto de uma elevação. Passamos dois tuneis, o último, perto de Mapelle, é enorme. As seguintes estações chamam-se: Cotegipe, Água Comprida, Moritiba, Parafuso, aqui começam terras secas e arenosas, Camaçari, São José da Mata, onde voejavam inúmeros urubus (abate-se, diariamente, o gado para consumo da Bahia). Depois, Mata de São João, Pitanga, lugar de outro túnel, Pojuca (enorme plantação de tabaco), Engenho Central, Catu, 92 km de São Francisco, Sírio Novo, Alagoinhas, a 122 km de São Francisco.81

Em seguida à estação de Água Fria, sucessivamente, vieram Lamarão e Serrinha, em seguida, Santa Luzia e, então, Queimadas, onde desembarcou o batalhão, cerca de 21h30. Desembarcado, o comandante Cândido Mariano telegrafa ao governador do Amazonas: Queimadas. 30 de agosto - Governador do Amazonas - Manaus. Chegamos Queimadas. Todos bons. Grande vontade marchar. Seguimos Canudos dia 30 corrente. Amazonas sempre elogiado. Comunique família. Viva República! Telegrafe Queimadas.

A leitura desse telegrama aparta qualquer dúvida. Vejamos: o telegrama traz a data de 30 de agosto, porém, quando o remetente afirma que seguimos em 30 do corrente, é óbvio que o havia escrito em data anterior. Daí minha convicção de que o Jornal de Notícias imprimiu com precisão a data do embarque: 27 de agosto. Tanto se mostra correto que, escrevendo de Queimadas, onde havia chegado a 22, frei Pedro Sinzig registra em seu Diário: “28 de agosto... Esta noite chegaram os soldados de Manaus (Amazonas) com uma ótima banda de música”.82 Nessa data e no mesmo vespertino, a delegação militar do Amazonas encheu páginas. Recolho mais outra nota, bastante desairosa inclusive para o comandante, como revela em Relatório ainda que em notação bastante concisa. Divulga o jornal: “Foi demitido ontem [dia 26], pelo seu comandante, o alferes João Batista Cavalcan81  Diário Oficial do Estado. Manaus, 14 de Setembro de 1897. 82  E. Diatahy B. de Menezes e João Arruda. Canudos: as falas e os olhares. Fortaleza: Ed. UFC, 1995.

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te, pelo procedimento incorreto de que deu provas”. A mesma infração descrita pelo comandante: “Na capital do Estado da Bahia ficaram algumas praças em tratamento nos hospitais militares e um alferes que, na véspera do embarque do Batalhão, fora eliminado das fileiras do mesmo, à vista do seu mau comportamento habitual”.83 A exclusão sumária de militares ocorreu por motivos diversos, seja pela deserção simples, seja pelo comportamento inadequado, em todas as expedições e em todos os níveis hierárquicos. Dessa forma, deve ter sido uma calamidade para a capital baiana conviver com toda sorte de indivíduos, especialmente os de conduta inamistosa para a sociedade. Há relatos desses estorvos que não cabem apurar neste trabalho, mal grado que membro da polícia do Amazonas tenha contribuído com degradante procedimento. Outra semelhante conduta “já acontecera no porto de Recife, no qual este Comando teve o desgosto de expulsar um outro Alferes que muito propositadamente pedira licença para baixar à terra e aí se deixara ficar, faltando a partida do transporte de guerra”.84 A 30 de agosto, partiu da estação Calçada o ministro da Guerra, em trem especial, sob a garantia do 5° Corpo da polícia baiana, “que continua firme no seu posto difícil, sob o comando do major [do Exército] Salvador Pires de Carvalho. Foi o único batalhão que venceu em dois dias o caminho de Monte Santo a Canudos. Isso é honroso para esses militares”.85 O marechal Carlos Machado Bittencourt, “homem frio, eivado de ceticismo tranquilo e inofensivo”,86 estabeleceu seu quartel na cidade de Monte Santo. A presença desta autoridade reverteu o desempenho do Exército, pois, a consolidação da logística se operou de forma mais técnica, permitindo que os Últimos combatentes – como os da Polícia Militar do Amazonas, pouco se ressentissem dos efeitos perniciosos da desorganização subsistente nas primeiras expedições. De Queimadas para Monte Santo, o batalhão amazonense partiu em 4 de setembro, conforme seu comandante. Novamente a notícia jornalística contrapõe-se a esse informe. Certo periódico87 assevera: “Sabemos que dois corpos do exército e regimentos policiais do Pará e Amazonas partiram ontem [31] de Monte Santo com destino a Canudos”. Nova ambiguidade, todavia, aqui a veracidade encontra-se com o comandante, pois o itinerário entre a capital da Bahia e Canudos era coberto por dupla jornada: uma, o deslocamento ferroviário até Queimadas, passando por 83  Cândido José Mariano. A força pública do Amazonas em Canudos. Relatório do tenente-coronel Cândido José Mariano; apresentação de Roberto Mendonça, 4ª ed. Recife: Ed. Massangana, 1998, p.16. 84  Cândido José Mariano, obra citada, p.17. 85  Relação do Comitê Patriótico da Bahia. 86  Hélio Silva. 1889: A República não esperou a amanhecer. Rio: Civilização Brasileira, 1972, p.282. 87  Jornal de Notícias. Salvador, 1° de Setembro de 1897, na matéria intitulada Canudos.

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Alagoinhas. A outra, suplantar o inóspito sertão, marchando légua após légua até a próxima etapa – Monte Santo, onde se aquartelava o ministro da Guerra. Ademais, os deslocamentos não se realizavam ao inteiro arbítrio de cada fração de tropa; havia um escalonamento a ser observado, seja por segurança no trânsito pelo sertão, seja porque as unidades militares escoltavam comboio de gêneros e de armas. Em Monte Santo, o batalhão do Amazonas acampou enquanto aguardava instruções superiores. Logo, porém, foi agregado à brigada comandada pelo coronel João Cesar de Sampaio; em seguida, conforme entendimento das mesmas autoridades, foi incorporado em definitivo à Brigada Policial, sob o comando do coronel José Sotero de Menezes, composta ainda pelos dois batalhões do Pará e um de São Paulo. A 6 de setembro, desembarcam nesta localidade o ministro da Guerra e seu Estado-Maior, tendo formado em continência todas as forças ali sediadas: batalhões do Exército; o 1° de Polícia do Amazonas; o 1° e o 2° de Polícia do Pará; o 4° de Polícia da Bahia e o Batalhão Moreira César. Dois dias depois, a oficialidade da 2ª brigada, sob o comando do coronel Sotero de Menezes, precedida pelas bandas de música das polícias do Pará e do Amazonas, compareceu ao meio-dia para cumprimentar o ministro Carlos Machado. A festa em comemoração à Independência Nacional ocorreu de maneira bizarra. A descrição cabe a Euclides da Cunha, em seu primeiro dia em Monte Santo: “Uma alvorada triste. No entanto vibravam nos ares as notas metálicas de seis bandas marciais e a manhã rompeu entre os deslumbramentos do oriente, expandindo-se num firmamento sem nuvens. Olhando em torno o que se observa é o mais perfeito contraste com a feição elevada desta data ruidosamente saudada”.88 Igualmente há folguedo no sábado, 11 de setembro, descreve o jornalista Manuel de Figueiredo, um dos convivas: Reunimo-nos em Salgado, em casa do velho Francisco Martins de Andrade, que muito serviço prestou à comissão encarregada de estabelecer o telégrafo. Dessa magnífica reunião fizeram parte os Drs. Euclides da Cunha e Domingos [Alves] Leite (1° tenente engenheiro militar), chefe de polícia Armando Calasans, cadete Augusto Medeiros, capitão Rafael Machado (da polícia do Amazonas), Hugo de Merkel e o autor destas linhas. Um belo almoço em que foi sacrificado aos nossos estômagos um excelente leitão, um cuscuz magnífico e alguns ovos estrelados.89 88  Euclides da Cunha. Canudos e outros temas, edição comemorativa dos 90 anos de publicação de Os sertões. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas/ Casa de Pernambuco, 1994, p.127. 89  Jornal Notícia. Rio de Janeiro, 21 e 22 de Setembro de 1897.

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Alimentar-se foi sempre um enorme desafio para os combatentes. No tocante à tropa amazonense, apesar de subsistir recursos financeiros destinados à aquisição de gêneros, simplesmente estes inexistiam em quantidade para tamanha demanda. Quando surgiam, cobravam-se preços exorbitantes, como bem demonstram diversas correspondências alcançadas. Para comprovação, reproduzo duas. Uma, do capitão Rafael Machado, escrevendo para um amigo em Manaus: “Já temos comprado rapaduras de oito mil réis e garrafas de cachaça a dez mil réis, porém isso não é nada; o que eu quero, é ter dinheiro, para dar, de maneira que não soframos necessidades de coisa alguma”.90 Outra, do Jornal de Notícias, da Bahia91, que transcreve uma carta remetida de Queimadas. Leia-se um trecho: “A miséria aqui chegou ao ponto de se comprar rapadura a 45U000, e dizem até que antes de minha chegada atingiram a 70U000 e até custava a vida de quem as possuía”. Em edição de 13 de setembro, divulga os preços de gêneros em Monte Santo: “Açúcar quilo, 2U500; rapadura pequena, 600 réis; ovos dúzia, 2U”. Outros preços, estampa a edição do dia 18: “cigarro Leite & Alves, U400; charuto ordinaríssimo, U200; requeijão (velho) quilo, 4U000”. *** Somente a 13 de setembro a Brigada Policial se deslocou para Canudos, “o que gostosamente ela cumpriu”, presunçoso, salienta Cândido. Essa manifestação logo é suplementada pela descrição de outro participante da refrega: “a brigada, por determinação do ministro da Guerra, conduziu até Canudos um grande comboio de víveres e 350 reses, sendo tudo entregue ao coronel Campelo [Manuel Gonçalves Campelo França] na melhor ordem possível”.92 Este detalhe nos permite acrescer as dificuldades do deslocamento, que não apenas dependiam do elemento humano, havia que tanger os bovinos e equinos, suplantar as intempéries próprias do sertão, disso resultando quase sempre a tardança. A descrição desta jornada militar, entretanto, fica a cargo do imortal Euclides da Cunha, que teve o batalhão amazonense como guardião, a despeito de confundir este com a coirmã paraense. Euclides, por se tratar de ex-tenente do Exército e ter sido coetâneo do coman90  Mário Ypiranga Monteiro. Cronologia histórica da Polícia Militar. Manaus: Imprensa Oficial, 1972, p.51. 91  Salvador, 4 de Setembro de 1897. 92  Henrique Duque Estrada de Macedo Soares, tenente. A guerra de Canudos 3ª ed. Rio: Philobiblion, 1985, p.173.

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dante amazonense na Escola Militar, sentiu-se muito à vontade junto à tropa. A propósito, como era estranha sua inclusão ao Estado-Maior do ministro da Guerra. Todavia, é ele quem ao chegar a Monte Santo, em 6 de setembro, retrata o episódio: “Finalmente chegamos, às nove horas da manhã, à nossa base de operações, depois de duas horas de marcha. Quando entramos, formavam na praça 1.900 homens, sob o comando do coronel Cesar Sampaio. À frente dos batalhões paraenses avultava o coronel Sotero de Menezes – um chefe e um soldado como há poucos. Divisei logo, à frente do Batalhão do Amazonas, um digno companheiro dos velhos tempos entusiastas da propaganda, Cândido Mariano, contemporâneo de escola”.93 Leia-se o pormenorizado relato do próprio Euclides: Parti de Monte Santo para Canudos acompanhando a segunda brigada da divisão auxiliar. Constituem-na os batalhões 1° e 2° do Pará e o do Amazonas. Partimos de Monte Santo às 5 1/2 da manhã e chegamos a Caldeirão às 9 horas aonde acampamos. Ordem admirável em toda a força. Eram oitocentos homens e durante toda a viagem não se ouviu o vozear enorme dos exércitos em marcha; nem uma risada estridente e escandalosa. Disciplina segura e inflexível. O comandante coronel Sotero de Menezes inegavelmente será um dos melhores dos nossos generais futuros.

Em dado momento, segue narrando o imortal escritor, o comandante decidiu exercitar a brigada, ordenando o toque de alarma. “Os soldados estavam esparsos pelos arredores quando a corneta deu o sinal de comando de brigada e logo após o alarma. E, em menos de cinco minutos, nas posições anteriormente marcadas perfilavam-se os três batalhões”, conclui arrebatado. Na madrugada do dia imediato, às três horas, “já pronta toda a brigada partimos para adiante”. E prossegue a exposição euclidiana, concisa como permitem as anotações aligeiradas de repórter de guerra, por isso, até certo ponto destituída de todo brilho intelectual. Passamos por Jitiúna uma hora depois. Chegamos que às 8 horas à Juá. Água aí imprestável, no poço havia um animal podre já e um agonizante. Acampada a força só para almoçar, almoçávamos, quando chegaram o tenente-coronel chefe da Comissão de Engenheiros [José] Siqueira de Menezes e o ajudante, tenente do Estado-Maior Alfredo do Nascimento. Disseram-nos que acabam de abrir um novo caminho indo em linha reta 93  Euclides da Cunha. Canudos e outros temas, obra citada. pp.123-4.

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de Juá a Canudos. De sorte que em vez de pernoitarmos em Aracati seguimos pelo tal caminho acampando no fim de duas léguas em Suçuarana aonde chegamos às 11 horas da manhã.

Sigo apoiado no diário de Euclides: “Partimos daí no dia seguinte [15] às 6 horas da manhã e chegamos às 9 a um lugar que por não ter nome denominamos Paramirim – por ter sido a brigada do Pará a primeira a passar por aquela estrada. [...] Às 10 horas, acampamento despertado por dois tiros e um brado de alarma. A força formou rapidamente. Era um espião dos jagunços que fugiu. No outro dia 16, seguimos para Canudos. Estrada estratégica terrível. Atravessamos uma trincheira de mármore. Passamos por dentro do rio Cascamengó, seco. Chegamos à Favela a 1 hora da tarde e a Canudos (depois de breve demora) às 2”. Não existe incoerência sobre este deslocamento, com a descrição do comandante amazonense: “A dezesseis do mesmo mês, depois de penosíssima viagem, lutando com a escassez de alimentos, a falta de água em condições de ser ingerida e sob um sol abrasador, num terreno pedregoso e inteiramente desprovido de vegetação que pudesse trazer algum refrigério aos soldados e animais de carga, sendo a pouca que havia composta exclusivamente de espinhos de toda qualidade, chegou a Brigada ao alto da Favela, em frente à povoação maldita de Canudos”.94 Outro oficial combatente esclarece que “o Batalhão do Amazonas acampou à retaguarda, à direita do quartel general, próximo aos corpos da brigada auxiliar e [brigada] Girard”. E complementa a descrição com uma apologia às forças de polícia: “chegaram todas organizadas de modo tão completo, que honravam os Estados de onde provinham; todas com pessoal numeroso e disciplinado, bem armado, equipado e fardado”.95 Não passa de mera suposição, reconheço: mas o batalhão do Amazonas, por desígnio de seu comandante, talvez tenha demonstrado melhor conduta bélica naquela situação ao se apresentar no campo de combate coberto com chapéu de palha. A tropa [a Brigada Policial] ali chegou em plena manhã. Os dois corpos do Pará, disciplinados como os melhores de linha, e o do Amazonas, com o uniforme característico que adotara desde a Bahia: cobertos, oficiais e soldados, de grandes chapéus de palha de carnaúba, desabados, dando-lhes aparência de numeroso bando de mateiros.96 94  Cândido José Mariano, obra citada, p.5. 95  Macedo Soares, obra citada, p.173. 96  Euclides da Cunha, Os sertões (II), obras imortais da nossa literatura v.11. Rio: Primor, 1973, p.305.

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Ou seja, Cândido Mariano ao adequar a indumentária de seus homens às exigências da região, conseguiu abrigá-los com mais engenho da desgastante canícula, poupando-os com a inventiva no deslocamento. Pode-se até vislumbrar o esquisito espetáculo em registro fotográfico de Flávio de Barros. O próprio Euclides da Cunha se manifesta com propriedade. Causa estranheza para nossos dias, certamente, mas as limitadas fotos dos combatentes acentuam uma variedade de uniformes utilizados pelos militares, os quais foram ao extremo de vestir quaisquer trapos para cobrir a nudez. Finalmente, em 16 de setembro, decorridos 42 dias desde a partida de Manaus, o batalhão amazonense adentrou o teatro de operações, para usar o linguajar militar contemporâneo, e nele se empenhou até 7 de outubro, consolidada a destruição da Troia de taipa. Compulsadas as datas, pode-se assegurar que os comandados de Cândido Mariano permaneceram no front da luta conselheirista por três semanas. A despeito da exiguidade de tempo, firmaram reputação: “Já que falamos em polícia: ainda não ouvimos uma pessoa falar mal do seu comportamento militar. Antes, todos a elogiam pela bravura e os conselheiristas temem-na seriamente”, atesta Lélis Piedade em carta ao Jornal de Notícias, da Bahia.97 ***

97  Lélis Piedade era secretário do Comitê Patriótico da Bahia. O comitê foi criado para apoiar inicialmente as vítimas militares da campanha, porém, evoluiu para o atendimento às vítimas civis. Assim, efetuou o trabalho de recuperação dos jaguncinhos (órfãos da disputa, dispersados pelas tropas e por jornalistas). Instalado em Cansanção, Lélis quase diariamente escrevia para o Jornal de Notícias, da Bahia. A referida carta tem data de 08.09, mas foi publicada em 16.09.1897.

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Cerco da cidadela sagrada

CAPÍTULO VI

CERCO DA CIDADELA SAGRADA

O 1° batalhão do Amazonas, sob o comando do tenente-coronel (tenente do Exército) Cândido José Mariano, confirmou ainda mais uma vez o juízo que dele formei por ocasião do estreitamento das linhas de sítio, portando-se com calma, bravura e intrepidez, quando teve de repelir o inimigo. Ordem do Dia n° 900, de 27 Out 1897, da Repartição do General Ajudante. 64


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Ampla discussão ainda se produz sobre o tamanho do povoado de Canudos. Os entusiastas (entre os quais me incluo) cuidam em determinar com aproximada exatidão o tamanho geográfico e, especialmente, a população. Houve quem o indicasse como a segunda cidade da Bahia, porém, diante de dados estatísticos amplamente conhecidos, sabe-se que não alcançou tanto. Há outros estudiosos que se detém em explicitar a organização administrativa da cidade conselheirista. Enfim, há os mais distintos estudos sobre detalhes do afamado povoado e seu fundador, especialmente conduzidos por pesquisadores estrangeiros. Sobre o assunto transcrevo o depoimento do capitão Manoel Benício, meticuloso correspondente de guerra (no País, foi a primeira a sofrer observação in loco de jornalistas), documentando em carta para jornal do Rio de Janeiro.98 Canudos, 28 de julho. Eis a minha opinião sobre Canudos. Tem no máximo duas mil casinholas, mais ou menos. Cerca de duas horas estivemos a contá-las do alto da Favela e não chegamos a mais de 1.200. São casebres sem portas, de paredes de taipa, num grupo, pintadas de branco, noutro, de vermelho, com cobertura de folha de icó, embocadas de barro. Para fazer a vontade aos exasperados e exagerados, darei a maior 3.000 casebres, a fim de contentá-los, a eles que nunca tiveram a pachorra de contá-los, como eu, que me obrigue¡ a ser leal narrador do que visse.99

Com bastante propriedade, o correspondente Hoche,100 do jornal O Paiz, do Rio, assim descreveu o arraial:

98  Jornal do Commercio. Rio, 13 de Agosto de 1897, (sexta-feira). Que dia aziago! 99  Jornal de Notícias. Salvador, 13 de Agosto de 1897. 100  Trata-se do tenente-coronel (EB) José de Siqueira Menezes, chefe do serviço de engenharia em Canudos, alcunhado de “jagunço louro”, por Euclides da Cunha. Nasceu em Sergipe e foi presidente de seu Estado (1911). Assumiu o comando da Escola Militar do Ceará, em 07.03.1892. Ainda mais, foi o fundador da cidade de Sena Madureira (AC), em 25.09.1904. Falecido general.

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A cidade de Canudos situada a 5 graus, mais ou menos, de longitude do meridiano do Rio de Janeiro, à margem esquerda do rio Vaza Barris, que tem suas nascentes nas Sete Lagoas, que se demoram nas proximidades dos contrafortes da serra da Itiúba. Na época das trovoadas que caem de setembro a março, eles se reúnem cobrindo uma grande superfície com as águas que recebem da vasta bacia, despejando-as no oceano pelo leito deste rio, que no curso de mais de 70 léguas [cerca de 420 quilômetros] recebe inúmeros tributários, à direita e à esquerda, que opulentam-no com seus favores. É pelo seu crescido número de construções, embora toscas e sem elegância, que chamo-lhe cidade. Contam-se nada menos de 2.500 fogos. Belíssima é a sua posição topográfica, alegre e prazenteiro é o seu aspecto límpido e azulado o seu céu, belas e claras as suas noites de luar, frescas e agradáveis suas manhãs. O sol seria ardentíssimo se não fosse refrigerado por uma brisa constante.101

Abandono a discussão sobre a geopolítica de Canudos, para cuidar da contenda propriamente dita. Abeirava-se a derrocada da Cidadela Sagrada. Ao comandante do batalhão amazonense convém que dê início ao relato de sua participação na afamada peleja: “Em Canudos fechei com o meu batalhão o sítio do arraial, havendo sido, por esse motivo, elogiado, sendo o único oficial comandante que mereceu esta recompensa, visto ficar, com este movimento, terminada virtualmente a campanha”. De igual maneira, ouça-se o acadêmico Martins Horcades a opinar sobre a condução do combate: “As operações de guerra continuavam no mesmo que dantes: a indecisão triunfava... era enorme a morosidade... morosidade, quando a 25 [setembro], o bravo coronel Sotero de Menezes, tendo ordem para atacar a retaguarda de Canudos, (...) avançou com a brigada policial”.102 Para consolidar a assertiva do doutor Horcades, vem o depoimento do tenente Macedo Soares que relata: “Enquanto não chegavam os corpos de polícia do Amazonas, Pará e São Paulo e mais 5 batalhões de linha, em viagem para Canudos, continuava a vida de sempre: diariamente tiroteios mais ou menos violentos, que recrudesciam à noite”. As tropas de polícia trouxeram novo alento aos combatentes. Não apenas pela organização, mas devido ao comando rigoroso, desse modo puderam desfechar o golpe definitivo na resistência do “incompreensível e bárbaro

101  Walnice Nogueira Galvão. No calor da hora: a guerra de Canudos pelos jornais. São Paulo, Ática, 1977, p.480. 102  Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos. Bahia: Lito-Tipografia Tourinho, 1899, p.54.

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inimigo”. Que, por excesso de prudência, as forças legais demoravam a jugular. Narrou-me Oswaldo Ribas, sobrinho nonagenário do biografado: “o Cândido Mariano foi direto ao pescoço do Conselheiro”. Na ocasião desta confidência, desacreditei do meu interlocutor devido seu estado sanitário; porém, ao examinar os inúmeros apontamentos sobre a pugna, não mais! Translado a narração de outro combatente, “ao assinalar que para concluir o cerco ao povoado era necessário tão somente a ocupação de um trecho de 800 metros, de terreno acidentado e coberto de caatingas, onde desembocava a estrada de Uauá [...] Naquele propósito, a 23 [setembro] o general Arthur Oscar ordenou que o tenente-coronel Siqueira de Menezes com o batalhão de Polícia do Amazonas, comandado pelo tenente-coronel Cândido Mariano, fizesse um reconhecimento e ocupasse a estrada da Várzea da Ema”.103 O cerco sobre Canudos apertava-se, por isso, mais se exigia da força amazonense, que continuava a guarnecer parte do terreno conquistado. Veio, então, o dia 25 de setembro, data em que o coronel Sotero de Menezes, comandante da brigada paraense, em pacto com o coronel Olímpio da Silveira, comandante da força baiana, “deliberou efetuar um assalto às posições dos fanáticos. O intuito dos dois valorosos coronéis, dado o espírito empreendedor de ambos, foi o de levarem um ataque decisivo ao coração da Cidadela, terminando assim com a luta”.104 Quem sabe a busca pelos oficiais de “meia ração de glória” tenha retardado o combate derradeiro, pois era inquestionável a fraqueza dos defensores do arraial, todavia, cada comandante ansiava o final da campanha com as regalias de “herói”. Enfim, às seis da manhã de 25 de setembro, “Sotero de Menezes formou as forças sob o seu comando e à frente delas transpôs as barrancas do Vaza Barris, investindo vigorosamente sobre o grande núcleo de edificações próximas à Igreja nova”, a descrição pertence ao tenente Macedo Soares, que prossegue: ”Simultaneamente ao ataque levado pela brigada policial do Pará, o batalhão de Polícia do Amazonas, às ordens do tenente-coronel Cândido Mariano, deixou suas posições guardando a estrada de Uauá e com exemplar denodo e impavidez avançou e, penetrando no arraial, foi numa carga impetuosa e incessante conquistando centenas de casas, matando seus valentes habitantes, quase todos caindo, resistindo até a machado, surpresos pelo imprevisto do ataque”. Soares finaliza acentuando que “o comandante Cândido Mariano escapou de ser vítima do seu valor, acossado pelas balas de todos os pontos onde estava o inimigo”. 103  Macedo Soares, obra citada, p.160. 104  Macedo Soares, obra citada, p.185.

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Outro registro que suplementa o anterior: “A vinte e cinco de setembro conseguiram as nossas forças, após porfiada e mortífera luta, apoderar-se da última e única aguada de que, já tão somente, dispunham os jagunços, fechando-se ao mesmo tempo e completamente o cerco do arraial. Coube a primazia das honras dessa jornada ao Regimento Militar do Estado do Pará, secundado pela Polícia do Amazonas”. O testemunho pertence a outro campeador, participe da Quarta Expedição, major Constantino Nery.105 Em depoimento estampado por um jornal carioca, repassando a campanha, Cândido Mariano assinala que foi “ferido gravemente em um dos combates finais e, no qual, ataquei os jagunços e fiz diminuir consideravelmente a área sitiada. Fui elogiado por este motivo e censurado reservadamente, por ter empenhado a luta sem ordem, embora com franco sucesso”.106 Inúmeros são os autores e os relatos sobre o combate de 25 de Setembro; todos, porém, ressaltam o destemor das Polícias da Amazônia. A conquista teve demasiado significado para a Polícia Militar do Pará, que decidiu registrar esta data como comemorativa de sua criação, além de ter tomado seu maior representante, tenente-coronel Antônio Sérgio Dias Vieira Fontoura, para Patrono. Apanho mais outro registro No Calor da Hora, alentado trabalho que reproduziu os acontecimentos canudenses compartilhando as notícias estampadas em jornais da Bahia, Rio e São Paulo. Como este tópico do Diário de Notícias, da Bahia: “Dias depois [24 de setembro], o tenente-coronel Cândido Mariano, comandante da Polícia do Amazonas, tomou de assalto uma grande trincheira que ficava a cavalheiro das nossas posições, próxima a estrada do Cambaio, e que nos causava diariamente sensíveis perdas”. Aprofunda esta notícia o jornal Gazeta de Notícias: “Finalmente, foi no dia 24 de setembro completamente fechado o sítio de Canudos. (...) tendo também na mesma ocasião tomado posição o 32° batalhão de infantaria e o 1° corpo de Polícia do Amazonas, (...) este sob o comando do tenente-coronel Cândido Mariano, um bravo que no dia seguinte, 25, avançou com seu batalhão, conquistando à viva força mais de 2.000 casas, adiantando as nossas posições de tal modo, que foi necessário que o General Arthur o mandasse chamar e o ameaçasse com prisão a fim de se conter”.107 105  Antônio Constantino Nery. A Quarta expedição contra Canudos. Pará: Tipografia de Pinto Barbosa, 1898, p.135. Editado em fac-símile pelo governo do Amazonas por ocasião do centenário de Canudos (1997). 106 Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 4 de Agosto de 1911. 107  Rio de Janeiro, 4 de Outubro de 1897.

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Comentando o inusitado empenho policial, sentencia Favila Nunes: “estava feito e não era possível recuar”. Prossegue com a pena o correspondente da Gazeta de Notícias, escrevendo de Canudos, em 27 de setembro: Realmente o tiroteio do inimigo, (...) não tem solução de continuidade. Mais adiante, onde estava o bravo batalhão de Polícia do Amazonas, que tanto se tem distinguido nestes últimos dias, um soldado na linha começou de facilitar com os inimigos e caiu ferido na virilha; deixei-o agonizando porque tinha de atender ao Cândido Mariano, que me forneceu alguns troços de jagunços para a minha coleção de curiosidades canudenses.

Quê suprema raridade, sublime, ao ponto de se abandonar um combatente exânime trocado por um saco de pele de cabra inteiriço, conhecido por filipe. Como vimos pelas descrições, o embate de 25 de setembro acarretou ampla controvérsia; desde o momento da pugna, na interrupção do combate e na advertência a Cândido Mariano, ao ano imediato, quando o mesmo comandante obrigou-se a requerer ao Ministério da Guerra acerca do sucedido. Necessitava esclarecer sua responsabilidade. Em resumo, e consoante documentação existente no Arquivo do Exército, essa instituição responsabiliza o comandante da Brigada de Artilharia em Canudos, coronel Antônio Olímpio da Silveira, pelo ato irrefletido e indisciplinado de autorizar, sem ordem superior, o combate de 25 de setembro de 1897, em que empenharam-se o Amazonas e o Pará, derrubando, assim, segundo informações categóricas e apreciações próprias do comandante-em-chefe das forças em operações, o plano traçado previamente, sem que nenhum resultado vantajoso trouxesse à guerra contra os jagunços e, portanto, não merecendo tal combate a publicação na Ordem do Dia do Exército, cabendo ao culpado, já como General de Brigada, em 3 de Janeiro de 1898, requerer ao Ministro da Guerra mandar publicar a Parte desse combate, pedido este deferido.108 A consequência mais consistente do combate de 25 de Setembro foi, inegavelmente, o apressamento da destruição de Canudos. ***

108  Josué Augusto Vaz Sampaio Neto et alii. Canudos: subsídios para a sua avaliação histórica. Rio: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p.165.

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Delenda Canudos

CAPÍTULO VII

DELENDA CANUDOS

Quando galhardamente as nossas forças triunfantes desfraldavam o pendão de nossa Pátria... No tempo em que isso se dava descia do alto da cidade o galhardo batalhão da polícia do Amazonas, que vinha como que dar as mãos e abraçar os filhos também da valente Amazônia, pelo batismo de sangue... Trecho da Parte do comandante da brigada de artilharia. Forte de Sete de Setembro, em 26 Set 1897. 70


Delenda Canudos

A despeito dos incessantes ataques, ainda não se concretizara o desfecho da luta em Canudos. Contudo, já no final de setembro era corriqueiro “murmurarem nas linhas e acampamentos da decisão dos comandantes em desfechar novo e definitivo assalto ao reduto sitiado”. Um oficial relata que, “não obstante o insucesso do assalto (porque não conseguiu levar a termo a luta, como era seu objetivo), houve grande explosão de entusiasmo e alegria entre as praças, cujo nível moral subira de modo notável”.109 Outro narrador consolida a inquietação: “A luta era então tremenda e o morticínio enorme. Às 8h e 1/2 foi içado o pavilhão nacional nas ruínas da igreja nova! Mas... Canudos ainda não era nosso”.110 Por uma questão de ordem, a ocasião pertence ao comandante Cândido Mariano, que fala em seu conhecido Relatório: “Tendo o general-em-chefe ordenado um grande ataque ao reduto central, pela infantaria do Exército, que nos últimos combates descansara, este se realizou, tendo ficado de posse das nossas forças a igreja nova, a velha e grande número de casas do inimigo, ficando este inteiramente privado de obter água para beber e cozinhar, visto ter perdido, por completo, o rio Vaza Barris, de onde tirava o precioso líquido”. O comandante completa a descrição, anunciando a participação da milícia do Amazonas. “O Batalhão, que nesse dia pensou descansar um pouco das lides da guerra, não pôde fazê-lo, pois se achava tão próximo do lugar do ataque, que se viu na contingência de auxiliar os companheiros do Exército, pelo que perdeu alguns homens mortos e bastante feridos”.111 Notas compulsadas no Diário de Notícias, da Bahia, permitem estabelecer os derradeiros momentos de Canudos. Dia 2 de outubro: “Sem água e sem alimento, os jagunços içaram a bandeira branca, entregando-se cerca de 40 mulheres e crianças, e alguns homens cobertos de ferimentos”. A complementação dos fatos pertence ao historiador Villa: “pela primeira vez desde o início da campanha, surgia uma bandeira branca entre as 109  Macedo Soares, tenente, obra citada, p.201. 110  Walnice Nogueira Galvão, obra citada, p.131. 111  Cândido José Mariano, obra citada, p.12.

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ruínas do arraial. Antônio Beatinho, do qual até então nada se sabia, apresentou aos generais Arthur Oscar e Silva Barbosa uma proposta de paz. O general comandante rejeitou a proposta do discípulo do Conselheiro”.112 Dia 3 de outubro: nova bandeira branca, com a deposição de armas por mais de trinta jagunços. Nesse dia, cerca de 200 pessoas, entre homens, mulheres e crianças se renderam. O episódio, descrito por Euclides da Cunha de forma sublime, sublinha o gesto intrépido de Beatinho, acólito do Conselheiro. Na boca da noite, abona Horcades, “Beatinho foi degolado às 8 horas da noite”.113 Em 5 de outubro, propala o matutino: “Às 4 da tarde, debaixo de forte incêndio, as forças penetraram no último reduto, sendo nesta ocasião tocado o Hino Nacional”. E complementa o combatente: “Todos os canhões salvaram com 21 tiros, (...) saudando a Bandeira Nacional, tremulando ufana e altiva sobre as ruínas da igreja-baluarte”.114 Bem mais enfática, a Gazeta de Notícias, do Rio, divulgou este telegrama: “Às 3 horas e 6 minutos da tarde, Canudos foi tomado completamente. Vitória absoluta”. Quem pode precisar o momento do aniquilamento do santuário do Conselheiro? Talvez saiba quem esteve presente. O comandante amazonense assim descreve o final da brutesca batalha: “A 5 de outubro, depois de uma resistência louca, digna da melhor causa, o inimigo (...) entregou-se de vez, ou antes, deixou de se fazer ouvir pelo estampido de seus bacamartes, porquanto, tinham perecido na luta todos os seus homens válidos, e quando as nossas forças penetraram no seu último (...) esconderijo, ali se encontrou um montão de cadáveres de homens, mulheres e crianças que foi avaliado em número superior a oitocentos!”.115 Nada a acrescentar, julgo fielmente extratado o desastre. “A tomada de Canudos custara 5.000 vidas de oficiais e soldados do exército federal e estadual e milhares de contos [de réis] ao Tesouro da União”, contabiliza um correspondente de guerra.116 Atrevo-me a acrescer, interrogando: em quanto orçaram os gastos dos Estados amazônicos participantes da campanha? Não há informação. Sobre o batalhão policial do Amazonas finaliza lisonjeiro seu comandante: “tanto ou mais que nenhum concorreu brilhantemente para o êxito final, batendo-se abnegadamente, sem visar interesse de ordem alguma, e auxiliando por todos os

112  Marco Antônio Villa. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Atica, 1995, p.207. 113  Alvim Martim Horcades, obra citada, p.87. 114  Macedo Soares, obra citada, p.227. 115  Cândido Mariano, obra citada, p.12 116  Manoel Benício. O rei do cangaço. Rio: Tip. Jornal do Commercio, 1899, p.403.

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meios o General em Chefe a debelar tão nefanda quanto desgraçada revolta”.117 *** Uma questão recorrente intriga os estudiosos desta conflagração sertaneja: que sublime razão levou os habitantes de Belo Monte, sem instrução e sem apetrechos militares, a resistir longamente? Cuido de responder com as palavras do historiador Villa. “A população que poderia ter abandonado o arraial antes da chegada da terceira expedição, (...) até meados de setembro, não arredou o pé de Canudos. Isto dá à comunidade de Belo Monte um caráter épico, impar na nossa história. Somente a força dos valores societários, a solidez da ligação entre o destino individual e o coletivo, explicam a longevidade da resistência”.118 O assunto já experimentou a criatividade de muitos e há de ser convenientemente perseguido. Canudos continua a propor aos estudiosos sugestivos e surpreendentes temas. A notícia da vitória das forças militares, depois de longa expectativa e do emprego de numerosa tropa em quatro expedições, ensejou indescritíveis manifestações de júbilo no País afora. Adiante, descreverei essas festas jubilares. Para maior brilhantismo, não faltaram os telegramas efusivos entre as autoridades nacionais, assim como entre os dirigentes glebários. Dois desses documentos, vulgarizados pelo Diário Oficial,119 caracterizam o clímax atingido. O primeiro foi expedido por Eduardo Ribeiro, ex-governador do Amazonas, então presidente do Congresso Estadual, destinado ao titular do Executivo. No momento da disputa conselheirista, este deputado se encontrava no Rio de Janeiro, em gozo do recesso, juntamente com outros parlamentares. Somente regressou à Manaus, em 9 de janeiro de 1898, viajando no paquete Brasil, em companhia de João Miguel Ribas, Eugenio Ramos Villar e do major (da Guarda Nacional) Rocha dos Santos, todos membros do Congresso Estadual.120 Telegrama (Rio, 6 - Dr. Governador do Amazonas.) “República” afixou boletim informando arrasamento Canudos. Antônio Conselheiro preso pela força amazonense. Saudações - Viva a República - Parabéns ao Amazonas. Eduardo Ribeiro.

117  Cândido Mariano, obra citada, p.12. 118  Marco Antônio Villa, obra citada, p.203. 119  Diário Oficial do Estado, Manaus, 15 de Outubro de 1897. 120  Diário Oficial do Estado, Manaus, 11 de Janeiro de 1898.

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O subsequente partiu do governador do Amazonas em viagem à capital paraense. Aproveitou a escala em Santarém (PA), situada no médio rio Amazonas, para congratular-se com seu substitute, embora ecoando uma informação descabida, qual seja, da prisão do beato Conselheiro pela Força baré. Ora, se o Conselheiro morreu antes de concluída a refrega, nunca foi capturado. Muito menos pela tropa amazonense. Telegrama (Santarém - 12. Governador Amazonas) Gratíssimas notícias tenho a dar-lhe. Forças amazonenses triunfaram em Canudos prendendo Antônio Conselheiro. Vitória enche de júbilo a todos nós. Tenho recebido grandes provas de apreço dos dignos habitantes de Óbidos e Santarém. Salve! Amazônia. Fileto Pires.

Em Manaus, conhecido o resultado da refrega canudense, a sociedade comemora a façanha no Teatro Amazonas. A célebre casa de espetáculos, inaugurada em 31 de dezembro do ano anterior, atraía desde e sempre um número representativo de empresas de entretenimentos, muitas sem qualquer reputação. Em 17 de outubro, portanto, a revista Bendegó (produção brasileira de sucesso, com prólogo, três atos e nove quadros, regida pelo maestro Soter) é reapresentada, “em homenagem à vitória das forças legais em Canudos e a ação da milícia amazonense”.121 Para concluir a descrição desta centenária campanha, cujo resultado militar quase sempre acolhe exacerbadas críticas de estudiosos da estratégia bélica, recorro a um oficial verde-oliva que, em trabalho memorável sobre o assunto, reconhece que “Canudos é o marco principal da história militar brasileira. Aquele triste episódio, onde a força terrestre nacional teve atuação ainda contraditória, em face da reduzida difusão dos seus profundos ensinamentos, definiu a única direção a ser seguida, para continuar a ser uma organização regular, permanente e confiável: modernizar-se ou sucumbir”.122 Mais outro tanto sobre a matéria, “não foram os jagunços – infatigáveis combatentes – que propiciaram o malogro das operações ofensivas, senão as próprias deficiências inerentes à articulação do dispositivo. Maiores que os trabucos e os bacamartes dos sertanejos, eram as próprias desorganizações tática e técnica dos combatentes regulares”, condensa o mesmo estudioso.123 O tema diz respeito a Euclides da Cunha. À sua lavra certamente pertence a 121  Mario Ypiranga Monteiro. Teatro Amazonas, v.2. Manaus: Sergio Cardoso, 1965, p.371. 122  Davis Ribeiro de Sena. A guerra das caatingas. Rev. IHGR Rio: v.152, n°373, 4° trimestre, 1991, p.965. 123  Idem, p.969.

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mais erudita sentença sobre a campanha de Canudos. Ele, contemporâneo de Mariano na Escola Militar, em sua imortal obra - Os sertões, já traduzida em diversos idiomas, concedeu um instante de celebridade ao colega, ao relacionar os batalhões policiais dispostos para o combate. A homenagem aqui foi retirada de uma versão francesa: “A ajouter, pour finir, 2 unités: le régiment de la police de Pará (...), et celui de la police d’Amazone, sous le commendement du lieuenant Cândido José Mariano avec 328 soldats”.124 Quanto à demolição da indomável “Cartago nordestina”, Euclides sintetizou: “Degolava-se; estripava-se... Aquilo não era uma campanha era uma charqueada”. Nada parece mudar, na visão contemporânea de um historiador, tratando de Canudos: “Mas todo o episódio foi um equívoco trágico”, como bem denunciou Os sertões. ***

124  Sereth Neu (trad.). Les terres de Canudos. Rio: Caravela, 1947, p.323.

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CAPÍTULO VIII

DA BAHIA AO AMAZONAS

Às vezes, uma defronte da outra, duas cruzes, de braços abertos, estatelam-se, à espera do um abraço conciliador que jamais se realiza. Manoel Benício, in O rei dos jagunços. 76


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Apenas dois dias depois da capitulação registrada na tarde de 5 de outubro de 1897, arrematada a campanha diante de quatro conselheiristas, consoante perpetuou Euclides da Cunha, partiu o batalhão amazonense do campo de lutas. Marchou célere; levava o ofício com os agradecimentos do general Arthur Oscar destinado ao governador do Amazonas. Agradecendo ao militar, na ocasião Ramalho Junior também estendeu sua cortesia ao governador do Pará.125 O correspondente da Gazeta de Notícias, do Rio, escrevendo de Monte Santo, em 12 de outubro, destaca cenas chocantes alcançadas no seu trajeto, e que foram vivenciadas pelo pessoal amazonense: “Vi mesmo no meio do caminho um bonito menino louro de dois anos, morto recentemente; presumi que pertencesse ao lote de prisioneiros vindo com o batalhão de polícia do Amazonas, que saíra de Canudos no dia 7, e ia pouco adiante de mim”.126 Fávila Nunes teve o discernimento de cronometrar a marcha: “... chegamos a Suçuarana às 9 horas da noite. Já aí estava o batalhão do Amazonas acampado. Já o batalhão amazonense tinha marchado às 3 [horas] e chegava a brigada do Pará”. Prossegue o jornalista informando que, ao meio-dia deixou o povoado de Jitiarana; quando passou a brigada paraense, que finda por “encontrar acampada com a Polícia do Amazonas no Caldeirão Grande”. Estimo que a primeira etapa do retorno da tropa amazonense, considerando que todos apresentavam-se depauperados, transportando companheiros feridos e, 125  Diário Oficial do Estado. Manaus, 4 de Janeiro de 1898. Administração do coronel José Cardoso Ramalho Junior. Expediente de 11 nov. 1897. Oficio nº 836, da mesma data. Sr. General de brigada Arthur Oscar Andrade Guimarães, Chefe das Forças que operam em Canudos: Agradecendo as honrosas referências que vos dignastes fazer ao dito Batalhão, pelos serviços prestados à causa da República, e bem assim o acolhimento que dispensastes à força amazonense, cumpre o dever de felicitar-vos pela vitória que alcançastes. Exmo. Sr. Dr. José Paes de Carvalho, Governador do Pará: É com a máxima honra e prazer que, em nome do Estado do Amazonas, agradeço a V. Exa. as grandes provas de apreço, estima, simpatia e distinção com que foi saudada a força amazonense, na sua passagem pelo Pará. Este Governo é sinceramente reconhecido ao generoso povo paraense, pelas gentilezas com que foi distinguido o 1º Batalhão do Corpo Policial do Amazonas. 126  Walnice Nogueira Galvão, obra citada, p.87.

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ainda, escoltando prisioneiros em semelhante circunstância, tenha se realizada em três dias. A confirmação provém do próprio comandante. Atesta ele que os combatentes “vinham todos alquebrados pelas fadigas e febres infecciosas que muito abatem ao organismo e ao espírito”.127 Daí minha suposição de que tenham alcançado Monte Santo, em 10 de outubro. A informação de Fávila sobre o cadáver do menino abandonado traz ao debate a questão dos jaguncinhos, vocábulo criado por Euclides da Cunha (aliás, o primeiro a se beneficiar com insólito prêmio) para definir os órfãos ou não da guerra, que deram “a acompanhar os batalhões, como animais aguarenciados, os filhos das vítimas de Canudos”.128 Ao conhecer esse episódio, logo me interroguei se a tropa amazonense teria conduzido algum órfão para Manaus. Quem responde a suspeita é Lélis Piedade, secretário do Comitê Patriótico, que denunciou o caso de Maria Joaquina de Miranda, prisioneira em Canudos. Esta, recorre à Justiça, “sabendo que os seus filhos menores: Maria, com 13 anos, e Porfirio, com idade de 10 anos, seguiram para a capital do Amazonas em companhia de oficiais do batalhão de polícia daquele Estado, vem pedir à V. Exa. a caridade de reclamá-los, pois a suplicante, embora na ausência de seu marido, por não saber se está vivo ou morto, está sem condições de sustentá-los com subsistência”.129 Em seu Relatório, Cândido Mariano não registrou qualquer anotação acerca desse fato; tampouco encontrei em jornais de Manaus contemporâneo qualquer dado acerca desse questionamento. Se algum jaguncinho desembarcou em Manaus, perdeu-se na voragem do esquecimento de pecado degradante. Em Monte Santo, onde se aquartelava o ministro da Guerra, os soldados amazonenses foram recebidos por esta autoridade, que informou ao comando da inexistência de pagamento de vencimentos por parte do Governo Federal, vez que o Governo do Amazonas teria se responsabilizado pelas despesas de seu pessoal na campanha. Assim sendo, a tropa de Cândido Mariano prossegue no mesmo dia, ou possivelmente a 10, em direção a Queimadas, onde teria chegado dois dias depois, lembrando que o deslocamento era realizado a pé. Nessa cidade, a 14, a expedição amazonense retomou a locomotiva da Estrada de Ferro em direção à capital da Bahia, ao lado do 5º Corpo da força policial baiana, tendo chegado no mesmo dia à estação da Calçada. A descrição integral do evento mostra à saciedade como foi extremamente festejada a comitiva policial pelo povo baiano; da maneira como costumeiramente ocorre 127  Cândido José Mariano, obra citada, p.13. 128  Manuel Benício, obra citada, p.402. 129  Lélis Piedade, obra citada, p.147.

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naquele Estado. Afinal, estavam presentes todos os elementos para o brilhantismo da festividade, um pouco assemelhado a festa do Senhor do Bonfim. Afinal, tratava-se de A volta dos heróis: “Estação da Calçada do Bonfim. Caprichosa e vistosamente adornados acham-se o edifício e as redondezas da estação da ferrovia. Conservava-se enevoado o céu, como a refletir a fumarada das pelejas de que a República mais uma vez saíra triunfante. À uma da tarde penetrou o comboio a férrea arcada da estação, e o povo fazia dos seus braços o caminho vitorioso para os recém vindos. A esta cerimônia assistiu inesperadamente a Polícia do Amazonas”.130 Sob o rótulo — Polícia do Amazonas, o bem informado vespertino descreveu os festejos: De fato, não se houvera o povo preparado condignamente para receber os distintos filhos do Estado do Rio Mar. Na estação, soube-se que os bravos representantes do Amazonas estavam também a chegar. Ordem telegráfica mandou-se logo para que o trem que conduzia os filhos do alto-norte acelerasse a sua marcha, a fim da Bahia unir os dois batalhões na mesma homenagem, nos estos do mesmo fervoroso afeto maternal, na mesma explosão íntima e sincera de sua gratidão. Vinte minutos depois de desembarcar a nossa polícia, a alma popular saudava entusiasticamente, em vivas estrepitosas, os filhos do Amazonas, em cuja bravura adivinhava-se a imponência altiva da natureza tropical que ensoberbece a fronteira setentrional da Pátria. (...) Daqui repetimos em nome do Jornal de Notícias, as expressões de boa vinda e reconhecimento que, ao seu desembarque, apressamo-nos em levar ao corpo de polícia do Amazonas, na pessoa do seu distinto comandante. A Bahia agradece aos dignos filhos da Atalaia do Norte, onde a formidável caudal canta o poema da pujança do Brasil e repele, sempre triunfante, as ousadias invasoras do oceano, fazendo-o recuar, num assombroso exemplo sugestivo da defesa do território pátrio. Salve, irmãos do Norte!”.

Então, um préstito como era e segue de praxe foi organizado, muito à caráter do povo baiano, vibrante e festejador. Se fora necessário oferecer palmas aos que haviam arrostado o oceano e o sertão em prol da República, muito mais se ofertou. Abrindo o desfile, bandas de música, inclusive a do Amazonas, seguidas pelos comandantes – major Salvador Pires de Carvalho e Aragão, tendo ao seu lado direito o tenente-coronel Olympio Fonseca e à esquerda, o tenente-coronel Cândido Mariano, comandante do batalhão do Amazonas. 130  Jornal de Notícias. Salvador, 15 de Outubro de 1897.

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Vinham, em seguida, as companhias da polícia do Amazonas, “cujas carabinas estavam enfeitadas de crótons e flores, seguidas da bandeira [estadual] da polícia do Amazonas, rodeada de povo e representantes daquele Estado entre nós”. Enfeixando o desfile, a tropa baiana conduzia a bandeira estadual, seguida de enorme acompanhamento popular. Descreve ainda o jornal o itinerário cumprido pelo cortejo cívico-militar, que saiu da estação da Calçada cerca de 13h30. Ultrapassou o Gasômetro e atingiu o colégio São Joaquim, onde as filarmônicas deste e do Arsenal da Marinha tocaram, saudando os combatentes. Desse local seguiu até o Trapiche do Xixi (local onde hoje se assenta um moinho de trigo). Mais adiante, parou em frente à fábrica da Chapelaria Norte Industrial, onde o operariado deu as boas-vindas aos combatentes. Seguiu uns passos e, “em frente à sede do Jornal de Notícias, ao passarem os comandantes dos corpos da Bahia e do Amazonas, fizeram-se ouvir Alberto Meireles e Luiz Paulo de Santa Rita, terminando por oferecerem ao major Salvador um buquê de flores naturais e ao tenente-coronel Cândido Mariano um outro de flores de pena, e de novo tocou a filarmônica dos chapeleiros”. O desfile seguiu pelas ruas São Francisco de Paula, Pilar e Julião. Às quinze horas, chegou ao Comércio. Desde o Largo do Comércio até a subida da Montanha, regurgitava de pessoas. Pela rua da Montanha era realizada a travessia da cidade baixa para a alta. No trecho do viaduto Bandeira de Melo e na Praça Castro Alves o povo saudava o cortejo entusiasticamente. O coração da Bahia pulsava freneticamente, afinal o séquito alcançara nesse momento a Praça do Povo, local de tantas manifestações populares. Ali próximo, o escritório do Diário de Notícias, que, pela palavra do Dr. Manoel Freire de Carvalho, saudou a polícia do Amazonas. Prossegue o cortejo pela ladeira de São Bento, parando no Portão da Piedade, onde “o entusiasmo foi crescente, sendo grande a profusão de confete e flores”. Avançou pela rua do Rosário, transpôs o Colégio das Mercês e, logo mais à frente, um grupo de artistas lançou flores aos militares. Eram 16h45 quando todos davam entrada no Quartel dos Aflitos (ainda hoje sede do comando da PM da Bahia), festivamente ornamentado. Conclusas as continências regulamentares, os policiais do Amazonas puderam, enfim, chegar no Forte de São Pedro. O primeiro provimento do comandante amazonense, pela transcrição documental, foi telegrafar ao governador interino do Estado, coronel Ramalho Junior. O titular viajara à Belém (PA) para dirimir incertezas sobre a secular questão de limites territoriais com o vizinho. 80


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Telegrama (Bahia, 16 de outubro de 1897.) Coronel José Ramalho. Vice-Governador. Manaus Batalhão chegou ontem Bahia. Estamos bons, seguimos brevemente Amazonas. Nossa força muito vitoriada. Peço comunicar família. Saudações. Cândido Mariano.

Os soldados amazonenses, andrajosos e enfermos, recolheram-se ao Forte de São Pedro, enquanto os oficiais, igualmente fatigados e desprovidos de traje adequado, deixaram de comparecer ao jantar oferecido no Palácio da Vitória, onde a força amazonense foi homenageada pelo governador da Bahia, Dr. Luís Viana (1896-1900). No ensejo, apenas o comandante e seu ajudante (provavelmente o capitão Rafael Machado) atenderam ao convite. Conhecido periódico baiano noticia o banquete oferecido pelo governador:131 Às 18h, no salão nobre de jantar do palácio de residência dos governadores, à rua Corredor da Vitória, teve começo o banquete servido em três mesas. A do centro era presidida pelo Dr. Luís Viana, tendo a sua direita o major Salvador Pires, comandante do 5º Batalhão de Polícia [da Bahia], e a esquerda o tenente-coronel Olympio Carvalho Fonseca, chefe da guarnição federal neste Estado, e em frente a consorte do major Salvador, ladeada pela sua filha e pelo tenente-coronel Cândido Mariano, comandante da polícia do Amazonas. Nesta mesa sentaram-se, além de oficiais amazonenses e outras pessoas, os representantes da Imprensa baiana.

Em prosseguimento, o Dr. Rodrigo Brandão brindou “aos valorosos corpos policiais da Bahia e Amazonas, heróis contra Canudos. Tal foi o ocorrido em mais essa homenagem do governo da Bahia às polícias deste Estado e do Amazonas”. O regozijo da sociedade e da própria força militar pelo extermínio de Canudos pode ser bem expresso com o “banquete de cem talheres do Regimento Militar do Pará ao Estado da Bahia”. O ágape foi servido às 19h00, no Hotel Sul Americano, onde hoje está construído o edifício Sulacap (Sul América Capitalização), junto à Ladeira de São Bento. E, consoante descrição de um colunista, digamos social, os convidados se reuniram em “grande mesa em forma de U (que bem pode compreender-se como símbolo da união imprescindível dos Estados para tornar forte a República)”. Adiante, é descrito o excên131  Jornal de Notícias (BA) - A folha de maior circulação do Estado. Salvador, 20 de Outubro de 1897. Redação e escritório e oficinas na rua das Princesas, 16. Valor 100 réis.

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trico cardápio: “suprémes de crevettes Paes de Carvalho [governador do Pará] e patê de cannenton truffé Sotero de Menezes [comandante do batalhão paraense]”.132 Os lugares de destaque foram ocupados pelo governador do Estado, também pelo tenente-coronel Cândido Mariano e seu ajudante. O mesmo colunista finaliza a descrição indicando que diante de cada talher “via-se então impresso o menu em cartões cromos”, e se entusiasma, “cada qual mais chique”. Chiquérrimo, não?, pondero eu. Tem mais, esses exagerados gastos servem igualmente para reforçar minha proposição de que os réis (moeda da época) bamburravam nos cofres públicos amazônicos. Enquanto isso, o diário oficial transcreve o expediente remetido pelo secretário de Estado ao comandante do Regimento.133 Diz respeito ao telegrama do ministro da Guerra notificando o falecimento do capitão Talismã Guiomar Floresta, do 1° Batalhão da Força Estadual, quando operava no sertão da Bahia, vítima de tifo malárico”. O óbito aconteceu no hospital de Monte Santo. Floresta constitui-se o único oficial da tropa amazonense a falecer em campanha, como se pode observar, fora do campo de luta. Sequer teve a oportunidade de alcançar Canudos. Das páginas de um jornal, transcrevo excerto de um manifesto da imprensa baiana aos Defensores da Lei — O Exército Nacional e as Polícias dos Estados.134 A imprensa baiana foi durante essa renhida peleja contra o minotauro de Canudos mais do que um aparelho orgânico, vivo e palpitante por onde corria o plasma da opinião; foi a alma coletiva, o coração da Bahia, o músculo vibrátil e sensível em cujas fibras vinham repercutir, dia a dia, as esperanças e os sofrimentos, as alegrias e as dores, os entusiasmos e os deveres da legião patriótica.

O mesmo jornal prossegue com a declaração: “Esta imprensa tem, pois, o dever e o direito de falar em nome da Bahia, cujos sentimentos traduz e afirma bem alto nesta homenagem aos legendários da defesa nacional. Às bravas falanges do Amazonas, do Pará e de São Paulo, ao Exército invencível, ao grande capitão que conduziu as nossas armas ao lance final da vitória, é a esses que ela vem tributar solenemente, com os penhores da sinceridade e lealdade da alma baiana, o preito de sua admiração e do reconhecimento comum”. Assinam o manifesto os seguintes periódicos: A Bahia, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Correio de Notícias, Cidade de Salvador, O Republicano e Revista Popular. 132  Jornal de Notícias. Salvador, 16 de Outubro de 1897. 133  Diário Oficial do Estado. Manaus, 20 de Outubro de 1897, transcrevendo o expediente de 8 de outubro. 134  Jornal de Notícias. Salvador, 25 de Outubro de 1897.

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A tropa amazonense não teve oportunidade de ler esta e mais outra manifestação de regozijo, como o acróstico publicado na edição seguinte do mesmo jornal, enviado em carta sem assinatura, homenageando “ao ínclito general Arthur Oscar e seus heróicos comandados”. Pois aconteceu em 23 de outubro, o instante tão ansiosamente aguardado pelos guerreiros barés, o de retomar o caminho de casa. Eis o acróstico: SilvA Barbosa OlympiO da Silveira CaRlos Eugenio CarloS Telles DanTas Barreto Tupy Caldas CunHa Matos Cândido MAriano CláUdio Savaget Serra MaRtins SiqueiRa de Menzes Inicialmente o comboio deslocou-se pelo Atlântico, oceano de imensas águas azuis, como para revitalizar corpos e mentes de homens envolvidos em sangrento conflito; depois alcançaria o barrento, mas exuberante Rio Mar que acolhia seus festejados caboclos combatentes de regresso à taba. Mariano, em seu Relatório, resume ao máximo a descrição da primeira etapa dessa viagem que, partindo de Salvador, se estende até o porto da capital paraense. Recorda que voltou a embarcar no Carlos Gomes, em 23 de outubro, “tendo chegado ao Pará a 1° de novembro”. A longa temporada no mar aconteceu em função da homenagem recebida na escala realizada em Fortaleza, capital do Ceará. Na véspera da partida, outro periódico da capital baiana revela que o major Rocha dos Santos, deputado estadual e redator do Commercio do Amazonas, visitou hoje as brigadas do Norte. Esteve no acampamento para cumprimentar a do Pará em nome do jornal A Província do Pará, e a do Amazonas representando “o Governador, o Congresso e o Commercio”.135 Adiante, o mesmo jornal divulga que os policiais amazonenses seguem no transporte Carlos Gomes, no dia seguinte. E, para finalizar, alerta que “o tenente Bayma, do Amazonas, ficou doente, seguindo com o regimento paraense”. Em tempo: Bayma curou-se e retornou a Manaus.136 A capital alencarina foi pródiga no reconhecimento da participação policial amazonense. Os jornais em circulação (Cearense, A República e Diário Oficial do Ceará, entre outros) ressaltaram o desembarque da caravana policial militar 135  Jornal de Notícias. Salvador, 26 de Outubro de 1897. 136  Trata-se de Aristides Emídio Bayma, regente da “música” do batalhão que, sarado, retornou são e salvo a Manaus.

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do tenente-coronel Cândido Mariano, na tarde de 27 de outubro. Maior destaque, porém, dispensaram aos cearenses servindo na Polícia Militar do Amazonas que, por sinal, constituía um número expressivo. Transcrevo, sob o título de Marcha Cívica, a divulgação proporcionada pelo jornal A República. A concentração teve início às 19h30, com a Banda de Música do Corpo de Segurança tocando em frente do “escritório deste jornal à rua Coronel Bizerril”. Uma hora depois, grande número de pessoas engrossava a manifestação. Da janela falou, em nome da imprensa, o redator-chefe de A República, Dr. W. Cavalcanti, terminando por convidar o povo para ir saudar o coronel Cândido Mariano, comandante do corpo de polícia do Amazonas e seus companheiros”. Assim aconteceu, “a multidão dirigiu-se rua Major Facundo, no estabelecimento Palhabote, onde estavam os denodados oficiais. A passeata seguiu em direção do Palácio da Presidência, sendo em todo o trajeto aclamados os heróis de Canudos”. Em Palácio, presente Nogueira Acioly, chefe do Poder Executivo, os discursos prosseguiram: na sacada falou o redator-chefe deste jornal pela segunda vez. Depois falou Domingos Fontenelle, promotor da capital, a seguir “Cândido Mariano, que foi recebido pelo auditório com estrepitosas ovações”. Mariano começou seu discurso “relembrando os saudosos tempos da propaganda republicana, evocando as tradições do povo cearense”. Disse mais, “era seu dever agradecer, em nome do corpo da Polícia do Amazonas, o acolhimento que tiveram todos na hospitaleira terra cearense”. Enfim, falou o Presidente, dizendo que “não poderia ser indiferente àquela manifestação, promovida pela imprensa aos heroicos vencedores de Canudos”. A marcha então prosseguiu rumo ao Quartel do Batalhão de Segurança. No local, houve novos discursos congratulatórios: do alferes Marcondes Ferraz, do major Ranulfo Lyra [comandante da Guarda Cívica], de Bonfim Sobrinho e do Dr. José Domingos Fontenelle. Cansados, certamente, dissolveu-se a passeata.137

Na edição seguinte, o mesmo matutino noticiava a presença dos policiais amazonenses e revelava as múltiplas cortesias a eles dispensadas. Sob o título Polícia do Amazonas, informava que “a Escola Militar deste Estado nomeou uma comissão do seu seio para ir cumprimentar aos bravos do Amazonas, em seu regresso de Canudos, onde guiou-os o anjo da vitória”. A aludida comissão fora composta dos alunos: alferes Benjamin Fonseca, Castro Heitor, Miguel Ayres e Edgar Coelho”.138 137  A República. Fortaleza, 28 de Outubro de 1897. 138  A República. Fortaleza, 29 de Outubro de 1897.

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Cândido Mariano seguramente recebeu a melhor manifestação de júbilo. O louvor foi prestado pela Escola M!ilitar de Fortaleza, a mesma que o instruíra, que o acolhera na ocasião de sua fundação, nos primeiros momentos da República. A despeito, atendendo o protesto de Mariano, ter sido transferido constrangido. Nada deixou revelado sobre o ano escolar passado nesta escola, mas é previsivel o contentamento do ex-aluno, ainda quando homenageado em circunstâncias tão adversas, nas quais o galardão apresenta manchas de sangue fraterno. A homenagem todavia alcançava outra valoração, diante da breve extinção da Escola Militar, já com os dias contados. Em 2 de novembro, o mesmo jornal anunciava o encerramento desta, apos sete anos de atividades. Por esse desígnio, o antigo cadete conservou a última manifestação pública desta escola. A viagem prossegue em direção ao Norte, com previsão de escala no porto de São Luís (MA). Para melhor organizar a recepção aos policiais amazonenses, o Governo maranhense estabeleceu uma comissão; esclarecendo que “depois de conhecer o dia da passagem dará conhecimento popular da programação”. Para endossar os festejos, “o generoso corpo comercial contribuiu e cooperou na recepção que se avizinha”. Um dos periódicos, tão logo os governadores amazônicos replicaram a saudação da imprensa local (Redação, Diário, Pacotilha, Federalista, Estudante, Revista Elegante, Argos), divulgou, sob a chamada “Regresso das tropas do Norte”, o comunicado: Maranhão, A Amazônia unida rejubila-se em ver que os demais estados da União, acham-se inspirados nos mesmos sentimentos de fraternidade e mútua estima. Somos gratos à imprensa maranhense pelo modo gentil com que vai receber as forças da Amazônia, que acabam de bater-se pela República. Fileto Pires Ferreira e Paes de Carvalho

A imprensa local segue acompanhando o retorno da expedição militar e a aproximação do navio, ainda que “a Comissão sendo surpreendida com a notícia da saída do vapor Carlos Gomes, do Ceará, está providenciando para prestar à oficialidade amazonense as devidas homenagens”.139 Todavia, sem que obtenha segura informação, a comissão é novamente colhida quando o comboio não adentrou o porto da capital maranhense, frustrando a todos. Esse movimento ocorreu, quiçá pela ansiedade dos policiais em chegar ao destino final, em Manaus. Coube novamente à imprensa se manifestar, fazendo votos gerais de feliz regresso e de reconhecimento pelo feito.

139  Diário do Maranhão. São Luís, 30 de Outubro de 1897.

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Em sua coluna Noticiário, sob o título – Transporte Carlos Gomes, o diário descreve alguns detalhes: Segundo informação do digno comandante do vapor Colombo, entrado anteontem das Barreirinhas, aquele navio nesse dia tomava rumo do Pará, razão porque não chegou ao nosso porto, onde era esperado. A Comissão da imprensa havia recebido aviso do Pará de que o transporte aqui chegaria no dia 30; e, nesse sentido, estava preparado para tributar aos bravos patriotas as homenagens do povo maranhense e consagrar-lhes todas as horas de sua demora nesta capital, para dar aos dignos representantes da força amazonense uma prova de apreço, e da parte que o nosso Estado torna na demonstração de gratidão, dedicada pela República aos heróis que foram no centro da Bahia, em defesa da liberdade, da paz e da lei.140

Enfim, cancelada a programação, restou ao aludido diário transcrever a homenagem prestada Às milícias do Pará e Amazonas pelo estudante B. Barros Vasconcelos. A homenagem restringiu-se ao poema bem juvenil e bem próprio da época, intitulado Amazônia, bravos! Altiva a fronte o Maranhão erguendo Ergue mil bravos à Amazônia altiva, – A vós soldados levantando um – viva! Vós que com glória ides ao lar volvendo. O nome honraste do Brasil colhendo Imortais louros que hoje a história arquiva; — Os vossos feitos vosso nome aviva Por entre auréolas, ao porvir prendendo. Bravos, mil bravos aos heróis — soldados. E glória aos bravos que penderam lá Salvando a Pátria de tão vis agravos. A vossos lares volvei descansados Que descansado já o Brasil está. — Bravos soldados! Amazônia, bravos!

A derradeira atracação do transporte Carlos Gomes ocorreu no porto de Belém do Pará, aonde não foi diversa a recepção dispensada aos policiais amazonenses. É conveniente alertar que, enquanto o batalhão viajava em direção a Manaus com escala em Belém, o governador do Amazonas comparecia à capital paraense a fim 140  Diário do Maranhão. São Luís, 10 de Novembro de 1897.

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de conferenciar com seu colega sobre questões de limites. Encerradas as negociações, o governador Fileto Pires e seu ajudante de ordens, major EB Nuno Nery da Fonseca, regressaram no vapor Afuá, em 28 de outubro. Se as comunicações tivessem contribuído, funcionando com mais regularidade, certamente o governante amazonense poderia ter se incorporado à delegação em Belém. Na capital amazonense, a 4 de novembro, por ocasião da chegada do governador, em espetáculo de gala no Teatro Amazonas, ele foi saudado com a reprise da peça Os filhos do capitão Grant (extraída do romance de Júlio Verne, com prólogo e seis atos, e participação da atriz Maríinha Correia).141 O retorno antecipado do governador, todavia, muito contribuiu para o brilhantismo da recepção à tropa policial em Manaus, assim como aconteceria em Belém, consoante conclama o periódico oficial, em matéria intitulada Batalhão amazônico:142 Deve chegar a este porto, no transporte de guerra Carlos Gomes, às 7 da manhã de 1° de novembro, o heroico batalhão de polícia do Amazonas, que se cobriu de louros na campanha de Canudos. O Dr. Governador convida o funcionalismo público e povo em geral para, nesse dia e nessa hora, em vapor que estará atracado no trapiche da Companhia do Amazonas, irem ao encontro do transporte. A bordo, o Dr. Governador fará entrega ao batalhão, em nome do Estado, de uma coroa de ouro para ser colocada em sua bandeira e, em nome das senhoras paraenses, outra de flores artificiais. Após o desembarque do batalhão será servido aos inferiores e praças um lanche no quartel do 1° Corpo e, aos oficiais, almoço pela oficialidade dos corpos paraenses. O tenente-coronel Cândido Mariano almoçará com o Dr. Governador, em família, no seu palacete. À noite, às 6h30, terá lugar em palácio, um banquete oferecido pelo Dr. Governador aos oficiais do Batalhão Amazonense. O povo paraense, patriota como sempre se tem manifestado, fará sem dúvida condigna recepção aos denodados soldados do Estado vizinho.

Os soldados da milícia amazonense depois de acolhidos efusivamente pelo povo e, em particular, pelo governador paraense, Dr. José Paes de Carvalho (1896-1900), foram por iniciativa desta autoridade transportados para Manaus pelo vapor Cidade do Pará, pertencente à Casa Marques Braga & Cia. *** 141  Mário Ypiranga Monteiro. obra citada, p.373. 142  Diário Oficial do Pará. Belém, 31 de Outubro de 1897

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Festas da chegada

CAPÍTULO IX

FESTAS DA CHEGADA

Em campanha, não se almoça nem se janta; Come-se. Antônio Constantino Nery, A Quarta Expedição contra Canudos. 88


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A 8 de novembro, finalmente, os milicianos aferiram as emoções de um regresso vitorioso, quando sentiram a saudação na capital amazonense, à frente o Governador do Estado. Sortido, o Tesouro estadual escancarou os cofres e patrocinou os gastos da recepção e, dessa sorte, a Cidade engalanou-se para acolher os combatentes. Não me foi possível aprofundar os relatos sobre esse “festas da chegada, ao buscar informações em jornais que circulavam na ocasião; seja porque uns estão em grande parte danificados, seja porque outros inexistem em quaisquer arquivos. E, no caso especifico do Diário Oficial, dele foram surrupiadas diversas páginas que inviabilizam a coleção. A despeito de o arquivo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) listar em sua coletânea quase duas dezenas de periódicos, também acolá não obtive melhor sucesso, queria salvar alguma possível manifestação de boas-vindas em cidades da calha do rio Amazonas, tanto Santarém (PA) quanto a festeira Parintins e a vizinha Itacoatiara (AM). Muito provavelmente o barco regional ancorou em algum destes portos, quem sabe para abastecimento, mas que permitiria determinada homenagem. Em Manaus, conhecida a data da chegada da tropa, os preparativos governamentais abreviaram-se. No sábado, 6 de novembro, “reuniram-se em Palácio, os membros da Imprensa e da Associação Comercial do Amazonas, a fim de acordarem sobre o programa dos festejos projetados em homenagem ao glorioso Batalhão Militar de Segurança, que esteve em operações nos sertões da Bahia, contra os fanáticos de Antônio Conselheiro, na cidadela de Canudos”.143 A descrição da notícia emprega determinados vocábulos que sempre circularam com o viés característicos do fanatismo, e outros mais facciosos, do lado derrotado e a preponderância do heroismo do vencedor. Daí, sempre me parecer inútil a tentativa de repor a nomenclatura mais correta; tentarei, valendo-me de um estudioso, que transcreve do jornal Amazonas Commercial as “festas da chegada”. A uma da tarde de anteontem, depois de muitos dias de impaciente espera, caiu como um raio por toda a cidade, a notícia de que o vapor que conduzia o glorioso batalhão amazonense, de volta da Bahia, vinha entrando 143  Diário Oficial do Estado. Manaus, 7 de Novembro de 1897.

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Girândolas de foguetes, salvas, o buzinar de todos os vapores surtos no porto confirmavam a notícia, e pelas ruas um movimento extraordinário de pessoas que corriam em direção ao cais. As embarcações fundeadas na baía embandeiravam em arco, ao mesmo tempo em que o Cidade do Pará, em que vinha o batalhão, já manobrava no quadro. (...) A lancha Leão, em cujo mastro flamejava o pavilhão do Amazonas Commercial, teve a honra de ser a primeira embarcação que foi a fala com o Cidade do Pará, levantando um dos nossos companheiros um viva à República, o qual foi correspondido pelo batalhão a bordo do Cidade. Logo depois chegou o Sr. Governador, o coronel vice-governador e toda a sua comitiva, que foram recebidos em primeiro lugar a bordo do mesmo vapor. (...) Apertados abraços, amistosas saudações, tudo quanto se pode imaginar na recepção de pessoas que se estimam e que chegam como chegaram os heróis da Policia do Amazonas, de longes terras e perigosas viagens.

Prossegue a descrição deste periódico: O coronel vice-governador, ao ser servido o champagne, saudou o batalhão de Polícia do Amazonas. Em seguida, o Dr. Fileto Pires, numa brilhante oração, vibrante de contentamento e de satisfação, dirigiu as boas vindas ao mesmo batalhão, que também foi saudado pelo Dr. Agapito Pereira, em nome do Congresso do Estado. Agradeceu em comovidas palavras o coronel Cândido Mariano, que foi também saudado pelo Sr. Telles, em nome da imprensa do Rio. De novo, o Dr. Fileto, usando da palavra, saudou ainda os praças, especialmente ao corneta-mor do batalhão, velho servidor da pátria.

A divulgação do despacho governamental permitiu identificar o “sargento corneteiro-mor do 1º Batalhão de Infantaria do Estado”, quando este solicitou “ser submetido à inspeção de saúde”.144 Eufrásio José de Mesquita, era seu nome. Nesse sentido, a leitura do periódico oficial também possibilita avaliar o número de integrantes do Regimento adoentados, após o retorno de Canudos. Na coletânea, por seguidas edições, se pode relacioná-los, basta anotar a concessão de licença médica com autorização de viagem, “para se tratar da saúde e mudar de clima”. Como ainda não fora construído o portentoso roadway de Manaus, relíquia da engenharia inglesa e do monopólio da goma elástica, o desembarque da Polícia aconteceu com apoio da “lancha Leão”. Nem mesmo a chuva torrencial que 144  Diário Oficial do Estado. Manaus, 9 de Dezembro de 1897.

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desabou nesse momento espantou os presentes, familiares e autoridades e, como sempre, os curiosos. O registro pertence ao jornalismo manauense: Posto em marcha o batalhão, em caminho do palácio governamental, iam à frente o coronel Cândido Mariano, majores [José] Augusto [da Silva Junior] e [Raimundo Gomes de] Freitas e o capitão R.[Rafael] Machado, que vitoriados delirantemente agradeciam as merecidas manifestações à polícia amazonense.145

Do porto, no início da atual avenida Eduardo Ribeiro, o cortejo entrou na rua Municipal (atual avenida Sete de Setembro), em direção à praça Dom Pedro II, “das janelas dos prédios dessa mesma rua caía uma nuvem de confete, serpentina e flores”. Ao final da praça, situava-se o Palácio Governamental (hoje Museu da Cidade de Manaus), onde foram recebidos pelo governador Fileto Pires. Encerrada a recepção, a comitiva marchou para a sede do Regimento, na Praça da Polícia, obviamente, pela avenida Sete. Tal como ocorrera nas demais capitais, em Manaus, para recepcionar o 1º Batalhão, a manifestação pública, o séquito de populares, de familiares e da tropa do 2º Batalhão foi surpreendente. Com um diferencial de destaque: a presença de gradas autoridades. O desfile tomou a avenida Sete e “em frente à Intendência Municipal, parou o batalhão”. O Superintendente (prefeito), acompanhado dos intendentes (vereadores),146 leu o decreto que mudava os nomes das ruas Municipal e do Progresso.147 Esta tomava a data da partida das forças amazonenses para Canudos, em homenagem aos valentes soldados, aos que voltaram vitoriosos, e aos que tombaram no campo de batalha. A rua Municipal tomaria o nome do “patriota e digníssimo governador” Fileto Pires, em razão de ter mandado seguir com presteza a tropa, “em defesa da grande Pátria Republicana”.148 Para ratificar o exposto sobre o desembarque e a recepção do batalhão de Cândido Mariano, sirvo-me do jornal oficial para transcrever o Regresso das forças, tema da coluna Redação: 145  Mário Ypiranga Monteiro. Obra citada, 1972, p.54. 146  A sede da Intendência situava-se na atual avenida Sete de Setembro onde, até 2006, se abrigava a Câmara Municipal. 147  A rua Municipal, atual avenida Sete de Setembro, foi temporariamente denominada rua Fileto Pires. E a rua do Progresso, atual Monsenhor Coutinho, foi igualmente conhecida por rua 4 de Agosto, como se infere de publicações variadas. 148  Mário Ypiranga Monteiro. Idem, p.54.

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Conforme a comunicação telegráfica transmitida pelo Governador do Pará ao coronel vice-governador, aportou nesta capital o vapor nacional “Cidade do Pará”,149 trazendo a bordo o valente primeiro batalhão de infantaria estadual, que voltou dos sertões da Bahia coberto de louros conquistados em defesa da República. (...) Desembarcadas as forças seguiram para o Palácio do Governo, passando pela Intendência, onde foi, em nome do povo, oferecido ao batalhão um lindo buquê de flores naturais, orando, nessa ocasião, o Dr. J. [Justiniano] de Serpa, superintendente municipal. (...) À convite da Associação Comercial todo o comércio fechou, logo que o “Cidade do Pará” fundeou em nosso porto. À noite, a cidade esteve profusamente iluminada, sendo geral o contentamento da população.150

Ainda na mesma edição, foi divulgada o programa destinado a melhor recepcionar a força militar amazonense: dia 11 - almoço na Intendência, oferecido pelo Governo Estadual à oficialidade do 1° Batalhão; dia 12 - baile campestre no bairro da Cachoeirinha, oferecido aos praças; dia 14 - grande passeata cívica pelas ruas da cidade; dia 15 - quermesse no jardim, em benefício das viúvas e filhos de oficiais e praças da Força Pública falecidos em Canudos, para a qual o Governo contribuiu com cinco contos de reis [cerca de U$13.250] – da verba Socorros Públicos; dia 16 - exéquias na Catedral pelos militares mortos.

No dia imediato ao regresso da tropa, a sociedade novamente ocupou o Teatro Amazonas, em sessão de gala, para homenagear “as forças amazonenses chegadas de Canudos, na pessoa de seu comandante coronel Cândido Mariano”. Para tanto, foi apresentado, em sua despedida, o drama intitulado O filho da República (composto de três atos e 14 números musicais).151 E, a 10 de novembro, Cândido Mariano divulga o seguinte oficio circular, comunicando sua posse na Diretoria de Obras Públicas: “...nesta data assumi o exercício do cargo de diretor interino das Obras Públicas do Estado, do qual me achei temporariamente ausente por ter seguido para Canudos, por ordem do Governo do Estado”. 149  A tripulação do vapor Cidade de Pará estava assim constituída: capitão-tenente Manoel Gonçalves do Valle Guimarães, comandante; Octavio Cordeiro, imediato; Edmundo Dantas de Castro, comissário; e Manuel Justino da Rosa Filho, maquinista. 150  Diário Oficial do Estado. Manaus, 10 de Novembro de 1897. 151  Mário Ypiranga Monteiro. obra citada, p.373.

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A leitura do texto permite concluir que Mariano apenas fora reconduzido à função, da qual se incumbira durante seu afastamento o Dr. Antonino Carlos Miranda Corrêa.152 Suponho que Mariano a exerceu de forma provisória, porque permanecia igualmente no comando do Batalhão policial. Não houve, pois, a conotação de pagamento pelo desempenho em Canudos. Mariano logo tratou de dar continuidade aos provimentos da repartição pública, pois a Cidade era, sem exagero, um canteiro de obras. O reconhecido Teatro Amazonas, para elucidar, ainda exigia recursos e operários visando sua conclusão, a despeito de ter sido inaugurado no final do ano anterior. Melhor desvelo o biografado destinou à urbanização da rua que lhe toma o nome, como demonstram os documentos enviados à direção superior para informar dos custos “com o desaterro e o destocamento” da rua Cândido Mariano (antiga X).153 A 11, o diário do governo154 reproduz na coluna Redação o oficio recebido do diretor do Ginásio Amazonense, professor Antônio Monteiro de Souza. O objetivo do lente era recolher subsídios para a construção de um monumento “para perpetuar a memória dos bravos soldados do batalhão de Polícia Amazonense que sucumbiram na luta em defesa da República”. Certamente, passado o alvoroço da população e a animação de autoridades, a diligência do diretor ginasiano caiu no vazio, pois é desconhecida a execução da iniciativa. Sequer se conhecem os nomes dos praças mortos em Canudos. É ainda na coluna Redação que se lê a descrição do ágape oferecido à oficialidade. Tem mais na edição: o dia foi tipicamente manauense, sem chuva no período, pouco, ou quase nenhum vento, e a temperatura no horário da festa estava em torno de 26 graus. Realizou-se ontem, ao meio dia, no Palacete Municipal, o almoço oferecido pelo coronel vice-governador do Estado ao comandante e oficialidade do valente primeiro batalhão de segurança. Correu muito bem, levantando-se, au dessert, vários brindes, dentre os quais se salientaram o do coronel vice-governador ao coronel Cândido Mariano, que agradeceu a saudação do vice-governador; e do Dr. Fileto Pires, que discorreu sobre a união dos Estados e a paz da República e saudando o vice-governador e o Dr. Paes de Carvalho, Governador do Pará.155 152  Engenheiro civil, paraense, que se notabilizou em Manaus ao constituir, em 1905, com os irmãos a empresa Miranda Corrêa & Cia., proprietária da Cervejaria Amazonense. Inaugurada em 1912, produzia, entre outros produtos, a cerveja XPTO. A empresa funcionou até 1970. 153  Ofícios da diretoria de Obras Públicas existentes no Arquivo Público do Amazonas. 154  Diário Oficial do Estado. Manaus, 11 de Novembro de 1897. 155  Diário Oficial do Estado. Manaus, 12 de Novembro de 1897.

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Após receber inúmeras manifestações de apreço tanto da população quanto de autoridades amazonenses, inclusive com a adoção de seu nome em rua do perímetro urbano,156 Cândido Mariano foi promovido, no Exército, ao posto de capitão. Esta promoção ocorreu por bravura, sublime homenagem prestada pela corporação a distinguidos combatentes, em 15 de novembro de 1897. Sobre a promoção, o beneficiado em publicação jornalística elaborou o seguinte comentário: “promovido a capitão, por atos de bravura, apesar de ser talvez o mais jovem oficial deste posto”.157 Possuía, então, 27 anos completos. Cândido inicia o ano seguinte na direção das Obras Públicas, acumulativa com o comando do batalhão policial e, eventualmente, no desempenho do ofício de demarcador de terras do Estado. Além de, obviamente, curtir a lua-de-mel protelada pela missão cumprida em Canudos. O ano prosseguia faustoso. Em 22 de abril, fez sua iniciação maçônica na centenária Loja Rio Negro (fundada em 1896, e ainda hoje funcionando, à rua Bernardo Ramos), a convite de amigos, companheiros de farda policial, como Raymundo Afonso de Carvalho e Pedro Henrique Cordeiro Junior, ambos ex-comandantes do Regimento Militar do Estado e Veneráveis da Loja. É convenente mencionar, porém, o “golpe da renúncia” que retirou do Governo do Amazonas seu colega, tenente Fileto Pires, como capaz de ter produzido alguns dissabores ao biografado, pois, tempos nebulosos para ele se avizinhavam. A renúncia aconteceu em 4 de abril. Ainda assim, Mariano permaneceu na direção dos Obras Públicas, cuja atuação o Diário Oficial prova com exuberância tantos são os contratos celebrados, os convites publicados e os ofícios com providências ao chefe imediato divulgados. Alguns desses contratos celebrados em 1898 merecem registro: 1) construção da estrada de rodagem entre Caracaraí e a vila de Boa Vista no rio Branco, de 5 de janeiro (contratante – Raimundo Nova Rodrigues); 2) estabelecimento de uma fábrica de gelo (contratante – Bolonha Paiva & Cia.); 3) escavação das avenidas Oriental e Ocidental (artérias projetadas para permitir o trânsito pelas laterais e frente do Palácio Novo do Governo que, inconcluso, cedeu lugar ao Instituto de Educação do Amazonas), contratado em 14 de janeiro por Brestilau Manoel de Castro Junior. Despertou-me a atenção, todavia, a vulgarização no mesmo Diário Oficial, a aprovação de concorrências pelo Conselho de Arrematação da Secretaria da Indús-

156  Lei (municipal) n° 6, de 10 de Novembro de 1897. Estranho, não fui capaz de encontrar qualquer registro deste edito. 157  Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 9 de Agosto de 1911.

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tria.158 O nome de um dos conselheiros foi a justa causa: José Beviláqua. Pressuponho tratar-se do falecido marechal, cuja família tem a raiz mais profunda no Ceará e, como reza a tradição, com destacados membros em Manaus.159 De volta a estrada principal. Era surpreendente a versatilidade de Cândido Mariano, pois, além de exercer as funções no comando do 1º Batalhão e dirigir as Obras Públicas, com tantas e inúmeras atribuições, ainda possuía disponibilidade para o exercício da profissão de agrimensor. Tudo isto ressalta à vista, quando organiza entre maio e julho desse ano, uma desobriga profissional pelo rio Purus e seu afluente rio Acre, conforme calendário compilado nos editais do diário do Estado: MAIO 23 - terras de Vicente Ferreira Nogueira; 25 - seringal Acimã, de Hilário Francisco Álvares; 29 - seringal Espírito Santo, de Hermano Álvares; 30 - lugar Anajás, de Quirino José Uchoa.

JUNHO 04, 08 e 13 - lugar Boca do Muaco, lotes de Manoel José do Lado; 05 - seringal Sant’Ana, de Antônio Pereira Santana; 10 - seringal Bemposta, de Francisco Inácio Pinto; 17 e 19 - seringal Salvavidas, de Francisco Garcez Rodrigues; 23 - lugar Rio Branco, de José Rodrigues Cavalcante;

JULHO 02 - lugar Dois de Julho, de José Simeão & Irmão; 11 - seringal Entre-Rios, de Manoel Felício Maciel; 21 - seringal São Paulo, do mesmo proprietário, ambos no rio Acre, no extinto município de Floriano Peixoto. 158  Diário Oficial do Estado. Manaus, 10 de maio de 1898. O Conselho foi constituído pelo decreto nº 210, de 16 de dezembro de 1897. 159  Nascido em Viçosa do Ceará, era filho de Antônio e Mariana Beviláqua, portanto, primo de Clovis Beviláqua. Teve participação marcante nos episódios da Proclamação da República, secundando a seu mestre Benjamin Constant. Casou-se com Alcida, filha deste, de cujo matrimonio nasceu, entre outros, o general Pery Constant Beviláqua (1899-1991). Em Manaus, residiram os primos Angelino (ex-patrono do Parque de Exposições Agropecuárias) e Clotildes (Coló), casada com o farmacêutico Joaquim Francelino de Araújo, cujo filho Albucassis Beviláqua de Araújo faleceu nonagenário (19082001), morador da rua Emílio Moreira, na Praça 14.

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Quando embarcou este profissional, não obtive a data, porém, o ofício do secretário de Justiça ao comandante do Regimento Militar, de 20 de abril, deixa mais que pistas. Assegura as providências “no sentido de serem postos à disposição do tenente-coronel Cândido José Mariano, que segue para o rio Purus em comissão do Governo, três praças da Força Pública para acompanhá-lo”.160 Quão proveitosa financeiramente deve ter sido para o mencionado engenheiro sua comissão no Amazonas. Vencia mensal pelo Batalhão (770$000 réis), pela repartição pública (1:000$000 réis),161 auferia rendimentos (quanto?) das quinze demarcações relacionadas, e mais, dispunha de passagens e estadia por conta do próprio Governo. Como se observa, as mordomias são tão antigas quanto a arca de Noé. O encerramento da viagem de barco, demorada quanto em dias atuais devido ao então único meio de transporte, ocorreu estranhamente em 14 de junho ou mesmo antes. O detalhe novamente se encontra no Diário Oficial,162 ao registrar que “reassumiu ontem o comando do 1º Batalhão de Infantaria do Estado o respectivo comandante, (...) que se achava em comissão do Governo no interior do Estado”.163 Duas semanas depois, entretanto, Mariano deixaria o comando da fração policial estadual. Em 1º de julho, Cândido Mariano deixa a Força Policial. Como registrado, foi “exonerado a pedido do posto e cargo de tenente-coronel comandante do 1° Batalhão de infantaria do Estado, o Dr. Cândido José Mariano”.164 No mesmo diário, transcrevendo o expediente do dia 2, em despacho ao requerimento do interessado, o vice-governador ordena “agradecer os bons e relevantes serviços que prestastes à Administração e ao Estado”. A seguir, o ofício de agradecimentos do Amazonas ao biografado, assinado pelo secretário de Justiça, recolhido da imprensa oficial.165 Senhor capitão Cândido Mariano, O vice-governador, atendendo aos relevantes e valiosíssimos serviços que, com a máxima lealdade e hombridade, prestastes à causa pública durante o tempo em que briosamente comandastes o 1° Batalhão de Infantaria,

160  Diário Oficial do Estado. Manaus, 12 de Maio de 1898. 161  Lei n° 222, de 16 de Abril de 1898. 162  Diário Oficial do Estado. Manaus, 15 de Junho de 1898, em sua coluna A Redação. 163  Idem. Manaus, 15 de Junho de 1898. 164  Idem. Manaus, 14 de Julho de 1898. 165  Idem. Manaus, 17 de Julho de 1898.

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assim como os vossos atos de distinta bravura que com denodo praticastes em Canudos, até onde conduzistes os valentes soldados do Amazonas, na defesa da República, que ali se achou em perigo, manda agradecer-vos o vosso valioso concurso à administração pública do Estado do Amazonas.

Ainda na mesma fonte: a autoridade mencionada determina ao comandante da corporação policial militar que elogie ao oficial substituído, em ordem do dia, documento ora conhecido por Boletim. De certo, a ordem foi cumprida, todavia, inexiste o documento arquivado, pois as diversas mudanças sofridas pela Polícia Militar destruíram a repartição do Arquivo. Dispensado de sua comissão junto à Força Pública, o capitão Cândido Mariano retorna à Força Terrestre. Inicia uma nova etapa na vida militar, esforçando-se junto aos superiores a fim de “permanecer na área”, em jargão castrense. Seu empenho, contudo, não prospera. Ao retornar ao Exército, foi designado para servir fora de Manaus e, por este motivo, foi dispensado do cargo de diretor de Obras Públicas. Por essa e outras razões não bem esclarecidas é compelido a solicitar demissão do Exército, assunto da próxima fase. ***

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Demissão das Forças

CAPÍTULO X

DEMISSÃO DAS FORÇAS

Infelizmente, a posição de quem governa nem sempre deixa margem a que se diga tudo. Conselheiro Luís Viana, governador da Bahia (1896-1900), sobre a demissão do general Sólon Ribeiro 98


Demissão das Forças

Elaboro este replay tão somente para dispor cronologicamente alguns fatos ocorridos em 1898: em abril, o Governo do Amazonas, diante do golpe da renúncia de Fileto Pires, é passado ao vice, Ramalho Junior, coronel da Guarda Nacional; em maio, o capitão Cândido Mariano recebe transferência para o 11º Batalhão de Infantaria, sediado em Fortaleza (CE).166 Logo adiante, em 1° de julho, este é dispensado da função junto ao Regimento Militar do Estado, certamente a fim de se apresentar à OM (organização militar) designada pelo Ministério competente. Cabe nesta ocasião ajuizar que o então ministro da Guerra era o general Nepomuceno Mallet, que bem castigara o mesmo subordinado, consoante memória do biografado. Cândido Mariano, ao se despedir da Força Policial, já conhecia seu destino funcional no Exército, porém, como desejasse permanecer em Manaus, deve ter exercitado algumas providências. De fato, tomou, tal como adiante exponho. Antes de prosseguir, uma breve explanação. Em setembro de 1896, o governador Fileto Pires renova a estrutura administrativa do Estado, criando o Departamento da Indústria, o qual passa a abrigar as diretorias de Obras Públicas e a de Terras, certamente movido pelo volume de encargos dessas repartições. Em decorrência, o Dr. João Miguel Ribas é exonerado da função de fiscal de Viação Urbana e Suburbana, sendo substituído por Arthur Cézar Moreira de Araújo, ambos oficiais do Exército. Outro desse rearranjo decorre minha convicção de que, não apenas os mencionados oficiais, outros tantos acolhidos na Força Policial empregaram idêntico artifício para “regularizar” sua situação funcional. Conquanto estivessem ligados ao Governo estadual exerciam realmente a profissão de engenheiro, bem mais proveitosa em termos financeiros. Incorria nessa circunstância o biografado que, sendo contrariado em pretensão pessoal, solicitou a demissão do Exército. E, como para fortalecer minha convicção, significativo é o telegrama expedido pelo comandante do 1° DM ao governador do Amazonas, comunicando “que o ministro da Guerra permitiu que os oficiais do corpo de engenheiros, aí residentes, prestem 166  Decreto publicado em Ordem do Dia do Exército, de 9 de Maio de 1898.

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ao Estado os serviços técnicos da sua profissão”.167 O capitão Cândido Mariano efetivamente se articulou, “se virou”, no linguajar da caserna, tanto que conseguiu reverter parcialmente a transferência, em vez do Ceará, foi designado então para o 15° BI, com sede em Belém (PA)168. Porque ainda estivesse irrealizado seu melhor intento, o de conciliar sua permanência na Força Terrestre servindo em Manaus, meca dos demarcadores de terras, estando na sede do 1° DM, encaminha ao Ministério da Guerra um requerimento em conjunto, ou seja, em que “respeitosamente solicitam de V. Exa., troca dos Corpos a que pertencem”.169 A 5 de dezembro, o general Sólon Ribeiro informa que “não acha inconveniente algum em serem atendidos” antes de, como de praxe, submeter o recurso ao escalão superior. Na véspera do Natal, ao encaminhar o recurso ao ministro da Guerra, o chefe da Repartição do Ajudante-Geral contradiz, quando assinala que “os peticionários não apresentaram motivos plausíveis que tornem necessária tal permutação”. Prontamente bastou ao Ministro uma palavra: Indeferido; e uma data: 28.12.1898; e sua assinatura concisa: Mallet. Estava concretizada a justiça solicitada na preliminar, Mariano deveria seguir no corpo sediado na capital paraense. Quiçá o malogro da operação “troca de corpos” tenha estimulado Mariano a obter licença para tratamento de saúde por noventa dias, quando inspecionado na sede do 1° Distrito.170 No ano imediato, ainda enfermado, ele foi convocado à Capital Federal (Rio) a fim de ser inspecionado pela Junta Superior de Saúde, visto que, a 8 de março, no Amazonas, ao ser novamente inspecionado foi julgado incapaz para o serviço do Exército. Apesar de pesquisas empreendidas, não me foi possível conhecer o resultado desta inspeção superior. Constrangido pelo indeferimento à solicitação de transferência funcional decidido pelo general Nepomuceno Mallet, ministro da Guerra (e seu antigo comandante na Escola Militar do Ceará), o capitão Cândido José Mariano solicita demissão do serviço. Consultado o almanaque de oficiais do Exército relativo ao exercício de 1899, encontrei observado a lápis: DEMISSÃO. Diante desse entrevero e, especialmente, da decisão do comandante da Força Ter167  Diário Oficial Estado. Manaus, 15 de Janeiro de 1897. Telegrama de 6 de Janeiro de 1897. 168  Ordem do Dia n° 970, de 25 de Outubro de 1898. 169  Requerimento de 3 de Dezembro de 1898, assinado em conjunto com o capitão Fortunato de Sena Dias, do 36° BI, sediado em Manaus. “Troca de corpos” significava o mesmo que de batalhões. 170  Ordem do Dia n° 981, de 20 de Dezembro de 1898, publicando o laudo de inspeção de 2 de Dezembro.

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restre, um amargurado Cândido assegura que “foi perseguido pelo general Mallet, quando ministro da Guerra, por ter sido um dos mais fervorosos legalistas no governo do marechal Floriano Peixoto”. Com efeito, compulsando o acervo do Arquivo do Exército relativo ao ex-capitão, entendo que é justíssimo anuir com sua assertiva, afinal o ministro da Guerra deliberou contra opiniões unanimemente favoráveis ao requerente. Daí vem a motivação de Mariano em assim rematar a narrativa: “desgostoso e enfermo, obtive, com grande dificuldade, exoneração em julho de 1899”.171 A partir dessa data, torna-se unicamente o engenheiro, ou melhor, o Dr. Cândido Mariano, de onde provém o entendimento sobre o decreto concessivo das honras policiais militares a ele concedidas, sobre as quais tratarei em seu devido tempo. *** No limiar do século XX, a população manauense era estimada em 52 mil habitantes. A valorização da borracha produzia uma corrida espantosa de latifundiários ao interior do Amazonas, em busca de gigantescas áreas de seringais, todavia, a legitimação de qualquer terreno dependia de demarcação promovida por perito licenciado. A despeito do reduzido contingente populacional, próximo de 70 peritos (incluídos engenheiros civis e militares, agrimensores e licenciados para tal finalidade) estavam autorizados pelo Governo ao exercício profissional, entre os quais Cândido Mariano, que fez fortuna com esse mister. Mariano, em Manaus, sempre residiu em “casa alugada” à Estrada de Epaminondas. Ali nasceram os filhos e, nesse endereço, permanece até a transferência da família para a Capital da República, em 1905. Anotações jornalísticas confirmam o pressuposto, pois, às vésperas de marchar para Canudos, um “pequeno” jornal 172 informava o endereço de Mariano, além de confirmar seu emprego nas obras públicas. Na virada do século, o diário oficial173 não só ratifica o endereço, que apenas muda a numeração, como declina o nome do proprietário (José Pereira Tavares Retto). No domingo de Ramos de 1905, quando Mariano, já nomeado prefeito de Sena Madureira (AC), chega a Manaus, o Jornal assim descreve o desembarque: Chegou ontem do Rio de Janeiro, a bordo do São Salvador, o Dr. Cândido José Mariano, prefeito do Alto Purus. Ao desembarque do estimável e ilustre engenheiro acudiu crescido número de amigos, que foram rece171  A publicação ocorreu em Ordem do Dia n° 23, de 4 de Julho de 1899. 172  O Rio Negro. Manaus, 28 de Julho de 1897. Mariano, “diretor das Obras Públicas, mudou a sua residência para a Estrada de Epaminondas, 7-A”. 173  Diário Oficial do Estado. Manaus, 1° de Setembro de 1902.

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bê-lo em lancha especial, acompanhando-o até sua residência, à Estrada de Epaminondas, 11. (…) Ontem mesmo, perante o comando do 1° Distrito Militar, assumiu o exercício de seu cargo.174

Como de praxe, providências administrativas muito ocuparam a Mariano nesta Capital, daí que, somente em 24 de maio, “seguiu na lancha 24 de Janeiro com destino ao Alto Purus”. Também como era protocolar, “o Dr. Cândido Mariano despediu-se, ontem, do governador do Estado”.175 No ano seguinte, vindo do Alto Purus com passagem para o Rio de Janeiro, Mariano já se hospeda no hotel Casina; e como viajava para visitar a família, tem-se comprovada a mudança desta, neste interregno. Outro jornal da Cidade detalha a recepção e aproveita para descrever com tintas vivas as virtudes do administrador do Alto Purus, comparando seu faustoso governo com o dos demais departamentos. Para melhor coroar o visitante, o jornalismo assaca contra o prefeito do Juruá, “o mentecapto” Gregório de Azevedo. Mariano, certamente, deixara na capital do Amazonas uma legião de admiradores, mas seguia conquistando outra.176 A página igualmente exprime sua opinião sobre a criação da “imoralidade constitucional a que se deu o nome de Território do Acre”. Embora fosse uma surpresa a chegada a esta capital do estimado cidadão, (...) no hotel Casina, onde se acha hospedado. Cândido Mariano aguarda aqui o primeiro vapor do Lóide a fim de seguir para o Sul em visita a sua família, que não vê há mais de um ano, e para fazer uma ligeira operação de que necessita a sua saúde alterada. A ninguém é lícito duvidar do modo pelo qual nos temos batido, e continuaremos a nos bater pela imoralidade constitucional a que se deu o nome de Território do Acre. É esse um terreno do qual jamais nos afastaremos. (...) se nessa coisa a que chamam Território do Acre tivesse prefeituras dirigidas por homens do valor moral e intelectual de Cândido Mariano, muita tolice, muita asneira não teria vindo à tona, desmoralizando o governo que as inventou.

Os amigos almoçaram com ele no hotel Casina, entre outros, o coronel Ricardo Fernandes, comandante do Distrito, Emilio Ribas (seu cunhado), da firma Ribas & Cia., e jornalista Dr. José Gayoso. Houve brindes entre os convivas, e 174 Jornal do Commercio. Manaus, 23 de Abril de 1905. 175 Jornal do Commercio. Manaus, 24 de Maio de 1905. 176 Jornal Amazonas. Manaus, 29 de Abril de 1906.

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este “brindou ao prefeito do Purus”, esclarecendo que o Amazonas “jamais tivera de referir-se a sua administração senão para trazê-la como exemplo às demais prefeituras e mostrar a harmonia existente entre ela e o Estado do Amazonas”. Mariano seguiu para o Rio, acompanhado do secretário, tenente Rego Barros, e seu irmão, Antônio Mariano. *** Prossegue exercitando a profissão “em serviços de demarcações de terras no interior do Amazonas, a fim de ganhar o sustento meu e de minha família” e mais, convicção pessoal, na Diretoria de Obras Públicas, subordinada ao Departamento da Indústria, onde servia desde a comissão em Canudos.177 Empossado o governador Silvério Nery (1900-04), a administração do Amazonas experimentou ampla reforma; Mariano, contudo, foi mantido na chefia da Diretoria de Obras Públicas. Ao mesmo tempo, passou a responder pelas secretarias de Justiça e do Interior, razão pela qual subscreve a própria lei que autoriza a reforma enunciada. A despeito de abrangente pesquisa, não mais deparei com dados sobre o homenageado ou pessoa de sua família. Há uma ausência lamentável, inexplicável até para quem exercia atividades profissionais e residia na Cidade. Em conversa com Dona Lucy Mariano, todavia, soube que seus pais viajaram a Europa, como era comezinho no verdor da belle époque, embarcando em porto sempre apinhado de navios estrangeiros. No Velho Mundo, o casal permaneceu cerca de um ano em visita a diversos países, demorando-se na Suíça junto à família da sogra Paquet. Aproveitou ainda do ensejo para medicar-se da enfermidade acometida quando engajado no serviço militar. O custeio da turnê representa controvertida questão na biografia de Mariano, pois se diz a boca pequena que foi patrocinada pelo governo do Amazonas, em retribuição aos serviços prestados ao Estado quando combateu os partidários de Antônio Conselheiro. Acerca da querela, refletindo todavia sobre duas passagens de vida, registro meu testemunho: a primeira vem do próprio Mariano,178 quando sublinha no Rela177  Extraído do Diário Oficial do Estado. Manaus, 28 de Agosto de 1897. Sr. Dr. Chefe do Departamento da Indústria. Para vossa ciência e governo declaro-vos que o Dr. Cândido José Mariano deverá ser substituído na Diretoria de Obras Públicas, pelo auxiliar da mesma repartição, engenheiro Antonino [Carlos] de Miranda Corrêa, que servirá em comissão durante o impedimento daquele funcionário. 178  Cândido José Mariano. Relatório... obra citada, p.16.

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tório, que teve 40:000$000 (quarenta contos) de réis, disponibilizado pelo Estado “para quaisquer despesas imprevistas com o Batalhão durante a sua ausência do Amazonas”. Apenas foi despendida a quantia de 14:473$000, restando, pois, a quantia de 25:527$000. Esta quantia foi devolvida ao Tesouro, depois de “processada devidamente pelo Tesoureiro, para poder dar quitação a quem de direito”. À propósito, saliento que a campanha nos sertões baianos não era seu batismo de fogo, combateu aos conselheiristas animado pelo seu patriotismo. Acresce a essa empresa seu acendrado amor pela República, descrito inúmeras vezes e de forma contundente. Tudo isso constitui, prontamente, valores militares e morais capazes de desestimular Mariano a cometer essa indignidade. A segunda passagem: o pagamento “ao coronel (da Guarda Nacional) Rafael Machado, de ajuda de custo para, em comissão, estudar na Europa a organização das milícias policiais”.179 Valor da sinecura: 15.000$000 (quinze contos de réis)!. Machado era simples lente de esgrima do Ginásio Amazonense que, ao tempo da Campanha de Canudos, comissionado capitão do 1° batalhão, se tornou “companheiro de barraca” do comandante. Machado e Demétrio de Mello Oliveira constituem os beneméritos patriotas que, espontaneamente partiram de Manaus, “com as forças do Amazonas e souberam honrar o nome deste glorioso Estado”. A tal “espontaneidade”, no entanto, foi regiamente ressarcida por bom número de prêmios, um dos quais elege Machado ao Congresso Estadual, como deputado. Acredito piamente que para este houve uma reparação pelos “relevantíssimos serviços prestados à República e ao Batalhão”.180 O açodamento do Governo Estadual em premiar um único membro da tropa, no dia imediato ao regresso, é bem característico. Nenhuma estranheza cabe, todavia, porque semelhantes benefícios ocorreram tanto na tropa paraense quanto paulista. Sim, acerca da comissão europeia de Machado, nada foi revelado que tenha contribuído para a segurança pública estadual. Com esses argumentos, descreio que Cândido Mariano tenha se locupletado da verba destinada ao suporte da campanha bélica. Agora sim, perante fartíssimos regalos patrocinados com dinheiro público naquela quadra política amazonense, sou partidário de que o casal foi contemplado com a viagem à Europa. Apesar de carência de provas, delato. 179  Ofício n° 131, datado de 12 de Abril de 1907. 180  Extraído do Diário Oficial do Amazonas. Manaus, 10 de Novembro de 1897. Atos Oficiais: Dia 9 - Foi nomeado o cidadão Rafael Machado para, efetivamente, exercer o cargo de professor de ginástica, esgrima e evolução militares do Ginásio Amazonense, conforme solicitou a congregação do referido Estabelecimento, como recompensa pelos relevantes e inolvidáveis serviços prestados à causa santa da República, nos sertões da Bahia.

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Demissão das Forças

Redigia este capítulo, quando a fortuna me trouxe às mãos o Balanço Definitivo do Tesouro do Amazonas (1897-1898),181 do qual transcrevo alguns modelares pagamentos: 4. Regozijo público Embandeiramento e iluminação das ruas para a recepção do 1º Batalhão

11:500$000

Pago a Manoel Napoleão Lavor, por tocatas

4:500$000

Embelezamento do quartel do 1° Batalhão

730$000

Gratificação ao Dr. Cândido José Mariano, pelo serviço de tombamento dos bens do Estado

3:000$000

Gratificação ao Dr. Cândido José Mariano

4:000$000

Despendido com o banquete oferecido no dia 11 de novembro à oficialidade da Polícia

8:000$000

Ornamentação e iluminação do prédio do Departamento da Indústria para a recepção do 1° Batalhão

1:610$000

Ano de 1898 Despendido com o TE DEUM pela terminação da Guerra de Canudos Pago por um terreno de d. Alice Ribas e d. Leonilia Ribas, na Avenida Major Gabriel

4:950$000 60:608$400

Quê objetar, à vista de tantas benesses do Estado? Afirmei acima que houve um prêmio para o combatente de Canudos e, por vias transversas, houve mesmo. E de adequado tamanho. ***

181  Elaborado pelo inspetor Irineu Álvares Muniz. Manaus: Palais Royal, 1900. Acervo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA).

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Honrarias do Regimento

CAPÍTULO XI

HONRARIAS DO REGIMENTO

Num preito de imorredoura gratidão à memória daqueles que pereceram nos campos de batalha, pensando que estavam nos legando um mundo melhor, a minha humilde prece. Paulo Pinto Nery, governador do Amazonas, 1982 106


Honrarias do Regimento

A deferência a Cândido Mariano na corporação militar amazonense, não se restringiu unicamente à ocasião do regresso da tropa. Embora, por motivo que não me foi dado descortinar, tenha ocorrido substancial hiato de mais de seis décadas nos registros à memória do consagrado combatente, esses renovados encômios foram amplamente expressos no último quartel do século findo. A propósito, quando escrevia estas notas nada havia encontrado nos arquivos da Polícia Militar sobre o falecimento dele que – agora desvendei – ocorreu no Rio de Janeiro. Mais que incensos, esta retrospectiva pretende apenas restaurar a figura do homem campeador e alicerçar a reverência da corporação militar pelo comandante de muitas liças, em especial a de Canudos. Para alcançar este objetivo, reproduzo todos os editos e assinalo os desdobramentos, inclusive as concessões conhecidas a participantes da campanha. É obvio que o nome do comandante foi o mais festejado. Assim, descerrando a série de honrarias, convém lembrar a escolha de seu nome para identificar uma das ruas de Manaus; também merece registro a resolução concessiva de honras policiais militares pela condução da tropa. Enfim, os demais que a corporação editou até nossos dias, quando a campanha alcança onze décadas. A respeito do Decreto182 (municipal) n° 6, de 10 de Novembro de 1897, nem a mais ampla e determinada pesquisa possibilitou-me copiar este documento, somente me permitiu identificar a origem. A indicação partiu de José da Costa Moura Tapajós, intendente (vereador) da Capital, que, para homenagear os combatentes chegados de Canudos, solicitou que “sejam suspensos os trabalhos da presente sessão da Intendência”. Todos correram à praça para as ovações. E, dessa forma, Tapajós sustentou a homenagem: a inserção em ata, “em nome do povo, um voto de congratulações com os vitoriosos soldados amazonenses, pela terminação da luta em Canudos”.183 Ao tempo, a presidência da Intendência era exercida por Raymundo Afonso de Carvalho, coronel do Regimento Militar estadual.

182 Diz respeito à aposição de seu nome em artéria central de Manaus. Apesar de algumas controvérsias, a memória vem sendo preservada. Para mais detalhes: Mário Ypiranga Monteiro. Roteiro histórico de Manaus, v.1. Manaus: Edua, 1998. 183  Mário Ypiranga Monteiro. obra citada, p.129.

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Não somente a Força estadual esqueceu Cândido Mariano, a municipalidade também. Fruto desse esquecimento, a rua teve o nome mudado para Sete de Dezembro. Em momento oportuno, retomou a designação e ainda a mantém, embora a saudosa lista telefônica sistematicamente confundia seu nome com o do marechal Cândido Mariano Rondon. A urbanização da rua Cândido Mariano, que se localiza no Centro, começando na rua Visconde de Porto Alegre e terminando na rua Jonathas Pedrosa, ampliou sua importância viária. As mais recentes modificações realizadas pelo governo estadual aumentaram a visibilidade da artéria. Nela, sob o n° 214, esteve funcionando um arremedo de Hospital da Polícia Militar, cujo prédio em nossos dias (desde março de 2009) se encontra em ruínas. A primeira contribuição legal para os participantes da Campanha de Canudos, transcrita a seguir, ocorreu dois meses depois da chegada da tropa, em 8 de novembro. Lei n° 187, de 22 de janeiro de 1898. Autoriza o Governador do Estado a conceder uma pensão às famílias dos oficiais e praças da Força Pública, falecidos em Canudos. Art. 1° - Fica concedida a pensão mensal de 150$000 réis às viúvas, mães ou filhos menores dos oficiais, e de 80$000 réis, às dos soldados, falecidos em Canudos, ou em consequência de ferimentos ou moléstias ali adquiridos. Parágrafo único - A pensão será paga desde a data do falecimento de oficial ou praça, e na sua concessão e duração serão observadas as disposições que regem o Montepio dos funcionários públicos do Estado. Fileto Pires Ferreira - Governador do Estado

Esta lei estabelecia pensão mensal diferenciada para os dependentes de oficiais e de praças, porém, de alguma sorte acolhia os dependentes dos mortos na campanha ou em consequência de ferimentos ou ainda de enfermidades ali adquiridas. Deve ter sido constrangedor para a autoridade concedente, porém, como atender aos combatentes que “correram” da luta? De que maneira satisfazer àqueles que por desconhecida motivação optaram por abandonar a missão, como mistifica Mariano em seu Relatório, ao denominar os “fugitivos” de extraviados. Como a autoridade acudiu as viúvas desses extraviados? De certo, como quase sempre ocorre no País, com a boa vontade da administração, auxiliada pelo jeito brasileiro. Outro pormenor constrangedor: o amparo às concubinas. Um caso emblemático aconteceu em maio de 1898, quando a companheira do falecido capitão 108


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Talismã Floresta (único oficial morto na campanha) foi beneficiada. Outros combatentes tiveram melhor sorte, como o sobrevivente capitão Olímpio Catingueira, que obteve por moléstia adquirida o benefício legal. Lei n° 189 de 26 de janeiro de 1898. Aprova os Decretos do Poder Executivo. Art. 1° - Ficam aprovados os Decretos do Poder Executivo, pelos quais foram considerados subsistentes os atos baixados pelo tenente-coronel Cândido José Mariano, comandante do 1° batalhão de infantaria do Estado, durante o tempo em que esteve em defesa da República, nos sertões da Bahia; e nomeados os cidadãos Aristides Emídio Bayma e Rafael Machado para os cargos de professores das aulas de música e ginástica do Ginásio Amazonense. Fileto Pires Ferreira - Governador do Estado

Em documento encaminhado ao Governo Estadual, conclusa a campanha canudense, o comandante Mariano informa os atos administrativos praticados, salientando as promoções à classe de oficiais. A lei vem, pois, referendar os despachos decorrentes da atuação em tempo de guerra. Todavia, como soe acontecer ainda em nossos dias, o governante aproveitou para encaixar alguns “jabutis”, alguns benefícios endereçados aos mais afortunados ou mais “chegados”. Há no jargão militar um termo que talvez seja mais loquaz: aos “peixes”. Nery agracia dois combatentes, e lembrarei deste par em tópico mais favorável. Decreto n° 237, de 13 de abril de 1898. Aprova o crédito necessário para ocorrer neste exercício ao pagamento das pensões concedidas pela Lei n° 187, de 22 de janeiro de 1898. Art. 1° - Fica aberto o crédito necessário para ocorrer neste exercício ao pagamento das pensões concedidas pela Lei n° 187, de 22 de janeiro de 1898, às viúvas, mães ou filhos menores dos oficiais e praças falecidos em Canudos ou em consequência de ferimentos ou moléstias ali adquiridas. José Cardoso Ramalho Junior - Governador do Estado

O decreto vem unicamente regulamentar a legislação anterior, pois, no Amazonas de antanho o governo dispunha de um Tesouro abastecido, mas, ainda desse modo, necessitava legalizar a despesa. 109


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Lei n° 235, de 26 de setembro de 1898. Autoriza o Governo do Estado a mandar contar em dobro aos oficiais da Força Pública do Estado, para efeito de reforma, o tempo que estiveram em serviço militar em Canudos. Art. 1° - Fica o Poder Executivo autorizado a mandar contar em dobro aos oficiais da Força Pública do Estado, para efeito de reforma, o tempo em que estiveram em serviço militar na expedição de Canudos. José Cardoso Ramalho Junior - Governador do Estado

Essa medida administrativa era compatível com semelhante adotada para a tropa federal, aliás, muito comum desde a campanha cisplatina. Por incrível que pareça, ainda hoje segue aplicada com variantes aos militares participantes em situação de conflito, mesmo que seja intitulada de missão de paz, e outras. Observação, cabia apenas aos oficiais, questão de legislação. O período, por obviedade, estende-se de 4 de agosto a 8 de novembro de 1897. Lei n° 312, de 1° de setembro de 1900. Autoriza o Poder Executivo a conceder honras militares aos oficiais e praças do Regimento do Amazonas. Art. 1° - Fica o Poder Executivo autorizado a conceder honras militares do Estado aos oficiais e praças do Regimento do Amazonas, que se tiverem distinguido nas lutas de Canudos, nos sertões da Bahia. Art. 2° - Para perpetuar a memória dos valentes soldados que sucumbiram naquelas cruentas lutas, fica o mesmo Poder autorizado a mandar erigir um monumento em qualquer cemitério da República. Silvério José Nery - Governador do Estado

Esta lei bem que poderia ser alcunhada de Cândido Mariano, pelo beneficiamento que prestou ao nominado, não fora a carona que seu secretário pegou quando da aplicação da mesma. Explico-me: o edito contemplou apenas o biografado e o seu ajudante, Rafael Machado, como se verá. Bem curioso, porém, é que ambos eram estranhos à Polícia Militar, um, devido sua procedência de militar federal, o outro, como civil e voluntário. No entanto, diversos oficiais foram promovidos sob o único requisito da participação na campanha de Canudos. Decreto n° 548, de 1° de fevereiro de 1902. Concede as honras do posto de Tenente-Coronel do Regimento Militar 110


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do Estado ao engenheiro Dr. Cândido José Mariano. Atendendo aos atos de bravura e abnegação patrióticas postos em ação pelo engenheiro Dr. Cândido José Mariano, quando nos sertões da Bahia, como comandante do 1° Batalhão de Infantaria das forças deste Estado, auxiliou a extinção da luta de Canudos, cooperando para o restabelecimento da paz e da estabilidade da instituição republicana. Art. Único - Ficam concedidas as honras do posto de Tenente-Coronel das forças do Estado ao engenheiro Dr. Cândido José Mariano, devendo-lhe ser expedida a competente patente, independente de pagamento de selo; revogadas as disposições em contrário. Silvério José Nery - Governador do Estado

O tempo ou o vento deve ter obnubilado o comando da Força Policial do Amazonas, quando este deixou, sem mais nem menos, de cumprir esta resolução. A instância segue oportuna para o restabelecimento da honraria, basta incluir o agraciado com destaque em almanaque de oficiais, ou proclamar em boletim, ou apregoar no site da corporação, mais politicamente adequado. Ou ainda, concretizar essas proposições. Mais de seis décadas depois da concessão de Silvério Nery, quem sabe devido ao desempenho do Governo Militar, os preitos foram retomados, iniciando-se pela retomada do nome da rua. Lei (municipal) n° 868, de 9 de junho de 1965. Modifica a denominação da Rua 7 de Dezembro, para o seu primitivo nome. Art. 1° — A denominação da atual Rua 7 de Dezembro passa a ser de coronel Cândido Mariano, seu primitivo nome. Vinícius Monteconrado Gomes - Prefeito de Manaus

À propósito desta determinação, translado excerto da crônica de Genesino Braga (1906-85), intitulada Ao bravo de Canudos.184 Mantendo alçada a memória de seu soldado excelso, o grande Cândido Mariano, a Polícia Militar do Amazonas perfilou-se em continência a uma pequena rua isolada do brouhaha do centro mercante internacional de Manaus, e ali fez repor, entre hinos e clarinadas de exaltação cívica, as placas com o nome de seu bravo comandante em Canudos, que haviam sido ilegal e 184  Jornal do Commercio. Manaus, 7 de Abril de 1974.

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solertemente por outras substituídas, (...) Cândido Mariano — o celso nome que voltou a honrar esta cidade numa de suas ruas, quando já deveria estar perpetuado no bronze a sua figura de bravo (cadê a estátua de Ajuricaba, de Lobo d’Almada, de Eduardo Ribeiro?...) — Cândido Mariano, dizíamos, conduzira a vitórias sucessivas como seu tenente-coronel comandante, o 1° Batalhão de Infantaria da Polícia Militar do Amazonas, que se fora incorporar às Forças Expedicionárias Federais de extermínio à rebelião dos fanáticos de Antônio Conselheiro, em Canudos, no sertão da Bahia. (...)

Dito por quem possuía autoridade para tanto, ingressa-se no período em que a Polícia Militar direciona sua visão para a premiação do mérito de tantos policiais e civis. A fim de formalizar o sentimento, estabelece três medalhas, entre essas, a cognominada Cândido Mariano que ainda, em nossos dias, dignifica os agraciados. Decreto n° 892, de 21 de abril de 1967. São criadas as Medalhas Tiradentes, Cândido Mariano e Tempo de Serviço, para premiar os militares da Polícia Militar. Arthur Cézar Ferreira Reis - Governador do Estado

Nos fastos da sesquicentenária Polícia Militar, este edito estabelece as primeiras comendas. Aproveito, todavia, a oportunidade para assinalar que, ao tempo dessa iniciativa, a instituição suportava o predomínio da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), responsável, no Governo Militar (1964-85), pelo controle sobre as instituições congêneres. De tal maneira se constituía a imposição, que a Polícia Militar do Amazonas esteve sob o comando de um capitão.185 Outra injunção: o controle da IGPM também procedia com a estrita observância de “manuais” abrangentes, disciplinando cada atividade policial militar, todavia, estabelecidos para as Polícias Militares de forma similar. Não importava a dimensão da corporação, pois, todas indistintamente se regiam por esse autêntico pacote, alcunhado de amarelinho devido a coloração indefectível da capa. Em cumprimento a essa orientação, foram cunhadas e distribuídas as primeiras medalhas da PMAM, na data de Tiradentes, Patrono das polícias brasileiras. Decreto n° 1854, de 2 de setembro de 1970. Cria o 2° Batalhão de Polícia Militar - Batalhão Cândido Mariano. Art. 1° - Fica criado na Polícia Militar do Estado, o 2° Batalhão Poli185  Capitão EB Hernany Guimarães Teixeira (1966-67) que, para o exercício do cargo, foi comissionado coronel.

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cial Militar, destinado a orientar e fiscalizar todos os Destacamentos dos municípios do estado do Amazonas. Art. 2° - O referido batalhão receberá o nome de Cândido Mariano, em homenagem ao coronel Cândido Mariano, a fim de que todos os integrantes da Polícia Militar do Estado cultuem a memória deste herói da Guerra de Canudos nos sertões da Bahia. Danilo Duarte de Mattos Areosa - Governador do Estado

O estabelecimento deste batalhão ampliou e buscou organizar o avanço policial militar pelo interior do Estado. Até então, o serviço de policiamento era realizado pelos Destacamentos, cuja organização já precaríssima reclamava ao menos uma variação. A mudança chegou ainda que de forma esdrúxula, pois, como poderia a unidade de polícia localizada em Manaus fiscalizar todos os destacamentos municipais? A esse tempo amazônico, a melhor comunicação dependia do telégrafo, ou das emissoras de rádio com os “avisos para o interior”, para enfeixar os empecilhos, o transporte era realizado em “barcos de recreio”. O edito, que ainda vigora, valeu pela homenagem a Cândido Mariano. Não obstante a adjetivação tão imponderável de “herói”. O imperativo de melhor regular e estruturar o policiamento no interior do Estado, guiou o Governo Estadual a baixar este decreto. A ideia, verdadeiramente, era concretizar aquartelamento adequado em outros municípios, para isso, ocorreu a transferência do Batalhão Cândido Mariano, e a assinatura de outros decretos atinentes. Decreto n° 3422, de 21 de abril de 1976. Dá nova estrutura ao 2° Batalhão da Polícia Militar - Batalhão Cândido Mariano, e transfere sua sede. Art. 1° - Fica reestruturado o 2° Batalhão da Polícia Militar - Batalhão Cândido Mariano - na forma prevista na Lei n° 1143, de 1° de setembro de 1975, e transfere sua sede para a cidade de Itacoatiara, com suas companhias sediadas em Itacoatiara, Parintins e Humaitá. Henoch da Silva Reis - Governador do Estado

Sob o comando do coronel EB Mário Perelló Ossuosky, a Polícia Militar do Amazonas – marcadamente em 1976 – experimentou a implantação de seu corpo

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de leis básico.186 Outro fato marcante foi a expansão pela hinterlândia, tendo sido o 2° BPM o primeiro a ser aquartelado em cidade do interior, no vizinho município de Itacoatiara. Transferido sem os procedimentos devidos, teve que ocupar por anos um edifício impróprio para sua destinação (havia sido uma casa religiosa), até que, em 30 de abril de 1981, a cidade assistiu a transferência do Batalhão Cândido Mariano para o quartel construído para tal fim, situado à rua Benjamin Constant, 2821, no bairro de São Jorge, aonde se encontra. Decreto n° 3396, de 31 de março de 1976. Fica criada a Medalha Cândido Mariano, para premiar aos policiais militares da ativa da Polícia Militar do Amazonas, que no cumprimento do dever hajam-se distinguido por atos pessoais de coragem e bravura. Henoch da Silva Reis - Governador do Estado

Alterado pelo decreto nº 7.031, de 24 de fevereiro de 1983, decorrido algum tempo, a Força Policial ajustou o propósito de cada condecoração, daquelas criadas em 1967. Tornou, em especial, mais peremptório o intento da medalha consagradora do comandante da tropa em Canudos. Ao ser estabelecida, a condecoração cabia exclusivamente no uniforme de policiais militares, todavia, desejosa de premiar outras autoridades, tanto civis quanto militares, a corporação efetuou a correção no texto legal. Daí, o grande número de agraciados com a Cândido Mariano. Quando do centenário de Canudos, em 1997, a comissão organizadora dos festejos na PMAM efetivou uma adequação nesta medalha, denominando-a de Palma de Cândido Mariano. O intuito era galardoar o maior número possível de personalidades, destacando-se o pessoal policial militar amazonense. O coronel Wilde Bentes, comandante-geral, bem que se animou em concretizar o programado, mas esbarrou no governador Amazonino Mendes que, de fato, selecionou os agraciados. Entes esses, um bispo católico, uma fornecedora de bufê e uma diretora de jornal. Nenhum Policial Militar do Amazonas! A honraria que se segue é altamente expressiva, creio não existir reconhecimento maior que este, tanto para a Corporação quanto para os homens e mulheres que a integram: a configuração no pavilhão estadual do sangue derramado em defesa do Estado. O pavilhão estadual estabeleceu uma relação direta com Canudos, a despeito da luta fratricida, ao consagrar a vitória contra os conselheiristas. Seja qual for a interpretação oferecida para tanto desequilíbrio despendido pelas Forças Militares contra o pessoal do Conselheiro, desde Canudos nunca mais se ouviu o lamento separatista de seus filhos. 186  Para mais informações: Roberto Mendonça. Digesto (1837-1990). Manaus: Imprensa Oficial, 1993, pp.105-08.

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Lei n° 1513, de 14 de janeiro de 1982. Dispõe sobre a forma da Bandeira Estadual Art. 1° - A Bandeira do Estado do Amazonas terá a forma e as características estabelecidas por esta Lei. (...) Art. 7° - A feitura da Bandeira Estadual obedecerá às seguintes regras e formas de modelo anexo: (...) VI - No retângulo azul, serão aplicadas 25 (vinte e cinco) estrelas, em prata, simbolizando o número de municípios do Estado, existentes em 4 de Agosto de 1897, e significando o momento histórico do embarque das Forças Militares do Amazonas para lutar em Canudos. José Bernardino Lindoso - Governador do Estado

Obviamente, dia 8 de Novembro, rememorativo do retorno de Canudos, possui altivo significado. Reverenciado ano após ano, relembra o passado de lutas e de louros da corporação, e o comprometimento com a consolidação do bem comum inerente a todo policial militar. Inegavelmente, a atuação policial militar em Canudos alicerça o destemor e a abnegação pelo serviço. Decreto n° 7029, de 24 de fevereiro de 1983. Inclui o dia 8 de novembro no calendário das Datas Festivas da Corporação. Considerando a gloriosa participação da Polícia Militar do Amazonas na Campanha de Canudos; Considerando que a 8 de novembro de 1897 retornava ao Amazonas, a heroica Unidade Policial da Corporação, coberta de glórias aclamação popular. Art. 1º Fica incluído no calendário da Polícia Militar do Amazonas, o dia 8 de novembro, como Data Festiva. Paulo Pinto Nery - Governador do Estado

A mudança de normas para concessão de medalhas é inerente à evolução dos costumes. Essa alteração, porém, visou atender mais a veleidade do então comandante-geral que, ávido por distinguidas condecorações em âmbito nacional, ampliou a gama de situações para a outorga desta regional. Em resumo: o primordial objetivo era atender a inúmeros pretendentes. Porém, para que tantas medalhas? “A coisa não tem nexo”, retruca o coronel Satys. “O abastardamento das insígnias tornou-se um fato corriqueiro, e infelizmente o gesto da concessão não tem caráter 115


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e natureza seletiva. Nesse caso, a comenda perde o sentido à medida que aumenta o lote dos agraciados”, remata o miliciano mineiro.187 Decreto n° 7031, de 24 de fevereiro de 1983. Altera disposições do Decreto n° 3396, de 31 de março de 1976, e do Regulamento que lhe é anexo. Art. 1° — Fica instituída no âmbito da PMAM a medalha Mérito Cândido Mariano, destinada a premiar Policiais Militares que se hajam distinguido no cumprimento do dever policial-militar, na manutenção da ordem pública e da segurança interna, tenham prestado serviços desta-cados à Polícia Militar e contem, à época da outorga, mais de 20 anos de serviço público. (...) Art. 7° - Poderão também ser agraciados com a Medalha Mérito Cândido Mariano, além de Policiais Militares enquadrados no art. 1° do presente Regulamento, funcionários civis, a nível de Secretários de Esta-do, bem como oficiais de outras coirmãs e Forças Armadas, nos postos de tenente-coronel e coronel, contando mais de vinte e cinco anos de serviço público. Paulo Pinto Nery - Governador do Estado

Ocorreu, então, a criação da Ronda Ostensiva Cândido Mariano (Rocam), uma clonagem das Rotas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) operada pela congênere paulista; constitui um serviço de policiamento ostensivo com utilização de policiais com treinamento especifico e veículos equipados. Em Manaus, ainda em permanente atividade, a Rocam teve sua instalação e operacionalidade sob o encargo do Batalhão de Policiamento Especial (BPE). Encerrada a retrospectiva, é fácil verificar que as manifestações de apreço ao comandante Cândido Mariano permanecem claras, inequívocas. Nosso maior combatente em Canudos sempre esteve na reminiscência, nas honras de seus camaradas de farda, tanto o fardamento azul e encarnado da campanha conselheirista passando pelo tradicional cáqui, quanto o descartado “azulão” e o contemporâneo cinza. ***

187  José Satys Rodrigues Valle. Sua excelência, o coronel. Belo Horizonte: s.ed., 1994, p.27

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Inúmeras homenagens o Amazonas vem prestando ao condutor de sua tropa policial contra Canudos. Como a que a Força Estadual acaba de solenizar, crismando com o nome de Tenente-Coronel Cândido Mariano o 5º Colégio Militar da Polícia Militar (bairro). De grande valor é a Medalha Cândido Mariano, instituída em 21 de abril de 1967, destinada a premiar aos policiais militares. Posteriormente, sua eficácia foi estendida a civis de bom trato com a corporação. Após longa espera, e já na inatividade, ao autor deste foi-lhe outorgada a Medalha Cândido Mariano, consoante o Diploma exposto.

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CAPÍTULO XII

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O desempenho parlamentar de Cândido Mariano teve princípio em 1902, quando assumiu uma vaga de deputado no Congresso Estadual amazonense. A posse ocorreu em 8 de julho, na sessão preparatória, ocasião em que foi escolhida a mesa diretora, tendo a Casa Legislativa prosseguido sob a presidência do deputado Raymundo Afonso de Carvalho (coronel reformado da Polícia Militar). Na mesma sessão, o secretário da Casa, deputado Hidelbrando Luís Antony, leu o ofício da Intendência da Capital, que encaminhava o resultado da eleição de um deputado. Lido o ofício, examinados os documentos apensos, prontamente foi aprovado o processo e reconhecido o eleito. Na antessala, aguardava Cândido Mariano, o congressista eleito que, então, foi conduzido por comissão ao parlamento, onde “presta a promessa legal e toma assento na bancada”.188 Não obstante o extravio de grande parte do acervo da Assembleia Legislativa, causado pelo incêndio da Biblioteca Pública (1945), onde aquele Poder detinha a sede, ainda assim foi possível resgatar esparsas notícias sobre este parlamentar. O próprio deputado oferece as primeiras informações. Apesar dos serviços prestados ao Amazonas (em Canudos) e comissões profissionais, apenas uma vez fui eleito em cargo político, para completar o período de um deputado falecido [Bernardo Pio Corrêa Lima], por espontânea e generosa intervenção do senador Pinheiro Machado,189 junto ao governador coronel Silvério Nery.

Antes de prosseguir, desejo elucidar dois aspectos desta notícia. O primeiro diz respeito ao processo de eleição submetido às regras bem distin-tas das hodiernas. A 188  Diário Oficial do Estado. Manaus, 9 de Julho de 1902. 189  José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), senador pelo Rio Grande do Sul e vice-presidente do Senado, exerceu papel decisivo na política federal, a partir de 1898 até sua morte. Ao ocupar posições cruciais em comitês do Congresso, autêntico chefão do Senado, exerceu enorme poder entre os representantes eleitos pelos Estados menos poderosos, e, desse modo, tornou-se o grande articulador das transações políticas da era. Recebia os inúmeros políticos e amigos na famosa mansão que possuía no morro da Graça, Rio de Janeiro.

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que elegeu Cândido ocorreu, em 2 de março, juntamente com a de presidente e vice da República. A participação de eleitores era muito limitada, diante das restrições extremas; mas a indicação de correligionário ou a pressão de instituição prestigiosa muito contribuía. A apuração ocorria de forma manual e, considerando as distâncias amazônicas, o resultado era demorado. Tão dilatado que, a 15 de março, dados oriundos do município de Tefé indicavam que compareceram mais eleitores para a escolha do parlamentar que para a presidencial, ainda assim, não havia a totalização de votos. Assinalava somente a vitória do candidato Cândido Mariano. O mesmo periódico informa que, em Parintins, tanto o candidato a presidente (Rodrigues Alves) quanto o vice (Silviano Brandão) obteve 494 votos; já o candidato a deputado Cândido Mariano 492, dois a menos.190 Do mesmo modo, tal qual os candidatos presidenciais que não compareceram sequer a Manaus, Mariano teria visitado algum município? Não creio, pois constituía procedimento modelar de eleição de “carta marcada”, habitual à época. Bom, o processo se estendia por outras etapas, mas que não cabem discutir nesse trabalho. Necessito postar duas considerações sobre o pleito, por isso, começo divulgando o resultado final:191 Cândido Mariano, engenheiro, 11.150 votos; Dr. Mathias de Araujo Góes, médico, 32 votos; Cyrillo Leopoldo da Silva Neves, funcionário público, 5 votos; Coronel [GN] Julio Roberto, comerciante em Manacapuru, 4 votos; Dr. Raymundo Nery, engenheiro, 1 voto; e Raimundo Nunes Salgado, 1 voto.

Com exceção do candidato de Manacapuru, os demais residiam em Manaus. Excluído o eleito, como entender que os candidatos obtivessem uma votação tão ínfima, tratando-se de profissionais conhecidos e com vasta relação de amizades; ainda que não se empenhassem ou até não fizessem campanha política, é inadmissível tal resultado. Mesmo que se especule sobre as impugnações causadas pelas conhecidas “urnas emprenhadas”. Tenho a impressão de que unicamente participavam como figuração no pleito ou para formalizar a disputa, quando já se sabia em “quem votar” ou o nome do “sagrado”. Esse pensamento se consolida diante da afirmação do próprio eleito, quando destaca o substancial apoio político recebido do governador Nery e do senador Machado. 190  Diário Oficiai do Estado. Manaus, 15 de Março de 1902. 191  Anais do Congresso Amazonense, sessão preparatória de 8 de julho de 1902.

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O outro aspecto, diz respeito ao senador Pinheiro Machado. Para corroborar a análise, evoco um trecho da entrevista com dona Lucy Mariano. Ela me assegurou que seu pai era amigo deste legendário homem público, cuja casa, no Rio, frequentava “como se fosse de parente”. “Lembro-me de ter ido muitas vezes lá, em companhia de meu pai”, assegurou-me. Perscrutando documentos referente a 1902,192 arrecadei essas parcas notícias. A presidência como já listei cabia ao deputado Afonso de Carvalho. Outra nota: a instalação da legislatura ocorreu a 10 de Julho, presente o deputado Cândido Mariano, que assistiu a leitura da Mensagem do governador Nery. Esta data há muito se reporta a uma efeméride solene para o Estado, a libertação dos escravos no Amazonas, lavrada em 1884. O único resultado visível nos dias atuais, segue por conta da manutenção do nome da rua lateral ao Teatro Amazonas. Em 13 de julho, quando da eleição para as diversas comissões permanentes, o deputado Mariano foi eleito para a de Obras Públicas. Afinal, era engenheiro e havia dirigido por certo período a repartição encarregada do setor. A atuação parlamentar de Mariano não foi das mais exemplares, como se insere dos aludidos Anais. Nem foi bastante assíduo e, segundo dados alcançados, submeteu dois projetos de lei à apreciação do Congresso: um, que autorizava “o governo a doar um terreno de no máximo dois hectares às pessoas comprovadamente pobres”, ou seja, a eterna fórmula de deleitar particulares com os bens públicos. O outro, que tomou o n° 12, diz respeito “a construção do telégrafo sem fio, em todo o interior do Estado”.193 Diante das dificuldades enfrentadas em nossos dias, é fácil concluir pela impraticabilidade do mesmo. Resultado dos projetos: desconhecido. No entanto, há um projeto seu que foi transformado em lei, o que “autoriza o Poder Executivo a reorganizar as diretorias de Obras Públicas e Terras”.194 Ora, a leitura da ementa simplifica o entendimento de que se trata de plano de interesse do governo. Cumprindo dispositivo constitucional, em 10 de outubro, o presidente do Congresso, Afonso de Carvalho, encerra os trabalhos legislativos anuais (isso mesmo, a Assembleia funcionava entre julho e outubro). No encerramento, esteve presente o deputado Mariano. E, o presidente, em sua oração, agradeceu aos colegas congressistas os serviços prestados ao Estado e a colaboração recebida na condução dos trabalhos da Casa; finaliza externando votos de prosperidade a todos. 192  Diário Oficial do Estado. Manaus, 5 de Setembro de 1902. 193  Anais do Congresso Legislativo dos Representantes do Estado do Amazonas, 1902: acervo do IGHA. 194  Lei n° 380, de 11 de Agosto de 1902. Ver: Diário Oficial do Estado. Manaus, 13 de Agosto de 1902.

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Desse modo, estava encerrada a participação de Cândido Mariano no parlamento amazonense, resumida assim pelo próprio: “Fui um mau partidário e medíocre representante. Votei contra diversas questões políticas e situacionistas, principalmente as que se referiam às indenizações. Por isso não fui reeleito, como era de se prever”. Há, no amplo espectro político amazonense, uma historieta no mínimo interessante. Evoquei diversas vezes a entrevista com dona Lucy Mariano, outra vez mais me reporto a ela. Em nossa viagem no túnel do tempo, ela mencionou a quase candidatura do genitor ao governo do Amazonas. Julguei tratar-se de um delírio da entrevistada, pessoa de idade avançada, e porque eu não conhecia registro algum ou simples referência sobre o assunto. A informação aguçou-me a pesquisa, seria verdadeiro o lembrete filial? A continuada busca deu resultado satisfatório, ao deparar com um singelo relato em um periódico obscuro, que veio coroar a labuta pessoal e, acima de tudo, corroborar a lembrança da descendente do “candidatável”. A seguir, a nota: Jornal O ACRE - Ano I - número 6 Cidade de Xapuri, 1° de setembro de 1907 Redatores chefes: Francisco Conde e Justo Gonçalves da Justa Fatos e Notícias Consta-nos que o Dr. Cândido Mariano será o candidato apresentado pelo Dr. Constantino Nery para substituí-lo no governo do Amazonas.

Exclusivamente para situar o leitor no contexto cronológico: ao tempo desta publicação, o biografado exercia a direção do Departamento do Alto Purus (AC) (1905-10). Tenho convicção de que, para enfrentar a refrega eleitoral, Mariano disporia do patrocínio do senador Pinheiro Machado, homem forte da República, capaz de influenciar — para dizer pouco! — a escolha de dirigentes estaduais. Nesse aspecto, o senador já o “elegera” deputado estadual. Apesar de a história amazonense guardar com vivo dissabor a atuação desse caudilho gaúcho, pois, por sua inspiração os canhões das Forças Federais troaram sobre a nossa cidade, no lamentável episódio conhecido por Bombardeio de Manaus (1910). Lembro outro provável “eleitor” do candidatável: o Dr. J. J. Seabra que, ministro da Justiça (1902-06), possuía igual capacidade para contribuir com Mariano em sua pretensão. Embora com tão “pesados” apoios, a candidatura não prosperou, sequer houve a indicação. Menos de um ano depois (julho de 1908), é empossado

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no governo do Amazonas o coronel Antônio Bittencourt.195 Por um momento, uma digressão: se Cândido Mariano tivesse assumido o governo, certamente a história do Amazonas teria transitado por outros atalhos. Nada do Bombardeio de Manaus, ou a posse da Junta Governativa, sob a chefia de um oficial da milícia estadual, em dezembro de 1912. Se... contar-se-ia outra história. Novo acontecimento político, todavia, impeliu Cândido Mariano às barrancas da Amazônia. Trata-se da Questão Acreana envolvendo a república da Bolívia. Questão que, embora conclusa nos salões do Itamaraty, carecia de homens destemidos para sua consolidação. Certamente este e outros fatos inspiraram o ensinamento lapidar do general Rodrigo Octávio, “muito mais difícil, porém, foi a tarefa de nossos antepassados em conquistar e manter a Amazônia”.196 Cândido Mariano, tal como se verá adiante, será um respeitável protagonista. ***

195  Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, coronel da Guarda Nacional. Nasceu em Manaus, a 23.11.1853, e aqui faleceu em 03.03.1926. Foi deputado estadual por três mandatos e senador da República, em 1903. Pertenceu ao Partido Democrata, pelo qual foi eleito governador para o quatriênio 1908-12. 196  Rodrigo Octavio Jordão Ramos, general (1910-80). Exerceu o comando do Grupamento de Elementos de Fronteiras (GEF) e o Comando Militar da Amazônia (CMA), quando então cunhou este dístico.

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CAPÍTULO XIII

SENA MADUREIRA (AC}

Os estados amazônicos, enriquecidos, puderam proceder ao embelezamento de suas capitais e dotá-las de infraestrutura urbana invejável, em nada inferior às congêneres europeias. Antônio José Souto Loureiro 124


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A 7 de abril de 1904, o Governo Brasileiro, ainda que em detrimento de direitos constitucionais do Amazonas, criou o Território Federal do Acre, dividido em três Departamentos autônomos. Coube ao general José Siqueira de Menezes instalar, na condição de prefeito, o do Alto Purus.197 O general Siqueira Menezes, um dos protagonistas da Quarta Expedição so-bre Canudos, conduziu Cândido Mariano para auxiliá-lo na fundação e administração da cidade de Sena Madureira (AC), conforme registro em ata de fundação vulgarizada em diversas fontes.198 Aos vinte e cinco dias do mês de setembro do ano de mil novecentos e quatro da era cristã, décimo sexto da República, no lugar que então foi denominado de Sena Madureira, à margem esquerda do rio Yaco, afluente da margem direita do Purus, (...) presentes o excelentíssimo senhor general José Siqueira de Menezes, prefeito do Departamento do Alto Purus e mais pessoas que esta assinam, foi instalado o governo do mesmo Departamento. Assinados - José Siqueira de Menezes, general, prefeito do Alto Purus; (...) Cândido José Mariano, engenheiro militar.

A cidade de Sena Madureira, contrariando a predição de Williams Chandless (1829-96) sobre o povoamento amazônico, “foi plantada, no rio Yaco, para ser a sede do Departamento do Alto Purus e, que graças ao ouro negro, progrediu espetacularmente, em 15 anos; possuindo, então, uma boa estrutura urbana, porto movimentado, luz elétrica, telégrafo, jornais, espetáculos teatrais, vida política e social intensas, comércio progressista e até uma linha de bondes”.199 197  Instalado em 25 de Setembro de 1904. Topônimo escolhido para homenagear a um dos bravos militares do Exército, tenente-coronel Antônio de Sena Madureira (Recife-PE 1841 – Rio-RJ 1881), que se distinguiu na Guerra do Paraguai (1865-70). Teve igualmente notável papel nos acontecimentos do período derradeiro do Império, sob a denominação de Questão Militar. 198  Diário Oficial do Estado. Manaus, 18 de Novembro de 1904; e Antônio Loureiro. A Gazeta do Purus. Manaus: Imprensa Oficial, 1981, p.69. 199  Antônio Loureiro, obra citada, 1981, p.19.

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No ano subsequente à fundação, esclarece o biografado: “fui nomeado por iniciativa do Dr. J. J. Seabra, Prefeito do Departamento, em 13 de março, cargo de que fui exonerado pela atual administração, a 3 de dezembro de 1910”.200 A última data refere-se ao decreto de exoneração, assinado pelo Chefe do Poder Executivo federal, cuja cópia vai transcrita. República dos Estados Unidos do Brasil. O Presidente da República resolve exonerar o engenheiro militar Cândido José Mariano do cargo de Prefeito do Departamento do Alto Purus. Rio de Janeiro, em três de dezembro de mil novecentos e dez, 89° da Independência e 22° da República. Hermes R. da Fonseca

Esclareço que pertence à lavra do prefeito Mariano a próxima comunicação, e diz respeito a recursos financeiros. Apenas por essa, pode-se aquilatar os valores recolhidos aos cofres federais, pagos principalmente pelos seringalistas locais. Convém, todavia, esclarecer que Sena Madureira desfrutou da abastança por três lustros e que, por esse clímax, sobreveio a disposição dos acreanos em “(re)conquistar a liberdade”. Quem pode arriscar, pelo pressuposto de que os recursos financeiros eram suficientes para construir um “império” em plena selva, como ambicionou o espanhol Luís Gálvez Rodriguez de Ária (1864-1935), “o imperador do Acre”. Assim Cândido Mariano relatoriava ao Ministério competente: Foi bastante satisfatória a quantidade de borracha e caucho despachada no ano próximo findo, pelos dois postos fiscais deste Departamento, e a qual atingiu o peso bruto de 2.148.095 (dois milhões, cento e quarenta e oito mil e noventa e cinco) quilos, sendo que, computando se a mesma pela pauta média de 5$500 o quilo, tem-se a sua importância total no valor de 11.814: 522$ (onze mil e oitocentos e quatorze contos, quinhentos e vinte dois mil réis), sobre qual a União arrecada [...] da percentagem de 18% que lhe cabe, como imposto de exportação nas alfândegas.201

200  Jornal do Comércio (RJ), de 9 de Agosto de 1911. Documento existente no Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 201  Relatório do Prefeito do Alto Purus, Cândido José Mariano, apresentado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em 24 de Janeiro de 1906.

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Deixei, propositalmente, o cálculo do tributo a cargo do leitor para que melhor possa, confrontando a despesa despendida pela União com o Departamento, avaliar o imenso superávit. Prossegue o autor do relatório, demonstrando que, com “a despesa orçada para o Departamento, calculada em 369:690$ (trezentos e sessenta e nove contos e seiscentos e noventa mil réis), pelos Ministérios da Fazenda e do Interior”, haveria uma renda líquida expressiva para o Tesouro Nacional. Não alcancei dados mais densos sobre a obra desenvolvida pelo prefeito Mariano no período em que dirigiu Sena Madureira. Todavia, a leitura de documentos aqui relacionados, especialmente neste capitulo, permitiu-me alinhavar alguns benefícios ali implantados. Assim, em 1905, primeiro ano de seu governo, criou duas escolas públicas para ambos os sexos, “as primeiras nesta região, desde seu povoamento, há cerca de trinta anos”; aprovou os estatutos da Sociedade de Beneficência e Caridade; estabeleceu as atribuições dos juízes de paz, criados pelo Governo Federal;202 determinou a área necessária para o patrimônio de Sena Madureira, da mesma forma que designou os nomes das ruas e praças da cidade (deplorável a substituição hoje ocorrida por nomes nem sempre condizentes). Em 1908, o Governo Federal instalou na cidade o Tribunal de Apelação,203 para atender a todos os departamentos; a administração dos Correios; a delegacia fiscal do Tesouro Nacional; e a delegacia da Agricultura. Sendo que, no domingo, 24 de fevereiro, a cidade prestigiou a circulação de seu primeiro jornal - O Alto Purus. A 1° de julho, Sena Madureira foi elevada à condição de cidade. O Alto Purus é órgão oficial da Prefeitura do Alto Purus e circulará aos Domingos. Recebe assinaturas para dentro e fora do Departamento por 30$000 anuais, 16$000 por semestre e 9$000 por trimestre. A correspondência e quaisquer publicações devem ser endereçadas até quinta-feira de cada semana à Redação de O Alto Purus. Para matéria particular de anúncios, notícias, colaboração, publicações a pedido etc. devem os interessados entender-se com os Sr. Álvaro Leitão e Dr. Samuel Barreira.

Este periódico divulgou diversos trabalhos de Cândido Mariano. Não apenas as matérias administrativas, também as opinativas do prefeito sobre assuntos diversos. Em uma muito especial, delineia a justificativa da implantação do território do Acre, assim como as vantagens financeiras advindas ao Brasil pela aquisição deste Território. Devido ao interesse histórico, este material jornalístico comporá um capítulo especial. 202  Decreto (federai) nº 5188, de 7 de Abril de 1904. 203  Decreto (federal) nº 6901, de 26 de Março de 1908.

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No Museu da Borracha,204 quando ali investiguei para esta retrospectiva, alcancei um mapa do município de Sena Madureira elaborado pelo prefeito Cândido Mariano. Datado de 1909, de certo é o primeiro mapeamento, nele estão delineadas as artérias e outros logradouros da cidade. Ao tempo desta pesquisa, entretanto, estava recolhido numa pasta imprópria para sua conservação, poderia ser danificado. Minha preocupação dissipou-se com a recente instalação do museu, agora cognominado de Governador Geraldo Mesquita, em sede própria. Em 1909, realizou-se naquele Departamento o Congresso Industrial Seringueiro,205 “num acordo direto dos proprietários de seringais e industriais interessados, poderiam esses assuntos ser prática e eficazmente discutidos”. Participou do encontro o delegado da Associação Comercial do Amazonas (ACA), em Sena Madureira, Dr. Geraldo Barbosa Lima. No encerramento do congresso, como ocorre em dias atuais, os participantes aprovaram “por unanimidade, a reivindicação do estabelecimento de uma lei de terras e da abertura de estradas de rodagem e de uma estrada de ferro entre Sena Madureira e a boca do [rio] Acre”. Os congressistas sugeriram ainda a instalação de “linhas telegráficas, a subvenção a linhas de vapor de viagem do Rio, Pará e Manaus”. E outros reclamos mais, que certamente ficaram no olvido do Governo Federal.206 Em um livrinho (assim, conforme consta na apresentação) editado, em 1929, pelos padres da Prelazia de São Peregrino, por necessidade do próprio ensino e para comemorar o Jubileu de Prata do município, recolhi duas lições. A primeira: “fundada Sena Madureira, não tardou que o Governo Federal, por sua situação geográfica, desse entender espontaneamente ser ela de fato a capital do Território, trazendo esta circunstância grande entusiasmo e emulação ao seu progresso”. No entanto, desde a implantação do Território existiu uma disputa sub-reptícia entre os departamentos pela primazia do governo acreano. Até que, em 1920, o Governo da República decretou a unificação administrativa do Acre para ser dirigido por um governador, e escolheu Rio Branco (antigo seringal Empreza) para capital do Território. Sena Madureira perdeu a primazia e sofreu por décadas os resultados do isolamento amazônico. Esta contenda parece bem expressa no editorial Em defesa da verdade, do jornal Acreano, que assinala: ”Na disputa pela autonomia do Acre, os acreanos acusam os puruenses. Qual foi o puruense que tombou nos combates aqui travados?” E mais 204  Instituído pelo decreto n° 30, de 03.04.1978, foi inaugurado em 05.11.1978. Hoje, denominado Museu da Borracha governador Geraldo Mesquita, tem sede própria à av. Ceará, 1177, no Centro. 205  No período de 8 a 22 de agosto de 1909, para discutir os problemas e as potencialidades econômicas da borracha. 206  Revista da Associação Comercial do Amazonas. 1908-1910. v.1-24.

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adiante: “Aquilo que concerne à estultícia e à ignorância extremas não nos causa pasmo; somente a nítida falta de escrúpulos e dignidades de supostos cavalheiros; os Srs. Cândido Mariano e Samuel Barreira, que certamente viram, ouviram, foram consultados e ainda votaram pelo elogio de si próprios e pela torpeza irrival (sic) do boato contra nós levantado”.207 Assim arremata o periódico de Xapuri (AC): “Toda a gente vê logo que o objetivo disso tudo fora todo individual: o Sr. Cândido Mariano quer ir flanar no Rio e, ao mesmo tempo, pleitear o lugar de governador do Acre, assim procurando justificar, como portador da Mensagem, esse seu imediato regresso a capital do país, e Barreira continua prefeito do Purus”. Outro contemporâneo periódico - Folha do Acre, em sua edição inaugural, tratando da autonomia assinala em editorial: Vem de longa data a patriótica campanha de reabilitação do Acre, empreendida pelo nosso povo contra o descaso e o desprestígio que nos vota o Governo da República. Adiante, referindo-se ao movimento libertário iniciado em Cruzeiro do Sul, assegura que os nossos irmãos do Juruá, num assomo de dignidade e revolta, haviam despedaçado as cadeias que os prendiam, como a nós, ao jugo insuportável de uma administração incoerente e absurda.208

Do livrinho da Prelazia, extraio a segunda lição: o subprefeito, autor da iniciativa, mandou erigir um marco no lugar da fundação da cidade, com estes dizeres: “Neste lugar, o general Dr. Siqueira de Menezes inaugurou no dia 25-IX-1904 em um papiry o governo do Departamento do Alto Purus. Este marco foi mandado colocar no dia 14-VI-1907 peio capitão Dr. Epaminondas Tebano Barreto, prefeito interino, sendo prefeito efetivo, Dr. Cândido José Mariano, e juiz de direito, o Dr. F. L. Vieira Ferreira”. Em 1994, quando da comemoração dos 90 anos de fundação da cidade, a Polícia Militar do Amazonas, por meu intermédio, observando o desaparecimento da primitiva pedra comemorativa, resolveu reproduzir aquele gesto.209 Mandou fundir no bronze a reverência a um dos fundadores da cidade, o prefeito Cândido Mariano, 207  Acreano. Jornal de Xapuri (AC), 5 de Abril de 1910. 208  Editado na Cidade de Empreza (hoje a capital acreana), 14 de agosto de 1910. 209  O autor deste trabalho, apoiado pelo comandante-geral da PMAM, coronel Antônio Guedes Brandão (1993-95), teve a iniciativa. Coube-me ainda o privilégio de descerrar a nova placa, afixada no monumento primitivo da fundação.

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que exerceu longo período administrativo na história do município governando-o por mais de um quinquênio. Oxalá a presente placa conquiste maior longevidade, além do respeito dos senenses pelos monumentos e pela memória histórica da cidade. Na verdade, Mariano “permaneceu à frente do Departamento até 14 de julho de 1910, quando fora, assim, amigavelmente deposto da prefeitura, e empossada uma junta governativa.210 O semanário Folha do Acre, no intuito de bem informar, assinala em sua edição vestibular, copiando o jornal Brasil Acreano (de Sena Madureira), que “foram conhecidos aqui por notícias de jornais os fatos que se desenrolam no Alto Juruá e que deram em resultado a proclamação da autonomia daquele Departamento”. E prosseguiu o articulista, tomado de entusiasmo e destemor: “em breves instantes Sena Madureira estava de pé pronto para marchar ao primeiro grito de autonomia”. O mesmo jornal prossegue informando que, em Sena Madureira, “o momento não se fez esperar”. Às três horas da tarde quente de 14 de julho de 1910, reunido em frente à sede do jornal Brasil Acreano, o povo, tomado de brio, ouviu as principais lideranças e realizou inúmeras manifestações de apoio. Encerrando esse feito patriótico, elaborou-se uma Proclamação, que vai aqui parcialmente transcrita. Nós, os autonomistas do Alto Purus, em sua maioria, militando pelo progresso, engrandecimento e independência deste trato (sic) solo amado, fraternizados, ante os acontecimentos de 1° de junho que se desenrolaram no Departamento do Alto Juruá, e que tiveram como resultado a proclamação da autonomia do Acre para o fim de constitui-lo em Estado da União Brasileira, (...) em nome dos sagrados direitos de povo livre e civilizado, resolvemos comungar com eles solidários ante o altar da Liberdade e proclamar a autonomia do Alto Juruá como parte componente do futuro Estado do Acre.

Decidiram ainda os “autonomistas” inserir neste documento a aclamação de uma junta governativa, com titulares e suplentes, cuja direção coube ao Dr. Francisco Gonçalves Campos. Assim expresso, os presentes formaram um préstito cívico com as bandeiras do Brasil e do Acre à frente, e rumaram para a sede da Prefeitura. No estabelecimento, cientificado da decisão popular, o prefeito Mariano não teve outra alternativa senão acatar a “popularesca” deliberação. A fim de ser ouvido pela multidão, o Prefeito assomou uma janela do prédio e, “em frases repassadas de cultura e patriotismo disse que no governo desse Departamento sempre procurou 210  Esperidião de Queiroz Lima. 11 anos na Amazônia; ed. Governo do Estado, série Raimundo Monteiro v.4. Manaus: Sergio Cardoso, 1966 p.129.

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estar ao lado do povo, afirmando mais que não dispunha de força para resistir e mesmo se a tivesse não se lembraria nunca de lançar mão de meios violentos para sufocar as aspirações assim patrioticamente nascidas e defendidas”. Concluído seu improvisado pronunciamento, Cândido Mariano desceu do lugar de destaque e, dirigindo-se ao maior da Junta Governativa, fez entrega do edifício da prefeitura e do cargo até então ocupado. Ocorre que a obtenção da autonomia acreana possuía duas correntes de ação. A dos políticos, que entendiam conquistá-la pelo verbo, pelo conchavo de dirigentes partidários; e a dos agitadores, que a proclamavam pela força, como no episódio ora descrito. Afinal, vence a primeira corrente. Tanto que os emissários chegados em Sena Madureira, entre os quais Queiroz Lima (tio da imortal Rachel de Queiroz), conseguem no dia imediato reverter a decisão da plebe. Outro privilegiado personagem da história acreana, que vivenciou o episódio da deposição do prefeito de Sena Madureira, faz um relato do acontecimento. Dessa maneira, conclui sua narrativa a respeito: “No dia 15 de julho alcança Sena Madureira, todavia, deliberou-se assim voltar à última forma, reempossando-se, com toda a cordialidade, o prefeito deposto, que passara afastado do cargo menos de vinte e quatro horas. Em seguida, o Dr. Cândido Mariano embarca para o Rio de Janeiro, passando o governo a seu substituto”. Em renovada demonstração de influência política, acoimando a deliberação popular, faz-se cumprir a legislação vigente. Assumiu o governo do Departamento do Alto Purus, ante o afastamento do titular, Samuel Barreira (capitão do Exército), que fora requisitado pelo prefeito Mariano ao Ministério da Guerra para coadjuvar na administração do Departamento. Entre os dois, contudo, se assentou uma malquerença, que foi debatida publicamente em jornais de cidades do Norte e da então Capital Federal, como se abrevia no próximo capítulo. Ouso afirmar que esta altercação ocorreu por efeito de controvérsias políticas, em derredor do superávit da arrecadação tributária do município. ***

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CAPÍTULO XIV

“CONTRADITA A UM INGRATO E CALUNIADOR”

Perdi o meu tempo, o meu latim e a minha saúde. Cândido José Mariano 132


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Com o título supra, em 1912, Cândido Mariano edita um opúsculo contendo seus artigos publicados no ano anterior no Jornal do Commercio (RJ). Servindo-se desse expediente, Mariano intentava contestar as acusações de um antigo auxiliar no Departamento do Alto Purus, Samuel Barreira. As críticas de Barreira e de seus apaniguados foram divulgadas nos jornais A Província do Pará e Folha do Norte, de Belém (PA), e transcritas no periódico carioca. Como me descurar das incriminações lançadas contra o biografado, se busco a veracidade? Em razão disso, transcrevo o libelo com as denúncias. Algumas são verdadeiras e severas, outras não, serviam para vilipendiar o adversário. Esses apontamentos, espero, ensejarão compreender o lutador de tantas batalhas. Para melhor alcançar essa disputa, estive em duas oportunidades no afluente do rio Purus, onde está implantada a cidade de Sena Madureira, carinhosamente intitulada de Princesinha do Iaco. Foi muito difícil recolher algum dado que favorecesse esta pesquisa, pois, ninguém se lembrava do antigo prefeito. Os assentamentos da Prefeitura nada ofereciam, da mesma forma que os arquivos do Fórum local, onde diligentes servidoras muito realizaram visando contribuir. (Na verdade, temiam que o pesquisador estivesse em busca de documentação de algum seringal; ou que buscasse elementos para uma disputa judicial entre herdeiros). Até a jovem dirigente do diminuto museu e da biblioteca, ao abrir portas e vasculhar prateleiras, pretendeu adicionar algo mais. Restou-lhe o deleite de espiar o nome do seu bisavô paterno na ata de fundação. Todavia, cometi um santo “pecado”, em não me lembrar do arquivo paroquial. Em resumo, Mariano passou cinco anos na direção desse Departamento; ali emprestou a sua disposição e seu profissionalismo para construir a cidade, vencendo a floresta virgem. Apesar dos esforços, pareceu-me não ter ele deixado recordações na terra e nos munícipes, nem reminiscências na Loja Maçônica que frequentou. Muito comum à época, sua família não o acompanhou nesta comissão, preferindo permanecer no Rio. Ou para aprimorar a educação dos filhos ou porque o Iaco fosse local inóspito e adverso, acometido por doenças endêmicas e pragas regionais difíceis de serem suportadas. Devido à situação de “solteiro”, Mariano foi censurado por ter se apossado de “filha de família”. O denunciado, de fato, assumiu 133


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o concubinato e, em textos do Contradita..., ofereceu algumas indicações para se reconhecer a “eleita”. No entanto, nove décadas depois (1994), bem que tentei desvendar o mistério. No Fórum esperava encontrar algum indício, por acaso o registro de nascimento de algum herdeiro. Esqueci-me de recorrer ao livro de batistérios, talvez mais apropriado para guardar esse tipo de pecado de alcova. Se hoje o assentamento, o reconhecimento de paternidade se tornou trivial, àquela oportunidade nem imaginar tamanha insensatez. Ou se registrava como filho de pai ignorado, ou os avós assumiam a paternidade. Assim, descobrir um descendente de Cândido Mariano, se porventura existiu, foi para as calendas. Outra denúncia grave: o alcoolismo inveterado. Era evidente que este prefeito apreciava uma cachaça, como bom mineiro, ele não escondeu dos seus e nos escritos pessoais. A filha Lucy relembrou-me a aptidão do velho por um “trago”. Outro documento pode caracterizar essa moléstia, o atestado de óbito. A causa da morte (câncer) pode ter advindo deste vício. Pretendia elaborar algumas considerações sobre as diatribes disparadas pelas partes, a fim de explicitar a arenga dos contendores e possibilitar a melhor compreensão da questão. Não cheguei a tanto, consegui unicamente transcrever excertos dos artigos, respeitando a ordem de publicação e obedecendo a numeração em algarismo romano.211 E os repasso em seguida. Enfim, encerro a saga de Cândido Mariano. Talvez não tenha muito a acrescentar, o próprio homenageado registrou bastante, contou sua trajetória. Ele próprio se definiu como um republicano convicto, um militar consciente e, acima de tudo, um crente nos homens que dirigiam o País. Suas fortes amizades poder-lhe-iam ter presenteado com melhores encargos, mas o que me surpreende é sua permanência na Amazônia, quase sempre em local inóspito e conturbado. Seja na fundação de Sena Madureira, na “derrubada” da floresta para implantar uma civilização. Depois, aceitando um emprego na Madeira-Mamoré que, devido ao epiteto de Ferrovia do Diabo, dispensa outros comentários. Cândido Mariano. Contradita a um caluniador e ingrato. Rio: Jornal do Commercio, 1912. I - Agosto 2, quarta-feira. Nomeado, em 26 de janeiro de 1911, engenheiro de 1ª classe para a Repartição de Estradas de Ferro Federais. Para servir na comissão fiscal da construção da E.F. Madeira-Mamoré. Obséquio do Dr. 211  Extraídos do Jornal do Commercio (RJ). São em número de XXV (assim identifica-dos), e se desdobram entre 02 de Agosto e 15 de Novembro de 1911. Acervo da Biblioteca Nacional.

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J. J. Seabra, ministro da Viação e Obras Públicas. (Lembrando a amizade)... no cumprimento de ordem inolvidável do marechal Floriano Peixoto, conduzira J. J. Seabra, como deportado político, até o Alto Rio Negro, em abril de 1892, a caminho da fronteira venezuelana. Nota: na mesma edição, encontra-se a transcrição do artigo - Alto Purus: per-versidade e ingratidões, publicado em A Província do Pará, em 18 de Junho de 1911. Agosto 3, quinta-feira. Ao Dr. Cândido Mariano, por Samuel Barreira. O ex-prefeito do Purus Dr. Cândido Mariano, julgado pela opinião franca e verdadeira de um de seus ex-jurisdicionado. Publicado em Folha do Norte, de Belém (PA), em 21 de Junho de 1911. Acusado de parceria com o rábula Laudelino Benigno e do cunhado Álvaro Leitão ... Primeiro passo foi tirar uma mulher da casa da família onde vivia, aproveitando-se para isso da ausência do chefe, e viveu com ela ostensivamente amancebado enquanto lá esteve (Leitão será cunhado por parte da concubina?). II – Agosto 4, sexta-feira. Nada de interessante. III – Agosto 6, domingo. Mariano lembra o falecido e saudoso irmão Antônio Gomes Mariano, (...) o meu cunhado Álvaro Leitão, auxiliar da Prefeitura. Assinala que Barreira respondeu por jornal (sem citar o nome) de 3 de agosto e seu capanga Childerico Fernandes, na Folha do Norte, de Belém, transcrita a 2 de agosto, o acusando de concubinato”. Explica Mariano: “efêmera ligação que mantive no Alto Purus, com parenta sua (de Childerico?) em grau muito próximo” (filha?). As interrogações me pertencem, mas não pude respondê-las. IV – Agosto 8, terça-feira. Ver o jornal Folha do Dia, do Rio de Janeiro. Mariano denuncia que Indalecio Ferreira levou consigo a concubina, como se fosse a esposa, mediante a passagem concedida para a genitora do mesmo. Quando do afastamento dele, houve uma disputa com o coronel Eugenio Ribas. Na mesma edição, Barreira assina: O Dr. Cândido Mariano perde a calma. Nele acusa ao mesmo de incontinência alcoólica e alcoolismo inveterado. V – Agosto 9, quarta-feira – Mariano publica uma enxuta autobiografia: 135


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Republicano histórico desde a antiga Escola Militar da Corte, da qual fui o único aluno que protestou, pela imprensa, contra a bandeira - SALVE - colocada no alto do Pão de Açúcar, por ocasião do último regresso da ex-família imperial, a 30 de agosto de 1888; Ferido quando, fardado, assistia e prestava auxílio a conferência do falecido e intimorato Dr. Silva Jardim, realizada no Teatro Lucinda, na noite de 19 de agosto de 1888, atacada pela polícia e a Guarda Negra. Achava se presente ao caso e auxiliou os meus curativos, animando-me com a sua palavra, o venerando patriarca da República, senador Quintino Bocaiuva; Contundido seriamente na defesa do referido propagandista, no edifício do Clube Ginástico Francês, na antiga travessa da Barreira, no dia 30 de dezembro de 1888 (episódios citados em Campanhas de um revolucionário, de Silva Jardim); por motivos políticos, preso e transferido para a Escola Militar do Ceará, em abril de 1889, onde criou o Clube Republicano Cearense, abrindo campanha na imprensa e na tribuna popular contra a monarquia; No governo de Floriano recebi deste as mais indiscutíveis provas de confiança e apreço; Segui como alferes para o Rio Grande do Sul, incorporando-me ao 31 Batalhão de Infantaria, participei de diversos combates e do cerco de Bagé; Escolhido pelo marechal Floriano Peixoto para conduzir os deportados políticos ao Cucui e Rio Branco (entre estes o Dr. J. J. Seabra), no extremo Norte; Escolhido pelo marechal Floriano Peixoto para servir na Fortaleza de Santa Cruz, em 6 de setembro de 1893, e depois na Fortaleza da Lage, onde permaneci longo tempo, até ser contuso por estilhaço de granada; Organizador, por ordem do Governo legal, do batalhão patriótico Silva Telles, com o qual segui por via terrestre para o Paraná, o qual se achava apossado pelos revolucionários; Por ordem de Floriano e lembrança do coronel Firmino Pires Ferreira, comandante das forças legais em Itararé (SP), assumi o comando da Polícia Militar de São Paulo e com ela invadi o Paraná, concorrendo para a vitória da legalidade; Após oito meses, regressando a Polícia Militar à sua sede, assumi o cargo (Fiscal) do batalhão Silva Telles, com o qual marchei até as fronteiras da Argentina, as cidades de Palmas, Xanxerê, Chapecó, Campos Novos e Nonoai, no território das Missões; Requisitado (1896) para comandar um dos batalhões da Polícia Amazonense, com o mesmo segui para Canudos, conforme oferecimento que 136


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fiz ao Governo Federal, embora estivesse matrimoniado 30 dias antes e não me competisse tal comissão, devia ao 2° Batalhão sob o comando de Arthur Cezar Moreira de Araújo; Em Canudos fechei com o meu batalhão o sítio do arraial, havendo sido, por esse motivo, elogiado; sendo o único oficial comandante que mereceu esta recompensa, visto ficar, com este movimento, terminado virtualmente a campanha; Ferido gravemente em um dos combates finais (25 de setembro) e, no qual, sem ordem dos chefes e somente com o meu batalhão, ataquei os jagunços e fiz diminuir consideravelmente a área sitiada. Fui elogiado por este motivo e reservadamente, por ter empenhado sem ordem, embora com franco sucesso; Promovido a capitão por atos de bravura, apesar de ser talvez o mais jovem oficial desse posto; Fiz toda a campanha sem receber os vencimentos que me competiam por parte da União. A ela só me conduzia o entusiasmo e amor pela República e pelo Exército, ao qual pertencia; Perseguido pelo general Mallet, quando ministro da Guerra, por ter sido um dos mais fervorosos legalista no governo do marechal Floriano; desgostoso o enfermo, obtive, com grande dificuldade exoneração em junho de 1899; obrigado a seguir para o interior do Amazonas, em serviços de demarcações de terras, a fim de ganhar o sustento meu e de minha família; Apesar dos serviços prestados ao Amazonas (em Canudos) e comissões profissionais, apenas uma vez fui eleito em cargo político, para completar o período de um deputado falecido, por espontânea e generosa intervenção do senador Pinheiro Machado junto ao Governador coronel Silvério Nery; fui um mau partidário e medíocre representante. Votei contra diversas questões políticas e situacionistas, principalmente as que se referiam as indenizações. Por isso, não fui reeleito, como era de prever; Nomeado, por iniciativa do Dr. J. J. Seabra, prefeito do Departamento do Alto Purus, em 13 de março de 1905, cargo de que fui exonerado pela atual administração, a 3 de dezembro de 1910. VI – Agosto 10, quinta-feira. Mariano recorda que “no governo Nery dispensa licença votada pelo Congresso (estadual)”. E revela o nome do deputado falecido, Bernardo Correa Lima, que substituiu. VII – Agosto 11, sexta-feira e VIII – Agosto 12, sábado. Nada interessante. 137


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IX – Agosto 13, domingo. Rebate as acusações feitas da tribuna da Câmara dos Deputados, pelo Dr. Plínio Costa, deputado pela Bahia. E informa que seu cunhado, Eugenio Ribas, era o chefe da Mesa de Rendas do Alto Purus. X – Agosto 15, terça-feira. Na mesma edição junto ao artigo de Mariano, Samuel Barreira publica: “O Dr. Cândido Mariano, ex-Prefeito do Purus, perde a compostura”. Recomenda ver as cópias da prestação de contas na Delegacia Fiscal, em Manaus. XI – Agosto 16, quarta-feira. Ver o jornal Brasil Acreano, de 18 de Junho de 1911, que se refere ao vício de embriaguês alcoólica de Mariano. Resposta deste, “os defeitos de incontinência que me empresta o capitão Barreira, que naturalmente se compraz em ter vícios às ocultas, de algum modo me perturbam a memória e me impedem de trazer à luz um fato sequer”. XII – Agosto 22, terça-feira. Mariano interroga: quem era o bacharel Geraldo Barbosa, um ex-chefe de Polícia? E relata dele alguns detalhes. XIII – Agosto 24, quinta-feira. Mariano refere-se a fotografias publicadas na imprensa paraense. No dia seguinte, 25, Barreira assina o artigo intitulado: “Dr. Cândido Mariano: do crime à ameaça. XIV – Agosto 26, sábado. Em resposta, Mariano lembra que “regressando a 20 de março de 1910 a Sena Madureira, fui recebido por delirantes ovações”. XV - Agosto 29, terça-feira. Mariano publica balancetes. E o XVI - Agosto, não foi alcançado. XVII - Setembro 1°, sexta-feira. Mariano efetuando uma profissão de civismo, conclui “... não tivesse eu sido educado na escola severa do dever e da honra, envergando, por muitos anos, a gloriosa farda do Exército Nacional, onde fiz brilhante e rapidíssima carreira e da qual me apartei saudoso, havendo tido, entre bons e leais camaradas, o eminente soldado que dirige os destinos da Pátria”. Referia-se ao presidente Hermes Rodrigues da Fonseca (1910-14). XVIII – Setembro 3, domingo. Em resposta, Mariano comenta: “E as138


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sim é que, sempre hipnotizado pelo meu ex-substituto, não lhe atirei a responsabilidade de um ataque noturno que sofri no Alto Purus, a 22 de março (1910), dois dias após o meu regresso àquele Departamento, e no qual eu seria vitimado, se não fora a dedicação de um humilde criado que me acompanhava, em horas tardias da noite. Não mandei abrir o preciso inquérito, apesar de ter a polícia às minhas ordens e de ser delegado (nomeado nesse dia) o meu parente próximo, major Álvaro Leitão”. XIX – Setembro 14, quinta-feira. A declaração é de Mariano: “Estou fartíssimo de ser patriota. Quero continuar a manter as minhas velhas ilusões de republicano. Não peço e não quero galardão para os meus fracos serviços”. Mas, em 15 de outubro, Samuel Barreira publica - “Assaltos escandalosos e inéditos ao Tesouro nacional”, acusando Mariano, entre outros delitos, “de ter prodigalizado a Georgina, conhecida mundana de Manaus, que não era favorita, recursos para um farto passeio a Europa”. E mais, de residir às conhecidas ruas Paysandu, Aguiar e Haddock Lobo, todas no Rio. Estou obrigado a esclarecer, porque interroguei a dona Lucy, filha de Mariano; eles sempre viveram e morreram em casas alugadas, sem demonstrar qualquer riqueza. Outubro 17, terça-feira. Cândido Mariano publica a resposta ao artigo acima e prossegue a cantilena. Todavia, não alcancei as publicações.

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Referências bibliográficas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FONTES IMPRESSAS • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 140

A Crítica, Manaus (AM) 1993 Acreano, 1908 e 1910 Almanaque de Oficiais do Exército, vários anos Almanaque de Oficiais da Polícia Militar do Amazonas, vários anos Anais da Câmara dos Deputados, 1897 Anais do Senado Federal, 1897 A Província do Pará, Belém (PA), 1892 e 1897 A República, Belém (PA), 1897 A República, Fortaleza (CE), 1897 Balanço Definitivo do Tesouro do Estado do Amazonas, 1897-98 Brasil Acreano (AC), 1911 Boletins da Polícia Militar do Amazonas, vários anos Cearense, Fortaleza (CE), 1889 Coleção das Ordens do Dia do Exército, 1892-93 e 1896-99 Diário do Maranhão, São Luís (MA), 1897 Diário de Notícias, Salvador (BA), 1897 Diário de Notícias, Belém (PA), 1897 Diário de Pernambuco, Recife (PE), 1897 Diário Oficial do Amazonas, 1896-97 Diário Oficial do Ceará, 1897 Diário Oficial do Pará, 1892 e 1897 Discursos do Senador Silvério José Nery, 1923 Fé de Ofício de Cândido José Mariano Folha do Acre, (AC), 1910 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro (RJ), 1911 Jornal de Notícias, Salvador (BA), 1897 Jornal do Recife, Recife (PE) 1897 Leis e Decretos da Câmara Municipal de Manaus, 1897 Libertador, Fortaleza (CE), 1889 O Acre, (AC), 1907 O Alto Purus, Sena Madureira (AC), 1908-09 O Comércio do Amazonas, Manaus (AM), 1897


Referências bibliográficas

• •

Relatório sobre a Prefeitura de Sena Madureira, 1906 Relatório do Departamento de Justiça do Amazonas, 1897-98

2. LIVROS • • • • • • • • • • • • • •

• •

Andrade, Euclides e Câmara, Hely F. da. A Força Pública de São Paulo: esboço histórico (1831-1931), fac-similado. Imprensa Oficial do Estado, 1982 Araripe, Tristão de Alencar. Expedições militares contra Canudos: seu aspecto marcial. 2a ed. Rio de Janeiro: Bibliex, 1985. Benício, Manuel. O Rei do cangaço. Rio de Janeiro: Tip. do Jornal do Comércio, 1899. Bittencourt, Agnello. Fundação de Manaus: pródomos e sequências. Manaus: Sérgio Cardoso, 1969. ---- Dicionário Amazonense de Biografias: vultos do passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973, Calasans, José. Quase biografias de jagunços. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1986. ---- Notícias de Antônio Conselheiro. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1969. ---- Canudos na literatura de cordel. São Paulo: Ática, 1984. ---- O jaguncinho de Euclides da Cunha. Revista de Cultura da Bahia, 7. Salvador. 1972 Câmara, Fernando (1993) Antônio Conselheiro e o Centenário de Canudos. Revista do Instituto do Ceara, Tomo 107, Ano 107. Cruz, Ernesto. Ruas de Belém: significado histórico de suas denominações. Belém: CEJUP, 1992. Cunha, Euclides da. Caderneta de Campo. São Paulo: Cultrix/MEC, 1975. ---- Os Sertões. Rio de Janeiro: Primor, 1973. (V.11 Obras imortais da nossa literatura). (1973) ---- Canudos e outros temas; Edição comemorativa dos 90 anos de publicação de Os Sertões, 3a. ed. Brasília: Subsecretária de Edições Técnicas/Casa de Pernambuco, 1994. Galvão, Walnice Nogueira. No calor da hora. São Paulo: Ática, 1977. ---- Canudos, Euclides e nosso primeiro reitor. Revista USP, 20. São Paulo, dez/fev 1993/1994, 1994. 141


Referências bibliográficas

• • • • • • • • • •

• • • • • • • • • • • • 142

Governo do Estado. Negritude & Modernidade. Manaus: Umberto Calderaro, 1990 Horcades, Alvim Martins. Descrição de uma viagem a Canudos. Bahia: Litho-Typographia Tourinho, 1899. Jardim, Antônio da Silva. Propaganda Republicana (1888-1889). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1978. Lima, Esperidião de Queiroz. 11 anos na Amazônia. Ed. Governo do Estado do Amazonas, série Raimundo Monteiro, v. IV. Manaus: Imprensa Oficial, 1966. Lobo, coronel Luís. História Militar do Pará. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1973. Loureiro, Antônio José Souto. A Gazeta do Purus. Manaus: Imprensa Oficial, 1981. ---- A Grande Crise. Manaus: Umberto Calderaro, 1986. Macedo, Nertan. Antônio Conselheiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renes, 1978. Macedo Soares, Henrique Duque Estrada de. A Guerra de Canudos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985. Martins, Paulo Emílio Matos. Cinquenta Antônios e uma tragédia: Canudos. Palestra elaborada para a LXXXIV Semana Euclidiana. São José do Rio Pardo/SP, 9-15 de agosto de 1996. Menezes, E. Diatahy B. de Menezes, João Arruda. Canudos: as falas e os olhares. Fortaleza: Edições UFC, 1995. Milton, Aristides. A Campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902. Monteiro, Mario Ypiranga. Cronologia histórica da Polícia Militar. Manaus: Imprensa Oficial, 1972. ---- Elogio Histórico da Polícia Militar. Manaus: Imprensa Oficial, 1973. ---- Teatro Amazonas. 3v. ed. Governo do Estado do Amazonas, série Torquato Tapajós. Manaus: Sérgio Cardoso, 1965. Nery, Antônio Constantino. A Quarta Expedição contra Canudos. Pará: Typ. de Pinto Barbosa, 1898. Neu, Sereth (trad.) Les Terres de Canudos (Os Sertões). Rio de Janeiro: Caravela, 1974. Nogueira, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. (Brasiliana: v. 355). São Paulo: Nacional, 1978. Reis, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. Sampaio Neto, Josué Augusto et al. Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Silva, Hélio. 1899: A República não esperou o amanhecer. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. Silva, Severino Vicente da. A Igreja e o controle social nos sertões nordestinos.


Referências bibliográficas

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São Paulo: Paulinas, 1988. Studart, Barão Guilherme. Datas e Fatos para a história do Ceará. 2 v. fac-similada. Fortaleza: Typographia Studart, 1973. Tavares, Odorico. Bahia: Imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. ---- Canudos: cinquenta anos depois (1947). Salvador: Fundação Cultural, 1993. Tocantins, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, série Euclides da Cunha. Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Sérgio Cardoso, 1966. Valle, José Satys Rodrigues. Sua excelência, o coronel. Belo Horizonte: s. ed., 1994. Villa, Marco Antônio. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995. Viveiros, Ester de. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro: Cooperativa Cultural dos Esperantistas, 1969.

3. RELATÓRIOS E ARTIGOS • • •

• •

Henriques, Élber de Mello (1995) Colégio Militar do Ceará: Lembrança Imorredoura. Revista do Exército Brasileiro, v. 132, 1° trimestre. Piedade, Lélis (coord.) (1901) Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia. Bahia: Litho-Typ. Mariano, Cândido José. Relatório sobre a estada do mesmo fora do Amazonas, durante o tempo em que esteve à disposição do Governo Federal e em operações no Estado da Bahia. Manaus: Imprensa Oficial, 1897. Monte Marciano, João Evangelista. Relatório apresentado pelo frei João Evangelista de Monte Marciano ao arcebispo da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu séquito no arraial de Canudos. 1895, fac-similada. Salvador: Centro de Estudos/UFBA, 1987 Sena, Davis Ribeiro de (1991). A Guerra das Caatingas. Revista do IHGB, Rio de Janeiro: v.152, n° 373, pp. 954-1007, 4° Trimestre. Wehrs, Carlos. Pelo centenário de morte de Antônio da Silva Jardim (18911991). Revista do IGHB, Rio de Janeiro: v.152, n° 372, pp. 775-784, set. 1991 ***

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BATALHÃO AMAZONENSE NA CAMPANHA DE CANUDOS: CRONOLOGIA

AGOSTO 1°, domingo – o Governo decide enviar uma tropa amazonense 4, quarta-feira – embarque do 1° Batalhão, em Manaus 8, domingo – chegada a Belém (PA) 9, segunda-feira – partida de Belém no transporte Carlos Gomes 11, quarta-feira – passagem pela cidade de São Luís (MA) 14, sábado - saída do navio da Marinha Carlos Gomes 18, quarta-feira - chegada ao porto do Recife (PE) 19, quinta-feira – partida do porto do Recife (PE) 21, sábado – batalhão desembarca em Salvador (BA), abrigo no Forte São Pedro 27, sexta-feira – embarque do mesmo na estação ferroviária da Calçada, em Salvador, e chegada em Queimadas

SETEMBRO 4, sábado – partida de Queimadas, em comboio 6, segunda-feira – chegada a Monte Santo 7, terça-feira – comemoração da Independência 8, quarta-feira – apresentação do Batalhão ao ministro da Guerra 13, segunda-feira – partida para Canudos, junto com Euclides da Cunha 16, quinta-feira – Canudos, enfim, às 14h. 25, sábado – combate das forças policiais da Amazônia. 27, segunda-feira – morre o capitão Talismã Floresta, da PMAM, em Monte Santo (BA)

OUTUBRO 1°, sexta-feira – derradeiro combate 2, sábado – bandeira branca de Beatinho 5, terça-feira – delenda Canudos 7, quinta-feira – retirada da tropa amazonense de Canudos 8, domingo – provável passagem por Monte Santo 144


11, terça-feira – provável chegada a Queimadas 14, quinta-feira – partida pela Estrada de Ferro de Queimadas para Salvador, ao lado da PMBA 23, sábado – embarque no transporte Carlos Gomes 27, quarta-feira – trânsito por Fortaleza (CE), onde foi festejado 28, quinta-feira – partida de Fortaleza (CE)

NOVEMBRO 1°, segunda-feira – translado no porto de Belém (PA) 2, terça-feira – partida de Belém, no vapor Cidade do Pará 8, segunda-feira – desembarque em Manaus (AM), onde foi festejado 16, terça-feira – na Catedral, exéquias pelos policiais militares mortos

DEZEMBRO 15, quarta-feira – Cândido Mariano encaminha Relatório ao Governador do Estado 21, terça-feira – publicação em Diário Oficial do Estado da 1ª parte do Relatório 22, quarta-feira – publicação da derradeira parte do Relatório. ***

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O Alto Purus

ANEXO

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O Alto Purus

O Alto Purus é o órgão oficial da Prefeitura do Alto Purus e circulará aos domingos. Recebe assinaturas para dentro e fora do Departamento por 30$000 anuais, 16$000, por semestre e 9$000 por trimestre. Para matéria particular de anúncios, notícias, colaboração, publicações a pedido etc. devem os interessados entender-se com os Sr. Álvaro Leitão e Dr. Samuel Barreira. 147


O Alto Purus

O ACRE E O SEU FUTURO O Alto Purus. Ano I - Número 1. Sena Madureira (AC), 24 de fevereiro de 1908.

O território pátrio adquirido à Bolívia pelo Tratado de Petrópolis, e que se estende desde as nascentes do Javari, até a confluência do Madeira com o Beni, após ter passado por todas as vicissitudes naturais e esperadas em terras ainda novas, quanto à parte administrativa, enceta agora, ao que parece, a sua vida normal concorrendo como nenhuma outra parte da República, para a riqueza do erário público, demonstrando exuberantemente aos mais prevenidos contra a sua incorporação à comunhão nacional, os enormes e inapagáveis serviços dos obreiros desta santa cruzada e a razão patriótica e clarividente que assistia ao benemérito governo da União, ao negociar a existência do Acre, para fazer parte integrante da nação Brasileira. A história pátria quando contada futuramente, isenta das paixões do momento atual, produto da atmosfera de prevenções que respiramos, analisando os acontecimentos que deram causa à luta dos filhos do Acre, em prol de sua libertação do jugo estrangeiro, há de prestar homenagem e render preito de sincera e indefectível justiça aos trabalhadores de ontem, entre os quais tem relevância especial o Barão do Rio Branco, nosso ilustre e sábio ministro das Relações Exteriores e os habitantes do atual Departamento do Acre, chefiados pelo coronel Plácido de Castro, a quem cabe forte porção na messe de louros colhidos. Não se pode negar que as autoridades do vizinho estado do Amazonas acompanhavam com visíveis e inequívocos sinais de simpatia os movimentos armados que por diversas vezes tentaram arrancar o Acre à dominação boliviana, sendo certo que o seu concurso para os mesmos, embora fraco e sem consistência séria, visava principalmente o aumento de suas rendas, desfalcadas grandemente com o estabelecimento da alfândega boliviana em Porto Acre, em virtude de um ato de fraqueza da nossa Chancelaria de então. Infelizmente a letra dos tratados e os atos posteriores do Brasil, reconhecendo a absoluta soberania da Bolívia a todo o território situado ao Sul da linha geodésica Beni / Javari, não permitiam dúvidas e todo esse grande trato de terreno, povoado exclusivamente por brasileiros, por eles descoberto e desbravado, foi considerado como pertencendo à Bolívia, embora os seus habitantes o julgassem um prolongamento natural do Brasil e se batessem por esse ideal quando souberam da ignorância em que se achavam e do naufrágio de sua pretensão altamente patriótica de serem brasileiros natos e de estarem povoando um solo pertencente à Pátria Brasileira. Dessa ilusão nasceu a luta no Acre, mantida quase exclusivamente pelos elementos locais, originando a intervenção armada do Brasil, após a derrota das forças 148


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bolivianas e dando causa à sábia e clarividente conduta do barão do Rio Branco, adquirindo à Bolívia o atual território do Acre, por dois milhões de esterlinos, já que não podíamos ficar definitivamente de posse do território conquistado pelo valor e esforço de seus habitantes. Outra não podia ser a conduta do nosso governo, obrigado a cumprir as estipulações dos tratados e a manter fielmente os preceitos da constituição Pátria, proibitivos de qualquer aquisição de território por meio de conquista. Basta o enunciado do Tratado de Petrópolis, estipulando claramente a entrega do Acre ao Brasil por efeito da indenização pecuniária paga a Bolívia, para fazer cessar nos espíritos mais prevenidos, a campanha de reinvindicação que do Acre que fazer o Amazonas, evidenciando à luz meridiana o direito que assiste aos acreanos de serem tratados como filhos da terra conquistada por eles ao deserto e ao estrangeiro, ligada somente à União pelos laços da federação, cujo estabelecimento, para breve prazo, aguardam ansiosamente. Talvez não haja exemplo, na história das pendências internacionais, de um povo que tão brevemente indenizasse à mãe Pátria a importância que a mesma despendera com a aquisição de seu território. Nem a Luisiana comprada pela América do Norte à França, nem o território do Alasca à Rússia, nem as Carolinas cedidas pela Espanha à Alemanha, apresentaram ou apresentam resultado idêntico. À parte as vantagens de ordem moral, sobejamente concedidas, a incorporação do Acre ao Brasil, além da enorme extensão territorial que adquirimos na bacia Amazônica, trouxe grandes resultados compensadores aos sacrifícios feitos, sob o aspecto econômico e financeiro, concorrendo para que as rendas da União tivessem um aumento anual de mais de dez mil contos de réis. Situado em uma zona privilegiada pela natureza, a coberto dos grandes calores equatoriais, gozando de clima relativamente saudável, apesar das calúnias que a tal respeito correm mundo, desmentidas pelo coeficiente de mortalidade apresentado, o Território do Acre, desde o Juruá até o Abunã, necessita somente para o seu completo desenvolvimento do carinho contínuo da União, fazendo explorar metodicamente as suas imensas e inexauríveis riquezas, promissoras de um futuro sem par, entre os grandes elementos de prosperidade que conta o Brasil. Com uma população superior talvez a sessenta mil habitantes, o Acre produz mais para os cofres públicos que muitos Estados da União, cuja população é infinitamente superior à sua. Apesar da vida dos habitantes se achar exclusivamente entregue à indústria extrativa da goma elástica, fonte única de receita para o erário nacional, a captação dos direitos de exportação é aproximadamente de duzentos mil réis por habitante! 149


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Jubilosamente vemos que os assuntos referentes à existência do Acre, vão tendo curso entre os altos poderes públicos, o que é evidenciado pela última reforma judiciária-administrativa para o Acre, posta ultimamente em vigor. As salutares disposições desta reforma, mormente as criadoras de uma seção de Justiça Federal e de um Tribunal de Apelação, vieram preencher séria lacuna na existência do Acre, preparando-o convenientemente para em futuro próximo, poder libertar-se definitivamente das faixas infantis que atualmente o cercam, entregando-o à direção de seus próprios interesses, autônomo e livre, no convívio dos demais Estados da União. Para ser atingido tal desideratum faz-se mister que o Acre adquira na opinião nacional a boa justa fama necessária às coletividades bem organizadas, a par com a cordura de costumes, respeito às autoridades constituídas e, enfim, a prática do bem e da justiça, únicos predicados que constituem a riqueza moral de um povo e de uma nação. ***

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O ACRE E O AMAZONAS Imposto sobre a exportação da borracha O Alto Purus. Ano I - Número 2. Sena Madureira (AC), 24 de fevereiro de 1908.

Conforme a lei de orçamento da receita da União, para o exercício financeiro corrente, a borracha proveniente do Território do Acre, passou a pagar nas Alfândegas da República, o imposto ad valorem de 20% sobre a pauta respectiva, diminuindo, portanto, de 3% o mesmo tributo, cobrado nos anos anteriores. Tal medida, originada da situação angustiosa porque passa atualmente a indústria extrativa, apesar de não satisfazer por completo as reclamações dos interessados, veio, contudo atenuar um pouco a crise temerosa que atravessamos, com a constante e contínua baixa que o preço da borracha tem sofrido nos mercados consumidores. Os representantes do vizinho Estado do Amazonas, no Congresso Nacional, obedecendo ao afã de denegrirem o Acre e as suas administrações, pensando concorrer assim para a sua reincorporação ao território do Amazonas, envidaram todos os esforços possíveis contra essa alteração de imposto, alegando que desse modo a União prejudicaria os interessados do seu Estado, preso como nenhum outro à indústria extrativa da preciosa hévea e estabelecendo a guerra de tarifas, em contrário aos preceitos da Constituição Federal. Não produziram efeito felizmente as alegações dos representantes amazonenses, e o Congresso, por enorme maioria, atendeu aos justos reclamos da população acreana, vantajosamente apoiada pela abalizada opinião do Sr. Presidente da República, Ministro da Fazenda e mais autoridades no assunto, dignas de atenção e apreço. Dias depois, o Amazonas, pelos seus mais altos e abalizados poderes, equiparou o seu imposto sobre a borracha produzida em seu território, ao da borracha acreana, o que bem demonstra a inanidade de argumentação de seus dignos representantes contra tal benefício feito ao Acre, confirmando a voz pública de ser essa oposição mais uma tentativa infeliz à existência autônoma do Acre, de que um desejo assentado e criterioso de consolidar as finanças amazonenses. O tão falado contrabando de produtos amazonenses para o Território, a fim de gozarem de melhor tarifa alfandegária, ou não existe absolutamente ou se existe é em tão pequena quantidade e em proporção tão diminuta que não pode afetar seriamente os interesses do Amazonas, bastante rico e próspero para se empobrecer com semelhante ninharia. Neste Departamento, podemos asseverar sem receio de contestação, desde o início do regime federal, originado pelo Tratado de Petrópolis, não houve, não há e não haverá, estamos certos, um único caso em que o fisco amazonense ficasse ou venha a ficar prejudicado no que legitimamente lhe pertence, que tem tido nas 151


O Alto Purus

autoridades administrativas da União, a melhor garantia de seus direitos, no que, aliás, elas cumprem o dever restrito de moralidade e cortesia. Todas as dúvidas que nesse sentido tem surgido, hão sido resolvidas espontaneamente pela própria Recebedoria do Estado, sempre a favor da União. Sem tropeços, injustiças ou precauções, a administração deste Departamento há de elevá-lo a altura que merece, fugindo sempre do terreno estéril da politicagem, fonte permanente de muitos males, e evitando por todos os modos prejudicar a arrecadação que compete ao vizinho Estado, dos seus legítimos e originários produtos. A administração do Alto Purus assim tem procedido e assim continuará a proceder. ***

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EM DEFESA O Alto Purus. Ano I - Número 3. Sena Madureira (AC), 8 de março de 1908.

Em uma das sessões do ano findo, da Câmara dos Deputados, o digno e esforçado representante do Rio Grande do Sul, Dr. Germano Hasslocher, pronunciou notável oração, tendo em vista chamar atenção do País para a situação deverás precária em que se acha o povo acreano, desvendando da tribuna os males que assoberbam o referido povo, digno sob todos os aspectos da solicitude carinhosa dos poderes públicos da Nação. Serviu-lhe de base, para as alegações expendidas, o relatório que recentemente publicara sob a Prefeitura do Alto Acre o Sr. coronel Plácido de Castro, relativo a sua gestão interina naquele Departamento e no qual são postas ao vivo as violências ali praticadas por autoridades federais e os erros, para não dizer crimes, pelas mesmas cometidos. Não é nosso intuito e nem cabe na rota que traçamos a este modesto órgão de imprensa, analisar as asseverações contidas no relatório de que tratamos, mas nos julgamos no dever de explicar ao público e ao governo da União, a marcha que tem seguido a administração deste Departamento, desde o seu início nesta região, embora nos falte competência intelectual para tratarmos devidamente tão momentoso assunto. A nossa conduta de encetarmos semelhante tarefa é ocasionada pela ignorância do público quanto aos negócios que interessam ao Território do Acre, confundindo mui naturalmente as administrações das Prefeituras em que o referido Território se acha dividido, de modo a culpá-las conjuntamente de erros ou desmandos praticados numa determinada zona, por um determinado administrador. É contra essa injustiça que clamamos, e é contra essa generalização que protestamos, respeitosa, mas firmemente. Poucos são os homens públicos deste País que conhecem de perto a situação do Acre, e especialmente as condições morais e materiais de seus habitantes. Infelizmente reina, com manifesta injustiça, a mais séria prevenção contra tudo quanto se refere ao novo Território, ao qual se empresta todos os maus predicados, desde o seu clima grandemente caluniado até ao regime de vida de seus habitantes, considerado como sendo latrocínio contínuo, verdadeira Serra Morena, aonde a perda da bolsa e da existência coexistem em perfeita normalidade. Havemos de contraditar semelhante opinião tão errônea quanto absurda, incorrendo embora no desagrado dos arautos dessa campanha de difamação, instrumentos conscientes ou inconscientes do desforço originado pela criação do Acre Federal, ligado e subordinado exclusivamente à União. 153


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Certo é que por vezes, têm aparecido reclamações e queixas contra a [ilegível] ao direito à propriedade dos habitantes do Acre, como as que tiveram eco no documento a que acima nos referimos, mas os fatos apontados, embora condenáveis, foram devido principalmente à má educação democrática de seus autores, à sua inépcia administrativa e, sobretudo a sua falta de idoneidade moral. O Acre não tem e não pode ter culpa de tais desacertos, importados certamente de centros mais civilizados e aonde eles proliferam com grande êxito e segurança. Nenhum dos fatos citados como passíveis de pena ou de censura sucedeu neste Departamento, cuja administração tem procurado, por todos os meios e modos, incrementar o progresso e o desenvolvimento da zona que lhe foi entregue dentro dos limites traçados nas leis em vigor, observando e fazendo observar, com o mais escrupuloso cuidado, a norma que a si mesma definiu de manter o respeito à vida e propriedade de seus administrados, estimulando-os na prática do bem e da justiça. Conhecendo de perto o erro que cometeria, cobrando impostos não estipulados em lei, a administração deste Departamento nunca lançou mão de semelhante recurso para auxiliar a deficiente verba que lhe tem sido distribuída anualmente para as suas despesas, com a qual tem mantido todos os serviços a seu cargo, embora veja sacrificada a adoção de medidas necessárias ao seu desenvolvimento. Nem um ceitil foi arrecadado pela Prefeitura do Alto Purus para satisfação de suas necessidades, sendo digno de nota, tornar público que o próprio imposto de laudemus, correspondente aos foros de terrenos já cedidos na capital do Departamento, ainda não foi cobrado, apesar do desejo em contrário manifestado pelos foreiros que assim julgam garantir melhor as suas posses. Nesse particular a administração precedeu a disposição da lei ultimamente posta em execução, proibitiva da cobrança de impostos no Acre, não determinados na receita da República. Quanto à distribuição de justiça no Departamento, apesar das lacunas conhecidas na lei até há pouco em vigor, tem sido a mais regular possível, já havendo se efetuado a reunião do Tribunal do Júri, presidida pelo Juiz de Distrito Dr. Fernando Vieira Ferreira, nome vantajosamente conhecido no Sul da República e cuja moralidade profissional e perfeita compreensão de deveres, são justa garantia para todos os moradores do Departamento. A Prefeitura não manteve e não mantêm contrato algum para a exploração de qualquer serviço público, receosa do futuro e das indenizações que quase sempre surgem com tais compromissos, perigosas aos cofres públicos. Indo ao encontro da índole ordeira da população e estudando-a nos seus hábitos, costumes e tradições, a administração não teve ainda necessidade de lançar mão da força para fazer cumprir a lei, ou para fazer vir à sua presença qualquer delinquente, seja ele abastado proprietário ou humilde homem do trabalho, bastan154


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do muitas vezes um conselho ou uma simples determinação escrita ou verbal, para dirimir questões que se afiguravam sérias e cheias de gravidade. Por mero efeito de persuasão são assim resolvidos litígios que prometiam prolongar-se, com grave dano para os interesses das partes e às vezes em detrimento da ordem pública. Para confirmar o que acabamos de expor, basta verificar-se que não existe cadeia no Departamento, sendo o serviço de policiamento feito apenas por seis praças do Exército que tantas são as que compõem o contingente aqui destacado, não havendo exemplo de fuga de um só criminoso dos existentes sob as vistas da autoridade. A instrução pública não foi descurada, achando-a em funcionamento [trecho ilegível] [...] Os serviços a cargo da administração correm com a devida normalidade, de modo a satisfazerem o desideratum almejado. A população pobre é socorrida gratuitamente com médico e farmácia, o que tem muito contribuído para o insignificante coeficiente de mortalidade dos últimos anos. O comércio e o trabalho prosperam lisonjeiramente, à sombra das garantias asseguradas pela administração concorrendo extraordinariamente para o progresso e desenvolvimento da zona. Se pequenos erros ou faltas sem importância têm aparecido, são devidos à contingência humana, mormente tendo-se em consideração que aos administradores do Alto Purus falece ainda a competência que só a idade e longo tirocínio podem dar, sendo certo, porém, que todos eles, sem paixões nem ressaibos de amor próprio mal entendido, procuram trilhar o melhor caminho, a fim de cumprirem dignamente a sua missão, elevando esta ubérrima e riquíssima região à altura que merece. Não nos entibia o ânimo a ligeira exposição que acabamos de fazer, necessária para os espíritos justiceiros que nos prestaram atenção, sendo nosso único intuito separar o joio do trigo, no que respeita as notícias que correm sobre o Acre e suas administrações, para o que estamos prontos a fornecer todos os esclarecimentos precisos. A justiça da história, passada a atual época de agitação, em que as paixões e interesses contrários ainda se chocam, julgará imparcialmente as administrações acreanas, dando a cada uma delas o prêmio ou castigo que mereça. Até então esperemos. ***

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OS NORTISTAS NA AMAZÔNIA O Alto Purus. Ano I - Número 4. Sena Madureira (AC), 15 de março de 1908.

Render preito de justiça aos que primeiro avançaram por terras e águas desconhecidas, devassando o que nelas existia de misterioso e fornecendo à humanidade um largo e fecundo campo de ação para novos empreendimentos, é dever comezinho de todos os que se preocupam com o estudo da história, indo beber na fonte de origem a causa remota do progresso e bem estar que hoje desfrutamos. A fama que acompanha os nomes de Colombo, Magalhães, Cook, Vasco da Gama, Bougainville, La Perouse, Cabral e tantos outros notáveis descobridores de novos continentes e de novas ilhas só é ultrapassada pela aventuras de Marco Polo, dos fenícios e dos cartagineses, atirando-se à vastidão dos mares ignotos, povoados, conforme a lenda, por animais monstruosos, de forma estranha e aterradora, sentinelas vigilantes colocadas na derrota dos audazes navegantes. Ao passo que desconhecidas regiões iam sendo desvendadas ao saber e comércio dos povos do Ocidente, aumentando desse modo a compreensão física do nosso planeta, novos mercados, feitorias, possessões iam surgindo, trazendo aos seus descobridores, escapos ao naufrágio e à morte, honras, riqueza e fama. Desse modo e com os fracos recursos dessas remotas eras, chegou-se ao conhecimento da esfericidade da Terra, plenamente comprovada pela aventurosa expedição de Magalhães em torno do nosso planeta, atestando materialmente as teorias de Galileu, combatidas pelo fanatismo religioso e ignorante de então. Seguiram-se os descobrimentos parciais empreendidos em cada parte do globo e em cada fração da terra pelos novos conquistadores, ávidos de ganho e de fortuna, à cata de ouro, especiarias, diamantes e outras riquezas, contidas em profusão, segundo a fama, nas regiões novamente descobertas. Conosco, no Brasil, sucedeu em época posterior e mais chegada aos nossos dias, o fenômeno de penetração que acabamos de narrar, partindo para o interior dos nossos sertões ousados bandos de aventureiros a devassar os seus mistérios e a explorar as suas riquezas. À zona do litoral, ordinariamente árida e hostil, pouco propícia à apropriação de fortuna rápida, sucederam as interminas planuras do nosso maciço central, atravessadas por cordilheiras alterosas em cujos flancos jaziam incontáveis tesouros, representados por minas preciosas quase inesgotáveis. A pesca nos inumeráveis cursos d’água da região e a caça abundantíssima das florestas virgens, forneciam os recursos de alimentação necessários às levas de descobridores, rudes pelo embate das intempéries e pelos costumes de então, afeitos sobretudo à luta com os elementos naturais e com os homens. 156


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Os que fraqueavam em meio da jornada eram fatalmente sacrificados e vítimas do gentio feroz ou das enfermidades adquiridas, tombavam de vez assinalando com os seus corpos a luta em demanda do sertão ignorado e das riquezas sem par. Posteriormente, em época muito aproximada do nosso tempo, o vale do Amazonas, desde o Atlântico aos Andes, com o seu inesgotável reservatório de riqueza natural, ofereceu vastíssimo campo à atividade humana, representada mui especialmente pelos audazes filhos do norte do Brasil, entre os quais tem primazia os naturais do Ceará, terra tão poeticamente descrita por alguns dos nossos mais eminentes prosadores e tão malsinada pela natureza, hostil e adusta naquelas paragens, castigadas perenemente por um excesso de luz solar que traduz a sua característica e produz as suas desgraças. A Amazônia próxima, com as suas imensas florestas e os seus caudalosos rios abria os flancos possantes de sua vitalidade sem par, ao êxodo dos expatriados do berço natal, por força dos fenômenos meteorológicos, irregulares e desencontrados, na boa como na má fortuna, tornando quase inabitáveis serras e vales, por momentos, cheios de seiva, vida e movimento. E assim foram avassaladas pelo ardoroso bandeirante nortista as regiões do vale do Amazonas, demonstrando ao próprio filho da terra as riquezas que possuía, esquecidas e abandonadas com um menosprezo verdadeiramente criminoso. E assim foram desbravadas e conquistadas ao deserto e à inclemência do meio, as terras que vão do Javari ao Tocantins, com inauditos sacrifícios dos seus primeiros povoadores. Quando o fenômeno das secas periódicas se estendia ao Rio Grande do Norte e à Paraíba, também daí partiam novas levas de infelizes patrícios, em demanda da região amazônica, onde iam prestar benéfico concurso, ao lado dos seus vizinhos cearenses e com eles irmanados na mesma dor e no mesmo destino. O fato mais interessante desta arremetida para o ocidente, ou para as nossas fronteiras de noroeste, se verifica na facilidade deveras admirável com que o nortista emigrado se adapta à nova terra, cujos caracteres físicos são diametralmente opostos aos da sua região natal, principalmente sob o aspecto hidrográfico. Apesar dessa diversidade, por todos conhecida, o cearense, como o nortista em geral, se identifica ao novo meio com facilidade assombrosa, dominando os aborígenes e criando para o Brasil novas fontes de riqueza, como sucede presentemente com o Acre, que pode ser considerado como uma conquista do braço cearense, por ele mantida e integrada na comunhão nacional. Só quem moureja nestas paragens, sentindo e apreciando a luta em prol de sua civilização e progresso, pode aquilatar a soma de esforços e sacrifícios empregada pelos seus primeiros descobridores para tornarem-nas capazes de habitabilidade, 157


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fazendo contrastar a vida e o movimento de hoje com a mudez das florestas e a oposição do meio de outrora. E é ao humilde retirante de outros tempos, fugidio e esquálido das terras calcinadas pelo sol ardentíssimo, acossado pela malignidade dos elementos, que se deve a atual existência industrial do Território do Acre e de grande parte da Amazônia, concorrendo como nenhum outro povo para a riqueza pública. Por isso e tendo em vista o começo do nosso obscuro artigo, somos obrigados a cumprir iniludível dever de justiça histórica, elevando aos modestos obreiros devassadores dos sertões acreanos o altar da nossa gratidão e afeto, pelo muito que fizeram, fazem e hão de fazer em prol do Acre, de sua propriedade, prosperidade e grandeza. ***

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SENA MADUREIRA A Capital do Departamento O Alto Purus. Ano I - Número 4. Sena Madureira (AC), 15 de março de 1908.

Fundada a 25 de setembro de 1904, pelo general Dr. José de Siqueira Menezes, primeiro prefeito deste Departamento, acha-se a capital situada à margem esquerda do rio Iaco, uma milha a montante da confluência do mesmo rio Caiaté, e a 24 quilômetros do encontro do Iaco com o Purus. Por ela e dividindo-a do Estado do Amazonas, bem como o Território do Acre, passa a linha geodésica Beni-Javari, que separava o Brasil da Bolívia, antes da celebração do Tratado de Petrópolis, achando-se a povoação colocada exatamente a 9°, 08’, 11” de Latitude Sul e a 68°, 38’, 58” de Longitude W. de Greenwich. A sua distância de Manaus, capital do Amazonas, é de 1.288 milhas marítimas de 60 por grau, sendo de 135 metros a sua altitude sobre o nível do mar. A uma milha de distância à jusante, contada sobre o rio Iaco, e a sua margem esquerda, acha-se a povoação amazonense Boca do Caiaté, situada exatamente na confluência dos dois últimos rios. A existência dessa localidade é devida exclusivamente aos esforços dos proprietários dos seringais que nela se confinam, pertencentes aos finados coronéis Hermínio Pessoa, major João Carlos da Silveira e ao coronel José da Costa Gadelha, prestimoso comerciante, atualmente autoridade naquele lugar. As primeiras autoridades da União vindas em 1904, para o estabelecimento do regime federal neste Departamento, foram gentil e hospitaleiramente recebidas pela população daquela localidade, aonde as mesmas se albergaram por mais de um ano, a vista da não existência na ocasião do lugar Sena Madureira, ocupado então por frondosa e espessa mata virgem, apenas perlustrada pelos caçadores em suas excursões cinegéticas. Tratou-se imediatamente da construção da nova cidade, o que teve lugar a 25 de setembro de 1904, com o estabelecimento de uma pequena e modestíssima barraca, aberta inteiramente aos ventos e coberta de folhas de palmeira, como é de uso na região. Nessa barraca, à falta de coisa melhor, davam as autoridades do Departamento as suas audiências, efetuavam-se as cerimônias do casamento civil e, enfim, praticavam-se todos os atos do foro e da administração exigidos por Lei. Deu-se começo imediatamente à derrubada da mata, para a abertura de ruas e construção de prédios da atual povoação, restando apenas atualmente, da barraca original, atrás mencionada, um marco de madeira de lei, implantado no local aonde ela outrora teve a sua efêmera e importante existência, com inscrições indicativas do fato. Esse humilde madeiro rememora os primeiros passos para a fundação da 159


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nova cidade e atesta, na sua imobilidade de matéria inerte, os esforços e sacrifícios feitos para a construção da localidade, em meio da selva luxuriante. Pouco tempo permaneceu entre nós o general Siqueira Menezes, e poucos são os que aqui estão presentemente da sua comitiva. Entre esses convém destacar, como prova de indefectível justiça, o capitão do Exército Dr. Epaminondas Tebano Barreto, cujos eminentes serviços à administração do Departamento, quer como seu auxiliar imediato, quer como Prefeito interino, na ausência do prefeito atual, torna-no credor da estima e consideração dos poderes públicos do nosso País. Substituiu o general Siqueira, o atual Prefeito do Departamento Dr. Cândido Mariano, de há muito acostumado a perlustrar esta região de que é profundo conhecedor, o que de algum modo justifica a sua longa administração neste Departamento. Uns e outros, prefeitos e auxiliares, administradores e administrados, com o afã de bem servirem à Pátria e a este Departamento continuam na luta para a edificação da nova capital, com os fracos recursos que dispõem, envidando todos os esforços para a transformação que se operou até certo ponto miraculosa, da inextrincável e emaranhada floresta, numa cidade cheia de vida e movimento. A povoação já conta com um grande número de prédios, tem as suas ruas em número de dez todas abertas, possui mais de vinte casas de comércio, acha-se drenada convenientemente, de modo a permitir o fácil enxugo do solo e goza de excelentes condições de salubridade, como atesta veementemente a proporção mínima de mortalidade que apresenta. Possui também a cidade que tão rapidamente surge, uma bem montada farmácia, oficinas diversas, padaria, açougues, mercado público etc. Está a chegar, para ser instalada, a iluminação a petróleo, para as ruas e praças e cuida-se seriamente de ereção de uma igreja, do culto católico, cuja construção terá início mui brevemente. A administração do Departamento acha-se convenientemente instalada em prédio próprio, coberto de telhas francesas, o mesmo sucedendo com os seus principais auxiliares, residentes temporariamente num grande prédio, também pertencente a União e que será adaptado mui brevemente para o Foro e Tribunal de Apelação criados ultimamente. A cidade está cercada de sítios, uns situados para o centro, outros colocados em ambas às margens do rio Iaco, todos aproveitados no cultivo de cereais, hortaliças, legumes que muito concorrem para beneficiar a alimentação pública. A sua população é de mil habitantes aproximadamente, achando-se em funcionamento quatro escolas de ensino primário, mantidas pela Prefeitura, sendo duas na zona urbana e duas na suburbana, todas com ótima frequência de alunos cujo aproveitamento é deveras lisonjeiro. 160


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Reina a mais perfeita ordem entre os seus habitantes, sendo digno de nota o fato de ser quase nulo o policiamento e não haver cadeia no lugar. Escrevemos estas ligeiras e despretensiosas notas sobre a capital do Departamento, a fim de tornar conhecidas lá fora as nossas condições morais e materiais de existência, convencidos que prestamos bons serviços aos que se interessam pelo adiantamento e progresso desta região, mormente quando se cogita de uma sede única para a administração do Território do Acre, no caso da unificação das atuais Prefeituras, achando-se Sena Madureira indicada naturalmente, pelo seu grau de prosperidade, índole dos habitantes e situação geográfica, para ser o coração do novo organismo político, administrativo e judiciário. ***

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CONFRONTO NECESSÁRIO O Alto Purus. Ano I - Número 4. Sena Madureira (AC), 15 de março de 1908.

Obedecendo à índole do nosso modesto jornal e seguindo a sua orientação, traçada pelo afã que temos de servir ao Acre e aos seus destinos, continuamos na tarefa encetada mui obscuramente nos artigos anteriores, procurando demonstrar aos que desconhecem a vida desta região, os seus hábitos e costumes, a extraordinária pujança de suas riquezas e o desejo contínuo de seus habitantes em vê-la prosperar, crescer e desenvolver-se. É tal a semelhança de vida dos habitantes dos Departamentos do Território do Acre, e existe tanta afinidade entre os mesmos, que julgamos poder, sem receio de errar, estudar a sua índole e tradições no Alto Purus, sabendo de antemão que as nossas observações se estendem, salvo questões de detalhe, a todo o território compreendido do Javari ao Madeira, incorporado ao Brasil após o Tratado de Petrópolis, graças ao patriotismo de seus moradores e às benéficas negociações levadas a termo pelo Governo da União, por intermédio do barão do Rio Branco, nosso mui digno ministro do Exterior. Nunca serão demais os louvores entoados aos que entregaram à Pátria esse riquíssimo trecho de território, contribuindo para ampliação das nossas fronteiras nestas paragens e concorrendo para aumento da riqueza pública, atestado veementemente pelas rendas arrecadadas, em crescimento de ano para ano. Infelizmente o desconhecimento que ainda existe no Sul da República dos interesses mais vitais do Acre, das suas aspirações e desejos, contribui bastante para entorpecer a marcha do seu desenvolvimento, de modo a dificultar-lhe a existência, entregando-o quase manietado à inércia dos acontecimentos, embora a sua evolução atual, para o progresso e civilização, demonstre cabalmente a aptidão de seus filhos para gerirem diretamente os seus destinos e superintenderem as suas próprias necessidades. Quem conhece a zona banhada pelo Juruá, Purus e Acre, há poucos anos atrás, quando a mesma se achava sob o domínio boliviano de direito e amazonense de fato, sente hoje, vendo-a entregue à União, verdadeiro deslumbramento, tal a evolução rápida porque passou ao influxo tonificante dos novos métodos de governo, apesar das faltas costumeiras às terras novas, libertas repentinamente do meio que as atrofiava. A fundação de cidades, centros de civilização e ordem, em lugares outrora ocupados por modestos barracões de seringueiros ou misteriosas florestas virgens, veio dar a nota animadora no nosso meio, revelando aos moradores ribeirinhos ou ao forasteiro empreendedor a capacidade dos habitantes para se desenvolverem dentro 162


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da órbita legal própria a todo povo politizado. Não ocultemos a verdade, rogando que ainda temos muitos chãos a caminhar para atingirmos ao nível obras que nos convém, mas confessemos, como nossa justificativa, que tais erros provém ainda do regime em que vivíamos, essencialmente acanhado e atrofiante. É impossível transformar repentinamente os hábitos de um povo, acostumado a sofrer continuamente toda sorte de injustiças e revezes da fortuna, de modo a acobardar-lhe o ânimo, enfraquecendo-lhe o caráter. Por isso não se pode esperar, salvo exigência inqualificável, a perfeição completa das administrações do Território do Acre, perfeição essa difícil de ser atingida mesmo em centro muito mais civilizados e de muito maior cultivo intelectual que o nosso. São de ontem, são de todos os tempos e de todas as épocas, as acusações feitas aos detentores do poder, nas diversas circunscrições políticas de nosso país. Continuamente, se observa a luta aberta entre facções que pretendem galgar o domínio dos negócios públicos, atirando-se mutuamente as mais torpes inventivas e os mais feios epítetos. O Acre não podia escapar a esses maus hábitos, mormente se achando como agora na sua fase de construção, o que atenua sobremodo os erros praticados. Mas, confrontando-se desapaixonadamente as faltas que porventura tenham aparecido nas administrações acreanas, com os enormes benefícios auferidos pelos habitantes, ver-se-á, por ligeira análise, o saldo favorável pelos mesmos obtidos, após a integração do Território à comunhão nacional. Qualquer que seja o aspecto encarado, a zona adquirida à Bolívia, difere extraordinariamente, em sua vida, garantia de existência e de fortuna, desenvolvimento moral e material, do seu estado de outrora, à mercê do arbítrio e da violência. Com a soma de poderes quase ditatoriais que os prefeitos têm em mão por força das leis e regulamentos em vigor, são para notar a tolerância dispensada aos que aqui mourejam e as garantias asseguradoras dos direitos e da liberdade dos que aqui vivem. Talvez que com faculdades menos amplas, em outros pontos do território nacional, os dirigentes dos negócios públicos, influenciados pelo meio, tivessem praticado toda sorte de danos ao bem público. Pelo menos é o que vemos e apreciamos diariamente em diversos Estados da União, para os quais estão voltadas todas as vistas e cujos habitantes apelam continuamente ante o Chefe da Nação, impotente, pelas leis institucionais, para dar-lhes remédio e acolhimento. Tanto quanto permite o nosso desejo de acertar com as desvantagens resultantes do nosso apoucamento intelectual e parco tirocínio administrativo, temos envidados esforços para conduzir este Departamento à meta de sua felicidade moral e material. Para o futuro, outros mais capazes virão completar a obra que iniciamos, 163


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encorajados pela capacidade de trabalho da população, sua índole ordeira e obediente às leis. Pena é que toda a nossa boa vontade em beneficiar condignamente a terra que nos foi entregue, se veja cerceada e quase anulada pelos fraquíssimos recursos pecuniários ao nosso dispor, incapazes, pela sua deficiência, para atender aos justos reclamos da população. Estamos certos, porém, da extrema benevolência dos poderes públicos da Nação para com o Acre, e aguardamos prazerosamente a época próxima, de serem por eles atendidos os clamores de que nos tomamos humilde porta-voz. Assim sendo, tudo temos a esperar para o progresso e desenvolvimento do Acre dos que dirigem o País, contando, como contamos, com a afirmação de nossos direitos civis e políticos, sob a sábia gerência administrativa do Dr. Afonso Pena, digno presidente da República, para cujo esclarecido espírito e critério apelamos, certos de sermos recebidos com solicitude carinhosa e justiça. ***

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O MOMENTO O Alto Purus. Sena Madureira (AC), 22 de março de 1908, Ano I - Número 5.

O nosso País passa presentemente por uma crise de exuberância em todas as suas forças vivas, revelada diariamente pelo aumento de sua resistência vital, entibiada e sem alento sério até a poucos anos atrás. Parece que uma atmosfera nova, mais rica do oxigênio vivificante e melhor dosada em seus elementos essenciais, formou-se em torno do nosso meio, contribuindo imensamente para o nosso bem-estar moral, econômico e material, fazendo-nos penetrar, de viseira erguida, na avenida larga do progresso iniciando uma nova fase de rejuvenescimento e vitalidade na nossa existência de povo civilizado. Em todas as esferas da administração pública ou da atividade privada nota-se o incessante labor para a ordem e para o aproveitamento das nossas imensas riquezas, sob o influxo da paz interna, garantia única dos que trabalham e único bem que a humanidade pode almejar. O nosso ressurgimento industrial, econômico e financeiro, impôs-se à admiração das demais nações civilizadas do orbe, mesmo as que nos eram mais adversas, colocando-nos em lisonjeira situação moral, como representantes de uma raça que ora se levanta, reclamando o lugar que lhe compete na grande agremiação humana. Pela nossa índole essencialmente democrática, produto da amenidade do clima, da ausência de sofrimentos naturais e do pendor altruísta da nossa raça formou-se o Brasil atual, com a sua população ordeira e laboriosa, na busca incessante de progresso e adiantamento, sem as demasias dos povos recém-nascidos e sem o entorpecimento e vícios das nações veteranas. O fenômeno que vimos de citar, conhecido por todos que estudam a nossa contínua ascendência, tem encontrado sérios empecilhos em sua marcha, movidos principalmente pelos nossos mais próximos vizinhos, ciosos do aumento de nosso crédito, até há pouco completamente instável, invejosos do nosso adiantamento moral e sobretudo inimigos do desejo que nutrimos de sermos ouvidos e atendidos, no que nos concerne, no concerto das nações cultas. Depois de termos atravessado uma época tormentosa, desde a transformação do regime político até a guerra civil, travada infelizmente nos tristes dias da Revolta da Armada e nas campinas do Rio Grande, curadas as feridas produzidas pela luta, esquecidos os ódios de ocasião e restaurado o nosso crédito externo, começamos vida nova, sem embargo das dificuldades sem número que ainda apareciam. O momento atual, de franco e completo renascimento, deve a sua existência à política republicana, com todos os seus heróis e mártires e a Dedoro, Floriano, Benjamin, Prudente, Campos Sales, Rodrigues Alves e Afonso Pena, trabalhadores 165


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incansáveis da obra de engrandecimento do Brasil. Agora, como nunca, temos o dever de secundar aos que dirigem os nossos destinos, encaminhando-os para a nossa prosperidade. Quaisquer que fossem os erros praticados, oriundos da transição brusca que sofremos na nossa vida econômica e financeira, devemos continuar na faina ora encetada. Ao tumultuar das paixões sucedeu uma época de paz e de concórdia, na qual o progresso frutifica e prolifera vantajosamente. O nosso País revela-se ao mundo de forma admirável para a sua riqueza moral, quer sob o verbo potente de Rui Barbosa, no Congresso de Haia, quer cientificamente, ao influxo do labor honesto e glorioso de Osvaldo Cruz, em Berlim. A nós foram outorgados, como justas, as homenagens principais, nesses dois comícios, pelos mais eminentes representantes de todos os povos cultos. A diplomacia brasileira entregue até época recente a mãos inábeis, salvo exceções dignas de apreço e louvor, acha-se presentemente sob a direção altamente patriótica do barão do Rio Branco, cujos serviços sem par colocam-no acima de quaisquer encômios. Os melhoramentos materiais que surgem de toda parte atestam a nossa capacidade para o progresso, alentando-nos para a luta do futuro, toda pacifica e em qual os povos menos aptos sucumbirão fatalmente. Habitando essa remota região da República, criada pelo nosso esforço, secundado pelo patriotismo do governo da União, sentimo-nos bem, analisando sucintamente o grau de adiantamento a que chegou o Brasil, fazendo votos para que até nós se estenda essa caudal de benefícios, como filhos mais novos que somos, ainda sujeitos a todos os erros da primeira infância. O que nos falta, residentes, nestas ínvias paragens, para o nosso completo desenvolvimento, é a liberdade de dirigirmos os nossos próprios destinos, ao lado dos irmãos mais velhos da União, e recebendo os seus ensinamentos úteis e proveitosos. Talvez que ao Acre, à terra novamente agremiada ao patrimônio nacional, possa em breve prazo ser concedido o suplemento de idade que a mesma necessita para sua maioridade, de modo a colocá-la ao par das demais circunscrições políticas da Nação. Para gozar de tal favor não lhe faltam patriotismo, capacidade de trabalho, energia vital e riqueza. É o que confiamos e esperamos dos poderes públicos e especialmente do Congresso Nacional e do Presidente da República a quem entregamos a resolução dos nossos direitos, como brasileiros que são e que somos, desejosos de sermos úteis e proveitosos à Pátria. E entoando o presente hino de afeto e justiça aos feitos dos obreiros da nossa civilização, nutrimos a esperança de ver o Acre entregue aos seus filhos, os mais capazes, com certeza, para atenderem diretamente as suas próprias necessidades, 166


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com as mesmas responsabilidades e os mesmos deveres dos demais brasileiros. Muito respeitosamente o Acre, sem representantes de seu sufrágio que possam defender os seus direitos e pugnar pelo seu futuro, julga-se merecedor da atenção dos poderes públicos, colocado como se acha sob a égide patriótica dos mesmos, convencido da justiça de seus apelos e da razoabilidade de seus clamores. ***

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INSUFICIÊNCIA DE VERBA O Alto Purus. Sena Madureira (AC), 22 de março de 1908, Ano I - N° 5.

Desde o ano de 1904 em o qual, em sua segunda metade, foram organizadas as prefeituras nos Departamentos Acreanos, cada uma delas tem tido, no orçamento geral, a verba anual de 250:000$000, para todas as despesas da administração, constantes de instalação de repartições novamente criadas, aluguel de casas destinadas ao diferentes serviços, alimentação do pessoal dirigente e do trabalhador, compra e custeio de lanchas e embarcações miúdas, material de expediente, instrução pública, policiamento, imprensa oficial, construção de cidades, compra e transporte de material e gêneros alimentícios, alimentação de presos, serviço postal, farmácia, assistência pública e higiene, passagens, socorros públicos e mil outras despesas que ocorrem em qualquer administração, mormente nas que foram instaladas nos sertões acreanos onde todos os serviços estavam por fazer. Para o exercício financeiro de 1908, o Governo da União, tem em vista as necessidades do Território, aumentou a referida verba da importância de 100:000$000, constando que no atual exercício, para cada uma das Prefeituras, foi consignada a dotação de 300:000$000, destinada a todas as despesas do ano. É manifesta a insuficiência de tal recurso para as administrações dos Departamentos, a menos que se deixe ao abandono o progresso e desenvolvimento das cidades recentemente criadas, e paralisados os melhoramentos em trabalho, com grave prejuízo do futuro desta região e desprestigio dos poderes públicos. De há muito, por todos os meios legais, venho ponderando a escassez de recursos pecuniários à cargo dos prefeitos, impedindo-os de darem ampla satisfação aos interesses do povo, cujos réditos anuncia garantidos pelos cofres públicos ultrapassando quaisquer cálculos por mais extensos que sejam. As dificuldades mais insuperáveis que surgem nas administrações [trecho ilegível] postos que viessem [ilegível] a verba orçada anualmente indo assim ao encontro, desde anos das disposições do Decreto n° 6.901, de 26 de março de 1908, que regulamentou o Território do Acre. E sabe-se que só pela imperatividade de tais disposições é que cessou a cobrança de impostos arbitrários nos demais Departamentos do Território. Sabe-se também, ao contrário de outras zonas do Acre, que a Prefeitura deste Departamento, até a época presente, não onerou de um só real a aquisição, posse e manutenção dos terrenos aforados no patrimônio de sua sede, o que muito tem contribuído para o desenvolvimento da mesma, verificado pelo contínuo aumento de sua população e sensível acréscimo nas construções urbanas e rurais. Verificam-se mais todos os serviços públicos funcionam em prédios pertencentes ao 168


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Governo, sem os ônus de aluguéis caríssimos, em proporção, todavia, aos preços elevados da subsistência nesta parte do País e dos materiais de construção, mão de obra etc. Com tal deficiência de meios tem-se agido de maneira a incrementar, de modo lisonjeiro, a cultura moral e o progresso material da zona, à despeito de existirem melhoramentos cuja realização urge em bem dos interesses da comunhão e da nossa sociedade. Entre esses, figura no primeiro plano a criação de escolas primárias convenientemente dotadas de material e de pessoal docente idôneo, encarregadas de difundir a instrução no interior do Departamento. Das 21 escolas públicas que estiveram abertas, só existem quatro, funcionando presentemente nesta cidade, por falta de verba para custeá-las, havendo as demais sido encerradas à medida que iam faltando recursos à administração. Tais estabelecimentos de ensino, modestos como eram, prestavam regular auxílio à instrução e foram criados por ocasião da aprovação legislativa a medida que reservava, no orçamento da República, a importância correspondente a 20% da borracha exportada pelo Território, para ser aplicada em benefício do mesmo. Mais tarde foi criada a Comissão de Obras Federais, dotada com a referida verba, e desse modo a administração deste Departamento teve a sua despesa acrescida, sem que tivesse margem para cobrir o déficit que necessariamente se apresentou. E como essa e pelo mesmo motivo, se originaram outras despesas que trouxeram notável evolução no progresso desta cidade, o que é atestado exuberantemente pelo seu estado atual. Quando a Prefeitura e seus principais serviços de escritório funcionavam no lugar “Cayaté” no Estado do Amazonas, por não existir ainda a sede do Departamento, houve oportunidade de ser recolhida aos cofres públicos uma boa parte da verba orçada, pela carência de despesas que hoje são fatais e imprescindíveis. A despeito da construção da nova cidade, dos melhoramentos de toda ordem na mesma empreendidos, das despesas que os mesmos acarretam e da parcimônia dos dispêndios, a dde vida rudimentar e quase embrionária da administração do Departamento! Dessa forma e por esse modo cresceu as dificuldades e surgem tropeços que embaraçam a marcha progressiva do departamento, cuja população ordeira e laboriosa se adaptou, com suma facilidade, ao novo meio, fecundo em benefícios, promissor de melhoramentos e genuinamente democrata, aqui implantado no Governo da União. Calculamos que este Departamento tenha produzido para os cofres públicos importância superior a dez mil contos de réis, desde a integração do Acre a comunhão brasileira, com uma despesa aproximada de mil contos de réis, até ao exercício financeiro de 1908. *** 169


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QUATRO ANOS DE ADMINISTRAÇÃO BENÉFICA O Alto Purus. Ano II - n° 55. Sena Madureira (AC), 14 de março de 1909.

Completou-se ontem o primeiro quatriênio da nomeação do Sr. Dr. Cândido Mariano para a suprema direção deste Departamento. Não precisamos encarecer nem enumerar os grandes serviços prestados por S. Exa. no desempenho dessa alta delegação. O povo os conhece tão bem, ou melhor do que nós. Quando não bastassem os benefícios morais e materiais que S. Exa. há generosamente prodigalizado à terra que em boa hora administra, teríamos a apontar a ordem perfeita que S. Exa. tem conseguido entre os poderes, e entre todos os seus jurisdicionados, sem uma violência sequer. Por esse motivo tão grato S. Exa. recebeu ontem muitos cumprimentos, aos quais nós sinceramente nos associamos. ***

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NOTICIÁRIO Dr. Cândido Mariano

No dia 13 do corrente mês, conforme noticiamos em nossa edição anterior, os habitantes desta cidade fizeram significativa manifestação de apreço ao Sr. Dr. Cândido Mariano pelo aniversário de sua nomeação para o lugar de Prefeito deste Departamento. Às 2 horas da tarde, apesar do mau tempo, era extraordinária a concorrência de pessoas que foram ao edifício da Prefeitura cumprimentar ao eminente cidadão por tão auspiciosa data. Foi então instalado em um dos salões nobres o retrato de S. Exa., oferecido por seus amigos e admiradores, revestindo-se o ato da maior solenidade. Em nome dos ofertantes falou o Dr. José Martins de Freitas, advogado deste foro. Intérprete dos sentimentos gerais dos habitantes desta região, disse que a oferenda daquele retrato incluía uma intenção que cumpria explicar, e que era opulentíssima porque traduzia a coroa com que todos pretendiam cingir a fronte de um homem de bem, de notável merecimento e de grandes serviços à causa pública. Essa intenção era que ao lado do vulto grandioso do Marechal de Ferro e das grandes figuras proeminentes de Afonso Pena, Rio Branco, Siqueira de Menezes, J. J. Seabra, Tavares de Lira e tantos outros, fosse colocado o retrato que ali se achava como um exemplo para os vindouros e como um tributo de imperecível gratidão. Aquele dia, acrescentou o Dr. Freitas, era um dia de grandes alegrias para este povo, – antes da organização da Prefeitura entregue à ambição e à cupidez dos mais ousados e hoje sob o regime da ordem e da moralidade. Não eram, conseguintemente – em demasia as provas de admiração e aplausos à conduta ilibada do manifestado, ao zelo inexcedível da sua administração, ao talento e ilustração com que ele encara sempre os problemas de interesse público. Após ligeiras considerações sobre os benefícios prestados a esta terra pelo atual Prefeito, concluiu o orador com as seguintes palavras: “Certamente que ofendemos a vossa modéstia, mas não podeis, Dr. Cândido José Mariano nos recusar o direito de exprimir, pela maneira que nos pareceu mais conveniente, os nossos votos de solidariedade e simpatia à vossa pessoa. Aceitai esses votos que, se nada valem, têm inquebrantável cunho de sinceridade, e considerai como instalado neste salão o vosso retrato. E possa ele, aqui colocado pela vontade soberana de vossos administrados dizer, como se presente fosseis a quantos o virem: “Aqui estou em nome da justiça e como vivo exemplo integridade moral e do civismo”. As últimas palavras foram cobertas com estridente salvas de palmas e vivas aclamações. Respondendo, S. Exa., o Dr. Prefeito em expressões eloquentes, corretas, calmas e sinceras, fez longa e interessante referência ao seu labutar nestas regiões antes de ser escolhido para o elevado cargo que ocupa. 171


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Quando aqui chegou, disse S. Exa., só encontrou amigos e a eles devia em grande parte o bom êxito de sua administração. Grato à prova de estima que lhe tributavam naquele momento solicitava de todos que continuassem unidos e identificados no mesmo pensamento – a felicidade geral desta vastíssima região, que só poderia advir da paz e da tranquilidade de seus habitantes. As palavras de S. Exa. mereceram gerais aplausos, despertando o maior entusiasmo, aclamações e vivas durante muitos minutos. Depois usou da palavra o cidadão Manoel Carlos de Moraes; sendo encerrada a solenidade da instalação do retrato, que ficou colocado em frente ao do marechal Floriano Peixoto. Serviu-se em seguida profuso copo de água, trocando-se efusivas saudações. Vimos, por ocasião da instalação do retrato, entre outras, as seguintes pessoas: Dr. Samuel Libanio, diretor de Higiene; capitão Dr. Epaminondas Tebano Barreto, engenheiro auxiliar da Prefeitura; Dr. Martins de Freitas; coronel Laudelino Benigno; Álvaro Leitão, Juiz de Distrito; Dr. Cândido Libanio; tenente-coronel [GN] José da Costa Gadelha; Dr. Barbosa Lima; Guilherme Jessé; tenente Boaventura de Abreu, secretário interino da Prefeitura; Dr. Gonçalves Campos; tenente-coronel [GN] Antônio da Costa Gadelha; majores Custódio Miguel dos Anjos, Juiz de Paz da 5ª Circunscrição, e João Baptista de Alcântara, Juiz de Paz da 1a Circunscrição; Mendes de Almeida; Luiz Cordeiro; Pedro Nunes; Dr. José Xavier da Silveira; Manoel Medeiros, professor público; Horácio Costa Souza; Félix Constâncio Pereira; Delfim de Oliveira; Manoel Carlos de Moraes; Manoel Trindade Corrêa; João Tolentino; capitão Sergio Silva; Alberto Gonçalves; Genaro de Castro, Tabelião e escrivão do 1° Ofício; E. Mello e Filho, Tabelião e escrivão do 2° Ofício; João Felício de Souza; Aristides Libanio; Cassiano Ferreira; Ibrahim Ohab, Vulpiano José dos Santos; Mário Pinheiro, Promotor público interino; Severino Constando Pereira; Joaquim de Paula Pereira; José Libanio; Francisco Afonso Maia Alarcon; Joaquim Libanio; Antônio Raulino; Barquet José; José Mattar; Israel Lifschitz; Luiz da Fonseca; Miguel Francisco de Souza; Nilo Rabelo; Trajano Campos; João Pinto de Souza; Antônio Leite Cavalcante; Manoel Pires de Freitas; Pedro Ferreira da Silva; Agripino de Freitas; Joaquim da Silveira Ramalho, chefe interino do 1° Posto Fiscal; Estevam Abibe; José Sandri; Luiz Bello; Francisco Xavier; Teodomiro Leite Cavalcante; Alexandre Freire; João Marinho; Raymundo Barbosa; Miguel Feitosa; João Corrêa; João Scaplan; Antônio Gonçalves Ribeiro Passos; Nelson Pinheiro; Raimundo Fernandes; José Lobão.1

1  Nota do autor: Quanto machismo, não há o registro de uma mulher!

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CRÔNICA O dia 13 teve também sua festa, mas esta é o que se pode chamar de gala, porque em todos os corações se achavam armados arcos triunfais, com bandeiras, galhardetes e iluminação a – giorno, para que nele pudesse penetrar quem tanto merece. Nesse dia, completando três anos de administração o atual Prefeito, Dr. Cândido Mariano, que por essa causa recebia grandiosa manifestação popular, não só do povo de Sena Madureira, mas também do de Caieté, que unidos no pensamento único de render homenagem devida ao administrador honrado e progressista, ao amigo afetuoso, ao cidadão de tantos méritos e ao militar de feitos bravos pela causa republicana, aproveitaram essa ocasião para inaugurar no salão de honra da Prefeitura o retrato do Prefeito, tendo cabido ao Dr. José Martins de Freitas fazer aquele oferecimento e interpretar os sentimentos dos presentes e dos jurisdicionados de todo o Departamento do Alto Purus, irmanados com grandeza d’alma àquela manifestação. As vibrantes palavras do orador foram saudadas com palmas. Respondeu o Dr. Cândido Mariano em um belo discurso, cheio de expressões de gratidão e amizade ao povo que lhe vinha fazer a manifestação, agradecendo o concurso de cada um de seus auxiliares, o espírito ordeiro de um povo que lhe amenizava a árdua empresa administrativa. Terminou em calorosos vivas ao povo do Acre, sendo correspondido entusiasticamente. ***

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NOTICIÁRIO O Alto Purus. N° 4 - 15 de março de 1908.

De uma para as duas horas da tarde chegou a esta cidade a lancha MARIE, vinda da vizinha povoação – Boca do Caieté, embandeirada em arco e conduzindo diversas pessoas ali residentes que vieram tomar parte ativa na manifestação. Durante todo dia foram muitas as demonstrações festivas dos habitantes desta cidade, sendo notável a ordem que sempre reinou por toda parte. Por este motivo, o Dr. Cândido Mariano recebeu da colônia estrangeira aqui domiciliada o honroso documento que se segue: Exmo. Sr. Dr. prefeito Cândido José Mariano. Tendo recebido tarde conhecimento do terceiro aniversário de V. Exa., para Prefeito deste Departamento, a colônia estrangeira, representada pelos abaixo assinados, apressa-se em manifestar alta estima de que goza V. Exa., entre os estrangeiros por sua justa, ativa e correta administração, motivos pelos quais V. Exa., tem criado entre a colônia a inteira confiança nas autoridades brasileiras por V. Exa., tão dignamente representadas. Juntamos os nossos desejos pela saúde e força de V. Exa., tão precisas para o bem da cidade e do povo na esperança de que V. Exa., continuará a ser por muito tempo o digno representante do Departamento do Alto Purus. Sena Madureira, 14 de março de 1908. Assinados: Guilherme Jesse, Alemanha; Alfredo Reich, Alemanha; Aug. Ulrich, Alemanha; Sandri José, Itália; Israel Lifschts, Rússia; Raphael Levy, Marrocos e outros. ***

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CARNAVAL O Alto Purus. Sena Madureira (AC), 8 de Março de 1908, Ano I - N° 3.

Correu bastante animado o carnaval nesta cidade, apesar da escassez de artigos carnavalescos em nosso comércio. No sábado a noite um grupo de foliões percorreu a cidade atroando os ares com um alegre Zé Pereira, anunciando deste modo a chegada da Alegria e da Troça. No domingo gordo se exibiram nas ruas vários grupos fantasiados, dando assim uma nota alegre em contraste com os dias monótonos de labor cotidiano, em um meio bem parco de diversões como ainda é o nosso. Na terça-feira, o Grupo Carnavalesco Amigos da Troça realizou o baile à fantasia, que anunciamos na nossa edição passada. Para esse fim o prédio em que teve lugar o sarau foi galhardamente ornamentado de folhagens, bandeiras, serpentinas que se cruzavam em todas as direções, formando um labirinto caprichoso de cores as mais variadas, balões venezianos etc., predominando em tudo um bom gosto apurado e dando ao conjunto uma nota de alegria comunicativa. A iluminação distribuída profusamente, em harmonia com a ornamentação dava ao edifício uma aparência feérica e deslumbrante. Abertos os salões aos convidados, ali compareceu o que há de mais seleto em nossa sociedade. Senhoras e cavalheiros, em grande número fantasiado, animavam a festa, dançando e rindo e distribuindo espírito em esfuziantes e inofensivas pilhérias. É de justiça salientarmos a rara e saltitante graça do Caipora, exótica fantasia adotada pelo tenente Boaventura de Abreu, que ganhou vantajosamente o recorde da pilhéria e da galhofa, saindo-se galhardamente de tão grotesco quanto ingrato papel. Entre as fantasias femininas que ali se apresentaram, podemos apontar pelo aprimorado gosto das toilletes, as seguintes senhoritas: Santinha de Abreu, Constelação; Cacilda Benigno, florista; Raimunda Silva, andaluza; Rosa Siqueira, vivandeira; Martinha Lopes, tulipa; Maria Pinheiro, bailarina; Ana Silva, saloia; Raimunda E. da Silva, baiana; Guiomar Costa, japonesa; Maria Pessoa, inocência; madames Dada Benigno, andaluza; Adélia Pessoa, rainha; Marta Jesse, alvorada; Maria Barbosa, marinheira; Cecília Leite, norueguesa; Francisca Leite, saloia; Djanira Rodrigues, marujo; Maria Guimarães, luar e Gonçalves. Entre as fantasias masculinas destacaram-se as seguintes: diplomata, Dr. José Xavier; toureador, Joaquim Libanio; diabinhos, Genaro de Castro, Aristides Libanio e João Tolentino; abades, Dr. Samuel Libanio, Mario Pinheiro e Alberto Gonçalves; pelotiqueiros, Lindolfb Menezes e José Pinheiro; japonês, Feitosa; prestidigitador, Raimundo Fernandes; jóquei, Antônio Aladino; palhaços, irmãos Costa Souza; caipira, tenente Abreu; clown, Guilherme Jessé e toureiro, Álvaro Pereira. Estiveram presentes ao baile o Dr. Cândido Mariano, prefeito do Departamen175


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to, Drs. Teobaldo Barreto, Cândido Libanio, Samuel Llbanio, Martins de Freitas, Gonçalves Campos, coronel Laudelino Benigno, João Pinto de Souza, Álvaro Leitão, Alexandre Berrardes, Horácio Costa Souza, Manoel Medeiros, Eduardo de Melo Filho, Sergio Silva, Arthur Montenegro, Luiz Fonseca, Augusto Reis, Maia Alarcon, Antônio Leite, Teodomiro Leite, José Rebouças e outros muitos cujos nomes nos foi impossível apontar. A diretoria do Grupo dos Amigos da Troça foi incansável em gentilezas e não regateou esforços para bem servir aos seus convidados que se retiraram levando a mais grata impressão dessa festa encantadora que se prolongou até alta madrugada. Incontestavelmente, os valentes foliões obtiveram uma verdadeira vitória, o que é de ótimo augúrio e satisfatória garantia de um futuro próspero e brilhante. ***

No governo de Sena Madureira (AC), o prefeito Candido Mariano fundou o jornal dominical O Alto Purus. Em suas páginas publicou diversos artigos com assuntos pertinentes ao então Território Federal do Acre. Parte dessas publicações compõe este capítulo.

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Cândido Mariano (assinalado), quando dirigente do Departamento do Alto Purus, com sede em Sena Madureira (AC), esteve reunido com representantes da região e integrantes da colônia acreana na Capital Federal (Rio).

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Relatรณrio

RELATร RIO

Do Prefeito do Alto Purus

Sena Madureira (AC), 24 de janeiro de 1906. 178


Relatório

Ao Exmo. Sr. Dr. J. J. Seabra, DD. Ministro da Justiça e Negócios Interiores.

Em obediência ao que me foi determinado pelo Exmo. Sr. General delegado da União, em ofício n° 164, de 28 de outubro do ano próximo findo, recebido nesta Prefeitura, há poucos dias, passo a expor a V. Exa., as principais ocorrências sucedidas neste Departamento, no referido ano, a fim de que possais incluir no referido relatório que tendes de apresentar ao Exmo. Sr. Presidente da República, e que será distribuído aos membros do Congresso Nacional, por ocasião de sua próxima abertura. Limitar-me-ei, pela escassez de tempo necessário para atender ao mencionado ofício que traz a nota de urgente, a dar a V. Exa., informação sintética do que tem ocorrido na gestão dos negócios públicos, no Departamento que tenho a honra de dirigir, graças à nímia bondade do Governo da União e a imerecida confiança que em mim o mesmo depositou, confiando em demasia nos meus fracos recursos intelectuais e débil tino administrativo. Estou preparando convenientemente o relatório anual, que tenho de apresentar a V. Exa., no qual, com o suficiente desenvolvimento, tratarei das questões que, mais de perto, afetam os interesses desta importantíssima zona do território nacional, relacionando e justificando as medidas que tenho tomado em prol do seu progresso e bem estar, e propondo ao Governo as providências cuja adoção se me afigura mais urgente, nas circunstâncias atuais do território do Acre. Acredito que até fins de março vindouro terá V. Exa., em mão o referido relatório, acompanhado de mapas do recenseamento da população do Departamento, de estatística de sua produção agrícola e extrativa, de plantas de diversos trechos dos rios que ao mesmo banham e de outras anexas, necessárias ao estudo e conhecimento da zona, em cuja administração me acho. Então caberá a cada um dos ministérios que compõem o supremo governo da República, colher o que lhe aprouver respectivamente, no caso que as minhas fracas considerações encontrem guarda e cabimento. 179


Relatório

Sem embargo da crise econômica que avassala as praças de Manaus e Pará, fornecedoras ao comércio do interior, das mercadorias que o mesmo precisa, para a exploração da goma elástica, principal fonte de riqueza desta região, crise que repercutiu intensamente neste Departamento, pela insuficiência dos suprimentos feitos aos proprietários de seringais, foi bastante satisfatória a quantidade de borracha e caucho despachada no ano findo, pelos dois postos fiscais deste Departamento, a qual atingiu o peso bruto de 2.148.095 (dois milhões, cento e quarenta e oito mil e noventa e cinco) quilos, sendo que, computando-se a mesma pela média de 5$500 o quilo, se tem a sua importância total no valor de 11:814$522 (onze mil e oitocentos e quatorze contos e quinhentos e vinte e dois réis), sobre a qual a União arrecada a importância de 2:126$613 (dois mil, cento e vinte e seis contos e seiscentos e treze réis), da percentagem de 18% que lhe cabe, como imposto de exportação nas alfândegas. Devo notar que a essa importância, tem de ser adicionada a proveniente dos impostos de indústria e profissão, consumo, venda de estampilhas, selo de verba, transmissão de propriedades, taxa judiciária e outras que estão sendo cobradas e cujo total mencionarei no meu relatório definitivo, por não ter em mãos no momento atual os dados completos a respeito, ainda em poder dos exatores respectivos. Sendo a despesa orçada para o Departamento, calculada em 369:690$, pelos Ministérios da Fazenda e do Interior, e supondo que a mesma seja inteiramente esgotada, o que não se dará, tem-se a renda líquida para o Tesouro Nacional, de 1:756$923, a qual apresenta às apreciações mais apaixonadas resultado compensador dos sacrifícios que a Nação empregou, para a aquisição desta parte do território do Acre. Quero crer que em anos normais, debelada a crise passageira por que passa da borracha, e munidos os proprietários de seringais dos elementos que ora lhes faltam, a produção anual neste Departamento, de borracha e caucho, atingirá a mais de três milhões de quilos. Continua a ser feito com toda a regularidade o serviço de fiscalização e arrecadação dos impostos, a cargo dos povos fiscais sob a minha imediata inspeção, concorrendo para esse resultado os funcionários dos referidos postos, sempre zelosos no cumprimento de seus deveres. Em 1° do corrente fiz transferir o primeiro posto para a povoação de Sena Madureira onde passou a funcionar, em prédio público, mandado construir para esse fim, ficando desse modo o tesouro desonerado do aluguel, que até aquela data pagava pela casa em que estava a referida repartição, na foz do rio Caiaté, conforme cientifiquei ao Exmo. Sr. ministro da Fazenda, em ofício de 3 de janeiro corrente. Sobre a procedência de uma partida de borracha, extraída no igarapé Macapá, 180


Relatório

afluente da margem esquerda do rio Purus, e que é atravessado pela linha geodésica Beni-Javari, divisória do Estado do Amazonas com o Território do Acre, surgiu, em dias de dezembro próximo findo, um incidente, havendo o agente fiscal do Estado, em Catiana, apreendido a referida partida, ao que providenciei, oficiando na ocasião ao Sr. general Delegado da União no Território do Acre, e ao Sr. Delegado Fiscal, em Manaus, mostrando-lhe a carência de razão que tinha para assim proceder o aludido funcionário, por se tratar de produtos de origem federal, e cuja procedência jamais fora contestada. A não ser esse pequeno incidente, fácil de ser removido e liquidado, nenhum outro houve entre esta Prefeitura e aquele Estado, mantendo-se, até ao presente, os seus funcionários e os da União em boa harmonia administrativa e cultivando cordiais relações. Felizmente, nenhuma perturbação da ordem pública tenho a registrar, durante o ano que findou, entregando-se os moradores desta zona aos seus afazeres habituais, confiados nas garantias que lhes concedem os poderes públicos do Departamento, e esperançados do futuro, à vista dos melhoramentos de ordem moral e material iniciados pelos referidos poderes. Vai muito adiantado o serviço de estatística e recenseamento da população do Departamento, achando-se recolhidos grande número de boletins distribuídos; pelos resultados até agora colhidos, pode ela ser computada em doze mil habitantes. Segue seu curso normal a Justiça pública, nos diferentes negócios que lhes estão afetos. Infelizmente, contínua ausente, no gozo de licença para tratar de sua saúde, o Dr. Juiz de Direito, o qual, ao lhe ser concedida a primeira licença pelo meu antecessor, apenas permaneceu nesta Prefeitura dois dias, havendo regressado a Manaus no mesmo vapor que até aqui o conduzira. A sua falta é por demais sensível, não só pela natural inobservância de alguns dos preceitos de Justiça, própria a leigos que inteiramente ocupam os cargos da mesma, como por não ser possível a reunião do tribunal do júri, forçando esta Prefeitura a conservar detidos os indiciados que a ele tinham de comparecer, os quais felizmente são em pequeno número, quase todos presos por crimes de pequena monta. Soltá-los, traria ainda maior inconveniente que o de conservá-los sob as vistas das autoridades, além da quebra de prestígio que às mesmas adviria com essa medida num meio nem sempre obediente e cumpridor das leis. Todavia, quanto à má fama que gozavam os habitantes deste sertão do Brasil, no que concerne à insubmissão dos mesmos aos preceitos legais e à ação das autoridades, nada tenho a articular em detrimento seu, porquanto basta um chamado de quem exerce a menor parcela do poder público, para que atendam pressurosamente 181


Relatório

ao que lhes é ordenado, o que faz com que seja o Prefeito do Departamento uma espécie de regulador de todas as questões de caráter público, e até as do domínio privado, sobre as quais muitas vezes é consultado. Com a soma de poderes que lhe confere a lei institutiva dos departamentos, imediato representante do Governo da União nestas paragens, dispondo, a seu talante, da força pública e sendo, em última análise, o supremo árbitro das questões que aqui se agitam, poderia o referido funcionário, por má fé ou ignorância, abusar cotidianamente, privando os seus administrados dos direitos que lhe são assegurados pelos usos e leis da República, a menos que a sua educação democrática, responsabilidade efetiva para com o Governo da União e desejo de bem servir à Pátria, não constituíssem um forte e insuperável obstáculo à prática dos erros que venho de enumerar. Dado o caráter provisório que tem a organização atual do Território do Acre, e sendo esperada a solução definitiva que ao caso cabe, procuro limitar a ação que me compete, no exercício do cargo que ocupo, às medidas de beneficiamento público, evitando sempre criar direitos novos, a fim de não sobrecarregar a Fazenda Pública com futuras indenizações. Assim é que tenho feito executar por administração todos os serviços iniciados e finalizados, aliás, com a vantagem de tê-los sob minhas vistas, arredando-me dos proponentes a contratos estáveis, plausíveis somente em situações definidas. É sobre os males que resultam deste estado de coisas, que tenho a honra de apelar para a benévola atenção de V. Exa., especialmente no que concerne aos interesses dos habitantes da zona que administro, grandemente prejudicados com a instabilidade de organização do Território do Acre, digno por certo, pela sua riqueza natural, renda e outras vantagens de menor importância; a figurar dignamente ao lado das outras circunscrições políticas de nossa Pátria, algumas das quais, ou por erro dos homens ou pela fatalidade das circunstâncias, lutam com toda a sorte de dificuldades para viver, embora o seu mal seja momentoso e de fácil cura. Releve-me V. Exa., o tratar de assuntos que escapam talvez à minha competência, e sirva-se desculpar-me com o muito amor que tenho a esta terra e aos seus destinos. Acham-se em grau satisfatório de adiantamento os trabalhos para a edificação da cidade de Sena Madureira, capital do Departamento. Já estão construídas diversas casas particulares, uma para o posto fiscal, desbravado o terreno para a construção dos prédios, abertas dez ruas e uma praça, iniciado o serviço para o estabelecimento de um quartel de força pública, e o de uma igreja, sendo esta última custeada por uma associação de particulares que, também, pretende montar um hospital, tentativa digna de auxílio, por parte da Prefeitura. 182


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Até bem pouco tempo era o terreno ora ocupado pela futura cidade, coberto de frondosa mata virgem e sem uma só barraca que atestasse a existência ali do homem policiado. Nota-se hoje bastante animação por parte dos foreiros dos terrenos urbanos e rurais, sendo que dos primeiros, constitutivos da cidade propriamente dita, mais de metade do seu número está requerida por aforamento, e nos rurais já se vê muitas barracas construídas, cujos proprietários são obrigados a cultivar efetivamente o solo, condição indispensável de vida e riqueza para os que ali residem. Recebi grande cópia de sementes da Sociedade Nacional de Agricultura, a qual sem demora atendeu ao pedido que nesse sentido eu lhe havia feito. Logo que se ofereça oportunidade, farei distribuir pelos moradores do Departamento as referidas sementes e estou convencido da utilidade dessa medida e dos benéficos resultados que a mesma trará. Durante o ano findo o estado sanitário do Departamento foi o melhor que se podia desejar, atentas as precárias condições de vida, dos que nele trabalham, não havendo epidemia alguma a debelar, tornando-se digno de nota o feto de só terem perecido duas praças do contingente federal, destacado nesta Prefeitura, ambas em virtude de desastre. Essas praças são em número de 60 e aqui se acham há dez meses. Toma-se dia a dia mais urgente a adoção de uma medida qualquer sobre a alienação ou doação das terras devolutas do Departamento aos seus beneficiadores ou proprietários das benfeitorias existentes. Já tive ocasião de apelar para a atenção do Governo Federal sobre esse momentoso assunto, o que mais de perto afeta a vida econômica desta região, assegurando aos que para aqui emigram a compensação de muitas amarguras e trabalhos. Como povoar o Território do Acre se os habitantes do mesmo não têm garantidos os seus direitos de primeiros ocupantes, e estão à mercê da lei, que tolera-os nas terras que utilmente ocupam, mas não lhes assegura a posse das mesmas, a título gratuito e oneroso? Sendo o primeiro e principal problema a resolver, o de favorecer o povoamento do solo, incrementando-o de todos os modos, é bem de ver o acerto das considerações que venho de expor e a justiça dos princípios de que me faço eco. Correram pacificamente os negócios na fronteira peruana do Alto Purus, sem que tivessem repetição os tristes sucessos (sic) de anos anteriores. Ansiosos aguardam os brasileiros ali moradores a solução do litígio a que estão sujeito parte do território daquela zona, fazendo ardentes votos para que os nossos bons e legítimos direitos sejam respeitados, pesando convenientemente na justiça internacional e nas deliberações dos que tiverem de resolver a questão. 183


Relatório

No que diz respeito à instrução pública, tenho a satisfação de comunicar a V. Exa., que já estão funcionando regularmente duas das escolas públicas criadas por esta Prefeitura, ambas com frequência animadora para o ensino. São as primeiras que aparecem nesta região, desde o seu começo de povoamento, há perto de 30 anos. É meu intento criar outras casas de instrução, dentro dos parcos recursos financeiros que dispõe a Prefeitura. Como V. Exa. terá condições de observar, por ocasião da apresentação do relatório anual desta Prefeitura, até 31 de dezembro findo, foram promulgadas as seguintes leis; criando duas escolas públicas de instrução primárias para ambos os sexos e à qual acompanha o respectivo regulamento; aprovando os estatutos da Sociedade de Beneficência e Caridade, para que a mesma possa funcionar no Departamento; regulando as atribuições dos juízes de paz, criados pelo Decreto n° 5.188, de 7 de abril de 1904; determinando a área necessária para o patrimônio de Sena Madureira, à qual acompanha o respectivo regulamento, para a concessão de aforamento perpétuo aos que requerem, no patrimônio da cidade, terrenos urbanos ou rurais; designando os nomes das ruas e praças da referida cidade; criando três lugares de guardas extranumerários, junto aos postos fiscais do Departamento, os quais se incumbirão especialmente do lançamento e arrecadação dos impostos de indústria e profissão, e do de consumo, pertencentes à União e cuja cobrança não foi até ao presente efetuada, pelos motivos expostos no aludido decreto. São estas considerações que me parecem de maior monta na ocasião presente, para os quais solicito a atenção de V. Exa., e do Governo da República. Digne-se V. Exa., aguardar a apresentação do meu relatório anual, de conformidade com o que dispõe o Decreto n° 5.188, de 7 de abril de 1904, e aceitar os meus protestos de respeitosa estima e elevada consideração.

Saúde e Fraternidade. Cândido José Mariano – Prefeito

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EPÍLOGO

José Serafico Nascido em Belém (PA) e criado em Manaus (AM), constitui-se, pois, em “cidadão de duas cidades”. Nesta construiu sua reputação intelectual, tendo passado como mestre e diretor de faculdade da Ufam. Observador participante da política regional e nacional, expressa semanalmente sua opinião em artigo jornalístico. 186


Epílogo

CENTO E VINTE ANOS PARA NÃO DESLEMBRAR Utopias existem. Sem elas, o homem não teria dado um só passo... Formada no imaginário dos seres humanos, ela lhes assegura a disposição para enfrentar as dificuldades, vencer os obstáculos e chegar ao lugar desejado. Da caminhada árdua e arriscada, do enfrentamento bravo, das tentativas tantas vezes frustradas nos dão conta as páginas da História. Até o dia em que o não-lugar é alcançado. Ícaro teve as asas derretidas. Da Vinci não logrou tirar do papel o objeto voador que seu talento e sua visão antecipatória elaboraram. Nem Bartolomeu Lourenço de Gusmão pode ver sua passarola cortar os ares. Depois, a geringonça foi batizada de helicóptero. Coube a Alberto Santos Dumont alcançar a utopia de tantos outros sonhadores. À parte outros que reivindicam para si a chegada a esse não-lugar: o espaço e o homem nele navegando. Ao pisar na Lua, Neil Armstrong disse muito mais do que as palavras simples de sua frase expressavam: um pequeno passo para o Homem, um grande passo para a humanidade. Por isso, negar a utopia é negar a própria vida humana. É rejeitar a História. Pior que isso, é consagrar e congelar a realidade, como se ela fosse estática, imóvel, impossível de alterar-se. Hoje, sabe-se, nem mesmo as formações geológicas, que um dia se pensava imutáveis, têm tamanha dureza. Em períodos mais largos, rochas e montanhas também se movem, mesmo que não cheguem a ir a Moisés, quando ele se nega a delas se aproximar. Quem sabe não vão a outros deuses? Muitos dos quais, afirmam alguns, eram astronautas. Num certo sentido, o recente desprendimento de gigantesco iceberg tantas vezes anunciado dá exemplo literal do que Bauman chamou sociedade líquida.1 Quando, no final do século XIX, um grupo de andarilhos seguia Antônio Vicente Mendes Maciel no sertão baiano, não era mais que a busca desse não-lugar 1 BAUMAN, S. Danos colaterais. Desigualdades sociais numa era de globalização. Zahar Editores, Rio de Janeiro/RJ, 2013.

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Epílogo

tão desejado que movia seus passos. Vivia-se época conturbada de nossa História, ainda que imaginar a possibilidade de tempos menos conturbados pareça também exagerada idealização da sociedade humana. Ora é maior, ora é menor a velocidade com que se estabelecem e rompem as relações sociais; jamais elas estacionam. É destino dos homens caminhar, muitas vezes arriscando o retorno à estação anterior, inclusive. Disso nos dão conta fatos nem sempre perceptíveis à observação de todos. Não terá faltado a Antônio Maciel, depois chamado Conselheiro ou Bom Jesus Conselheiro2, a visão de que um mundo melhor, menos desigual, em que os homens seriam livres. Era uma possibilidade que cumpria transformar em realidade. Incomodado pela proclamação da república e inspirado na doutrina atribuída a um de seus mais antigos predecessores, o Mago do Sertão3 repetiu experiência havia séculos empreendida em várias regiões do Planeta, e que se repetiria depois. Embora ainda hoje razão de permanente polêmica, os objetivos de Conselheiro estão por ver firmada sua procedência. Mesmo a carnificina imposta pelas forças oficiais contra o que consideravam risco à incipiente e claudicante república instalada, não desestimulou ações com propósito equivalente. Ainda hoje, o Brasil registra acontecimentos semelhantes aos que se ligam à Guerra de Canudos 4. Ou a razões que alguns encontram como justificativa da instalação do arraial e, depois, de sua exterminação. Quando se relembra o sacrifício de Antônio Conselheiro e seus seguidores, passados 120 anos do lamentável episódio, é oportuno passar a vista pelo País. Nele ainda se podem observar condições semelhantes às que prevaleciam no final do século XIX. Também soa oportuna uma comparação entre a situação vivida no campo, naqueles aparentemente longínquos tempos, com a realidade campesina brasileira. Não que haja semelhanças capazes de transformar os acontecimentos de hoje em versão farsesca dos acontecimentos de ontem, naquele então do último lustro dos anos 1890. Não obstante, ao menos uma comparação entre aqueles e os atuais fenômenos, no mínimo permitirá compreender melhor aspectos pontuais da sociedade brasileira. Nossa tentativa, portanto, será a de pôr em confronto o sentido daquele movimento, suas alegadas5 causas, com políticas públicas e condutas privadas que levam à perma2 BRANDÃO, A. nega evidências de que tal denominação tenha sido, de fato, algum dia atribuída a Antônio Vicente Mendes Maciel. (A sociologia d´Os sertões, Artium Editora, Rio de Janeiro/RJ, 1996). 3 Como o chama o escritor francês Lucien Marchal, autor de livro com esse nome: Le mage du sertão (Paris, France, Librairie Plon, 1932). 4 Uma denominação no mínimo inadequada, quando se avaliam as forças em combate. O resultado, a destruição do que se chama Arraial de Canudos e o massacre de toda sua população, o revela. 5

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Alegadas, porque depende dos analistas e historiadores a preferência por atribuir o movi-


Epílogo

nente tensão no interior do vasto território da terra um dia chamada Pindorama. Quando, em 1997, rememoramos6 a Guerra de Canudos, a esperança repousava no despertar de atenção e mobilização de consciências, em todo o território nacional, e em todas as camadas da sociedade, não apenas do mundo acadêmico. Talvez assim, os objetivos dos eventos se alcançassem mais expressivamente e dessem sentido à denominação de, pelo menos no Amazonas, alguns dos eventos programados: Canudos, Perdão! (2 Exposições de imagens); Lembrar, para não repetir (Seminário). A história posterior mostrou a fragilidade do alerta pretendido, diante do avanço dos negócios no campo, que faz o Brasil sustentar sua economia nos moldes em que o fazia, durante o que se convencionou chamar Primeira República (18891930). A pauta de nossas exportações é representada majoritariamente pelos bens primários7, cuja produção alterou tão profundamente as relações sociais, que há uma espécie de Canudos em miniatura (nem por isso, menos anacrônico) em muitos dos Estados, seja na região Norte, seja no Centro-Oeste, seja ainda no Sul.

O QUE FEZ DE ANTÔNIO MACIEL UM ANDARILHO Destinado a seguir carreira religiosa, Antônio Vicente Mendes Maciel viu ruir esse projeto de seus pais, quando lhe morreu a mãe. Ele tinha apenas quatro anos de idade. O segundo casamento de seu pai, um comerciante, teria sido traumático para aquele menino nascido em 1830, em Quixeramobim (CE). Depois da orfandade paterna, Antônio Vicente ficou à frente dos negócios da família. Deu-se mal, do que resultou a ruína dos negócios e processos por dívidas não pagas. Por isso, decidiu deixar a cidade natal. Não sem antes ser preso. Depois de perambular por cidades do sertão nordestino, pregando a palavra de Cristo e atraindo cortejo de pobres de toda origem – escravos recém-libertos, camponeses explorados, negros e índios -, Antônio estabeleceu-se em um vale no lado norte do rio Vaza-Barris. Lá, criou o que chamou de Belo Monte, embora esse nome guarde enorme distância da configuração fisiográfica do lugar. A essa altura, já o chamavam Bom Jesus, Conselheiro ou Antônio dos Mares. mento de Antônio Maciel a causas diversas. Não falta quem o veja como antirrepublicano, como há os que o veem como um fanático religioso. 6 Refiro-me, aqui, aos eventos rememorativos realizados em vários Estados Brasileiros (na Bahia, mais expressivamente), pelo Núcleo de Estudos da Administração Brasileira- Abras, sob a coordenação do Professor PAULO EMÍLIO MATOS MARTINS. O Amazonas foi o segundo Estado, em número de eventos, a lembrar aquela página triste da história. (V. o apêndice). 7

Commodities, chamam-nos os que preferem a língua inglesa.

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Epílogo

A cada movimentação do séquito, mudava seu paradeiro; mudava também o nome pelo qual passavam a conhecer aquele andarilho pregador. Foi na localidade Canudos que se ergueu uma verdadeira comunidade, marcada por espírito fraterno, a ponto de impedir a exploração de um pelo outro e em que o carisma do líder assegurava a paz social. Não havia pobres, ali. Todos trabalhavam e comiam o suficiente para sobreviver com dignidade. É o que nos mostra a maioria dos autores que tratam do assunto, podendo-se considerar Paulo Emílio Matos Martins o mais explícito dentre eles.8 Como em muitos locais do Brasil que se jacta de ser moderno, a presença do Estado era quase nenhuma, pelo menos no que concerne à satisfação da população e à igualdade reinante. Assim se orientava o Arraial de Canudos. Talvez porque tenha insistido ainda no propósito de tornar-se religioso; talvez porque se tenha dedicado às contendas jurídicas, quando rábula; talvez em razão do sofrimento que sua madrasta lhe teria imposto, na primeira infância ainda – o fato é que as andanças de Antônio sempre despertaram suspeitas e hostilidades dos governantes e da Igreja. Os primeiros, empenhados em tirar proveito da recente proclamação da república, os outros pela perda de controle da comunidade cristã, trataram de impedir que o grupo liderado por Antônio Vicente acabasse por lhes tirar o espaço – aí, não mais religioso ou administrativo, apenas. O espaço político em que operava o andarilho poderia causar-lhes (aos religiosos e aos governantes) muitos problemas. Mesmo entretido com a direção de grupo tão expressivo (na sua fase de maior movimento, estimadas 24 mil pessoas), Conselheiro encontrava tempo para escrever comentários sobre várias passagens da Bíblia e divulgar muitos dos preceitos atribuídos aos evangelistas e outros santos da Igreja Católica. Muitos dos que estudam a personagem e seu movimento identificam naquele homem do sertão qualificação por alguns rejeitada. É o caso, quando se diz que ele sabia grego e latim, teria lido Morus, Prhoudon, Owen e Fourrier. Aí poderia estar argumento favorável à intenção de criar na Terra o que Jesus Cristo antes tentara – uma sociedade igualitária e livre.

O CONFLITO Diante das circunstâncias acima descritas, não é difícil admitir a multiplicidade de causas apontadas como determinantes do enfrentamento que em 1997 teve seu ponto final. 8

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MARTINS, P.E.M. A reinvenção do sertão. FGV, Rio do Janeiro/RJ, 2001.


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Para uns, a simpatia pelo governo monárquico, e a consequente hostilidade ao regime republicano levaram Antônio Conselheiro e seus acompanhantes à contestação da recém-instalada república. A criação de uma comunidade em tudo destoante do que propunham os novos governantes aparecia aos olhos destes como inadmissível desobediência. Era necessário combate-la, até o extermínio. Outros, no entanto, atribuem a certo fanatismo religioso a pregação que levou aquele membro da família Maciel a penetrar o sertão. Se isso não fosse manifestação de um estado mórbido que muitos vinculavam a enfermidades mentais da mais diversa denominação. Era ele um paranoico? Seria um louco de pedra, como tanto se diz? Pedras, ao que se soube e sua obra atestada por quase todos os que sobre ele e seu movimento escreveram, foram por ele apanhadas, sim. Só que no afã de construir igrejas, muros e cemitérios em todos os lugares por onde passava. Era essa a sua prática. Da loucura, os especialistas que se deram o trabalho de estudá-lo não chegaram a qualquer conclusão digna de registro. Resta, então, imaginar que a liderança de Antônio Vicente Mendes Maciel juntava ao carisma a experiência acumulada, primeiro como gerente dos negócios paternos; depois, como advogado prático (rábula) e professor de escola primária em um dos locais por onde passou. Tudo isso, misturado com a sensibilidade social de que era portador, terá levado Conselheiro à criação do Belo Monte e à imposição dos valores que, hauridos na doutrina pregada por outro andarilho, dezoito séculos antes dele, gerou a aversão e a furiosa hostilidade dos que o atacaram. Instalados desde 1893 em sua Pasárgada avant la lettre, Conselheiro e seus discípulos (súditos? cúmplices? asseclas? jagunços? capangas? companheiros?) recebem a primeira investida das forças oficiais. Comandava-a o Major Febrônio de Brito. Em Uauá, as tropas do governo foram rechaçadas pelos “fanáticos”, como os chamavam seus inimigos. A despeito da desproporção das perdas humanas (150 dos conselheiristas contra dez, entre militares – oito – e guias das forças do Estado). Conflitos corpo-a-corpo estiveram presentes naquela margem de rio transformada em teatro de guerra. Chegou-se ao exagero de proclamar que a lagoa do lugar, na Serra do Cambaio (depois chamada Lagoa do Sangue) tornou-se vermelha, tingido pelo sangue dos combatentes mortos às suas margens. Pouco mais de um ano após o primeiro fracasso do governo republicano, nova tropa foi incumbida de enfrentar a feliz população do Arraial. Dessa vez, chefiou as tropas do Exército Nacional o coronel Moreira César, cujo cognome dá ideia do horror em que se constituiu o conflito, naquele momento: Corta-cabeças. Moreira César se tinha notabilizado pelo desempenho na Revolução Federalista 191


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do Rio Grande do Sul, por isso sendo a ele dado o posto de comandante da terceira investida contra Canudos. Acostumado à guerra convencional de seu tempo, o oficial acabou morto. Tiros desferidos por algum dos guerrilheiros (porque não foi outra coisa, se não uma guerrilha) de Conselheiro, o mataram em plena ação bélica. Foi quanto bastou para a debandada. No seio da comunidade canudense firmou-se ainda mais a crença na santidade do líder nascido em Quixeramobim. Em abril de 1897, então, o governo montou uma expedição de que participaram algumas das guarnições das recém-criadas Polícias Militares (Bahia, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Amazonas, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul), em reforço às tropas federais. Todas contavam com os equipamentos mais avançados da época. Desde o início, era fácil perceber a intenção de desencadear operações voltadas à terra arrasada. Basta dizer que o próprio Ministro da Guerra comandou as operações. O marechal Carlos Machado Bittencourt instalou-se no Monte Santo, às proximidades de Canudos, em agosto de 1897. Levava ele, como reforço, mais 3.000 combatentes. No início de outubro daquele ano, quase 6.000 militares, depois de tomar as ruínas da “igreja nova”, foram surpreendidos pelos atiradores surgidos de túneis cavados pelos comunitários. Dia 5 desse mês, porém, foram mortos os quatro últimos sobreviventes. Dentre eles não estava Antônio Vicente Mendes Maciel, que (supõe-se) a disenteria teria matado em 22 de setembro.

O BRASIL, NO SÉCULO XX Muito se tem estudado da Guerra de Canudos. Disso tem resultado copiosa literatura, dentre ensaios, teses, dissertações, artigos acadêmicos e romances, destes sendo o mais conhecido o do peruano Mário Vargas Llosa, La guerra del fin del mundo9. Resta, feito o retrospecto acima, destacar alguns aspectos sociais e econômicos reveladores da proximidade e da distância, ao mesmo tempo, da pregação e da luta de Conselheiro e da realidade campesina deste Pais, agora listado dentre os dez mais ricos do Planeta. A Primeira República, que vigeu de 1889 a 1830, encerrou quando Getúlio Vargas chegou ao poder, inaugurando o que se chama Revolução de Trinta. 9 A primeira edição, em espanhol, foi publicada em 1981. A Editora Francisco Alves publicou, no ano seguinte, a primeira edição em português.

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De 1930 a 1945, período em que Getúlio Vargas se manteve no poder, ao lado de decisões restritivas dos direitos individuais (de tom nitidamente autoritário) foram introduzidas certas medidas populares, que podem ser simbolizadas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Enquanto os subversivos eram vítimas da ação implacável dos esbirros e tribunais de exceção, os operários viam amenizada a exploração de sua força de trabalho. Era a tentativa de inserir o Brasil num novo quadro de divisão internacional do trabalho e fazê-lo protagonista no processo de desenvolvimento capitalista em curso em escala internacional.10 Duas dessas manifestações de caráter econômico podem ser mencionadas: a criação da Petrobrás e da Companhia Siderúrgica Nacional. A primeira, destinada a explorar o petróleo, desde a prospecção até a distribuição, em caráter monopolístico. A CSN, dedicada à indústria pesada. Davam-se os primeiros passos no intenso processo de urbanização das capitais brasileiras, sobretudo. Tal processo, coerente com a forma entendida como desenvolvimento econômico, aprofundou-se nas últimas décadas, produzindo consequências semelhantes a experiências efetivadas em outros países. Dentre essas consequências, o êxodo rural, a negligência quanto à produção de alimentos para a população brasileira, o interesse por conquistar crescentes fatias do mercado internacional, os conflitos no campo e a repressão a movimentos de resistência popular. Passado o hiato democrático (1946-1964), instaurou-se no País nova ditadura. Desta feita, o ensaio autonomista da Era Vargas fez-se substituir pelo alinhamento subordinado às políticas do governo norte-americano. Então, vimos o bolo crescer11, ao mesmo tempo em que a tortura foi feita instrumento de convencimento e a delação de divergentes era duramente punida. Ás vezes, com a morte nas masmorras do sistema. Do ponto de vista econômico, nada há que tenha beneficiado os brasileiros mais pobres. Ao contrário, à riqueza acumulada pela ínfima minoria dos capitalistas (?) nacionais, muitos dos quais associados minoritários dos capitais estrangeiros, correspondeu o crescimento da pobreza. Passado o período autoritário (1964-1985), aprofundou-se a inserção subordinada da economia brasileira aos grandes capitais, muito por causa do processo de globalização em curso. De novo o campo se viu envolvido nas novas formas de luta de classes. 10 Quem queira ler mais sobre esse período e conhecer os mais importantes fatos políticos do Brasil, desde o Segundo Império, até a Constituição de 1988, deve ler ORLANDO SAMPAIO SILVA (A vontade de potência, Chiado Editora, Lisboa, Portugal, 2012). 11 Expressão muito ao gosto dos que aprovam a desigualdade social e entendem necessário tornar os ricos ainda mais ricos, para só depois dividir o resultado do trabalho coletivo. Ainda assim, nos mesmos moldes anteriores. Que ainda vigem.

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Agora, o interesse por produzir para exportar veio acompanhado da introdução de inovações tecnológicas no campo, e as ameaças ao emprego e à remuneração dos trabalhadores (no campo, mas igualmente nas cidades) se fizeram mais intensas. Daí podermos dizer que a luta iniciada por Antônio Vicente Mendes Maciel ainda não se destituiu de suas causas fundantes.

O CAMPESINATO BRASILEIRO NO SÉCULO XXI Especialistas em economia agrária e nos problemas dos camponeses veem cada dia mais distante a oferta de oportunidades aos habitantes das cidades do interior do País. Se há algumas que apresentam crescimento econômico, nelas não se constata a superação dos problemas sociais próprios ao clima de desigualdade reinante. A violência grassa e estabelece certo pânico nos habitantes das cidades, não apenas nas de maior porte, sabido que cidades médias e algumas pequenas cidades espalhadas pelo País experimentam igual sensação. No que concerne à paz no campo, estamos anos-luz de alcançá-la. Basta olhar os números colhidos pela Comissão Pastoral da Terra. Neles está registrada a verdadeira realidade vivida pelos que moram e – quando conseguem emprego – nele trabalham. O conflito, longe de parecer com o de que participaram da Guerra de Canudos, tem várias facetas, nenhuma delas atribuível ao carisma ou fanatismo, menos ainda à hostilidade à república em ação. O LEMTO – Laboratório de Estudos dos Movimentos Sociais e Territoriais informa serem quatro as características de nosso desenvolvimento agrário: 1. A persistência da concentração fundiária; 2. A crescente internacionalização da agricultura brasileira; 3. A transformação nas diretrizes produtivas da agropecuária; 4. A violência, a exploração do trabalho e a devastação ambiental. Nesse caldo de cultura, não surpreende a geração de conflitos, envolvendo crescentes parcelas das populações interioranas e abrangentes de diversas questões. Pelo menos três delas – conflitos relativos à terra; conflitos de caráter trabalhista; conflitos pelo acesso à água – têm merecido atenção da Comissão Pastoral da Terra. Outros, cuja dose de dramaticidade parece menor, também ocupam os estudiosos da CPT. O modelo escolhido (a exportação de bens de consumo primários) impõe processos de exploração exigentes de cada vez maiores áreas. Também exige a moder194


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nização dos equipamentos e a desvalorização do trabalho humano. A concentração fundiária, portanto, assegura a competitividade das empresas agropecuárias e faz com que ainda se registrem atos criminosos, como o que consiste em queimar as plantações e as casas de camponeses dedicados à agricultura de subsistência. De igual modo, o uso de tecnologia moderna torna o trabalho manual quase totalmente dispensável, o que concorre para expulsar de seu habitat os caboclos e camponeses de todas as regiões do País. Junte-se a isso a predação exigida para a produção agrícola em extensas áreas – e logo se terá pintado o dantesco quadro com o qual convivem os homens do campo brasileiros, 120 anos depois do sacrifício de Antônio Conselheiro. E os pregadores andam escassos...salvo os que pretendem disseminar a necessidade egoística do enriquecimento apenas material. Esses, se veem nas ruas, nas telas de televisão e em templos erguidos a pretexto religioso. Os números relativos à violência no campo, seja pelo assassinato de lavradores, líderes dos camponeses, religiosos comprometidos com a causa campesina; seja pela prática de expulsão de suas terras (de que a queima de suas propriedades é atividade recorrente e preparatória) ou a ameaça contra a vida deles e a pistolagem que os assedia revelam a dramaticidade da situação. Documento produzido pela Comissão Pastoral da Terra registra a ocorrência de 174 conflitos relativos à terra, em 2000. No ano 2006, marcavam-se 761 conflitos. Chegou a quase 1.080, a cifra apurada em 2016. Cerca de 6 vezes, em relação ao último ano do século XX. O conflito trabalhista, no mesmo período, tem os seguintes números:

Trabalho escravo Assassinatos

2000 21 1

2006 262 3

2016 68 61

Percebe-se com clareza a índole dos processos de exploração do campo, em todo caso ofensiva ao direito à vida e à paz, que se pensava conquistada pela totalidade dos indivíduos, nas cidades e nos campos.

Há, também, conflitos originados pela busca de acesso à água. Embora recurso natural abundante em quase todo o território nacional, ainda assim existem pessoas privadas de sua obtenção. É o que revelam os dados referentes ao período 2002 (14 conflitos) e 2006 (45 conflitos).

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O CAMPO – ONTEM E HOJE Resultante da peregrinação de Antônio Conselheiro e seu crescente séquito, Canudos surgiu à margem esquerda do rio Vaza-Barris, onde os romeiros pretendiam escapar à nova ordem jurídica e política, ao mesmo tempo entregues ao culto dos preceitos religiosos. O líder representava, mais que um simples gerente das coisas daquele povo, um organizador das bases sociais e orientador ideológico. Das tarefas próprias à gestão tratava Abade, um dos seguidores mais destacados de Maciel. Interessante, original e instigante, a tese de doutorado12 apresentado em 2001 à Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas – EAESP traz excelente retrato da paisagem do arraial. Mais que isso, da forma como aquele espaço e aquela comunidade eram administrados. Paulo Emílio corrobora, com fundamento, o que informam outros estudiosos quanto ao agrupamento humano que vivia e trabalhava às margens do Vaza-Barris. Destaca o caráter igualitário da condução dos interesses dos habitantes, esclarecendo que lá não havia propriedade privada dos bens de produção, mas somente dos bens de consumo. Estes, resultantes do trabalho coletivo, eram divididos a todos, segundo suas necessidades. Embora não seja bem essa a situação dos camponeses brasileiros, á de ser mencionado que as terras em que vivem já não lhes pertencem, nem individual, nem coletivamente. Proprietários que delas se apossaram, legal ou ilegalmente, mantêm latifúndios nem sempre produtivos. Quando calha de a terra ser produtiva, fácil é constatar quão injusta é a distribuição dos resultados do processo produtivo. Ocorre, ainda, de a terra ser considerada por grande parte dos seus proprietários (por contrato legal ou grilagem) como reserva de capital, mesmo se lavradores têm sido expulsos de áreas ocupadas faz décadas. Isso, quando não se registram condições de trabalho escravo. Boa parte dos conflitos no campo tem sua origem na desigualdade social que condena os mais pobres à submissão e contempla os detentores do capital com facilidades para continuar a descabida exploração do braço humano. Qualquer reação dos camponeses tem como resposta a mobilização das forças repressoras não raro promovendo chacinas, como as de Itumbiara e Eldorado dos Carajás o ilustram. Agora, não há um líder, porque uma instituição, o Movimento dos Sem-Terra é que reúne e orienta os trabalhadores do campo. Também falta o componente religioso que conferia a Antônio Maciel o conteúdo messiânico de que ele era portador. 12

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Ver nota de rodapé nº 8.


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Isso em nada altera as relações sociais entre as partes (proprietários, camponeses e forças oficiais), ainda que – e talvez por causa disso – do campo provenham recursos abundantes e participação expressiva no PIB brasileiro. Passadas tantas décadas, a questão camponesa continua a ser percebida como problema policial, não social. Neste sentido, foi assim que os sucessores imediatos de D. Pedro II encararam a atuação de Antônio Vicente Mendes Maciel e seus numerosos seguidores. No final do século XIX, a chacina foi mais trágica apenas pelo número de mortos – milhares, ainda, das cerca de 24.000 que se instalaram naquele lugar, na época de maior afluência ao arraial. Nem por isso, é de admitir-se a repetição das chacinas deste século, sobretudo porque às forças policiais cabe assegurar a paz dos cidadãos, nas cidades e no campo. O número de policiais, fardados ou não, que têm morrido em combate reclama concepção mais adequada do papel das forças – não como repressoras da população, mas guardiãs da segurança dela. Mais não fosse, porque é dos tributos que os cidadãos pagam que vem o salário pagos aos profissionais da segurança pública e individual. Parece oportuno lembrar o reaparecimento de pretensões messiânicas, não obstante a acelerada corrida tecnológica a que assistimos. Enquanto a indústria e outros setores da economia – e da vida – sofrem profundas alterações, em decorrência das conquistas científicas e de sua consequente aplicação em atividades do cotidiano da sociedade, surgem aqui e acolá indivíduos portadores de mensagens e propostas absolutamente incompatíveis com o pretendido racionalismo. Outros Antônios Conselheiros ainda transitam pelas ruas das cidades brasileiras, em especial o interior. A desesperança que tomou conta de boa parte dos contemporâneos faz crescer as hordas romeiras, com o que pode ser o germe de novos movimentos sociais. Se os problemas recorrentes em nossa história não forem adequadamente enfrentados, nenhuma surpresa haverá, quando o conflito armado se estabelecer. Tratar como questão policial as manifestações geradas pela desigualdade social não levará a mais que novas chacinas, patrocinadas pelo poder público e executadas ora pelos próprios agentes governamentais, ora pelas centenas de milícias organizadas por particulares, nas cidades e no campo. ***

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A foto que ilustra a capa desta edição também tem a marca de Flavio de Barros. Mostra o 1º Batalhão de Polícia do Amazonas, com o comandante ao centro, chegando ao campo de lutas. Destaque para o efetivo usando chapéu de palha, invencionice de Cândido Mariano, que Euclides da Cunha sinaliza em seu livro Os sertões.

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Cenas da Campanha de Canudos de autoria de Flavio de Barros, especialista contratado pelo Exército. As fotografias foram, por ocasião do centenário, publicadas no livro.

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No retorno a Manaus, Cândido Mariano endereçou um Relatório (de extenso título) ao Governador. Participava as providências tomadas, inclusive quanto a parte financeira. Publicado em dezembro de 1897, tornou-se o primeiro documento impresso no Brasil sobre a campanha. Já teve três edições, além da original. Uma, em 1944; a segunda, em 1965, no governo de Arthur Reis; e a derradeira, em 1997, com notas deste autor.

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Selo comemorativo do Centenário de Canudos, lançado em 1997 (ao lado). Mural pintado pelo Casal Makk, em 1957, na entrada do Quartel da Praça da Polícia, ainda existente no hoje Palacete Provincial (abaixo).

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Implantação da Estrada, atual avenida Epaminondas, mostrando o trecho próximo ao Colégio Dom Bosco, onde Cândido Mariano residiu enquanto esteve em Manaus.

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Imagens

Do álbum de família: vê-se acima o casal Candido (Fanny) Mariano e os filhos Lucy e Floriano, nascidos em Manaus. Abaixo, em foto isolada, dona Fanny Ribas, que se casou com Mariano, em Manaus, pouco antes deste seguir na expedição contra Canudos. Em outra foto, o casal de filhos que, acompanhando os pais, se fixaram no Rio, onde faleceram.

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Imagens

Quando da elaboração da 1ª edição, em 1995, o autor passou por Canudos, onde visitou o monumento popular ao Conselheiro (ao lado). Igualmente visitou a família de Cândido Mariano, no Rio de Janeiro, onde conversou com a filha deste, dona Lucy Mariano, então com 94 anos (abaixo).

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Quartel do Regimento Militar do Estado, c1901.

Há 120 anos, em 5 de outubro de 1897, aconteceu o encerramento de um dos episódios mais sangrentos da História nacional. Conta-se que, entre as forças combatentes, cerca de 25 mil pessoas foram mortas, e varreu-se do mapa o “império” do Belo Monte, criação de Antônio Conselheiro. A Quarta Expedição contra Canudos contou com o auxílio do 1º Batalhão do Regimento Militar do Amazonas, sob o comando do tenente-coronel Cândido Mariano. O retorno desta tropa a Manaus, em 8 de novembro, ensejou manifestações de júbilo, e foi tornada data festiva na corporação. Surpreso com a participação de Cândido Mariano nos acontecimentos da Proclamação da República, o autor buscou aprofundar-lhe a biografia. Dessa maneira, buscou detalhes de sua administração em Sena Mad ureira (AC), durante o quinquênio 1905-10. E o melhor registro são os artigos escritos pelo biografado no jornal O Alto Purus.


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