Entre duas viagens

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CRÔNICA DA VIDA DE

José Manuel Mendoza

RENATO MENDONÇA ROBERTO MENDONÇA


Autor de uma dezena de obras, ora como organizador competente, ora resgatando histórias de personalidades e instituições, Roberto Mendonça nos presenteia, com este livro, sua mais ousada obra. Concretiza a biografia de nosso saudoso genitor, José Manuel Mendoza, nascido no Peru, celebrando seu centenário de vida. Em ampla crônica, rememora com vigor os momentos notáveis dessa larga existência. O arroubo e a sagacidade que o motivaram a perscrutar o baú de memórias do “velho”, prova a expertise do arguto cronista, do premiado biógrafo. Meu irmão Roberto, pois, difunde aqui a verdadeira dimensão construída por aquele ilustre Peruano Entre duas viagens. Roberto teve bastante clarividência ao expor as nuances da longa existência deste vencedor. Que venceu ao superar o êxodo, a adaptação sociocultural, a luta pela sobrevivência e a tenacidade na educação dos filhos. Esta crônica, decisivamente, propicia deleite.


CRÔNICA DA VIDA DE

José Manuel Mendoza

Entre duas viagens: a primeira, a dramática e silenciosa pelos rios Marañon e Solimões, até Manaus; a derradeira, inerte pela morte, de retorno à mesma cidade, quando se encerrou a saga deste Peruano, que tanto estimou a terra brasileira.


© 2016 Renato Mendonça. Roberto Mendonça. © Todos os direitos desta edição são reservados aos autores.

Texto e revisão Renato Mendonça e Roberto Mendonça Projeto gráfico Marcelo Menezes Ilustração canoa Daniel Santi Fotos Acervo pessoal dos autores Catalogação Eulane Siqueira (CRB11/790)

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Mendonça, Renato Entre duas viagens: crônica da vida de José Manuel Mendoza / Renato Mendonça; Roberto Mendonça. — Manaus: Editora Travessia, 2016. 104 p.: il. 15x21cm ISBN 978-85-7512-835-0 1. Literatura Amazonense. 2. História 3. Crônica. I. Título. CDD: 869.4

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NOTA DOS AUTORES

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AO LEITOR

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FUGA PARA VICTORIA

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CABALLOCOCHA

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MANÁOS 1927

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JOVEM MANUEL

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PRIMEIRO EMPREGO

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FÁBRICA ROSAS

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NO SERINGAL

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PRIMEIRO CASAMENTO

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SEGUNDO CASAMENTO

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IQUITOS

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CARPINTEIRO

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APOSENTADORIA

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EPÍLOGO

SUMÁRIO


AGRADECIMENTOS ESPECIAIS à Dona Victoria Malafaya, genetriz do clã no Brasil, pela sua obstinada luta para dotar o personagem de nossa história de valores da vida. à Dona Francisca Lima de Mendonça, por sua candura e a delicada missão de doar vidas. à Dona Doroteia Santos Mendoza, pela a árdua tarefa de prover mais uma geração. aos dedicados irmãos que, de alguma maneira, subsidiaram a realização deste projeto. à ajuda divina, fundamental, suscetível de convergir os parâmetros necessários na concretização deste preito de gratidão.


Leve na sua memória para o resto de sua vida, as coisas boas que surgiram no meio das dificuldades. Elas serão uma prova de sua capacidade em vencer provas e lhe darão confiança na presença divina, que nos auxilia em qualquer situação, em qualquer tempo, diante de qualquer obstáculo. Chico Xavier ...Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá, o fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar... Vinicius de Moraes


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NOTA DOS AUTORES

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esgatar a história de José Manuel Mendoza, para celebrar seu centenário de nascimento, revelando os primórdios de sua existência, é a proposta deste livro. Maiores detalhes, porém, são revelados a partir de quando Manuel abandonou Caballococha, no Peru, aos onze anos, em companhia da mãe e do irmão mais moço, emigrando para Manaus. O início desta maratona aconteceu em uma simples canoa, com a qual a família singrou em condições adversas considerável extensão do rio Marañon e, seu prolongamento no Brasil, o rio Solimões. Aconteceu no longínquo ano de 1927. No novo país, Manuel enfrenta as embaraços peculiares de adaptação com a cultura, os costumes e o idioma, lembrando que nesse êxodo o único adulto era a mãe, ainda assim, analfabeta. A capital do Amazonas, que recebeu os peruanos, vivia o período pós-ciclo da borracha, já exibindo um acentuado declínio econômico devido ao embargo da exportação deste produto. Nesta fase de adaptação, sujeitam-se aos subempregos de uma sociedade cosmopolita, sem dúvida, encarando-os decididamente, a fim de sobreviverem. Em idade infantil, portanto, esse peruanito loretano – nascido no Departamento de Loreto, Peru – tangido pela miséria e pela falta de perspectivas em sua terra natal, mas movido pelo calor humano da mãe arrojada e de um irmão, aventuram-se a remar até a cidade de Tabatinga, na fronteira do Brasil. Sentiram-se seduzidos pelos últimos lampejos da riqueza produzida pela borracha, o ouro negro que fre-

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quentava os sonhos dos habitantes da Amazônia peruana. A decisão de produzir este compêndio surgiu em uma noite niteroiense, quando os autores articulavam a homenagem ao “velho” Manuel, que escapara de assisti-la “ao vivo”, pois faleceu as vésperas do seu centenário. O livro seria a complementação do quanto já havíamos colecionado sobre o homenageado. Mas, havia ainda o que esclarecer e, talvez, desvendar, como os demais parentes afastados pela geografia. O Peru precisava ser visitado, a fim de alcançar o alvorecer dessa gente que, batendo em retirada, enfrentou o único caminho possível da redenção: o rio caudaloso. Para isso, Roberto viajou a Iquitos (na Amazonía) e depois à Lima (capital), no Peru. Ciceroneado pela prima Laura Torres observou e gravou desta epopeia aquilo que foi possível. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, Renato avançou sobre os descendentes do irmão de Manuel, ou seja, nosso tio Francisco. Adiante, ainda em Niterói (RJ), reuniram-se para alinhavar os detalhes. Assim, para os autores, foi plausível completar a pisada. Igualmente, consertar os equívocos e aparar as incertezas. Algum pecadilho deve permanecer intocado, mas que família não o tem? Que outra geração faça o favor de abordar. Na narrativa, pois, revela-se, entre as diversas aventuras vividas pelo protagonista, os bastidores de uma passagem pelo seringal com os entraves para escapar deste confinamento. Deseja-se produzir uma breve, um resumo biográfico de nosso pai; ambicionam os filhos-cronistas constituir-se em hábeis artesões nessa empreitada, do mesmo modo, como aos demais olhares filiais viveu o homenageado. Além de resgatar pormenores de sua história, desejam comemorar seu centenário de nascimento. Manuel Mendonça Malafaya nasceu em 17 de janeiro de 1916, e encerrou sua saga, em São Paulo, em 18 de maio de 2014, registrado como José Manuel Mendoza. O pretexto e as nuances desta peculiar mudança de nomes encontram-se explicitados em capítulo do livro. Para essa façanha, foram aproveitados os numerosos fatos narrados amiúde pelo chefe da família, em sua longa vida, provas documentais, testemunhos catalogados durante algum tempo e, ainda, registros fo-

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tográficos. Várias conhecidos contribuíram com entrevistas, a fim de corroborar a narrativa e tracejar os caminhos percorridos por Manuel. Enfim, asseguramos que este documentário foi efetivado por inúmeras mãos e cabeças pensantes; por descendentes que desejaram e puderam contribuir; por leitores precoces e ávidos em penetrar nessa história. Desse modo, somos profundamente gratos a todos, indistintamente, pois sem esse ajuri, sem esse mutirão certamente não se teria alcançado, como bem realizou Manuel Mendoza Malafaya, nosso inestimável genitor, a outra margem do rio. Que viva imortal na memória da família!

O certificado de nascimento de Manuel, obtido por sua mãe Victoria (pousando ao lado da filha Laura), quando deixou o povoado de Caballococha


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convite para prefaciar este livro me pegou de surpresa, mas, deixou-me muito honrado; também, acarretou alguma preocupação: não sei se os meus comentários farão jus à dimensão do que representou o meu pai a todos os filhos e à sua saga na condução de numerosa família. Gostaria de acrescentar mais alguma coisa do aspecto formidável ao que foi narrado nos textos, porém, pude verificar que todos os momentos relevantes de sua vida estão registrados de maneira categórica; só um momento, triste por sinal, ficou de fora, talvez proposital: quando ele estava em coma no hospital Arthur Ribeiro, em São Paulo, minha filha médica, Yara Mendonça, que viajara ocasionalmente para uma etapa de pós-graduação noutro hospital, o visitou no seu momento derradeiro. Coube-lhe o infortúnio de avalizar a Declaração de Óbito do avô. A convivência que tive com nosso pai foi gratificante. As fases de nosso convívio me legaram sempre um ensinamento ou um conselho. Ele exercia sua liderança como um velho sábio, como um predecessor da vida querendo expor os caminhos e os obstáculos que se espalhariam na trajetória dos filhos. E o ensinamento que melhor se consolidou em mim, e me assistiu na trajetória da vida, foi: “nunca desista dos seus objetivos, apesar dos percalços da vida.” Portanto, fiquei feliz em conhecer alguns pormenores de sua vida, a despeito de que, embora tenhamos convivido, não possuía o integral conhe-

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AO LEITOR cimento deles, de certo o tempo os estava apagando da minha memória. Livro que, embora muito se assemelhe a uma biografia, não se presta somente para narrar a trajetória desse “pequeno grande” homem; não foca somente na travessia “entre duas viagens”, apresenta, ao mesmo tempo, um encadeamento com porção da história do Brasil e, particularmente, do Amazonas. A pesquisa para a elaboração deste livro foi realizada com dedicação e afinco, cumpre salientar. Os autores, meus irmãos-cronistas, foram felizes no resgate dos mais respeitáveis momentos da vida de José Manuel Mendoza, ou Manuel Mendoza Malafaya, ou Manuel Mendonça Malafaya, ou simplesmente Manuel. Ainda nos presentearam com o relato fascinante da escapada de Victoria Malafaya, proeminente ancestral peruana. A mulher vitoriosa - sem trocadilho - e corajosa que encetou essa aventura peruana/brasileira, foi a nossa inesquecível abuelita. O resgate histórico do homem simples, do cidadão Manuel, nesta obra, destina-se a perpetuar-lhe essa homenagem, de não consentir que o tempo possa tragar seu legado, e serve, igualmente, para que a atual e as futuras gerações possam reconhecer os verdadeiros heróis, aqueles que nos antecederam. Os pioneiros que sedimentaram o alicerce de um futuro promissor. Henrique Mendonça Rio de Janeiro, setembro de 2016.

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FUGA PARA VICTORIA

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a calada da noite, uma canoa desce lentamente o rio, sorrateira para não despertar atenção; navega dias a fio. Três pessoas estavam naquela montaria, as mesmas que enfrentam agora o Distrito de Imigração de Benjamin Constant, no Estado do Amazonas, pois são originárias do Peru, mais precisamente de Caballococha. Desejam obter passagens para completar a viagem até Manaus, em um dos “gaiolas” que praticam essa rota. Nessa longa peregrinação, desde a cidade de origem até a fronteira com o Brasil, foram quase 50 milhas navegando pelo Rio Marañon – que é o próprio Rio Amazonas dentro do país andino –, e haviam contado também com a participação de mais dois adultos, que se engajaram nessa empreitada e dividiram as remadas em pequeno trecho, e os ajudaram a “pegar emprestada” a tal canoa, sem a anuência do dono. Uma jovem senhora, aos 36 anos, dotada de uma obstinação incomum, levando-se em conta que se tratava de pessoa inculta e oriunda dum lugarejo provinciano da Amazonía peruana, decide se aventurar em fuga pelo rio conduzindo dois dos quatro filhos, os mais novos. Munida dos certificados de nascimento dos filhos, Victoria Malafaya sai em busca de um novo eldorado, atraída pela borracha tão abundante no Amazonas, que tanto fazia sonhar os peruanos que viviam nos lindes brasileiros. Os documentos seriam o salvo-conduto para se resguardarem, acaso fossem exigidos pelo serviço de imigração da tríplice fronteira. Mesmo sob a tutela da mãe.

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Um dos pretextos para a fuga era a falta de perspectiva daquele povoado, sem horizonte promissor para os filhos. Uma decisão sensata para quem não sabia sequer escrever o próprio nome, daí a necessidade da ajuda de terceiros registrada em certidão de um dos filhos. Outra razão, mais plausível, foi escapar dos desmandos do companheiro, que lhe conservava submissa e escrava. Seu derradeiro marido, um dos muitos “caucheiros” que ela conhecera no lugarejo de pouco mais de 500 habitantes, era um homem bronco e rude, como a maioria dos seringueiros atraídos pelo ouro negro. O ano de 1927 ainda vivia as sequelas da disputa entre a Colômbia e o Peru pela posse de Letícia – cidade colombiana que integra a tríplice fronteira –, que se confunde com Tabatinga, na parte brasileira, pela proximidade e inexistência de uma divisória física. Legítima fronteira seca. Além disso, a cidade colombiana, então conquistada, era mantida em segredo quanto ao seu domínio, motivo de alvoroço para os peruanos. Também em Manaus – destino escolhido pelos viajantes – a Rebelião Tenentista, que eclodira no Brasil três anos antes, ainda notava o rescaldo da luta armada pelo comando político do Estado. Nada disso, porém, refreou a decisão da família Malafaya de abandonar a terra natal. Até porque, nem tinha informação sobre tais acontecimentos. Cidades da Amazonía peruana também vivenciaram a “febre” da exploração da borracha, até final da segunda década do século passado, fato que atraiu inúmeros brasileiros para os seringais do outro lado da fronteira. No entanto, as cidades peruanas não conquistaram a mesma pujança que a capital amazonense. A exploração desordenada e as notícias do fim do ciclo contribuíram para materializar a decisão migratória da família. O fluxo da matéria prima e de trabalhadores nativos e forasteiros – explotadores del caucho – em direção ao Amazonas eram frequentes. A produção era normalmente enviada para Manaus, onde era processada e exportada para a Europa, via porto fluvial flutuante, o roadway, construído pelos ingleses para atender essa demanda de mercado.

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Os fugitivos de Caballococha, obrigados a navegar a noite, enfrentaram a Amazônia selvagem. Na década de 1920, tiveram enormes dificuldades para a locomoção. Não podiam se expor durante o dia nem pedir ajuda aos ribeirinhos, diante da condição de fugitivos dos desmandos do “marido” opressor e do dono da canoa “emprestada”. Isso, os deixavam em situação aviltante. Desse modo, a navegação era viável apenas quando a luz do sol desaparecia; a noite, embora negra como breu, prestava-lhes providencial adjutório. Ainda assim, havia que executar as remadas com muita cautela, para não despertar atenção. Antes mesmo do amanhecer, os canoeiros buscavam um lugar apropriado para se esconder e descansar; para ocultar a canoa e reavivar os sonhos distantes, a despeito do futuro nebuloso. Aqui e acolá, faziam a colheita em alguma plantação abandonada ou facilitada. A exuberância de peixes facilitou a pesca para prover o alimento, porém, havia um cuidado no preparo, qualquer fogo era uma denúncia, como um sinalizador. Não podiam subestimar também os perigos da selva peruana, infestada de animais da fauna terrestre e aquática, representada por onças, antas, ariranhas, porcos-do-mato e grande variedade de jacarés e cobras, além de aves e insetos que incomodavam, principalmente, à noite. Por diversas vezes a canoa “fez água” – como relembrava Manuel –, e havia que esgotar com as cuias, artefatos que se prestam para servir alimentos, a fim de evitar que fossem a pique; depois, buscavam um lugar seguro para improvisar a calafetagem da embarcação. Esses estorvos foram superados de forma primitiva, estoicamente, sem armas para se defenderem; levavam apenas um facão – conhecido na Amazônia por terçado – e os mantimentos básicos de sobrevivência, principalmente açúcar, farinha de mandioca e sal. A aventura e a tensão experimentadas foram de bom porte, tanto que, 80 anos depois, o “garoto” Manuel ainda mantinha na memória, múltiplas nuances dessa fuga espetaculosa: o banzeiro – agitação forte do rio – que solavancava, ameaçando “virar” a canoa, e lançá-los ao rio infestado de perigos; a passagem proibida por uma fazenda de gado

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e por uma plantação de feijão-de-metro – também chamado de feijão-de-corda –, foi providencial ajuda na alimentação. José Manuel Mendoza, aos onze, e o irmão Francisco Malafaya, dois anos mais jovem, tiveram que aprender a fórceps a sobrevivência na selva, quando tiveram que usar os recursos disponíveis. Mas, certamente, isso não os livrou de passar fome em alguns trechos do percurso. Nessas horas, apelavam para o chibé – jacuba, em algumas regiões do Brasil –, uma iguaria feita com a mistura de farinha de mandioca, açúcar e água. Enfim, alcançaram o intento. Remada a remada, os viajantes abordaram a fronteira, chegaram ao posto avançado de Tabatinga, que pertencia ao município de Benjamin Constant, no território brasileiro. Cautelosos, tomaram extremos cuidados para transpô-la, apesar da região desprotegida. A inexistência de energia elétrica, que levaria décadas para alcançar aquelas barrancas, foi um aval para o sucesso. Protegidos pela escuridão, avançaram sem dificuldades. Deitaram-se no fundo da canoa; assim, deixaram que a correnteza do Rio Solimões os levassem a um porto seguro. Amanheceram próximo à Vila Esperança, atual Benjamin Constant, então distrito de São Paulo de Olivença, no Amazonas. A colônia peruana nestes municípios próximos à fronteira era expressiva, e os ajudaram a se manter escondidos até resolvida a questão das passagens. Um par de remos e a canoa foram os únicos bens que sobraram; as únicas moedas de troca para conseguir a compra de passagens para o novo destino. A exiguidade de tempo e o alto custo conspiravam contra a legalização de documentos para a viagem. Passaporte individual demandaria semanas e milhares de réis (moeda da época). Ademais, o preço da passagem num “gaiola” ou “vaticano” (navios que cortavam os rios do Amazonas), transportando passageiros e mercadorias, deveria estar muito além das posses daqueles pobres migrantes. Era mais um estorvo para a sequência da viagem em busca de novo horizonte.

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Com a venda da canoa, compraram passagens num “barco de linha”, por ser um transporte alternativo e mais barato. Viajaram na terceira classe, a mais simples dos passageiros. Os dois amigos, que fugiram com Victoria, tomaram rumo ignorado muito antes de cruzarem a fronteira. A decisão de se aventurar nessa fuga foi temerária, pois desconheciam a geografia dos rios e suas afluências, no entanto, tomaram o rumo certo; contaram com a insofismável ajuda divina; com a luta obstinada da mãe Victoria e dos filhos para alcançar e cruzar as primeiras cidades da tríplice fronteira – entre o Brasil, o Peru e a Colômbia – e, por fim, alcançarem a Terra Prometida: Manaus. Analogamente, essa odisseia foi como a célebre abertura do Mar Vermelho para os judeus. Aqui, o Rio os livrou da servidão e de desmandos de homens embrutecidos. Para alcançar aquele paraíso terrestre idealizado e sonhado pelos Malafaya, obviamente segue contada de maneira sucinta, sem retratar todos os contratempos enfrentados. Sem expor todos os sofrimentos e tensões experimentados pelos viajantes, quando ousaram, desconhecendo o êxito, alcançar sucesso.

Ilustração da 1ª viagem, de Caballococha a Manaus, sobre a foto do caudaloso Rio Solimões captada nas proximidades de Tefé

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CABALLOCOCHA

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pequeníssima Caballococha também viveu a fiebre del caucho. Trata-se de uma das cidades da Amazonía peruana, pertencente ao Departamento de Loreto, maior distrito territorial do Peru. Envolve o Rio Amazonas, desde a sua origem até o limite da fronteira brasileira. Nesta região está situada a Província de Ramon Castilla, cuja capital é justamente Caballococha, cidade situada na margem direita do Rio Marañon, antecedente do Rio Solimões. Considerando-se o final do século XIX, quando nasceu Victoria, a pequena vila era composta essencialmente de aldeias indígenas, algumas aculturadas, outras nem tanto. Por volta de 1890, iniciou-se a exploração do látex, quando trabalhadores nacionais e estrangeiros – entre eles, muitos brasileiros – aventuraram-se pelas florestas peruanas em busca da nova fonte de riqueza. As autoridades brasileiras, no entanto, estavam ocupadas com a disputa com a Bolívia em razão da conquista do Acre, que acabou sem derramamento de sangue, e de forma diplomática incorporado ao Brasil. A exploração da borracha, que já se processava de forma considerável no Amazonas, determinou o financiamento dessa conquista em troca de alguns favores. Victoria, filha de Geraldo Malafaya e de Olinda Barsalllo Malafaya, era uma mestiça de olhos miúdos, traços indígenas e a tez queimada pelo sol. Nasceu no inicio da fase áurea da borracha (1890), mas não obteve recursos, sequer para sua alfabetização, porque num país

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notadamente machista as mulheres não tinham prioridade para a educação; ou porque seus pais também não foram alfabetizados e, assim, não discerniam essa necessidade. Existia a preparação única para o casamento, porém, num lugarejo provinciano, o relacionamento era ínfimo; grande parte dos relacionamentos ocorria com forasteiros, que ali estavam temporariamente em busca do ouro negro. Nesse interim, ocorriam os acasalamentos de forma mais objetiva possível, do mesmo modo, as separações. A maioria desses aventureiro era formada por homens incultos, sem educação, talvez por isso, broncos, facilmente explorados pelos barões dos seringais. Desse modo, num ambiente promíscuo e hostil, Victoria acabou por se relacionar com diversos “patrões” em troca de algumas promessas, de um futuro melhor ou algum trocado para o sustento familiar. A cidade de Caballococha, localizada à margem direita do Rio Amazonas, vivia também o auge de intensa exploração da borracha. Os caucheros – como se denominavam os seringueiros da flora peruana – praticavam a extração mediante a derrubada de árvores. Assim sendo, não tinham apego à terra, levavam uma vida nômade, sempre à cata de novos territórios onde pudessem praticar essa técnica absurda. Nessas investidas eram inevitáveis encontros com indígenas e aborígenes, senhores originais da terra. E a fim de manter essa política de dominação territorial, seringueiros e seringalistas usavam da força, da astúcia e da violência. Para abonar esse fato, registramos a seguir, um fragmento de reportagem feita por Euclides da Cunha, no livro À Margem da História: “O coronel Pedro Portillo, prefeito de Loreto, que visitou aquelas terras em 1899, denunciou indignado: ‘Ali não há leis... É mais forte quem tem mais rifles, é o dono da justiça’”. Talvez essa consistente análise explique porque Victoria não foi alfabetizada: foi servil a homens desumanos e nômades, naquele território ocupado, em troca de parcos meios de sobrevivência. Até que, cansada da subserviência, resolveu fugir numa noite de fevereiro de 1927, com os dois filhos menores. Os mais velhos, Laura e Grimaldo

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Torres, filhos do primeiro marido – Julian Torres Montesa – já haviam acompanhado, com a anuência do pai, à tia Izabel Torres de Garcia e, há cinco anos, moravam em Iquitos. Usufruto da fiebre del caucho, a capital da província de Maynas era mais aprazível e, obviamente, contava com mais recursos, principalmente no âmbito educacional. Supostamente para manter os filhos, Julian obteve o aval de Victoria, porquanto esta não possuía meios para sustentar os quatro filhos. Victoria Malafaya tomou a decisão sábia, para que os primeiros filhos, os quais à época da fuga contavam 17 e 15 anos, respectivamente, pudessem usufruir de educação formal e melhor qualidade de vida. Exigiu apenas que estes não abdicassem do contato materno e que ela pudesse vê-los periodicamente. Depois de alguns anos, Julian abandonou Caballococha e Victoria, para se dedicar a um novo negócio, em novo ciclo de exploração da borracha em outro território. Victoria permaneceu no povoado, tentando conseguir meios de subsistência naquele lugar bravio e primitivo, esperando que o rescaldo da exploração do látex trouxesse algum benefício à sua terra natal. A vida seguiu seu compasso natural. Mas, a prosperidade oriunda do bem extrativista não alcançava os nativos, apenas aos seringalistas e pequena parcela de seringueiros usufruíam essa riqueza. Às mulheres simplórias e analfabetas restavam buscar no meio daqueles aventureiros, algum que lhes alimentassem um sonho futuro. Dessa maneira procedeu Victoria, que acabou por se relacionar com o segundo companheiro, Enrique Mendoza, cinco anos mais jovem, natural de Cerro de Pasco, no Peru. Ele era um empregado desses barões da borracha, somente alfabetizado, tentando crescer no mercado de trabalho do caucho. Aos 25 anos, Victoria gerou mais um filho, Manuel, o astro desta história. Enrique, contudo, não permaneceu muito tempo no povoado ou devido a sua vida nômade ou mesmo pela ausência de maturidade e de afeto. Assim, a aspiração de Victoria por uma vida a dois novamente se dissipou. Sem expectativas e com o filho ainda criança, Victoria acei-

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tou a proposta do terceiro companheiro: Ramiro Saens, outro extractor de goma, como a maioria dos homens que morava naquele lugarejo. Mas, essa nova relação resultou apenas num paliativo, não oferecendo para Victoria nem segurança, nem esperança no futuro. Antes mesmo do nascimento do filho Francisco, Ramiro desapareceu. Sequer se interessou pelo registro do filho, levando a este não tomasse na certidão de nascimento o sobrenome paterno. Para obtenção deste documento, a mãe submeteu-se a ajuda de um amigo, o brasileiro Moisés Cohen. Este comerciante foi o declarante, foi quem obteve junto ao alcaide a certidão de nascimento do último filho de Victoria. Para Dona Victoria, restou o compromisso de criar os dois filhos menores. Solita. Para tanto, usou o que lhe restou de obstinação e de coragem; realizou trabalhos braçais e domésticos, pois não havia opção de trabalho para uma mulher de 36 anos, solteira, mestiça, com filhos muito miúdos, um em amamentação. Além de se resguardar de “maridos de ocasião”, manhosos, em busca tão-somente de relacionamento marital, sem compromisso. Victoria de tal modo permaneceu oito anos no seu canto, crendo que, depois do ciclo da borracha, o tempo trouxesse a bonança e a paz. Contudo, a exploração já havia terminado e nenhuma esperança avizinhava-se, nem para ela, muito menos para os filhos. Decidiu, então, buscar alternativa muito longe de sua pequeña población, ansiando sobreviver dignamente, com a oportunidade de oferecer aos filhos a educação que lhe foi negada.


Algumas das edificaçþes encontradas por Victoria Malafaya (foto) e filhos ao desembarcarem na cidade de Manaus, vendo-se a Igreja Matriz, a Alfandega e duas casas exportadoras de borracha

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MANÁOS 1927

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proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, converteu a província do Amazonas em Estado, com a capital na cidade de Manaus. A capital desfrutava de seu fundamental produto: o látex, matéria-prima empregada pelas indústrias mundiais da borracha. A privilegiada demanda norteou o crescimento de sua economia por mais de 40 anos. Obviamente, diante dessa febre da borracha intensificou-se o processo de migração de brasileiros de outras regiões, sobretudo nordestinos. Posto que estes ainda sofriam as sequelas da Grande Seca, ocorrida entre 1877-79, cujo estorvo vitimou milhares de pessoas, aliada com uma epidemia de cólera. Muitos deles desembarcaram em Manaus, fugindo deste fenômeno devastador. Dentre eles, Vicente Pereira Lima e Adelaide Vieira, os pais de Francisca Pereira Lima, primeira esposa de Manuel. Já a partir de 1870, Manaus passou a experimentar o surto da economia proveniente da exploração da borracha, ciclo que se encerrou com o advento da Primeira Guerra e a consequente perda do mercado mundial para a borracha asiática. É indispensável salientar que a concorrência com o mercado asiático despontou, em parte, quando sementes da hevea brasiliensis, a conhecida seringueira fornecedora do látex, foram contrabandeadas e cultivadas em Java, Ceilão e Sumatra. Assim, a partir de 1915, o Estado do Amazonas perdeu a hegemonia desta comercialização.

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Somente para elucidar o movimento migratório: o censo de 1920 registrou nada menos que dez mil estrangeiros de várias nacionalidades entrados no Amazonas – portugueses, ingleses, espanhóis, italianos, alemães, americanos, sírios, japoneses e libaneses –, com a maior parte vivendo em Manaus. Mudaram-se, ou a fim de participar da cadeia produtiva ou para atuar no intercâmbio econômico com os grandes centros industriais da Europa e dos Estados Unidos. Boa parcela desses estrangeiros usufruiu, e muito, das benesses que a economia proporcionava. Ainda aproveitando desses fartos lucros, filhos de alguns dos baronetes da borracha estudaram nas melhores universidades europeias, embora a Escola Universitária Livre de Manáos, inaugurada no início de 1909 (reconhecida como a primeira universidade brasileira), já estivesse disponível. Na fase áurea, a cidade ganhou bonde elétrico no serviço de transporte coletivo, telefonia, eletricidade e água encanada, além de um sistema de esgoto. Aos ingleses coube construir o porto flutuante para atender a demanda de mercado, porto adequado a receber navios de vários calados e de diversas bandeiras; ricas edificações foram inauguradas, como o Mercado Municipal, o prédio da Alfândega, o Palácio da Justiça, a Biblioteca Pública, o Palácio Rio Negro, pontes com estruturas de ferro e o suntuoso Teatro Amazonas. Todas essas obras utilizaram materiais importados da Europa. A metrópole da borracha iniciou o século XX com uma população em torno de 20 mil habitantes, no centro, ruas retas e longas, calçadas com granito e pedras importadas de Portugal, praças e jardins bem cuidados, belas fontes e monumentos, hotéis, estabelecimentos bancários e muito dos requintes de uma metrópole. Como resultado da explosão demográfica sofrida, em meados da década de 1920, a cidade contava com 170 mil habitantes. Nessa fase, a cidade foi referência internacional na discussão sobre doenças tropicais, saneamento básico e saúde pública. O período áureo promoveu iniciativas nesta área, como a parceria com cientistas internacionais, que culminou com a erradicação da febre ama-

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rela, em 1913. No início, a atuação esteve praticamente restrita a Manaus. Todavia, o status quo foi alterado após a criação do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural, quando estendeu essas ações ao interior do Estado. A infraestrutura da época abrangia bases fixas de operação nas calhas dos principais rios da região e embarcações que percorriam as comunidades ribeirinhas. No auge do ciclo da borracha, a cidade acolheu as mesmas benfeitorias implantadas no Rio de Janeiro, a então Capital Federal. No ano de 1927, quando os viajantes alcançaram a capital do Amazonas, a cidade ainda vivia o rescaldo de um período fértil, embora o extrativismo da borracha já tivesse declinado. Os estorvos da Primeira Guerra, justamente quando nasceu o protagonista, findaram por debilitar essa pujança. O Teatro Amazonas, o marco icônico dessa pujança, inaugurado em 1896, permitiu apresentar-se na capital do Amazonas personalidades da música, do cinema e do teatro. E foram em boa quantidade. Os imigrantes peruanos viviam o sonho de cidade grande, de uma metrópole. A abastança circulante propiciava ganha-pães secundários ou alternativos, que permitiam a sobrevivência de pessoas semialfabetizadas ou sem recursos. Um desses batentes consistia em lavar e engomar roupas de família de posses, de família mais abastada, substituindo as donas-de-casa e empregadas, que não se dispunham a encarar essas tarefas. Eis, pois, o encargo que Dona Victoria abraçou para beneficiar a existência dos filhos, ampliando a esperança de sobrevivência no novo país. Os garotos também ajudavam, ao se tornarem office-boys, ou seja, meninos de recado, tão comum nessa época em que a comunicação mais avançada estava restrita ao telegrama, ainda que o telefone já estivesse em uso, porém, de forma incipiente. Dessa maneira, e com as bendições de Deus, eles sobreviveram.

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JOVEM MANUEL

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erto de uma hora antes de alcançar o moderno roadway de Manaus – “ródo”, para os caboclos –, a família Malafaya ultrapassou a ilha de Marapatá, depois de cruzarem o fulgurante Encontro das Águas. Ainda hoje, esta sequência desperta nos viajantes triviais e nos poetas mais inspirados, as mais diversas emoções. No auge do ciclo da borracha, o também imigrante e poeta cearense Quintino Cunha, retratou bem esse fenômeno, como reflete este fragmento de seu poema Encontro das Águas (1907):

Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este É o Rio Negro, aquele é o Solimões. Vê bem como este contra aquele investe, Como as saudades com as recordações.

Vê como se separam duas águas, Que, se querem reunir, mas visualmente; É um coração que quer reunir as mágoas De um passado, às venturas do presente.

Afinal, os viajantes peruanos, nascidos e cercados pelas águas nos últimos quarenta dias, ainda flutuavam sobre um mundão líquido. E, a partir de então, continuariam suas sagas, sempre envolvidos pela água, ou pela densa floresta que, aqui e ali, apresenta vários matizes e densidades.

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Marapatá inspirou uma lenda, devido sua situação quando da enchente sazonal, ela some e se torna oculta; assim, um vate, troçando com as palavras, a apelidou de “ilha da vergonha”. Daí se dizer que os que chegam a Manaus pelo rio, deixam nela o fardo da vergonha. E, na cidade, podem realizar todos os bons e maus atos. Este folclórico desafio, talvez não tenha permitido aos imigrantes peruanos, que se deixassem sucumbir pela falta de coragem ou pela vergonha de enfrentar qualquer labor. Era esse, portanto, o cartão de visitas do novo eldorado, o de uma cidade cosmopolita chamada Manaus. Mais próximo do ancoradouro, na entrada da barra, situa-se o bairro de Educandos. Subúrbio que no futuro se tornaria familiar aos viajantes, exibe as facetas de um desenvolvimento realizado às avessas, ou seja, sua urbanização ocorreu sobre um plano elevado, de elevadas encostas. Embaixo, na margem do Rio Negro, inúmeras palafitas – casas edificadas sobre altos esteios, para vencer a enchente – e também barracos construídos sobre toras de madeira, os flutuantes. Onde os dejetos humanos e outras sobras eram lançados diretamente no rio e, deste mesmo rio, retirava-se a água para o consumo. Ainda hoje, lamentávelmente, essa cultura não mudou muito. É visível o crescimento desordenado dessas moradias, agora com o agravante de que ali se instalam indústrias de pesca e seus derivados, postos de combustíveis e outros serviços. Enfim, desembarcaram. Mas, onde se instalaram nossos imigrantes peruanos? Com pouquíssimos réis, sem falar o português, o que fez uma senhora com seus dois filhos? O “garoto” Manuel, com a exuberância de sua lucidez, esclareceu aos filhos que eles foram morar nas proximidades do Teatro Amazonas, símbolo da fortuna bellepoquiana, contíguo à praça do famoso monumento arquitetônico. Nas proximidades, havia inúmeras casas de cômodos, numa delas conseguiram alugar um pequeno quarto para os três. Posteriormente, foram morar na Rua Dr. Moreira, no mesmo tipo de habitação.

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Outros peruanos também realizaram viagem semelhante. Essa convivência serviu para que os recém-chegados pudessem obter alguma recomendação, assim como dar os primeiros passos na metrópole. Além disso, a família buscou o consulado do Peru, que os orientou e indicou famílias que poderiam empregá-los, ou necessitassem dos serviços de lavadeira e engomadeira. Mediante essa indicação, a família Carrera ofertou o aluguel do quarto à Rua Dr. Moreira, em troca do ofício de trabalho doméstico. O Brasil, que já havia enfrentado alguns movimentos políticos no início do século, viveria outro bem marcante no final daquela década: a Revolução de 1930. Autêntico golpe de Estado liderado por Getúlio Vargas, que acabou conquistando o Palácio do Catete, sede do governo no Rio de Janeiro, capital da República. Por extensão, foi deposto o presidente, o paulista Washington Luís; foi impedido de tomar posse o presidente eleito, Júlio Prestes; e nomeado o interventor federal do Amazonas, Álvaro Maia. Sepultada assim a República Velha, nascia o ditatorial Estado Novo. Dois desses personagens, Getúlio e Álvaro, fixaram-se na mente e no coração do jovem Manuel que, por sua origem, passou a ser chamado de Manuel peruano. Esse novo período trouxe esperanças aos brasileiros. O governo decretou as primeiras reformas na legislação social e de estímulo ao desenvolvimento industrial. Mas o Amazonas seguia sua derrocada, com o fim do opulento ciclo da borracha. Muitas famílias abandonaram a cidade e zarparam para tentar a fortuna nos Estados do Sul. A família Malafaya continuou seu périplo: Dona Vitória lavando e passando roupas, e ainda realizando faxinas; o jovem Manuel e seu irmão, serviam tanto como “meninos de recado” quanto como vendedores de quitutes e guloseimas improvisadas pela mãe e por outras pessoas. Igualmente cumpriam outros afazeres sempre que solicitados. O jovem Manuel teve a sorte de conhecer um cidadão maduro e culto que muito o ajudou, o espanhol Abade. Esse estrangeiro o in-

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centivou a se alfabetizar e a aprender o português com fluência. Era imprescindível, uma vez que sua mãe tinha enormes dificuldades em se comunicar no idioma brasileiro. Estimulado, com bastante dedicação, em pouco tempo, ele estava apto para ajudá-la na compra de mantimentos e, mais, se comunicar com os clientes. O aprendizado embora fosse tardio era intenso, de modo que Manuel, obstinadamente, logo conseguiu mais alguns contatos fundamentais, para ajudá-lo a caminhar com menos tropeços. Durante muito tempo, a vida da família moveu-se lenta e pesada. Ao buscar alternativas, Manuel decide trabalhar no comércio, ajudado por esse mesmo tutor. Esse engajamento e a dedicação intensa foram suficientes para que ele lograsse favorecer sua condição de vida. Aprendeu rápido a lidar com o público, e o conquistava pela simpatia e cortesia expressas de maneira peculiar, com a sabedoria de bom observador. Ao mesmo tempo se esmerou na caligrafia, para que pudesse ser aproveitado no serviço burocrático. Instruído, já podia aspirar a um emprego quase fixo, um emprego que pudesse lhe pagar um “ordenado” correto, pois aspirava mudar-se para uma casa, um lar, para retirar a família do quartinho acanhado.

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A matriz de San Juan Bautista, em Iquitos, serviu para o matrimônio de Francisca com Manuel, em 1944. A noiva enviou uma foto da festividade à irmã Raimunda, em Manaus, em cujo verso atesta o enlace

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PRIMEIRO EMPREGO

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jovem Manuel recordava-se sempre, com muita saudade e leve brilho nos olhos, do primeiro emprego. Justamente para confirmar o adágio popular de que “o primeiro, a gente nunca esquece”. Depois de três anos, foram muitos os desafios vencidos e muito aprendizado. Mais. A mudança de moradias, a confiança obtida no domínio da língua e a alfabetização quase concluída, foram esses os frutos obtidos por essa virtuosidade, conquistados na “escola da vida”. Exatamente trabalhando na mercearia de “secos e molhados” do señor Abade, localizada na Rua Izabel, que o jovem Manuel encontrou o primeiro emprego. Essa rua confinava com o igarapé de Manaus. Então, um riacho caudaloso que cortava alguns bairros da cidade e desaguava na baía, ao fundo do Palácio Rio Negro – um dos monumentos construídos na época áurea da borracha, com materiais importados – e daí ligava-se ao próprio Rio Negro. Nessa importante via fluvial, a uma distância de três ou quatro milhas, localizava-se o Mercado Municipal (Mercado Grande ou mercadão, para os velhos), que era o principal centro fornecedor de produtos para o comércio em geral. A locomoção automotiva não estava disponível, apenas as carroças eram empregadas. O ritmo da população da época era distinto, as necessidades idem, desse modo, os igarapés serviam como elemento de transporte, de lazer e de sobrevivência fundamental na vida das pessoas, em especial as mais carentes.

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Abade, quase diariamente, comparecia àquele entreposto de vendas para abastecer sua mercearia ou mesmo para as compras domésticas. Devido a idade, e porque necessitava de um braço direito e jovem para ajudá-lo nessa labuta diária, o espanhol ofereceu um emprego ao peruanito, sem carteira assinada, óbvio. Nessa época, as relações trabalhistas ainda engatinhavam, solidificaram-se como se conhece com o novo governo de Vargas, o Estado Novo. O jovem Manuel mostrava habilidade com o remo na mão, aprendido na infância repleta de água e praticada na longa jornada de fuga. Ia e voltava com maestria por esse braço fluvial até o hoje Mercado Adolpho Lisboa. Outro símbolo do progresso beneficiado pelo ouro negro, cuja construção foi iniciada em 1880, pela firma Bakus & Brisbin; os pavilhões em estrutura de ferro são produtos da firma Francisc Norton Engineers, de Liverpool. A inauguração desse galpão, de aproximadamente 45 metros de comprimento por 42 metros de largura, ocorreu três anos depois. O lado mais penoso do seu trabalho ocorria no retorno do mercado, quando cabia a Manuel transportar as compras e materiais ladeira acima. Eram fardos literalmente sobrecarregados para um menor de idade, de 1m50 de altura. Entretanto, a disposição e o desejo de progredir na vida, não deixavam Manuel esmorecer, impulsionavam-no a vencer a ladeira, a fim de ganhar o pão-nosso-de-cada-dia e ajudar no sustento de casa. Nos dias de hoje, ele estava impedido de oferecer seus préstimos, pois o curso d’água, agredido definitivamente pelas máquinas do progresso, inexiste. Amputaram esse braço de rio para erguer o Parque Senador Jefferson Péres, uma homenagem ao político amazonense, que morreu no exercício do cargo em 2008. A atividade do mercado não roubava o tempo inteiro do jovem empregado. Nos finais de tarde, ele vendia doces produzidos por duas irmãs, moradoras da Rua Joaquim Nabuco esquina da Rua Quintino Bocaiuva, e, à noite, frequentava a alfabetização para concluir o curso primário.

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Passado algum tempo, eles foram morar às margens do igarapé de Manaus, numa das inúmeras palafitas do local, ajudados pelo espanhol, patrão do jovem Manuel, que o desejava mais próximo do emprego. A graça constituía-se em aprovação ao seu trabalho profícuo e dedicado. O igarapé, com suas águas ainda límpidas e transparentes, oferecia fartura de peixes e até tartaruga. Essa mudança facilitou sobremaneira a vivência dos peruanos. Em momentos fortuitos, ainda tirava um tempo para a pescaria e, no período da seca, para conseguir ovos de tartaruga ou tracajá (esses quelônios costumam desovar na margem de rios, enterrando os ovos na areia da praia), ajudado pela perícia de sua mãe. Na ocasião, inexistia a consciência ecológica, era mais coerente a luta pela sobrevivência.

Notícia de jornal e anúncio comercial informam da inauguração da Fábrica Rosas e a da sucedânea, Fábrica Bijou, que funcionaram na avenida Sete de Setembro

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FÁBRICA ROSAS

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documentário No Paiz das Amazonas, rodado em 1921 e exibido no ano seguinte na comemoração do centenário da Independência do Brasil, foi o marco e o símbolo do comerciante J. G. Araújo (Joaquim Gonçalves de Araújo). Este português contratou o compatriota Silvino Santos, que já havia rodado dois documentários. Em um deles, por volta de 1914, revelou as mazelas e atrocidades em Putumayo, no Peru, praticadas pelos seringueiros e seringalistas da Casa Arana, dizimando tribos indígenas e nativos. Produção encomendada para sustentar a defesa de seu futuro sogro, o poderoso barão da borracha, Júlio Cezar Arana, acusado de escravidão e assassinato de trabalhadores dos seringais, na Corte do Tribunal dos Comuns, em Londres. A película do produtor J. G. Araújo foi exibida em várias praças brasileiras, começando pela então Capital Federal, no Palácio do Catete para as autoridades e o Presidente da República; para o público em geral no Cine Palais, competindo com o Cine Ideal que exibia um filme com Rodolpho Valentino, exatamente no “sabbado de aleluia” de 1923. No reclame do jornal O Paiz, o texto (reproduzido no original) incitava os cariocas: “Não é apenas um ‘film’ de grande valor pela perfeição com que foi organizado. É uma obra patriótica que traz á admiração do Brasil inteiro a vida árdua e nobre do maior Estado da Federação, o majestoso Amazonas. Levai convosco os vossos filhos, os homens de amanhã; e elles aprenderão a amar ainda mais o seu paiz.”

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A Europa, após o palco nacional, teve a oportunidade de assistir a esse filme. A película acentuava, além das belezas naturais e arquitetônicas do Amazonas, o resultado do empreendedorismo de J. G. Araújo (imigrante português), cuja empresa familiar se estendeu por quase um século nas principais praças da Amazônia. Aproveita todo o ciclo da borracha para expandir seus negócios a outros mercados econômicos. E, no mercado da borracha, especificamente, foi pioneiro no beneficiamento e industrialização da matéria-prima, enquanto outras empresas cuidavam exclusivamente de exportar o produto bruto. JotaGê, expandindo seus negócios no final da década de 1930, adquiriu a Fábrica Bijou, a mais qualificada panificadora da capital amazonense. Deu-lhe nova denominação, máquinas atualizadas, treinamento ao pessoal e, com renovado visual, a transformou em padrão de modernidade. A reinauguração deste estabelecimento comercial contou com a presença do Interventor Federal, Álvaro Maia, exímio orador. Nessa festa, também estava presente o jovem Manuel Mendonça. “Nós precisamos de habilidade, dedicação e educação para com o público”, disse o português na solenidade. Pronto, Manuel estava contratado. Ele apresentava muito mais: dispunha de exemplar garra, de vontade de progredir e de uma peculiar cortesia, adquirida na caminhada da vida, seguindo os padrões dos mais velhos. Para comprovar sua maior dedicação (e economizar, por óbvio), passou a residir nos fundos da própria padaria, numa espécie de alojamento para os empregados, disposto a permanecer de sobreaviso para qualquer serviço extra. Na Bijou, Manuel trabalhou por anos, na função de balconista – atendente de balcão. Procurava aprimorar-se no relacionamento com o público e, sempre que designado para contatos externos com fornecedores ou consumidores, fazia dessa obrigação uma prática de bom atendimento. Sua caprichada caligrafia, sem senões, e o esmerado vestuário constituíam mais que uma boa apresentação do

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astuto Manuel. Revelou-se seu cartão de visitas para conquistar a clientela. Obviamente, conquistou elogios de seu gerente, Antônio Lamarão; no reverso da moeda, isso motivava ciúmes entre seus colegas de trabalho. Surgiu a oportunidade para Manuel galgar um degrau no emprego. Foi quando um dos subgerentes, Sr. Osvaldo, adoeceu. Ele foi designado para substituí-lo. Era a chance que lhe faltava. Esmerou-se mais ainda no trato com os clientes, promoveu mudanças para otimizar o trabalho de todos e conseguiu, apesar da ciumeira, conquistar grande parcela de colegas. A fim de acalmar e harmonizar o ambiente, continuou participando da confraternização do grupo, saindo nos finais de semana para tomar umas “brahmas”, geralmente no Bar Normal, contíguo ao cine Polytheama. Mas isso, paralelamente, trazia alguns problemas. Ele passou a ser o porta-voz de todas as reivindicações de seus colegas, em especial, a salarial. Como o subgerente adoentado não mais retornou ao posto de trabalho, o substituto seguiu gerenciando. A vida de Manuel prosperou, estava afortunado com seu emprego. Conseguiu ajuntar alguns trocados e, nessa ocasião, oferecer um melhor local para a moradia de sua mãe, que continuava na labuta diária. Deixaram a palafita no igarapé para ocupar um quarto na Rua Dr. Moreira, artéria curta de dois quarteirões, finalizada junto ao quartel da Polícia Militar e da Praça da Polícia – oficialmente, Heliodoro Balbi. Acolá, a família podia desfrutar de algumas atrações: no coreto da praça ouvir a Banda da Polícia Militar que, nos finais de semana e datas comemorativas, enchia a praça de musicalidade. Próximo dali, havia dois cinemas, com enorme frequência de público. Dentro dessa atmosfera e dessa sociedade cosmopolita, Manuel realizou bons contatos e boas amizades. Nos contava, com brilho nos olhos miúdos, da amizade que estabeleceu com seu conterrâneo, o dentista P. T. Barba. Pedro Telmo era peruano, graduado em Lima e doutorado nos Estados Unidos, que

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acabou na Praça da Polícia. Barba havia chegado a Manaus na mesma época da família Malafaya, e muito a ajudou, tendo servido como referência para que Manuel conseguisse o emprego na Fábrica Rosas, depois Bijou. A família caminhava com acerto, até que, no final de 1939, o jovem Manuel foi requisitado por seu país, a fim de contornar pendência junto ao exército peruano. Antes, porém, no final de fevereiro daquele ano, o balconista presenciou a inauguração de enorme retrato, um pôster do Presidente Getúlio Vargas, na Fábrica Rosas. O evento contou com uma banda de música, a participação do interventor federal, Álvaro Maia, de autoridades militares, do presidente da Associação Comercial, Dr. Armando Madeira, e, óbvio, do proprietário J. G. Araújo e do gerente comercial, Antônio Lamarão. Manuel viajou em navio de cabotagem para Iquitos, onde, sem perda de tempo, compareceu à Circunscripción Provincial de Maynas. Aproveitou a oportunidade para legalizar sua situação militar, ocasião em que obteve novo documento: Libreta de Conscripción – e, excêntrico, um original nome: Manuel Mendoza Malafaya. O nome (e sobrenome) era algo que o perturbava, pois no documento até então conhecido, o Certificado de Nascimento, não constava o sobrenome de sua mãe, Victoria Malafaya. Ele desejava homenagear em vida a sua heroína: a mulher que empreendeu uma fuga espetaculosa, armada apenas de coragem e fé, que escapou dos grilhões do cárcere social de um lugarejo extremamente hostil, enfim, com essa atitude concedeu aos filhos a sobrevivência num ambiente humanizado. Quando retornou a Manaus, Manuel retomou seu lugar de trabalho. Ao partir, restou combinado que ele não perderia sua função. Mas, em pouco tempo, ele perderia o homem que lhe deu a grande chance no mercado de trabalho: o comendador J. G. Araújo, como era conhecido o dono da Fábrica Rosas, morreria no ano seguinte em

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Portugal. Ainda houve tempo para que o proprietário promovesse a reforma na panificadora e nomeasse a Manuel para cuidar dos embaraços advindos no período da Segunda Guerra, que se avizinhava de forma drástica. Havia escassez de gêneros alimentícios, tanto que o Governo Estadual teve que intervir para evitar o desabastecimento e, para sua consecução, instituiu o controle portuário, por intermédio da Polícia Militar. O comandante, coronel Gentil Barbato, teve a incumbência de gerenciar essa missão. Algumas vezes, este oficial chegou a dialogar com o jovem Manuel sobre o método e o controle da quantidade de produtos vendidos na Fábrica Rosas, que então se tornara um empório. Já em Manaus, o jovem Manuel julgou que com o novo sobrenome, a vida familiar fosse se normalizar. Havia uma querela entre os irmãos. Francisco Malafaya não admitia o fato de não conter, em seu certificado, o nome do seu genitor; enquanto no de Manuel constava o registro efetuado pelo próprio pai. Francisco responsabilizava a mãe por este dissabor, sem discernir que a vontade materna naquele lugarejo (Caballococha), não possuía qualquer prioridade. Francisco ainda não conseguira um emprego formal, desse modo, resolveu dar uma guinada na vida. Longe da presença do irmão, rumou para o Rio de Janeiro, influenciado e patrocinado por um amigo de ocasião, Dr. Armando. Este advogado o ajudou monetariamente e, ainda, entregou-lhe uma “carta de recomendação” para ser apresentada a uma empresa do Rio de Janeiro. Assim, Francisco deixou Manaus e fixou-se no Rio, em 1939. No ano seguinte, surgiria a excelente perspectiva para o “renovado” Manuel: ali mesmo, no seu local de trabalho, viria trabalhar Francisca Pereira Lima, que se tornaria a estrela-guia que o iluminou e o conduziu por doze anos de sua existência, marcando-a de forma indelével.

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NO SERINGAL

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rande seca devastou o Nordeste nas últimas décadas do século XIX, atingindo principalmente o Ceará. Somado a isso, uma epidemia de cólera aumentou a desdita, que motivou o êxodo de milhares de nordestinos, com mais força, o de sertanejos. E o destino da maioria deles foi o Amazonas, que vivia um período venturoso com a abertura do ciclo da borracha. Notícias alvissareiras fomentadas até pelos governantes circulavam entre os cearenses. Desejosos de vida nova bem longe de seus fantasmas, como antídoto capaz de mitigar as dores sofridas pela falta de água e a escassez de alimentos. Sob esse triste panorama, diversas famílias abandonaram tudo para encontrar um novo horizonte. Os futuros pais de Francisca, Vicente Pereira (filho de Manuel Pereira de Santana e Maria Rosa da Conceição, que permaneceram no sertão cearense) e Adelaide Vieira esperaram até o final do século para enfrentar essa empreitada. Oriundos do sertão cearense aportaram no Amazonas, mais precisamente no distrito do Careiro, um lugarejo margeando o lago do Anveres. A região servia, basicamente, para a pecuária e a agricultura, devido a fartura de água e a proximidade com grande centro consumidor, Manaus. Vicente Pereira Lima tornou-se um agricultor ativo e participativo na comunidade que envolvia, também, os moradores do paraná do Cambixe e do Curari. Em certa ocasião, em 1911, subscreveu um “abaixo-assinado”, cuja petição às autoridades municipais exigia a fixação de uma tabela de preços para o Mercado Adolpho Lisboa, para a compra de seus produtos.

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Lima não era iletrado, ao contrário, sempre buscou progredir na vida, exigindo respeito aos seus direitos. Assim, requereu e obteve a posse de terras – título provisório – onde teve oportunidade de se dedicar à cultura da cana de açúcar. Ocupou um terreno com quase dois mil metros quadrados, o qual denominou de Fortaleza, para lembrar da terra natal. Adelaide, aos 13 anos, acompanhou os pais, Miguel Vieira da Cunha e Maria Francisca Mendes, na busca do eldorado amazônico. O grupo familiar instalou-se no lago do Anveres, distrito do Careiro, próximo da capital. Longe, porém, de escola, ela não conseguiu se alfabetizar. Atrapalhavam enormemente o caminho até uma escola o caudaloso Rio Negro e a falta de iniciativa dos pais. A jovem, no seio da família, vivenciou o auge do ciclo da borracha, distante de Manaus e dos seringais, onde o ouro negro fazia pulsar os corações nordestinos. Para o consumo próprio, o grupo investiu na agricultura de sustento e na criação de animais, apostando numa transformação gradativa, com o passar dos anos, sem grandes perspectivas, sem grandes ambições. Diverso do Ceará, sentiam-se satisfeitos com a grande massa de água que os circundava, espantando de vez o pesadelo da seca, que novamente assolou aquele Estado no início do século passado. Neste cenário, em 1912, aconteceu o casamento de Vicente com Adelaide, celebrado ali mesmo no Careiro. Ele, viúvo de 39 anos, resolveu reiniciar e oficializar a vida conjugal, apostando na conterrânea, brava e valente retirante da seca. Dessa união, já nascera Raimunda em 1911; em seguida, ano a ano, chegaram em profusão mais filhos: Sebastião, Manuel, Maria, José e a caçula, Francisca, em 28 de abril de 1917. Vicente resolveu investir na produção de cana de açúcar, para isso decidiu instalar um engenho na sua propriedade. Queria deixar de ser apenas um agricultor. Haveria tantos equipamentos a adquirir, assim como animais de tração e contrato de mão de obra para a produção. Tudo pensado e idealizado, mas a explosão da Grande Guerra (1914-17) provocou a derrocada na indústria de açúcar europeia, consequentemente, o aumento do preço no mercado mundial. Tal situação incentivou a construção de novos engenhos no Brasil, mais bem

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estruturados e melhor situados. Os fazendeiros de café de São Paulo e outros industriais de Pernambuco resolveram diversificar sua produção. Assim, engenhos de aguardente foram transformados em usinas de açúcar, tornando a concorrência desleal ao pequeno produtor. Nesta época, foi fundada a Cia. União dos Refinadores, uma refinaria de grande porte, que praticamente monopolizou a produção de açúcar. Embora tenha conseguido a demarcação de mais um lote de terra nos arredores de Manaus, a vida de Vicente tornou-se difícil. Diante desses fatores: o endividamento com a aquisição de equipamentos; a extensa família para criar; o escasso futuro promissor com a derrocada da exploração da borracha. Essas incertezas e tribulações, aliadas a uma instabilidade momentânea do espírito, contribuíram para que ele, após áspera discussão com familiares, acabasse com a própria vida, deixando-os órfãos. A família se desestabilizou. A mãe, embora analfabeta, exerceu papel importante na educação dos filhos. Buscou alternativas de sobrevivência e os manteve ao alcance, por algum tempo. Mas, certo dia, para ensejar a dotação cultural dos filhos, fez as malas, embarcou na lancha Xiborena para desembarcar em Manaus, indo morar à rua Jonatas Pedrosa. Francisca, a caçula, a acompanhou e cuidou da genitora. Aproveitou para estudar e aprender as prendas domésticas. Diplomou-se em corte e costura, preparando-se para um vindouro matrimônio e, ao mesmo tempo, como alternativa de sustento. Aos 20 anos, tornou-se eleitora, embora nunca tenha votado; dois anos depois obteve a Carteira Sanitária e a Carteira Profissional, visando a um trabalho formal. Em fábrica dos Araújo, ela foi selecionada e entrevistada. No primeiro dia de fevereiro de 1940 assinou contrato para trabalhar na Fábrica Rosas, a panificadora localizada à Av. Sete de Setembro, 1043, a mesma onde Manuel já trabalhava há anos. Essa aproximação gerou contatos e, destes, uma ampla amizade, inicialmente. Manuel, por semanas a fio, observava a formosura daquela senhorinha, como ele gostava de relembrar. Francisca era uma moça recatada, humilde e zelosa. Apesar da altura (1m51), possuía sólida honradez.

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Francisca, sem dispor de apoio financeiro paterno (já morto), junto com a mãe enfrentou aperturas para sobreviver no novo endereço. Por isso, Manuel afirmava categoricamente que ela era muito segura, não gastava com facilidade seu minguado salário. Na apreciação do “amigo”, ela era “mão fechada”. Mas, apesar dessa restrição, Manuel admirava seu caráter e seu comportamento, virtudes que o seduziram decisivamente. Com o novo cargo e um substancial aumento no contracheque, ele passou a ser perdulário. Saía todos os finais de semana enturmado, para um tour pela cidade, incluídos os cabarés. Comprava e vestia os melhores ternos de casimira e outros mais bem afeiçoados. Em compensação, não restava na segunda-feira qualquer moeda, sequer para o café matinal. Como o pagamento era semanal, Manuel não conseguia construir qualquer poupança, capaz de o amparar no futuro. Essa infeliz rotina permaneceu até o dia em que resolveram namorar. Francisca, então, com educação e altivez, alertou-o sobre esse comportamento. Fez-lhe uma proposta: não alteraria muito o seu modus vivendi, mas, ao receber o pagamento no sábado, ele não levaria todo o dinheiro no bolso; deixaria com ela parte do salário, para que na segunda-feira ele pudesse resgatar e dispor de grana para as despesas da semana. Em face dessa sábia decisão, ele capitulou. E essa salutar atitude permaneceu arquivada em sua memória por toda a vida. Como namorados, puderam se conhecer mais intensamente, encontrando-se amiúde. Enfim, Manuel resolveu encarar o noivado para ultimar o casamento. Todavia, a família de Francisca não o aceitou de imediato. Pretextos para o obstáculo: certo preconceito contra o estrangeiro, no caso, o peruano e, a outra ressalva mais decisiva, sua conhecida vida boêmia. Antes de conceder autorização para a frequência à casa da noiva, a família buscou referências e informações sobre o noivo. Talvez almejasse um pretendente com mais dotes, e menos embaraços. Manuel não se deixou abater, em consenso com a namorada deixou tudo como estava, manteve a rotina de vida. Aquela poupança foi mantida assim como o chamego, não havia razões para ele desistir, tratando-se de tão delicada moça. De outra maneira, como se esquivar

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da beleza do dom de Deus, ali presente, capaz de o guiar, sem tolher os deleites varonis. Naquele mesmo ano, no início de outubro, um acontecimento faustoso marcou a vida do par enamorado. Com a presença do Presidente da República, Getúlio Vargas, do Interventor Federal, Álvaro Maia, de várias autoridades civis e militares, aconteceu a inauguração das novas instalações da Fábrica Rosas. Esse evento constou do programa da visita do Interventor Federal que gerou, naquele dia e outros anteriores, uma motivação efervescente, sem precedentes na cidade, com súbita euforia na população e expectativa desmedida das autoridades no criador do Estado Novo. A imprensa nacional e internacional deu ampla cobertura à primeira visita de um Presidente da República ao Estado do Amazonas. No ano seguinte, 1941, novos episódios marcaram a vida dos enamorados. Francisca perdeu a mãe – a fiadora do seu noivado – para um colapso cardíaco, logo no primeiro dia de setembro. Com isso, a irmã mais velha (Raimunda) passou a tutelar Francisca, o que tornou o aval do noivado mais complicado. O marido da irmã, também Manuel, embaraçou os planos do noivo. Diante de toda essa polêmica e a dificuldade de relacionamento, Manuel resolveu buscar alternativa de trabalho, fora da Fábrica Rosas. A Amazônia vivia o segundo ciclo da borracha. O andamento da Segunda Guerra (1939-45) propiciou para o Amazonas bons e maus efeitos. De restritivo, o desabastecimento, e, de positivo, o investimento dos Estados Unidos, quando estes investiram maciçamente na produção brasileira de borracha para atender a demanda de mercado, face o bloqueio de produção da matéria-prima asiática. O Governo Federal, para aplacar o problema da seca do Nordeste e ao mesmo tempo promover a revitalização dos seringais amazonenses, promoveu o alistamento de trabalhadores para a exploração do látex. Nos seringais, apesar do abandono, ainda havia um remanescente de

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aproximadamente 35 mil trabalhadores. Foi estabelecida uma meta para o aumento de produção do látex em mais de 150% e, para isso, haveria a necessidade de incremento de mão de obra de 100 mil pessoas. Essa operação foi denominada de “Batalha da Borracha”, para cuja execução foi criado o SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia). Manuel, que já nutria pelo presidente Vargas uma enorme simpatia, resolveu atender a este chamamento. Ambicionava com tal iniciativa resolver, em parte, a refrega com a família de Francisca. E mais, promover uma economia financeira, quem sabe, uma reserva considerável, capaz de viabilizar o enlace matrimonial. Com esta pretensão, aceitou partir para o Rio Madeira. Em sua lembrança, não permaneceu nem o nome do seringalista, sequer do seringal, somente ficaram cinzeladas em sua alma as mazelas sofridas. Na selva, logo deixou de ser considerado “brabo” (o seringueiro novato, sem habilidade), pois aprendeu com facilidade o ritual de um seringueiro. Aprendeu que este trabalhador acordava muito cedo, de madrugada, para iniciar a tarefa, dividida em duas etapas: pela manhã, depois de riscar a árvore, fazia a implantação de tigelas para recolhimento do látex. À tarde, refazia a “estrada” para recolher a seiva e as tigelas. A produção de “pelas” (bolas de látex preparadas e coaguladas) era realizada por outra equipe. Todo esse sacrifício não incomodava Manuel, pois seu objetivo era ganhar bastante dinheiro! Mas, nada disso estava ocorrendo. A pecúnia permanecia no cofre do seringalista, pois este cobrava dos trabalhadores todas os gastos, inclusive transporte e alimentação. Com o passar do tempo, sentindo-se lesado, resolveu “tirar satisfações” com o patrão. Não foi bem acolhida a maneira reivindicatória, resultado, passou a ser perseguido pelos capangas do seringal. Manuel, então, discerniu a situação e procurou se proteger, para tanto, ajeitou um amigo de ocasião para que servisse como seu escudeiro. Numa festa promovida pelo barão do seringal, para subtrair mais dinheiro dos trabalhadores, Manuel ficou sabendo, pelo guarda-costas, que certa pessoa fora agenciada para matá-lo, com o punhal que

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portava. Pensou rápido na maneira de desarmar o agressor, sem despertar atenção, nem arranjar um quiproquó. Dotado de uma intuição divina, aproximou-se do rival e pediu-lhe emprestado o punhal, para que pudesse abrir a tampa de seu relógio que, sem mais nem menos, havia enguiçado. A fim de impressionar, sacou o relógio do bolsinho da calça e, balançando levemente encostado ao ouvido, simulou que estava “parado”, sem funcionar. O oponente ainda hesitou, dizendo que não tinha nenhum punhal. Manuel insistiu polidamente e, em tom de brincadeira, disse-lhe que não queria ficar com a arma, assim como não desejava ir pegar o seu no barracão. Não queria perder a festa. Enfim, o cara passou o punhal. Manuel o segurou firme pelo cabo com a mão direita, olhou sério para o adversário e exigiu-lhe a bainha da arma. O sujeito, desarmado e surpreso, entregou-lhe. Manuel, num gesto firme, jogou o conjunto pela janela dentro do rio. Então, conversou a sério com o rival, esclarecendo a refrega. Além de tudo, disputavam veladamente a mesma mulher. Naquela noite fatídica, Manuel lembrou-se da pescaria que realizara com seu protetor há dias. Quando ele jogou o anzol na água, sentiu o fisgar de um grande peixe. A força da puxada fazia vergar o caniço, obrigando-o a redobrar o esforço. Entretanto, quando recolheu o anzol, viu que nele estava pendurada apenas uma mecha de cabelos pretos. Não pescou mais, mandou-se para o tapiri. Ainda no caminho, uma voz sussurrou-lhe ao ouvido: “vai embora daqui!” Face aos acontecimentos, na mesma noite, Manuel despediu-se do “protetor”, pegou suas tralhas e foi para a beira do rio à espera de algum regatão ou viajante. Seria dificílimo, quase impraticável, que alguém estivesse viajando àquela hora. Porém, minutos depois, um homem, solitário numa canoa, passava ao largo. Ele viu Manuel e se aproximou: o homem de barba, de cabelos brancos como a neve, ofereceu-lhe carona. Não falou, entenderam-se apenas gestualmente. Manuel ofereceu-se para remar, o homem não aceitou, balançando a cabeça negativamente. Viajaram pelo resto da noite sem conversar e, ao amanhecer, o “velho do rio” o deixou em um porto seguro.

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PRIMEIRO CASAMENTO

Q

uando Manuel retornou a Manaus, após a famigerada experiência no seringal, Francisca já não trabalhava na Fábrica Rosas. Havia deixado a padaria após dois anos e meio de trabalho. Outra questão: a morte do patriarca J. G. Araújo causou razoável alteração nas razões sociais da empresa; assim como, a mudança de ares determinando novos rumos, motivada pela revigorada relevância da borracha. Manuel procurou a namorada e ficou radiante diante da receptividade. E mais, encantado em saber que, no período em que esteve ausente, ela deu o apoio mais que necessário à sua mãe. D. Victoria, apesar dos 54 anos, ainda se encontrava repleta de vigor e de disposição para seguir na atividade de trabalhadora doméstica.

O casal tomou a decisão de, a partir daquele data, agendar e planejar o casamento, visto que a desavença principal com a família dela não mais oferecia relevância. Francisca havia completado 27 anos. Afora isso, ela sequer morava com a irmã Raimunda, esta, sim, continuava residindo no bairro de Educandos. Nesse mesmo ano, Manuel viu-se obrigado a retornar a Iquitos a fim de atender ao chamamento do Exército. Desse modo, para desanuviar a atmosfera de desaprovação ao casamento pela família da noiva – particularmente a irmã mais velha e seu marido –, que continuava irredutível, e o imperativo premente de atualizar a situação militar, os noivos decidiram viajar ao Peru, onde poderiam consolidar esses dois compromissos.

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O casal zarpou no navio Distrito Federal (construído na Holanda em 1912, que oferecia camarote de três compartimentos e servia requintada alimentação). Em razão da iluminação bastante cintilante que distinguia estes navios, os mesmos foram apelidados de “vaticano”. Nessa viagem, o casal pode então conferir suas afinidades, traçar os planos para o futuro e retemperar o amor que havia sofrido nos meses de afastamento. Em Iquitos, cuidaram primeiro de viabilizar o casamento, porque, em tempos de guerra, poderia surgir a possibilidade de convocação para os cidadãos solteiros. Ainda que apressados, tiveram que aguardar as diligências do direito civil e canônico. Tornaram-se premente publicar os proclamas, convidar os padrinhos e arrumar a residência. Providências ajustadas sem perda de tempo, em 24 de novembro de 1944, Manuel e Francisca se uniram em matrimônio na Parroquia San Juan Bautista, a igreja matriz de Iquitos. Na Partida de Matrimonio, por descuido do assentamento, os nomes dos nubentes ficaram sem o derradeiro sobrenome, ambos reduzidos a um sobrenome, dessa maneira: Manuel Mendoza e Francisca Pereira. Realizado o enlace, os casados esforçaram-se para se estabelecer em Iquitos. Manuel acertaria em definitivo sua pendencia com o serviço militar. Sua irmã Laura Torres, e o esposo dela, Manuel Miranda, como da tradição e da hospitalidade incaicas, convidaram o casal para se fixar no Peru. Manuel aceitou, associando-se ao cunhado Miranda – marceneiro, com oficina na própria residência –, para trabalharem juntos. A chance serviu-lhe para o aprendizado e a qualificação em ofício bem valioso: o de carpinteiro. Com relativo e compreensivo atraso, em 22 de maio do ano seguinte, Manuel pode enfim comparecer ao Departamento de Conscription, onde sanou seu débito com o Exército: Se presentó al llamamiento de 1944 y saldó inapto. Em bom português: foi dispensado do serviço militar. O casal residiu por mais dois anos em Iquitos. Além do serviço ao lado do cunhado, Manuel também explorou um pequeno comércio, e assim pode capitalizar algum recurso para o futuro. Todavia, a preocupação

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com a saúde de Francisca, que engravidara do primeiro filho; a saudade e a distância da família dela, e, igualmente, de Dona Victoria, mãe de Manuel, instigaram o casal com veemência à retornar. Encoberta por essa cortina de subterfúgios, no entanto, existia a satisfação do ego: o anseio de que o primeiro filho nascesse no Brasil, em especial no Amazonas, o rincão – palavra bastante empregada por ele – que lhe proporcionou oportunidades de sobrevivência e de crescimento como cidadão de classe. A contragosto de Laura, fizeram o caminho de volta. Ao desembarque, no roadway de Manaus, a irmã Raimunda foi recebê-los com votos de boas-vindas. Esse gesto praticamente eliminou a desarmonia familiar. Ao ensejo, o casal Mendonça foi convidado a se estabelecer à Rua Inácio Guimarães esquina com o Beco São José, no bairro de Educandos. Nas proximidades da casa da irmã. Vê-se que foi uma decisão racional: Francisca necessitava dos desvelos e do apoio familiar, visto que completava o quinto mês de gravidez. Neste endereço, Manuel dotou a casa de uma área residencial e, na frente, estabeleceu a Mercearia São José. Construiu-a em madeira de lei, instalou duas portas frontais, próprias para o comércio, além de uma agradável varanda lateral para circulação. O terreno em declive facilitou a construção de um porão para armazenamento de mercadorias, e o banheiro, como era habitual naquele tempo, foi situado no quintal. Tudo realizado com muita celeridade, a fim de bem receber o primogênito, que chegou em 17 de junho de 1946. Manoel Roberto tornou-se uma singela homenagem ao genitor, somente que com a grafia do nome diferenciado. Creio que, por questão de fonética auditiva na ocasião do registro, o sobrenome do filho – e dos pais, logicamente – foi grafado “Mendonça” (na pronúncia em castelhano, o “z” tem o som de “s”), um aportuguesamento despretensioso que, não obstante, veio de encontro ao desejo velado do pai, em consignar sincera gratidão à língua brasileira. Como para sacramentar a nacionalidade, os pais convidaram para padrinhos do filho a um casal de brasileiros, Joaquim de Moraes e Guiomar Bittencourt, cuja amizade foi estabelecida no trecho Iquitos-Manaus.

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A taberna do seu Manuel prosperou, com seu carisma e experiência conseguiu cativar os fregueses, principalmente vendendo fiado, com anotação numa “caderneta”, que confiava ao próprio comprador. Ao final da semana, recebia o todo ou parte do débito. Não havia juros ou correção monetária, a mercadoria era vendida como se fosse à vista. Na proximidade, o poder aquisitivo das pessoas era muito baixo, incentivando que somente se vendesse os itens de consumo básico. Nada de supérfluos nem exageros de compras; os grãos e cereais eram vendidos a granel que, consequentemente, geravam bom lucro. Talvez os únicos artigos oferecidos fora da cesta básica fossem a cachaça e o fumo de rolo. Mas, como não se tratava de um bar, o freguês era obrigado a tomar uma ou duas doses e... rua. Quase não existia bêbados importunos e chatos. A vida seguiu essa cadência, sem grandes mudanças. Francisca, ajudada pela sogra Victoria, preocupava-se com a organização da casa, a alimentação da família e a nutrição do bebê. O contato frequente com os irmãos (as visitas entre os parentes eram reiteradas), igualmente oferecia-lhe tranquilidade. Dois anos depois, nasceu o segundo filho, Henrique Antônio, em 13 de junho de 1948. Dessa vez, houve uma homenagem dissimulada ao avô Enrique, pai de Manuel, com a adição portuguesa do “H”. Com duas crianças pequenas, os afazeres domésticos se avolumaram, daí a necessidade de contratar uma babá, uma jovem chamada Luzia que, inclusive os acompanhou na viagem ao Rio de Janeiro, mais adiante. Em fevereiro de 1950, ano da primeira Copa do Mundo no Brasil, Manuel acolheu o convite de seu irmão Francisco, afastado da família há onze anos – e desde quando não tinha notícias dele – para uma experiência de vida no Rio de Janeiro. A oportunidade de assistir à Copa, veemente tendência ao nomadismo e a possibilidade de experimentar novo mercado de trabalho, levaram Manuel a vender seu imóvel por um bom preço ao Sr. Irineu, que o repassou ao Sr. João “Baixinho” Martins. Assim, em 18 de março,

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a família Mendonça embarcou no navio Almirante Alexandrino, em direção à Capital Federal. Francisco recebeu o irmão e família, e mais, cedeu parte de sua residência localizada na Rua Cláudio da Costa, 130, no subúrbio de Irajá. A casa de madeira ainda estava em construção, e bastante acanhada em relação àquela que ficou para trás, em Manaus. Os amazonenses acomodaram-se do jeito que deu, e logo Francisca sentiu falta de Luzia que, na viagem, conheceu um guapo marinheiro, dele se apaixonou e resolveu deixá-los no desembarque, ao aceitar o convite de casamento. No Irajá, a convivência não caminhou nada bem. Francisco havia se separado da esposa, Maria Senhorinha, que também abandonou os quatro filhos, deixando-os com o pai. Dessa maneira, Francisca sentiu a labuta diária ficar demasiada, juntando com a dedicação aos seus dois pequenos. Dona Victoria, que não curtia um bom relacionamento com o filho Francisco, implicou com os filhos dele, por questões raciais. Ou, digamos, pela falta de respeito e obediência que adotavam com a avó. Manuel trabalhou com seu irmão numa firma participante da construção do Maracanã. A parceria poderia ter frutificado não fossem os embaraços da família e, ao mesmo tempo, o fato de Francisca ter engravidado do terceiro filho. Em pouco menos de um ano, a convivência entre as famílias ficou insustentável. Dessa forma, Manuel decidiu, em abril de 1951, retornar a Manaus, sem ao menos ter presenciado a um jogo no recém-construído Maracanã. Novamente o destino se impôs na vida do casal, num momento tão delicado. Será que o desejo oculto de Manuel não estava conspirando em seu favor? Será que, assim como ocorreu ao primeiro filho, ele desejou que o nascituro também nascesse em Manaus? Nada disso foi confirmado por ele, porém, restou subtendido em seus relatos. Admitia que, embora fosse um contratempo, ele não lutou, apenas deixou que a “vontade de Deus” – nas suas palavras – fosse atendida. Vivaz coincidência: no retorno para o Norte, a família (presente um dos autores desta Crônica) embarcou no mesmo navio Almirante.

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Após o desembarque, voltou à Rua Inácio Guimarães, somente que em outra casa, defronte à antiga, vendida quando da partida. A estrela e experiência de Manuel ajudaram tanto que logo conseguiu um emprego, numa das empresas dos herdeiros de J. G. Araújo. Como a casa recém-adquirida necessitava de reparos e melhorias, Manuel teve que ocupar os domingos e feriados nessa tarefa, visando a chegada do novo integrante da família. De fato, aproveitando a tríade das festas juninas – bastante festejadas no Norte do país –, a “cegonha” trouxe Pedro Renato no dia 29 de junho de 1951. O tributo desta vez foi ao santo do dia, São Pedro – patrono da Igreja Católica. O ano seguinte não reservaria à família boas notícias. Francisca se descobriu com uma grave doença: havia contraído a tuberculose. Ainda demorou algum tempo para que o diagnóstico fosse comprovado; havia sempre a suspeita que se tratava de uma fortíssima gripe, e, naquele Educandos, esse tipo de doença se cuidava com remédios caseiros. Os recursos médicos da época não foram eficientes para combater a moléstia. A penicilina que salvou soldados na Segunda Guerra, ainda não estava disponível em Manaus, e a deficiência da saúde pública contribuiu para a derrocada de sua saúde. O quadro dela se agravou com rapidez. Como regra de tratamento, ela visitou amiúde o município do Careiro – sua terra natal – em busca de ares despoluídos e outras tratativas medicinais. Mas a cura, nada. Foi obrigada a se privar do contato com os filhos por causa do contágio. Tudo, em vão. Fatalmente, em 18 de julho de 1952, aos 35 anos, Francisca encerrou sua obstinada luta pela vida, deixando para Manuel o encargo da continuidade da criação e educação dos filhos. Testando para toda a família, a despeito de sua curta biografia, um legado de companheirismo, dedicação, dignidade e retidão. Semeando, como demonstração de seu amor, a bênção perene que, na jornada da vida, segue plasmando seus descendentes.

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No Careiro, em fotografia de 1917, vê-se a família de Francisca, com esta no colo da mãe (detalhe), diante da residência doméstica. As crianças, registradas no mesmo estúdio e com a mesma idade (seis meses), são os filhos de Francisca com Manuel

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SEGUNDO CASAMENTO

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om a viuvez inesperada, Manuel resolveu vender a casa da Rua Inácio Guimarães adquirida no retorno do Rio. Evitava assim que as lembranças da “finada” – expressão comum nas suas narrativas – majorasse as amarguras da perda prematura. A perda da devotada esposa com quem compartilhou os bons e maus momentos nos últimos oito anos. A recomendação de Francisca, no limiar da vida, fora que criasse e educasse os filhos sem transferir qualquer deles para outrem, mesmo que parente. Essa súplica conjugal foi uma doutrina para Manuel. Na casa que adquiriu, um sobrado de madeira na entrada do Beco São José, ele cedeu um quarto para que Lindalva, providencial doméstica, auxiliasse a Dona Victoria no cuidado dos três filhos. Enquanto isso, ele cumpria o contrato de trabalho com uma panificadora do grupo J. G. Araújo. O caçula Renato, com apenas um ano de idade, vez ou outra, era requerido por uma das tias, desejosas de demonstrar a solidariedade que, em outros tempos, não puderam. A vida familiar seguiu, por breve tempo, seu curso equilibrado. Até que, naquele mesmo ano, Manuel se envolveu num pugilato, enfrentando José, um dos irmãos da finada. Este e seu cunhado Francisco, além de um terceiro, de oficio marceneiro, Sebastião. Num certo dia, próximo ao Mercado Adolpho Lisboa, encontrando-se, começaram com agressões morais, depois as físicas, quando Manuel os enfrentou, sem se intimidar. A motivação da contenda estava em que os irmãos exigiam parte da herança de Francisca. Agredindo a legalidade, exi-

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giam a divisão dos bens do casal, neste caso, a casa residencial. Não atendidos, os reclamantes retornaram, desta feita na taberna de Manuel, exigindo os pseudodireitos agora com mais veemência e força. Temendo uma violenta agressão, o taberneiro armou-se de um facão – terçado 128, na linguagem amazônica –, mantendo-se, todavia, no interior do balcão. Deve-se esclarecer que este comércio era uma peça contigua à residência. De sua posição, o viúvo acossado advertiu aos detratores, pensando seriamente no postulado de Francisca e na orfandade dos filhos. Para ventura geral, os desafiantes, não só rejeitaram a defesa de seus “direitos”, como resolveram bater em retirada. Ufa! Francisco (um dos desafiantes) era casado com Maria, irmã da falecida Francisca. Essa contenda serviu para reacender as desavenças antigas, que deixou os três meninos sem uma das opções de acalanto, ou seja, a família cindiu-se gravemente, como mágoas para todos os lados. O viúvo, logo resolveu vender a casa em litígio. Aproveitou a transação para adquirir outra, mais interiorizada no mesmo beco. Esta artéria de cerca de dois metros de largura, ladeava longitudinalmente o Cine Vitória, ainda em construção, que seria inaugurado no ano de 1954. Era uma casa térrea, com sala, dois quartos, cozinha e, no quintal, como de praxe, o banheiro. Exercitando sua veia de carpinteiro, construiu em anexo pequeno quiosque, onde passou a explorar, como fizera nas demais casas, uma mercearia que, francamente, ajudava no sustento da prole. Usava do mesmo ardil: facilitava a venda dos produtos, anotando-a em caderneta como uma espécie de crediário. Continuou também a vender cigarro a varejo, fumo de rolo e cachaça. E, às vezes, oferecia como cortesia um “tira-gosto”, muito bem aproveitado pelo seu Fernandes, velho estivador, que vivia descalço com as calças arregaçadas até à altura da “canela”. O assíduo freguês passava todos os dias na taberna, chegando no final da tarde, à noitinha, quando tomava dois goles de cachaça e comprava meio quilo de milho, usado na alimentação de seus pombos. Na aquisição desse imóvel, Manuel usou o nome estampado em seu primeiro documento. A partir de então, José Manuel Mendoza estava

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de volta. A medida tomada servia para evitar futuras arengas sobre os novos bens adquiridos, visto que o nome do viúvo desaparecia. Manuel prosseguiu em sua rotina de trabalho. Mas, conforme oportunizasse, abria a caixa de ferramentas para melhorar as condições do lar. Dona Victória participava efetivamente dos afazeres domésticos, enquanto Lindalva priorizava o cuidado das crianças. Vez em quando, Raimunda solicitava para cuidar do pequeno Renato, talvez porque tivesse um filho na mesma faixa etária, o Raimundo Nelson, o Bi (morto em setembro de 2016). Numa dessas ocasiões – Manuel recordava-se com ênfase –, quando levou o caçula para atender à solicitação da tia, o pequeno grudou na perna de sua calça, evidenciando não querer ficar. Logo, o genitor imaginou que algum maltrato tivesse acontecido, ou fosse mesmo um medo infantil, tão comum aos pequeninos. Diante desse episódio, Manuel decidiu que, naquela semana, o filho Renato o acompanharia no trabalho, na boleia do caminhão usado na comercialização de produtos da Padaria Avenida. O caçula não lhe deu embaraço. Ao contrário, saboreava as amostras guardadas no porta-luvas do veículo: biscoitos, bolachas e roscas. Na hora do almoço, o molequinho contentava-se com um prato de sopa, tão deliciosa que, às vezes, pedia bis. Fome, dói! Essa esquisita situação levou Manuel a trabalhar por conta própria, abandonando os horários fixos para se dedicar mais aos filhos. Aceitou o trabalho de “pracista” (vendedor na praça), muito comum à época, representante da Padaria Avenida junto aos comerciantes nas proximidades de sua residência. Tratava-se de panificadora e confeitaria bem-conceituada, estabelecida à Avenida Eduardo Ribeiro esquina com a Rua 24 de Maio, no Centro. A atividade de pracista poderia ser realizada a pé, sem tanto deslocamento, assim ele não se afastava do bairro de Educandos e adjacências. No exercício dessa atividade, Manuel conheceu Doroteia Santos, que seria a segunda esposa. Nascida nas proximidades de Manaus, em

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1936, possuía, então, 20 anos. Seu Manuel, 40 anos. Morava ela com a irmã Luzia Ferreira, que comerciava com secos e molhados na Rua Macurany, no mesmo bairro. Dora não conhecera os pais, por isso, foi adotada pela irmã, que acabou por registrá-la como filha. Dora era uma moça branca, sutilmente gordinha e de cabelos encaracolados, que ela mesma qualificava de pixaim. Argumentava que era herança do pai. De média estatura, talvez a mesma de Manuel. Trabalhava como doméstica numa rica residência à Praça do Congresso, no centro da cidade. Manuel começou a cortejar Dorotéia no comércio da irmã e, em outras ocasiões à saída do trabalho dela. Em algumas delas, levava um dos filhos para lhe fazer companhia e, quem sabe, o desejo íntimo de apresentar uma amostragem de seu produto genético. Ela também frequentou a casa de Manuel, onde conheceu a futura sogra, mas com a qual não estabeleceu diálogo prolongado, pois aquela falava o português arrevesado. Sorte grande, quando circulava por perto um intérprete que ajudava na conversação. Abrimos um parênteses para falar de Lindalva. A moça que ajudava sobremaneira nos afazeres domésticos e cuidava da prole. O convívio intenso com Manuel acabou por acender um relacionamento afetivo que, dessa união, gerou dois filhos: Raimundo (1954) e Sônia Feitosa (1956). Entretanto, Lindalva não pretendeu continuar o relacionamento porque percebera a intensidade do namoro de Doroteia com Manuel e o compromisso que estavam assumindo. Resolveu então desposar outro homem para iniciar um novo lar. Manuel reconheceu a paternidade dos filhos, mas não os registrou, cuja tarefa acabou sendo feita, de bom grado, pelo padrasto. E assim, os dias avançaram. Manuel reconheceu que Dorotéia possuía predicados e atributos suficientes para ser a nova esposa. E discerniu que não haveria mais tempo, nem presteza em avaliar outra candidata. O lar reclamava a urgência de uma gestora, e os filhos, duma progenitora. Mesmo porque, ao final de 1955, Raimunda, a irmã mais velha da falecida esposa, iniciou a mudança com a família para o Rio de Janeiro.

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Manuel resolveu “pedir a mão” de Doroteia em casamento, como recomendava o protocolo da época. Luzia, de imediato, hesitou: analisando a situação, intuiu que o peruano com três filhos pequenos não seria um bom partido para a irmã. O marido dela, João Batista – marinheiro fluvial que permanecia mais tempo navegando que em terra –, não opinou, ficou isento. Isso favoreceu o noivo porque, numa sociedade patriarcal, a decisão paterna seria suprema. Como a posição dele não era desfavorável, subtenderam o consentimento. Tal conjectura, obviamente, levou meses para se decifrar. Enfim, José Manuel Mendoza e Doroteia Ferreira dos Santos casaram-se em 23 de março de 1958, perante o cônego Antônio Plácido, na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de Educandos. A jovem Dora, como era nomeada pela família, iniciou prematuramente uma fase temerária na vida: ajudar a criar e educar três filhos homens, já crescidos, o menor às vésperas dos sete anos. O pai da família, nos primeiros meses de convivência conjugal, tratou de impor nova disciplina aos filhos: queria que respeitassem sua esposa como mãe, devendo chamá-la de Dona Doroteia. Os filhos notaram o exagero, não pelo pronome de tratamento, mas pela extensão dos nomes. Assim, por iniciativa dos enteados, passaram a chamá-la apenas de “Dona”. O pronome, todavia, pronunciado assim isoladamente, parecia retaliação e falta de carinho. Pouco depois, os meninos ajustaram o tratamento e resolveram chamá-la de “Doninha”, uma palavra carinhosa, diminutivo que lhe engrandecia em face de sua humildade. Um ano depois, Dorotéia recebe a visita da “cegonha”: no feriado de Tiradentes de 1959, nasceu José Manuel Mendoza Filho. O nome, que parecia ser uma incondicional reverência de Dora ao marido, na verdade foi fruto do acaso. Manuel recorreu ao calendário católico, consultou a folhinha para sacar o nome do santo, e restou surpreso porque não havia nome de santo algum. Apenas a referência ao mártir da Independência do Brasil, José Joaquim da Silva Xavier. Para não fugir à regra, como o prenome do mártir era homônimo, resolveu gravar seu nome no

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novo membro da família, precursor da descendência Mendoza. Veio um menino moreninho, cheio de saúde, da cor do jatobá, herança do avô materno. A avó Victoria ficou dividida entre a alegria e a surpresa, de certo não esperava um neto tão moreno, para ela, negrito. Justamente ela, que já gerara forte animosidade devido a coloração da pele dos filhos de Francisco, no Rio de Janeiro. Decorrido certo tempo, Manuel resolveu vender a casa e, em 29 de dezembro, mudou-se com a família para longe, para um bairro novo e ainda incipiente, lugar ermo, sem ruas asfaltadas, sem luz elétrica nem água encanada, mas com bastante espaço e fruteiras no quintal: o Morro da Liberdade. Tanto a nova casa quanto o novo bairro, como o próprio nome acentuava, seduziam pela liberdade, pelo ar puro e pela natureza mais envolvente. Desagradava, porém, a poeira sempre presente e a falta de iluminação noturna. A família Mendonça e/ou Mendoza perdeu o Cine Vitoria na ilharga de casa, a vizinhança mais enturmada e o banho no Rio Negro, que ficava quase à vista. Agora, a água deveria chegar via “lata d’água na cabeça”. A turma logo se adaptou às novas condições. O saldo positivo é que o quintal era enorme, um sítio, diga-se, de cerca de mil metros quadrados. Muitas árvores frutíferas, principalmente cajueiros, pássaros cantando e bastante vira-latas na rua. Destes vinha a mesma preocupação, manter o fiel e rixento cachorro com nome francês – Joli, enclausurado para não arranjar briga na rua. O Ano Novo foi na verdade o início de uma nova vida. Para preocupar, a Dona já estava com cinco meses de gravidez do segundo filho. Dona Victoria, paradoxalmente, vivia apegada ao neto caçula, e este abusava da afabilidade dela. Toda vez que ela retornava da rua, Zemanuel sabia que ela lhe trazia alguma guloseima. Antes de sua chegada ao portão de casa, ele corria ao seu encontro, não para abraçá-la, mas para apanhar o que lhe interessava, deixando o bornal jogado ao chão. Apesar dessa peraltice, a avó se preocupava com ele, e oferecia-lhe bastante afeição. No entanto, quando a família recebia visitas, ela tra-

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tava de esconder o garoto – abrigavam-se no quarto, de porta trancada – para que ninguém o visse e comentasse sobre a cor da pele, banal precaução em sua visão preconceituosa. Tentando aliviar a escassez de água, Manuel contratou a escavação de um poço artesiano. Após mais de uma semana de muito trabalho e muita terra do lado de fora, a água resultou salobra, imprópria para o consumo doméstico. Servia somente para lavar o banheiro, que ficava externo à casa, e molhar plantas. Quem se arriscasse a tomar banho, poderia sair com a pele bronzeada, já que muitas vezes a água se apresentava ferruginosa. Manuel, então, construiu um carrinho de mão, capaz de acomodar duas e até três latas (recipiente vazio de querosene, com capacidade para 20 litros) de água. Pensava dessa maneira facilitar os deveres dos filhos, que arcavam a árdua tarefa de encher todos os dias um tambor – camburão, na linguagem amazônica – de duzentos litros. Com um agravante: o poço onde se buscava água, na verdade uma cacimba, situava-se ladeira abaixo, no declive do morro, junto a um córrego, mais conhecido como “buraco da vovó”. Não era tão distante, porém, no retorno, com as latas cheias e morro acima, era um estorvo para os condutores. Quando todos se preparavam para o almoço do Dia das Mães, em 8 de maio de 1960, a Dona interrompeu as tarefas domésticas devido os sinais de novo parto. Miguel Jorge atrapalhou a degustação, certamente, todavia trouxe mais alegria ao lar e se inseriu como novo membro da família Mendoza. Com a chegada do novo rebento, mais trabalho e mais responsabilidade para todos. Luzia, a irmã-mãe de Doroteia, comprou uma pequena parte do sítio, para permanecer mais próxima. Construiu uma casa em alvenaria para onde se mudou antes que o Jorge completasse seis meses. E, para facilitar o contato entre as famílias, foi aberto um portão na cerca de madeira que separava os quintais. Manuel, depois de remodelar a estrutura da casa de madeira, posicionando-a paralela à rua, resolveu construir um quiosque ao lado, para explorar em outra tentativa uma taberna. Com essa iniciativa, esperava

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reforçar o caixa para encarar as despesas crescentes do lar. Além disso, aumentou consideravelmente a criação de galinhas, patos e porcos, no grande quintal. Tudo isso, cogitando uma forma de sustento da família, que crescia literalmente. Até o Joli já contava com a parceria de outro totó, o Branco (devido sua pelagem), no serviço de proteção ao patrimônio. Contudo, o comércio não prosperou. O mercado consumidor do bairro, ainda em formação, não ajudava obter bons lucros. A concorrência também era desleal, havia comerciantes mais estruturados que ofereciam melhores opções de compra e pagamento. Mendoza pai estava em sérias dificuldades: como se estabilizar, pois se encontrava sem trabalho fixo, ou um provento capaz de subsidiar o abastecimento de mercearia, pois os antigos fornecedores eram mais escassos naquele novo bairro. Até a metade dos anos 1960, o Amazonas vivia um período de ostracismo, depois de ter curtido dois ciclos distintos da borracha. Realizando um contraponto com essa desestabilidade econômica, o Governo Federal priorizou a região sudeste, com a implantação das indústrias automobilística, naval e siderúrgica. Além de construção de hidrelétricas e algumas rodovias federais. No entanto, o final do governo JK (Juscelino Kubistchek) foi marcado pela crise econômica, que envolvia justamente sua principal bandeira: a construção de Brasília. Afora isso, pipocavam greves no sul, de marítimos, ferroviários, portuários e até aeroviários. O Brasil foi obrigado a recorrer ao FMI (Fundo Monetário Internacional) para se restabelecer. Talvez devido a esses desajustamentos sociais e políticos, o candidato oposicionista Jânio Quadros, eleito com ampla maioria de votos, começou seu governo em meio à crise, no último dia de janeiro de 1961. Um mandato que só durou sete meses, encerrado com a renúncia deste presidente. Conforme a Constituição, o vice-presidente Jango assumiu, porém, sob a desconfiança de facções de políticos e de comandos militares. O imbróglio gerou uma salada de regimes de governo, o parlamentarismo junto com o presidencialismo. Esse caos precipitou o surgimento do Golpe Militar de 1964, que durou até 1985.

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Como se fora um maestro, Manuel orquestrou bem as necessidades de educação dos filhos. Aproveitando-se da amizade com o padre Antônio Plácido – nascido no mesmo município de Francisca, da paróquia de Educandos, encaminhou os dois filhos mais velhos ao Seminário São José. Esse educandário, em regime de internato, possuía um professorado composto de padres e amigos da Casa, e contava como vice-reitor ao padre Juarez Maia. A inclusão era realizada para os jovens que houvessem concluído o ensino básico, para começar o curso ginasial. Roberto, devido a orfandade materna, virou exceção e iniciou seus estudos em 1956, aos dez anos; Henrique, ingressou quatro anos mais tarde, aos 12 anos, quando a família se mudou para o Morro da Liberdade. Manuel sentiu a necessidade de voltar ao ofício de carpinteiro. Ele que havia se aprimorado com seu cunhado e xará, marido de Laura, no Peru, há quinze anos, desejava retornar ao trabalho formal. Aprovado em teste numa das empresas de I. B. Sabbá & Cia. Ltda. (proprietário da Refinaria de Manaus, inaugurada em 1957 por Juscelino Kubitschek, para estimular a região norte), começou em 8 de julho de 1961. Nessa data, assinou o primeiro contrato como carpinteiro, para trabalhar na Usina Rio Negro, que procedia ao beneficiamento e necessitava de embalagens para o transporte de castanha-do-pará, hoje do Brasil. Era um trabalho sacrificante, pois, bastante longe de casa, obrigava-o a tomar duas conduções para chegar ao local. Além disso, como existia escassez de emprego, a remuneração era tabelada de acordo com a oferta, ou seja, predominava a exploração da mão-de-obra. Para mais economizar, o carpinteiro não almoçava no trabalho. Um dos filhos, normalmente o caçula Renato, de 10 anos, aventurava-se na bicicleta para chegar com o almoço ainda “quentinho”, quer pelo calor do fogareiro quer pelo sol abrasador da linha do Equador. Dona Victoria, com 71 anos, não tinha mais a saúde como aliada. Não buscava se medicar, quando e se carecia, preferia os próprios remédios caseiros e cataplasmas. Estava com dificuldades para andar, por

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conta de uma úlcera aberta no dorso do pé direito, que não cicatrizava. À época, ninguém se deu conta de que o diabetes era a causa, pois essa doença não era comum nem havia a consciência para tal mal assintomático. Não se contava com hospitais na vizinhança nem recursos para levá-la para tratamento noutro local. Também ela, cansada da rotina e da vida, perdeu o interesse pela consulta ao médico ou ao farmacêutico. Próximo ao Natal daquele ano, no dia 10 de dezembro, Dona Victoria, a destemida e incansável batalhadora, foi superada pelo inimigo covarde e invisível. A tristeza tomou conta de todos. A matriarca da família Malafaya, a proeminente ancestral loretana, encerrava sua biografia, que começara muito antes daquela corajosa e espetacular escapada de seu país. A matriarca empenhou toda sua vida à salvaguarda dos filhos, para torná-los cidadãos. Enfrentando, no seu povoado, homens desalmados e vis, num período de hostilidades sem trégua contra as pessoas de bem. Por trás do seu austero jeito de ser, havia uma docilidade na missão que Deus lhe confiou. A falta de educação formal atrapalhou a sua comunicação com a sociedade, porém facilitou o entendimento com a família e despertou nos netos – principalmente os da primeira geração – a admiração e respeito pelos antepassados, tanto os de origem peruana como brasileira. Legou-nos uma sadia semente que, regada com o passar dos anos, prosperou e deu frutos. O Natal daquele ano foi desanimado. Além da perda da matriarca, a crise financeira persistia, já que Manuel, nos últimos cinco meses, deixou de trabalhar por quase dois. No entanto, sua recontratação na mesma empresa foi um alívio, embora o ordenado – como ele se referia ao salário – permanecesse minguado. Nesse meio tempo, a família recorre às mudanças de hábito e costumes para conseguir o sustento: aumento da criação de aves, plantação de feijão, milho, batata e hortaliças no quintal. Além disso, investe na fabricação de carvão vegetal, vital para o fogareiro e para o ferro de engomar. Como existiam terrenos imensos, e abandonados, Manuel e o filho Renato, munidos de machado e facão, a partir de uma coivara ou do

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mato virgem, cortavam e juntavam toras de árvores, as cobriam com folhagem e barro, e acendiam o fogo. Dias depois, já estava pronto o carvão, que recolhiam e transportavam em saco próprio, dentro do carrinho usado para transportar água. No ano seguinte, ansiava-se por uma calmaria, por um mar de almirante para navegar em águas mansas, na continuação da rotina de trabalho e da sobrevivência. Mas, Doroteia Mendoza descobre que está grávida, no terceiro mês de gravidez, do terceiro filho. Mais uma vez, Manuel alimentava uma esperança velada de que fosse uma menina, para quebrar a hegemonia masculina. Todavia, o dia 8 de julho de 1962 o decepcionou: o garotinho de olhos amendoados e cabelos espetados escapou do ventre materno às 14h30, e chorou. Luís Carlos – Luisinho no seio familiar – teve uma infância difícil e complicada. Aos oito meses, visitou a fronteira do “outro lado da vida”, por conta de uma doença estomacal misteriosa, que o impedia de se alimentar em regra, pois, tudo quanto comia voltava em convulsões. Em busca da cura, ele foi levado ao Dr. Comte Telles, médico de renome, mas que falhou com os medicamentos receitados. A família chegou à desesperança, e, em três oportunidades, puseram a vela em suas mãozinhas, acatando o então ritual da morte. Até um padre foi chamado numa dessas ocasiões. De todas as sugestões de cura provindas da vizinhança, uma delas foi Deus quem soprou: suco de lima da Pérsia – ou simplesmente lima, no linguajar amazonense. Luisinho, começou a tomar em conta-gotas, feito remédio homeopático. A recuperação foi lenta, muita lenta, mas gradativa. Em alguns dias, ele já podia ser amamentado. No entanto, esse quadro retardou seu desenvolvimento, pelo que continuou fazendo jus ao nome no diminutivo. Vez ou outra, adquiria a doença espiritual de criança da época: quebranto ou mau-olhado. E aí, Dona Alzira, a benzedeira, era solicitada a intervir. Ela realizava a reza com tanta fé que, potencializada pelo desejo da família, o menino logo readquiria o viço.

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Afora as doenças sazonais que comumente atingiam a família, e a saudade insofismável de Dona Victoria, a família no Morro da Liberdade prosseguiu seu rumo. O luto ou fumo, pequena faixa de pano preto espetado no bolso da camisa, estava sendo anistiado aos poucos, já não mais possuía presença assídua, somente nos dias de missa ou em ocasiões especiais. Manuel conseguira uma ligeira estabilidade no trabalho, apesar do momento conturbado pelo qual passava o país. Conseguiu permanecer no emprego por mais de um ano. Depois de um mês parado, retornou à mesma usina de beneficiamento de castanha, e já estava há onze meses trabalhando quando Doroteia anunciou que estava novamente grávida. Pela tabela própria, o novo rebento viria no começo de abril, posto que ela nunca se equivocava. E mais, não queria errar novamente o sexo da criança. Seu desejo íntimo era que, finalmente, nascesse a menina tão pretendida. Conforme o prognóstico da mãe, João Ricardo nasceu em 3 de abril de 1964, três dias após a implantação do Governo Militar. Houve mudança na condução das rédeas do país; pessoas e políticos sendo exilados, enquanto um novo membro se incorporava à família Mendoza. Menino saudável, completo e formoso, que carregava consigo poucos genes da hereditariedade peruana. As tias, como de costume, analisaram o recém-nascido, notando que no lóbulo da orelha esquerda, diversa da outra, faltava um pedacinho. Era só um detalhe a diferenciá-lo dos demais, sem causar qualquer constrangimento. Somente um argumento a mais para ser acrescido nos comentários familiares. Nesse ano, início do período letivo, Manuel continuando sua regência de educação da prole, mandou Renato, que já havia completado o curso primário, para o internato do Seminário, no mesmo onde o Roberto já estava há oito anos. Em contrapartida, aceitou com naturalidade o rechaço do Henrique, depois de quatro anos, por um motivo alheio à vontade do seminarista. Ele continuou os estudos do então curso científico em colégio público, no turno da noite, além disso, conseguiu um emprego que lhe propiciava ajudar no sustento da família.

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Um ano após o nascimento de Ricardo, seu pai novamente ficou fora do trabalho formal. O mercado da castanha “esfriou” e o distrato foi inevitável. Manuel, aproveitando parte da indenização recebida pelos mais de dois anos de trabalho, planejou e executou o aumento da casa de madeira. Fez dela um sobrado, com duas varandas, uma frontal e outra nos fundos. Na parte superior, construiu cômodos individuais que se destinavam ao aluguel. Era a maneira precavida de se defender da crise econômica que o país vivia, com as recentes reviravoltas no comando da Nação. Teve sorte na decisão, pois, pelos sete meses seguintes o mercado de trabalho não o aceitou, não lhe deu oportunidade. Intentou trabalhar no comércio, mas não teve êxito, sequer uma remuneração justa, levava pequeno quinhão que ajudava livrar a família da penúria. No final de 1965, após dois anos como aluno interno, Renato, com a anuência do pai, decidiu que não retornaria para o Seminário, por discordar dos métodos heterodoxos de educação e disciplina. Resolveu, do lado de fora, somar forças com seu irmão e o pai para tentar uma sobrevivência mais honesta. Dessa maneira, ajudando na criação da prole de quatro irmãos da segunda geração, que possuíam entre um e seis anos de idade. Apesar da crise econômica que assolava o país e da escassez de trabalho, Manuel mantinha um emprego formal, ainda que, por tempo determinado. Prestava serviços de seu ofício no Bancrevea (sede social do hoje Banco da Amazônia), desde o início de novembro. Nele, todavia, permaneceria por um semestre, tempo bastante para o encerramento da construção da sede social e recreativa, localizada na Avenida Getúlio Vargas, no centro da cidade. Nesse turbilhão de desencontros, novo convite de sua irmã Laura veio a encaixar-se. Despertou no convidado o desejo de, mais uma vez, experimentar uma guinada na vida. O Peru, sua terra natal, seria uma aposta bem pesada, nesta oportunidade levaria com a bagagem, a esposa Doroteia e quatro filhos menores.

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IQUITOS

O

período áureo da borracha, que os vizinhos de língua espanhola denominam de fiebre del caucho, afetou positivamente muitas cidades da Amazonía peruana, no entanto, a mais favorecida foi sem dúvida a cidade de Iquitos. A capital do Departamento de Loreto – o mais extenso daquele país – e da província de Maynas tem, atualmente, mais de 400 mil habitantes. Devido sua importância econômica e geográfica é considerada a capital da Amazonía peruana. Infelizmente, não pode ser alcançada por via terrestre, apenas fluvial ou aérea. Em compensação, tem o porto fluvial mais importante do país, podendo exportar sua produção através do Rio Amazonas até o Oceano Atlântico. Para alcançar até a fronteira do Brasil, Benjamin Constant, deve-se viajar por mais de 370 quilômetros, e daí até Manaus são mais 1.200 quilômetros. A febre do látex na história desta cidade remonta ao ano de 1879 e se estende até 1915, tal como aconteceu em Manaus. Antes dessa época, Iquitos era apenas um povoado que, rapidamente, se converteu em uma próspera cidade, engajando atividades econômicas, sociais e culturais, todas relacionadas a exploração e comercialização da borracha. Muitas construções, ainda hoje, testemunham o tempo de abundância e fortuna nas mãos dos seringalistas. Dessas fortunas, muitas surgiram à custa de vidas, abusos e violência contra os nativos. O chalé de Pablo Morey del Aguila, a Casa Irapay, a Casa Cohen e a Casa Morey, são algumas das construções históricas que revelam o

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poder financeiro dos mais acaudalados caucheros. Todas essas construções foram executadas com materiais importados da Europa. Mas, a que mais desperta atenção pelo pioneirismo é a Casa de Hierro, a primeira casa pré-fabricada da América Latina, comprada por Anselmo del Aguila numa exposição em Paris, em 1889. Transportada aos poucos e erigida no ano seguinte, é o símbolo máximo da soberba e do egocentrismo dos barões de seringais. Dizem, sem comprovação, que o projeto foi elaborado por Alexandre Gustave Eiffel, famoso pela torre em Paris. Foi esta cidade que assistiu Manuel e a família Mendoza desembarcar do navio Lauro Sodré, em 3 de novembro de 1966, onde já residia há cinquenta anos a irmã, Laura Torres de Miranda. Inúmeras cartas foram correspondidas entre estes, vários objetos e presentes foram trocados, usando como pombo-correio os navios do SNAPP, antes de se efetivar essa chegada. Laura estava em boas condições financeiras e propôs ao irmão uma reviravolta na vida, de modo a tentar a sorte entre os peruanos. Ela mesma, no íntimo, gostaria que os descendentes do irmão falassem o castelhano sem embaraço e, preferencialmente, que se tornassem peruanos. Assim, Manuel estaria satisfazendo uma vontade da irmã – que ele tanto admirava – e, também, o desejo pessoal de sempre dar uma guinada na vida, com mudanças, quando a situação caminhasse com insucesso. Além disso, havia entre eles enorme afinidade no culto a mesma pessoa: a mãe Victoria Malafaya. Tanto Laura quanto as filhas Laurita, Yara e Lita e os filhos Gil e Pepe, se mostraram bastante hospitaleiros, deixando Manuel e a família à vontade. No entanto, outro irmão, Grimaldo Torres, não dava notícias desde 1944, quando Manuel o visitou e o convidou para o primeiro casamento. Sabiam apenas que ele fora morar na cidade de Pucallpa e nada mais. O Brasil ainda vivia um período de instabilidade, apesar do esforço do Governo Militar em tentar nortear o país. A economia sofria transformações estruturais com a atualização de sua moeda, o Cruzeiro Novo. Em Manaus, o desemprego era um fantasma indo e vindo, de tempos em

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tempos. Manuel já estava sem um trabalho formal havia sete meses e os informais não davam o amparo necessário à sua numerosa família. Num desses, testou a si mesmo, ao lado do filho Henrique, como vendedor de balcão de uma rede de supermercado, que iniciava as atividades na cidade. A remuneração era paga por comissão proporcional às vendas, assim, enfrentando inúmeros vendedores o salário semanal era ínfimo. Laura providenciou a instalação da família do irmão numa modesta casa à Calle Grau, paralela e próxima à Calle Moore, 1152, onde ela residia. A casa, de madeira, possuía pintura e acabamento em bom estado. Fora construída aproveitando toda a largura do terreno de seis metros. Na frente, ficava a porta principal e uma grande janela, que dava diretamente na calçada estreita da rua, sem nenhum recuo frontal. As demais casas vizinhas seguiam quase o mesmo padrão. A porta ficava invariavelmente fechada para prevenir que algum Mendozinha escapasse para a rua. Deste modo, a residência ficava geminada com as casas laterais e somente dispunha de pequeno quintal nos fundos, suficiente para que a meninada se refastelasse. A vizinhança, como de modo geral a população peruana, era sempre solícita. Manuel arranjou trabalho com seu cunhado, marido de Laura. Sem carteira assinada, havia solamente o compromisso semanal para o novo empregado de auferir uma renda. A irmã dava guarida para o sustento da família, mas a questão da língua tornou-se um estorvo para o entendimento. Dora se esforçava para se comunicar e servir de intérprete aos filhos. Renato, que já completara quinze anos, se juntou à família cerca de um mês e meio depois, ao final de 1966. Constituiu um alívio para a criançada que, ainda sem idade escolar e sem muita opção de lazer, dava enorme tormento à mãe. Aquele somente permaneceria com a família por pouco tempo, pois aproveitava as férias do Colégio Estadual do Amazonas, onde concretizava o curso ginasial. Nesse escasso tempo, porém, Renato estimulou os irmãos no aprendizado da língua espanhola, tal como aprendera com a avó Victoria: conversação coloquial.

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Na casa situada à direita – olhando-se da rua – moravam quatro pessoas: a mãe, o filho de 19, e duas filhas de 18 e de 16 anos. Eram pessoas humildes e simpáticas. A mais nova, e mais comunicativa, prontificou-se a nos ensinar o espanhol e, em troca, aprender o português, com um método sui generis: apontava as coisas, os objetos ou a natureza, e hablava em espanhol. Os brasileños traduziam para ela, em seguida, invertiam-se os papéis. Dessa maneira, o pedestre, o carro que circulava, o vendedor ambulante ou os fatores da natureza serviam de tema para a conversação. Em 23 de janeiro, Renato novamente subiu as escadas do navio Lauro Sodré e, já no alto e encostado à balaustrada, despediu-se dos parentes peruanos e brasileiros, que permaneceram em terra esperançosos de que o futuro pudesse congraçá-los efetivamente. Após a partida do jovem ginasiano, o aprendizado dos pequenos arrefeceu, no entanto, conseguiram uma boa noção dos atalhos da língua. Manuel tencionava realmente se estabelecer em Iquitos, diante da harmonia entre as famílias e do espírito de cordialidade que pairava sobre os lares. Todavia, sua grande preocupação – sempre foi prioritária – era com a educação dos filhos, visto que se aproximava o período escolar. Zemanuel, primogênito da segunda geração, completaria oito anos, e o segundo filho, Jorge, sete, seguiam com dificuldades em se comunicar. Seria um risco mandá-los para a escola, melhor seria que aprendessem inicialmente com uma professora particular para que, no ano imediato, ingressassem no colégio público. Pelo enunciado, alguns degraus ainda deveriam ser vencidos nessa etapa de adaptação. Tudo isso ficou combinado e planejado para ser executado no ano que recém se iniciara. No entanto, em março, Dora anuncia que novamente estava grávida e, pela sua experiência, o parto ocorreria em setembro. Mais uma vez, o marido teve seus desejos postos à prova. Seria o primeiro filho a nascer fora do habitat, longe do Amazonas que o acolheu e lhe concedeu boas oportunidades na vida, embora, desta vez, estivesse sendo socorrido pela irmã. Desse modo, grande dilema o envolvia. O dilema de Manuel persistiu por pouco tempo, manteve-se enquanto ajuizava a solução mais sensata. Conversou com a irmã Laura

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que, apesar de contrária ao retorno, não gostaria de interferir na decisão do irmão querido. Em Manaus, nesse ano, estava sendo implantada a Zona Franca; em fevereiro, já fora assinado o Decreto-Lei 288/67, que impulsionaria o desenvolvimento do Amazonas, com este havia a perspectiva de ventos mais favoráveis. A legislação estabelecia polos de indústria, de agropecuária e comercial, inicialmente em Manaus. A importação de produtos; a instalação de novas empresas e empreendimentos, para atendar essa demanda de mercado; obviamente, o setor da construção civil teria um aquecimento substancial. Tudo isso ajudou Manuel em sua decisão. E ele não hesitou, em junho daquele ano, antes que se iniciasse o segundo semestre do período escolar, decidiu voltar ao Amazonas. Desfez-se dos móveis e eletrodomésticos que havia comprado, do aluguel da casa e aguardou a chegada do navio, que aportou em 12 de julho de 1967. Do alto do convés do navio Lobo d’Almada, Manuel, ao lado da família, mais uma vez acenou o “lenço branco” de partida para seus compatriotas e para a irmã que não imaginava esse adeus tão precoce. Cinco dias depois, os Mendoza desembarcaram em Manaus.

O casal Laura e Manuel Miranda sempre deu amparo incondicional a Manuel, quando este viajou a Iquitos acompanhado da esposa Francisca ou Doroteia (foto)

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CARPINTEIRO

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uando Manuel desembarcou, em 17 de julho de 1967, vindo de Iquitos, a Zona Franca de Manaus estava alvorecendo, a população, porém, ainda não experimentava as benesses prometidas pela implantação do setor industrial. Simplesmente o setor administrativo e o comercial já haviam implantado algumas mudanças. Ainda demoraria para que a indústria usufruísse do vento forte da prosperidade previsto no decreto-lei assinado no último dia de fevereiro pelo presidente Castelo Branco; ou, que o tempo pudesse converter a teoria em prática. Restava superar empecilhos burocráticos e logísticos para que a cabal regulamentação fosse efetivamente cumprida. Dois dias depois, no entanto, o povo brasileiro e, particularmente, a população amazonense, tão esperançosa na gestão do Governo Federal, ficaram enlutados. O homem que assinou o decreto zonafrancano, e envidou esforços para que a implantação deste modelo tivesse êxito, Castelo Branco morre em acidente aéreo em circunstâncias inexplicáveis, em seu Estado de origem. Além da consternação, uma incerteza anuviou os rumos da Zona Franca. A família retornou ao Morro da Liberdade, para a mesma casa, um tanto modificada. O “andar” superior estava dividido em cômodos para aluguel, e, na parte térrea, ainda inacabada, os viajantes iriam se instalar. O aluguel era a maneira de conseguir mais algum trocado para ajudar no sustento da família. Henrique, o segundo filho, ajudava sobremaneira, visto que havia retornado ao antigo emprego – Agência Labor –, onde

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trabalhava como ajudante de moveleiro. O chefe da casa conseguiu encaixar os dois filhos em idade escolar na escolinha de alfabetização do bairro. Essa porção de seu projeto estava sendo executada, todavia, restava preparar-se para receber mais um rebento. As irmãs de Doroteia sentiram-se felizes com o retorno dela e faziam de tudo para ajudar nos afazeres domésticos, assim como na preparação do enxoval. Enquanto isso, Manuel buscava no seio da Zona Franca emprego de carpinteiro, mas não encontrava; aproveitando o ócio, operava para concluir a construção da casa, além do que realizava fazia alguns “biscates”, a fim de manter a família. Apesar do desemprego, que muito ameaçava a estabilidade familiar, Manuel não deixou de contribuir para o sindicato de classe, onde era sócio efetivo desde 1964. Com essa iniciativa, mantinha-se na vitrine, visando conseguir uma vaga remunerada. Ronaldo César chegou em 17 de setembro de 1967, no último domingo de verão daquele ano. Dessa vez, paradoxalmente, o pai não recorreu à folhinha para adotar esse nome. Na verdade, a escolha aconteceu democrática e aleatoriamente. Os irmãos foram convidados a sugerir o nome, tradicionalmente duplo, para o nascituro. E, cada sugestão anotada numa folha de papel, foi colocada numa caixa de sapatos, similar a urna eleitoral. Um dos palpites foi sorteado e, por casualidade, foi o voto do irmão mais velho, Roberto, que findou padrinho de batismo do RC. Ronaldo nunca teve uma boa saúde. Desde cedo foi alvo da consulta de médicos e enfermeiros. Nunca se soube a que mal atribuir tamanha desventura. Dona Alzira, a benzedeira, também era frequentemente solicitada a impor sua fé, na cura de algumas mazelas infantis. A existência e os embaraços da família seguiam ombreados naquela cidade em transformação. Quando chegou o fim de ano, contudo, inesperada e frutífera mudança ocorreu no seio do grupo. O filho Henrique obteve a isenção do serviço militar e, deixando para trás o batente de moveleiro, botou a carteira de trabalho no bolso e partiu para a região Sudeste, onde teve apoio inicial de tia Raimunda e família, residentes

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em Santos, São Paulo. A passagem aérea foi custeada pelo irmão mais velho que, oficial da Polícia Militar, se encontrava nesse ano no Rio de Janeiro. O pai Manuel não se opôs a essa decisão, apenas aconselhou e recomendou o melhor caminho para o filho, e a família já se habituava a tais despedidas. O setor industrial da Zona Franca ainda não havia alavancado, tanto que ele mesmo, ainda não conseguira emprego fixo. No entanto, logo nos primeiros dias do ano seguinte, Manuel finalmente conseguiu um emprego formal, depois de quase dois anos sem a CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social) assinada. Foi contratado por uma subempreiteira da empresa Carvalho Hosken, uma das grandes construtoras atraídas pela pujança da Zona Franca. Estava incumbida da construção da sede do então INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), um arranha-céu de treze andares situado no cruzamento das ruas Guilherme Moreira com a Quintino Bocaiuva. Seis meses depois de mostrar sua competência e dedicação, o carpinteiro Manuel foi contratado pela própria Carvalho Hosken, para a qual trabalhou até julho de 1969. Nesse intervalo, porém, teve o dissabor de mais um profundo luto na família: o “anjo” Ronaldo César não teve a mesma sorte de Luís e pereceu aos 10 meses de idade, a despeito de todos os remédios e orações que recebeu em sua curtíssima existência. A perda prematura deste filho proporcionou a Manuel algumas reflexões a respeito da saúde e um controle de natalidade, porque possuía quatro crianças ainda pequenas, tendo o mais velho nove e o caçula, agora, apenas três anos. As precauções deveriam ser redobradas, posto que as doenças sazonais eram danosas nessa faixa etária. O ramo da construção civil estava aquecido, sem perda de tempo, logo surgiram novas oportunidades de trabalho para o marido de Dora, era questão de selecionar a melhor oferta, aquela que oferecia mais benefícios. Quatro meses depois, em 18 de novembro de 1969, Manuel já estava empregado, prestando serviço à empresa Cointer Ltda., nas proximidades do emprego anterior, à rua Marcílio Dias,

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onde estava em construção o Lider Hotel. Ali trabalhou por oito meses. Sem um dia de descanso sequer, firmou contrato com a Companhia Brasileira de Fiação e Tecelagem de Juta (Fitejuta). O carpinteiro Manuel escolheu essa empresa, localizada na Estrada do Paredão, por ser mais próxima de sua residência. Nessa indústria de tecelagem permaneceu até o dia 3 de novembro de 1970, quando se desligou para viajar com a família, efetuando mais uma migração, desta vez para Santos, em São Paulo. Henrique, o primeiro dos filhos a mudar-se para São Paulo, estava morando em Santos havia três anos. No interstício entre um emprego e outro, em maio de 1969, resolveu rever a família em Manaus. Aproveitando a ocasião e mais alguns dias de folga, embarcou no navio Lauro Sodré rumo a Iquitos, para satisfazer o desejo de pisar o solo peruano, para conhecer a família paterna. Permaneceu pouquíssimo tempo no local, tendo enfrentado alguns percalços para retirar-se, pois o Peru ainda vivia a “Revolución de la Fuerza Armada”, liderada por Juan Velasco Alvarado. Enfim, conseguiu a liberação com a ajuda do primo Gil Miranda – suboficial da Aeronáutica –, que descolou uma carona em avião da FAP (Fuerza Aerea Peruana) até a fronteira brasileira, daí em diante, Henrique seguiu baldeando em embarcações menores, até alcançar o porto de Manaus. Este contato baliza o ponto de partida da migração da família Mendoza em direção de São Paulo, onde Henrique divisava, sem ressalvas, condições favoráveis de moradia e educação para a família. Embora fosse um anteprojeto, essa mudança rondava o raciocínio de Manuel, como um sonho de vida no Sul do país, certamente para se contrapor àquela frustrante mudança para o Rio de Janeiro, nos idos de 1950. Henrique sentia-se bem remunerado, trabalhando na área de engenharia, no setor de petróleo. A cidade de Cubatão, próxima de Santos, detinha um pool de empresas em franco desenvolvimento e expansão. Os ramos de petróleo, siderúrgico ou químico, requisitavam mão de obra qualificada para essas atividades e, neste caso, a oferta tornava-se bem maior que a procura.

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Após correspondências trocadas, a pujança de São Paulo descrita pelo filho e constatada pelos meios de comunicação acabaram por encantar o carpinteiro Manuel. No entanto, Renato não poderia acompanhá-los nessa empreitada. Embora este tivesse emprego fixo, não era isso que o impedia: ainda necessitava concluir o curso secundário e, do mesmo modo, atender à convocação do Exército, onde frequentaria o curso do NPOR (Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva). Assim sendo, antes das festas natalinas de 1970, a família Mendoza iniciou mais uma viagem. Doroteia deveria encarar sua primeira viagem de avião, conduzindo os dois filhos mais jovens, além de roupas e documentos básicos e, pior, a bordo de uma aeronave da FAB (sem horário para aterrissar no destino). A carona fora arranjada com a influência de Roberto – tenente da Policia Militar. O desembarque ocorreu no aeroporto do Galeão, sendo a comitiva recepcionada pelo filho Henrique. Outra viagem aconteceu, a rodoviária entre Rio-São Paulo. Depois, por uma hora e meia de ônibus os amazonenses desceram a Serra do Mar até alcançar a cidade de Santos. Henrique instalou-os num apartamento modesto, que havia alugado previamente, à Rua 28 de Setembro, 82, no bairro do Macuco. Um ou dois meses depois, seguiu outra delegação dos Mendoza, composta dos demais filhos, Zemanuel e Jorge. O translado ocorreu em avião comercial da VASP, que iniciava novo trecho para Manaus. Portanto, os garotos foram privilegiados. A recepção foi mais prática e o reencontro com o restante da família mais efusivo. O patriarca permaneceu em Manaus e resistia em viajar. Manuel hesitava, por isso, demorou-se mais alguns meses em Manaus, ora alegando que ainda precisava tudo organizar, ora sugerindo providências em alugar parcialmente a casa, ora que deveria angariar um fundo para as despesas no novo endereço. Por trás dessa indecisão, acalentava o receio natural de viajar em avião, pois esta seria a primeira vez. Em resumo, o chefe desejava uma viagem de navio, mas esta não mais funcionava. O Brasil ainda vivia a euforia da conquista da Copa do Mundo no México, em junho de 1970. Na cidade de Santos, que abrigava um dos

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clubes mais tradicionais do país, e que havia cedido quatro de seus jogadores à seleção, delirava. Por tudo isso, na cidade, respirava-se forte atmosfera do futebol, além do ar marinho, vindo do Atlântico. A cidade era extremamente aprazível, com temperatura amena e um imenso litoral orlado de jardins; ruas bem planejadas e calçadas, bem servidas pela frota de ônibus, bondes e trólebus – os ônibus elétricos. Apresentava-se, porém, bastante verticalizada pela falta de espaço físico para expansão da malha urbana. Como marco histórico, conserva a vitalidade do ciclo do café no início do século passado, quando foram edificados casarões, igrejas e prédios em estilo neoclássico, dentre estes a Bolsa Oficial do Café, em nossos dias disposta ao público visitante. Para a família Mendoza tudo era novidade, e tudo seduzia, principalmente a mudança de ares. O incômodo e a estranheza ocorriam por conta da permanência num apartamento fechado, por isso, às vezes, os pais relaxavam e permitiam que os pequenos descessem para ver a movimentação na rua calçada com paralelepípedos. O bairro do Macuco estava situado no caminho da zona portuária e, ali próximo, residia a irmã de Francisca, a tia Raimunda. Já instalada havia mais de dez anos no local, morava rodeada dos numerosos filhos, alguns já casados e emancipados. Entretanto, um acontecimento fortuito perturbou a paz da família, que foi obrigada a ligar o alerta para o comportamento dos meninos. O fato: Ricardo, no afã de pegar uma pipa que voou, correu atrás e acabou atropelado por um carro. Nada de muito grave, apenas escoriações e um grande susto. Por sorte, o atropelador prestou socorro e deu a assistência necessária. Sabedor dessa desdita, ainda em Manaus, Manuel abandonou sua hesitação. Não havia mais motivações para permanecer longe dos seus. O receio do avião perdera sentido, até porque Doroteia, na primeira oportunidade que conseguiu, não titubeara. Marcada a data da viagem, Manuel deixou a casa sob os cuidados de Renato, e realizou o trajeto de Doroteia, com uma vantagem, voando em companhia da Vasp, direto a São Paulo. Enfim, a mudança estava quase completa. A vida da família estava em adaptação a uma cidade grande, a al-

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teração exigia agora comportamento diverso, principalmente depois do episódio do atropelamento. Resolvidas as questões com o universo escolar dos filhos, Manuel decidiu que não poderia ficar “parado” – expressão corriqueira, para definir a situação de desempregado. Na Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão, encontrou emprego de seu ofício, na mesma empresa em que trabalhava o filho Henrique: Sertep Engenharia. A Sertep era uma das construtoras contratadas pela Petrobras para realizar serviços de manutenção e ampliação de seu parque industrial. Essas empresas mantinham contratos temporários, por tempo determinado e, normalmente, duravam um ano ou pouco mais. Tratava-se do modelo de gestão usado em canteiros de obras. Assim, o carpinteiro, no curso de um ano, trocou de contratante, passando a trabalhar para a Sade Engenharia, no mesmo canteiro de obras, mas nesta durou pouco tempo. A fartura de vagas e o bom salário em relação ao que auferia na região Norte, aliados a necessidade de um espaço maior, incentivou Manuel a mudar de apartamento. Decidiu alugar outro no terceiro andar da Av. Conselheiro Nébias, 301, bairro do Boqueirão. Esta avenida, com pista dupla e canteiro central, bem iluminada, ligava o centro da cidade à praia. A partir dessa mudança, as facilidades para o lazer ampliaram-se, pois, além da praia – a preferida –, a família poderia usar os trólebus ou os bondes para visitar o Ferry Boat ou o Orquidário. Com o mercado superaquecido, Manuel aceitou a proposta da Techint Engenharia para se incorporar à sua equipe de trabalho, visto que o tempo de obra era mais longo e o salário pouco melhor, com a inclusão do adicional de periculosidade. Permaneceu, na mesma área industrial e na mesma atividade, até fevereiro de 1973. Enquanto isso, em Manaus, os filhos Roberto, oficial da PM amazonense, e Renato, que cumpria sua obrigação militar, enfrentavam alguns percalços. Positivos, diga-se de passagem. O primeiro foi indicado, no início de 1972, para frequentar um curso na força pública cearense, em Fortaleza. Renato encerrava o NPOR, com brilhantismo. Nessa ocasião, Roberto sugeriu ao mano que fosse ao encontro da família. Acordado, em fevereiro desse ano, cada um destes tomou seu rumo.

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A despeito da variação de padrão familiar e do consequente aumento do custo de vida, a família não convivia mais com apuros, que deixava Manuel mais tranquilo e confiante no futuro. Por enquanto, permanece sem a preocupação de mudança. A situação tornou-se bem mais favorecida quando Renato, terceiro filho, que havia se juntado à família há cerca de um ano, consegue um confortável emprego. Era mais um para somar esforços na disputa do “cabo de guerra” em prol da sobrevivência naquela cidade grande. A Companhia Siderúrgica Paulista, Cosipa, estava em franca expansão de seu parque industrial. O fornecimento de materiais para a indústria automobilística, principalmente, exigia o aumento da qualidade e quantidade de produtos. E mais, um grupo de empreiteiras ali se estabelecia, a fim de atender a demanda de fornecimento de mão de obra. Manuel participou dessa força de trabalho, sendo contratado pela Sobemi Ltda. para exercer a função de carpinteiro, a partir de novembro de 1973. Manteve seu contrato de trabalho por seis meses e, demitido, transferiu-se para a Somoco Ltda., na mesma função, para atender a gestão da contratante. Nessa área da siderúrgica, no município de Piaçaguera-SP, Manuel trabalhou até 21 de maio de 1975. Após a perda prematura de Ronaldo em julho de 1968, Doroteia exercia o controle de natalidade, pois não mais almejava gerar filho. Entretanto, por desatenção, porém ungida pela benção divina, acabou por novamente engravidar. Dessa vez, o pai não ficou em conflito com seu desejo íntimo de que esse filho fosse conterrâneo dos demais. Até porque estava em plena atividade laboral, com novo contrato de trabalho na área da siderurgia. Diante da inexistência de exame de imagem, todos apostavam no nascimento de uma menina, para encerrar a prole. No entanto, na madrugada de 18 de setembro de 1974, Manuel – numa situação inédita – assistiu ao nascimento do derradeiro filho, nominado de Carlos Alberto, ocorrido na Santa Casa de Misericórdia de Santos. Carlinhos contrariou aquela expectativa, e veio ao mundo com primorosa saúde. Um menino diferenciado, de cabelos encaracolados,

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com tez mais clara, mas com genes predominantemente peruanos. Com quase 60 anos de idade, estafado com viagens de ônibus e de trem ao município vizinho, Manuel encerrou seu contrato com a Cosipa. Resolveu então buscar uma colocação no mercado de trabalho próximo de casa, em Santos. Conseguiu-o na construção do elevado Aristides Bastos Machado, situado na entrada daquela cidade. Nesta obra, que beneficiaria o escoamento do trânsito no centro e no túnel de acesso, Manuel permaneceu até a conclusão deste, em 28 de abril de 1978. Dois anos depois, Manuel ainda se sentia capacitado ao exercício da árdua profissão de carpinteiro; talvez a mais honrosa e mais gratificante que exerceu em sua existência. Mas, o que mais lhe incomodava era morar em apartamento com três lances de escadas, em um ambiente fechado; sem um quintal para pôr os pés no chão, ouvir os pássaros e se aproximar da natureza. Por isso, resolveu mudar de residência. Arrastou os filhos para um apartamento térreo, nas proximidades do Orquidário, ao lado da linha férrea. Em rua artéria barulhenta em razão da movimentação de automóveis e trens. Sem demora, pois não admitia “ficar parado”, no mês seguinte, já estava empregado na edificação de um prédio no centro da cidade, a cargo da Construtora Irmãos Neri Ltda. Neste, permaneceu pelo espaço de sete meses, preciso para a conclusão da obra, enfim, entregue três dias antes do Natal daquele ano. Manuel mostrava-se feliz com seu desempenho profissional, contente pelo “suor” vertido nos brasis que ajudou a construir: tanto nas obras petroquímicas e siderúrgicas, quanto nas obras públicas e comerciais. Entretanto, discerniu que, a partir desse momento, tornava-se dificultoso para o mercado absorver o velho carpinteiro de 64 anos. Reconheceu que há renovação na mão de obra direta, e esta exige sempre e cada vez mais jovialidade. Essas reflexões o fizeram sentir novamente aquela imposição íntima, de nostalgia do “torrão” querido, sentimento que se avolumava em seu peito. Por isso, deveria partir. Sim, retornar, mas com o sentimento do dever cumprido, mesmo que não totalmente realizado, visto que não

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conseguira adquirir um imóvel. A educação dos filhos, como sempre, foi mais prioritária. Constituía-se na arma capaz de condicioná-los para a competição no mercado de trabalho. A herança maior que queria legar, primorosa e indelével para a vida. O destino caprichosamente cooperou naquele Natal de 1979. Quando todos os filhos estavam reunidos sob o mesmo teto, sob a mesma égide familiar, para a confraternização que não se repetiria jamais. Ladeando a Manuel e a Doroteia compõem uma ilustre fotografia vinculando as famílias Mendonça e Mendoza. A partir desse evento, a família iniciou o regresso a Manaus. Aconteceu paulatinamente e de forma inusitada. Roberto – que curtia férias em Santos, após concluir um curso no Rio de Janeiro –, juntou-se ao Miguel Jorge e ao Luís Carlos, e a bordo de um Chevette 79 SL, cor Azul Iguaçu, enfrentaram as estradas. Esperavam vencer os mais de quatro mil quilômetros, passando por Cuiabá e Porto Velho. Mas a escolha foi péssima, pois o trecho entre estas duas cidades estava intransitável para carros pequenos, por causa das chuvas e de terrenos alagados. Desse modo, despacharam o Chevette na carroceria de um caminhão e seguiram de avião. A partir de Porto Velho seguiram pela então transitável BR-319. Manuel se desfez dos móveis, desamarrou os poucos laços que o prendiam na cidade e, com o restante da família Mendoza, retornou a Manaus, em aeronave. Os dois Mendonça, emancipados, seguiram em frente, sem nunca abdicarem do contato e do zelo familiar. Ao desembarcar na capital amazonense, a comitiva não conseguiu ocupar de pronto o antigo endereço no Morro da Liberdade. A casa ainda seguia alugada, e os locatários demoravam a liberar. Em razão disso, o grupo instalou-se no bairro do Coroado, exato no conjunto habitacional Tiradentes. A época, o bairro em construção apresentava-se sem muitos recursos, com ruas de terra batida, regular infraestrutura de comércio, porém, com os serviços básicos em dia. A família manteve-se pouco tempo neste endereço, quando se mudou para um bairro mais antigo e com melhor estrutura de subsistência, a conhecida Cachoeirinha. Na rua Uru-

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cará, pais e filhos experimentavam a readaptação à cidade, após onze anos distante, legítimo retrocesso para quem estava voltando de uma metrópole, de uma cidade aprazível e com extenso litoral. A abstinência ao trabalho era algo que Manuel não suportava, por isso, quando os inquilinos liberaram o imóvel do Morro da Liberdade, tratou de mudar o design da casa; demoliu o sobrado e reconstruiu a casa térrea mais espalhada, privilegiando agora garagem para carros. Os filhos em sua volta já alcançavam a maioridade e logo estariam se emancipando. Para alongar a residência, teve que sacrificar uma frondosa jaqueira – ainda que infrutífera, dizia-se dela que era macho –, dois cajueiros e uma goiabeira, o restante do pomar foi preservado. Quem sabe tenha sido este o último grande desafio de Manuel, alterando a moradia radicalmente, depois de anos sem desfrutar a paixão pela mudança. Admitiu que o aluguel dos cômodos dava-lhe mais contrariedades que lucros. Aproveitou para vender parte do sítio para uma sobrinha de Doroteia, de forma a deixá-lo retangular e um pouco menor, assim facilitava os cuidados. Depois de certo período de inatividade, Manuel retornou ao mercado de trabalho. Dessa feita, sem aptidão para o trabalho de carpinteiro, conseguiu o emprego de vigia em um conjunto residencial. A síndica, sua comadre Maria Helena, emprestou-lhe essa oportunidade. Ali, Manuel operou por exato três meses – do primeiro dia de agosto até o último de outubro de 1981 –, no Condomínio Jardim Brasil, localizado na antiga Avenida Silves, 1140, no bairro da Raiz. Trata-se do último registro na Carteira Profissional dele. Uma relativa ociosidade que a vigilância instituía não deixava Manuel à vontade, daí o curto período de trabalho. Na verdade, ele ansiava realizar algo mais diligente, que fizesse correr o sangue nas veias. Reconhecia, porém, que a idade era seu algoz, que o tolhia na disputa por emprego. Assim, com mais de 20 anos de trabalho formal e quase 66 anos de idade, ele requereu sua aposentadoria. Não parou, todavia, foi trabalhar por conta própria.

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APOSENTADORIA

O

s Mendoza finalmente retornaram à residência na rua Amazonas, Morro da Liberdade. Nessa oportunidade, parte dos filhos deslocados de Santos para Manaus, há cerca de três anos, deu início ao retorno para o Sul. Como o mercado de trabalho local não oferecia boa expectativa, Manuel assentiu que o momento era tempestivo, posto que os filhos, cumprido o Serviço Militar e munidos de diploma de curso técnico, estavam capacitados a conseguir empregos. José Manuel Filho e Luís Carlos foram os primeiros a retornar a Santos, submetidos a tutoria do mano Henrique. Um ano depois, Ricardo seguiu o mesmo rumo, assim, os “meninos” repetiam, pouco a pouco, o caminho de volta, qual aves de arribação em busca de lugar mais apropriado para o pouso. Como uma revolução natural de uma família, onde cada membro procura sua independência e emancipação. Miguel Jorge demorou alguns anos para decidir pelo retorno, para botar o pé na estrada, porquanto prezava o emprego fixo na Mavel (agência autorizada Volkswagen). No entanto, o distrato de trabalho por contenção de custos praticada pela empresa, foi a centelha que faltava para sua decisão. Enquanto os primeiros utilizaram o transporte mais rápido, o avião, Jorge, competente mecânico de automóvel, seguiu pela estrada. Para tanto, botou sua Brasília, modelo 1976, numa balsa e navegou junto pra Belém; daí tomou a rodovia para o Sul do país. No meio do caminho o carro enguiçou, causando-lhe transtornos, como mais dias na estrada e dinheiro extra para recuperação do

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veículo. Ainda hoje este veículo (carro de mecânico) funciona, após mil e um reparos. Em 1985, quando Manuel conseguiu com alguma dificuldade a merecida aposentadoria junto ao órgão da Previdência Social, os filhos que haviam retornado a Santos já estavam com a vida encaminhada. O caçula, Carlos Alberto, que ainda era criança, permanecera em Manaus. Nesse ano, infelizmente, uma notícia nada aprazível repassou sobre a família Mendoza. Após consulta médica especializada, veio o diagnóstico, apontando que uma doença silenciosa e devastadora ameaçava a saúde de Doroteia: tratava-se de um câncer no pulmão. Vários exames foram realizados, mas o laudo não se alterava, daí o estado desanimador causado. Mesmo assim, como católica fervorosa, ela redobrou sua fé e esperança na cura, e manteve a labuta diária sem esmorecer. Doroteia e Manuel resolveram investir no comércio informal e, num ponto fixo, vendiam guloseimas (café, refresco, petiscos, bolos e pães caseiros) na porta de fábricas, para operários do Distrito Industrial da Zona Franca. Era um trabalho desgastante, pois eram obrigados a despertar de madrugada, preparar os consumíveis e ser levados até o ponto de venda. Durante algum tempo, enquanto não se afastava de Manaus, o condutor do pessoal era o Ricardo, em seu automóvel. A despeito das agruras que a vida lhe infligia, no ano seguinte, em 19 de novembro, Doroteia comemorou 50 anos de idade, com a alegria que sempre possuía, enquanto a doença avançava sem trégua. A festa foi realizada no terreno que ainda restava, e congregou um número expressivo de familiares, envolvendo os clãs paterno e materno. Um filmeto em câmera de vídeo, dessas comercializadas na Zona Franca, foi realizado, e segue conservado em bom estado. Convém salientar. O dinamismo que lhe era típico, que sempre conservou estava sendo fustigado pela doença pulmonar grave, nela que nunca havia experimentado um cigarro sequer. O casal, então, resolveu retornar a Santos em busca de provimentos especializados para debelar a doença e, do mesmo modo, reaproximar-se dos herdeiros para, deles, receber a solidariedade tão necessária nesse calvário. Dessa vez

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alugaram um imóvel no bairro de José Menino, bem próximo à praia do mesmo nome, um apartamento amplo, capaz de acolher os filhos, até mesmo os casados. Foram três anos de intensa luta contra a doença. Tentados todos os tratamentos disponíveis de radioterapia e quimioterapia, até intervenção cirúrgica na Santa Casa de Santos. Quanto mais fustigada a doença, mais esta reagia, e esses procedimentos exigiam um custo imprevisto no orçamento doméstico. Manuel, então, resolveu vender a tradicional casa do Morro da Liberdade, abrindo mão desse panteão de sua história, onde viveu grande parte de sua biografia e onde pereceu a heroína de sua vida, sua mãe. A venda da casa não lhe proporcionou benefícios, ao contrário, somente atribulações, porque Doroteia queria que fosse vendida para alguém da família. Além disso, como a venda ocorreu simultaneamente ao confisco de recursos da Caderneta de Poupança promovido pelo Governo Federal, empossado havia três meses, parte substancial desses recursos ficou retido. Manuel, que se encontrava em Manaus para a negociação da propriedade, retornou a Santos, decepcionado com o resultado comercial. Apesar da contrariedade, continuou a luta em prol da saúde de Doroteia, mesmo percebendo que a saúde dela cada vez mais se agravava, que perdia aos poucos essa peleja. Diante do esperado desfecho, resolveram retornar a Manaus, para que Doroteia pudesse receber o acolhimento caloroso de parentes, que ansiavam revê-la, antes que a doença a derrotasse. Com essa perspectiva, em 1992, o casal realizou o amargo regresso. Sem a tradicional casa do Morro da Liberdade, hospedaram-se inicialmente com o filho Roberto, antes de alugar uma morada no bairro da Betânia. No entanto, com o agravamento da doença, Doroteia desejou mudar-se para uma casa de sua irmã Luzia, católica fervorosa e otimista, que poderia lhe restituir a esperança na cura. A doente discernia a gravidade de seu estado, mas não se abatia, mesmo sem forças para reagir. Lutou como pode, com dignidade e religiosidade, sem que

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em nenhum momento se voltasse contra sua igreja. Luta inglória, perdida para o câncer de pulmão no final da tarde de 2 de junho. O velório ocorreu na igreja católica do bairro, para evitar que se realizasse em casa, como queria a família, mas que se opunha o viúvo. Temia ele que os presentes findassem por se envolver com jogos e bebidas, um passatempo pouco ortodoxo diante da dor, mas utilizado para enfrentar a madrugada de espera. A presença de amigos e conhecidos, de parentes e aderentes na missa de corpo presente, foi reconfortante. O enterro do corpo realizado no cemitério de São Francisco, ou seja, do Morro, permitiu que o féretro fosse conduzido pelos presentes, à moda bem antiga. Também permitiu passar em frente à residência de Manuel e Doroteia, cujos os poucos metros de distância pareceram a mim (Roberto) intermináveis. Manuel acabava de perder a segunda companheira. Doroteia participou ativamente de sua biografia e, afinal, transmitiu a todos quantos com ela coexistiram, o exemplo de alegria e determinação. Estoicamente, enfrentou os embaraços da vida conjugal, sem jamais demonstrar um desânimo sequer, procurando iludir as mazelas do cotidiano com o talento extrovertido de encarar a vida. Com a viuvez, Manuel procurou o conforto da irmã Laura, em Iquitos, no Peru, que o convidou para nova visita, esperançosa de que dessa vez ele ali fixasse residência. No entanto, mais uma vez ele a desapontou. Em Iquitos não permaneceu muito tempo, apenas um mês. Alegou que tinha viajado somente para abraçar a querida irmã, que há muito não via. De fato, foi realmente o último encontro fraternal, pois, Laura Aliene Torres faleceria sete anos depois. Ainda nesse ano, Manuel resolveu retornar a Santos, onde aceitou morar com o filho Miguel Jorge que, lá residia há cinco anos, casado e sem descendente. Era um recomeço ou uma readaptação ao novo modelo de família, ou seja, sem a presença da esposa. A partir de então, ele resolveu não mais se vincular a nenhum lugar por muito tempo; as

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viagens tornaram-se mais amiúde, cada vez buscando um novo lugar, como a fuga para as recordações dos casamentos. Paradoxalmente, nessa época, as reminiscências passaram a ser frequentes, com ele deliciando-se em narrar “novas” aventuras, todavia, sempre lhe vinha à mente as mesmas, apenas com pouco mais de lucidez. E assim, Manuel, no ano seguinte vai a Niterói, a fim de visitar o filho Renato para, em seguida, emendar o caminho para Santos. Em 1994, ele repete a jornada, mas demora-se pouco mais de tempo em Niterói, isso por um bom propósito: o irmão Francisco, 43 anos depois, ainda permanecia no mesmo endereço – Rua Cláudio da Costa, Irajá, Rio de Janeiro – que Manuel e a família Mendonça ocuparam naquele longínquo ano de 1950/51. Depois de contatos preliminares, afiançado de que se tratava realmente da pessoa procurada, o filho Roberto encarregou-se de promover o reencontro entre os irmãos. No entanto, o evento não foi tão amistoso como a expectativa prometia. Manuel ainda mantinha ressentimentos do irmão por este ter desrespeitado e desmerecido a mãe comum, inclusive subvertendo a certidão de nascimento, destituindo o sobrenome dela – Malafaya – para incorporar outro que Francisco reconhecia ser seu pai biológico – Saens –, e alterando também a própria nacionalidade. Incrível, mas foi com essa adulteração que o “brasileiro” Francisco trabalhou e se aposentou. Essa mudança deve ter sido realizada tão logo ele chegou ao Rio de Janeiro, para evitar problemas com a imigração da capital do país. Apesar dessa aparente desunião, os irmãos posaram juntos para fotos. Francisco não parecia feliz, além da separação conjugal, o relacionamento com os filhos – Maria Lúcia, José, Paulo e Julieta – não era harmonioso. Assim, ele mostrava-se contido, seja pelo problema grave de saúde que enfrentava, seja pela conversa franca que teve com Manuel. Tornou-se um momento marcante e um registro importante, pois, três anos depois, Francisco faleceu em consequência de doença urológica. Em 1996, Manuel decide residir com o filho Luís Carlos, em São Paulo, onde permanece bom tempo. No meado desse ano, ele viaja

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para Manaus e, em seguida, retorna ao Rio de Janeiro. No final do ano, muda-se para a cidade de Telêmaco Borba, no Paraná, para morar próximo do filho caçula, Carlos Alberto. A cidade era muito pacata e fria, e Manuel não estava habituado ao inverno rigoroso da região sulista, por isso, em pleno inverno do ano seguinte, ele viaja rumo ao verão de Manaus para “derreter o gelo”. Antes de decidir onde morar, fica na casa do filho mais velho, Roberto, por algum tempo, enquanto aluga um cômodo no bairro da Cachoeirinha. Queria se manter isolado. Estava aprendendo a gostar da solidão e da liberdade, mesmo que tivesse em mente conseguir nova companheira. Aos 81 anos, traumatizado pela perda das esposas para doenças letais, gostaria de conhecer uma em plena condições sanitárias, também sem compromissos com filhos ou netos. Mas, a sua busca não deu resultado satisfatório, apenas amizades sem envolvimento. Manuel permanece em Manaus até agosto de 1998, quando, por conta de sua vida peregrina, resolve retornar a São Paulo. Fica pouco tempo na casa de Luís Carlos, quando recebe um convite para tentar novamente morar em Telêmaco Borba, apesar da baixa temperatura habitual naquela cidade. Era uma casa antiga com um galpão ao lado, construídos em madeira, num amplo terreno. Isso despertou em Manuel, a inspiração para que ele pudesse realizar seu ofício, e ainda pudesse se dedicar ao plantio de uma horta ou pomar. A ideia era tornar seu tempo menos vulnerável aos pensamentos infaustos. Ali, Manuel permaneceu por três anos, sempre recebendo a visita dos descendentes e amigos conquistados. No inverno de 2001, Manuel já reclamava do tempo de estabilidade naquele lugar. A casa já fora toda retificada e ele não se sentia mais motivado no local. A tentativa de conquistar uma companheira continuava infrutífera, isso deve tê-lo desanimado. Em agosto, ele voa para sua “terra natal”, Manaus, a procura do calor tropical e do ardor feminino, carente em sua vida. Volta a morar no bairro da Betânia, num cômodo bem arejado e amplo, para experimentar novamente o ar morno equatoriano onde, para ele, a existência possuía mais essência.

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Permaneceu neste endereço por três anos e, nesse período, conseguiu a dileta amizade de Dona Joana que, por pouco tempo foi sua companheira. Algumas manias e convenções de ambos impediram que se selasse a relação. Em abril de 2004, Manuel resolve respirar novos ares e viaja para o Rio de Janeiro, para ficar em Niterói por um tempo. Para se sentir com mais liberdade e viver nova experiência, aceita morar em Barra Mansa, no Rio, na residência do Renato. Um lugar mais tranquilo, com ares de zona rural, mas com facilidade de comércio, dispondo de quintal frontal que facilitava o cenário da rua e o contato com os vizinhos. No ano seguinte, todavia, o espírito nômade prevalece e ele resolve passar seis meses em Manaus, justamente quando o frio começa a gelar sua alma. Assim, no Dia dos Pais daquele ano recebe a visita de Henrique e Luís Carlos, e festejam a efeméride. Retorna ao Rio de Janeiro, para permanecer mais uma temporada em Barra Mansa, onde em 17 de janeiro de 2006 comemoraria 90 anos, de forma jubilosa ao redor da maioria dos filhos e do bom número de descendentes.

No quintal arborizado existente no Morro, os filhos e uma sobrinha de Dorotéia em congraçamento. Note-se a cerca divisória, os “remendos” na casa de madeira e os irmãos Henrique e Luis

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EPÍLOGO

A

passagem dos 90 anos foi para Manuel um divisor de águas, um marco entre o homem saudável, independente, e o carente de cuidados médicos. Surgiram os problemas típicos de um nonagenário. A operação de catarata, realizada há anos em Manaus, não se mostrou eficiente e, com o olho esquerdo operado, ele não enxergava quase nada. No entanto, Manuel nunca reclamava, apenas pedia para comprar um colírio a fim de amenizar o incômodo lacrimal. O outro olho também mostrava dificuldades que não foram sanadas em tempo, assim, restou enxergando pouco, tanto que dificultava o seu caminhar. Percebia-se o seu andar mais lento e mais cuidadoso, e já não podia sair sozinho para comprar as frutas preferidas, que costumava comer pela manhã. A leitura de jornal estava restrita as letras garrafais das manchetes e algumas menores, estas com bastante dificuldade. O programa do governo “médico de família”, em Barra Mansa, numa das visitas a Manuel detectou que ele estava com a pressão alta, e lhe cobriram de remédios. Os efeitos colaterais foram maiores, pois Manuel passou a sentir um cansaço físico crônico e falta de disposição, distúrbios incomuns no seu dia a dia. Depois de várias tentativas para ajustar a dose dos medicamentos, concluiu-se que Manuel não precisava de anti-hipertensivo, teria sido somente uma hipertensão ocasional, que transmitira sequelas no seu organismo. A surdez começava a lhe incomodar, muitas vezes ele entendia errado, porém, não pedia que lhe repetissem as palavras. A sua vaidade

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ainda estava latente, a altivez que portava o credenciava a responder ao interlocutor conforme havia entendido. Embora relutante, Manuel topou buscar recursos para solução do problema. Foram consultadas várias clínicas, as que que vendiam aparelhos para surdez. Experimentou alguns, e parecia apto a aceitar o uso quando, depois de refletir sobre a situação, discerniu que não haveria precisão nem comodidade para o uso. Manuel não gostaria de se tornar refém desses apetrechos, que idosos são recomendados a carregar; até óculos ele não usava. Com a idade avançando, Manuel experimentou para favorecer seu convívio acompanhante diurna, para fazer-lhe uma comida caseira e arrumar a casa. Contudo, com o passar do tempo ele sempre rechaçava, sentindo-se incomodado com a presença alheia, alegava qualquer subterfúgio para recuperar o isolamento, até que lhe fosse delegada a próxima companhia ou que ele mesmo procurasse outra e se dispusesse ao convívio. Esta fase foi a mais profícua em reminiscências de sua história, quando costumava repetir: “Se eu contar toda minha vida, dará um bom livro”. Ele ditava suas revelações, contava sua epopeia em fragmentos, em dias alternados: quando sua memória estava sobrecarregada de recordações. Restava-nos a tarefa de catalogar esses fragmentos e encaixá-los em ordem cronológica. Ao revelar o passado, procurava contextualizar sua história pessoal com a macro história; revelando os porquês e todas as motivações que não foram externadas, mas plenamente alcançadas nas entrelinhas de suas palavras. As recordações em vigília no seu pensamento possuíam sempre a mesma versão, mesmo que demorassem longo período para ser novamente contadas. Somente não se dispunha a recordar sua infância antes dos onze anos. Sua memória talvez não tivesse predileção por essa quadra, ou não lhe apetecesse rememorar época tão infausta da vida, com certeza, envolveria as aflições maternas. Por isso, ele a venerava, mas não pormenorizava os desmandos sofridos por sua madre Victoria.

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O itinerário usual de Manuel restringia-se ao deslocamento entre o Rio de Janeiro e São Paulo, viajando sempre de carro, em companhia de um filho ou parente. Ora ele se estabelecia em casa de Renato, em Barra Mansa ou Niterói, ora passava uma temporada no domicílio de Luís Carlos, no bairro do Jabaquara, em São Paulo. Essa rotina foi modificada quando se deslocou ao Paraná, para visitar os parentes que lá moravam. Não foi um boa opção, porquanto Manuel sentiu-se fatigado, combalido com a distância e o período de viagem, além de ausente da morada, do lugar habitual de descanso. O nonagenário já não contava com a saúde como aliada, qualquer resfriado o abatia, deixando-o com dificuldades para a recuperação. Era sintomático aquela idade, já próxima do centenário, exigia mais aplicação e esmero nos provimentos médicos. Em São Paulo, ele teve que se internar para cuidar de uma oportunista anemia, demorou mais tempo que o habitual para se recuperar. De volta à Barra Mansa, Manuel permaneceu sob os cuidados do filho Renato, pois ele não aceitava mais nenhuma cuidadora. Esforçava-se por não demonstrar fraqueza diante de pessoas fora do convívio familiar. Era o rescaldo de sua vaidade, aquela presunção que ainda o conduzia, embora não fosse nada exagerado, apenas o discernimento de um homem brioso. Desse modo, ele permaneceu na convivência do Renato até às festas natalinas de 2013. Seu derradeiro Natal. No ano seguinte, Luís Carlos o conduziu para mais uma temporada em São Paulo. A mudança de ares era para o “velho” como um elixir da vida. Nunca gostou de demorar-se muito tempo no mesmo endereço, era um nômade por natureza, habituado às mudanças de casa, cidade e país. Que começou aos onze anos quando, por força da necessidade e do destino, junto com a mãe e o irmão caçula, navegou em direção ao pote de ouro no final do arco-íris. A partir de então, sempre se percebeu inquieto, buscando venturas, enquanto pode andar com as próprias pernas, sem dependência. Seu périplo irrequieto começou a ter fim justamente em São Paulo, a capital mais importante do país, quando foi internado no Hospital

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Arthur Ribeiro de Saboya, na Av. Francisco de Paula Quintanilha Ribeiro, no bairro do Jabaquara, para tratar de um abscesso intestinal. Na noite de 16 de maio, a equipe médica diagnosticou uma moléstia grave, formulando a ação curativa por meio de uma cirurgia. Assim foi cumprido, contudo, a despeito do zelo profissional e dos procedimentos médicos adotados, Manuel Mendoza não resistiu à intervenção cirúrgica; exatamente às onze horas da manhã de 18 de maio de 2014, aos 98 anos, quatro meses e um dia, “caiu o pano”, encerrando o derradeiro ato de sua biografia. Para satisfazer sua recomendação, na noite do mesmo dia, foi providenciado o translado do corpo para Manaus. No grande silêncio da madrugada fria do dia imediato, Manuel estava sendo embalsamado e preparado para fazer a derradeira viagem – a viagem final ao Criador –, para ser sepultado no cemitério São Francisco, na ponto mais elevado do Morro da Liberdade. No mesmo bairro que, há 55 anos, ele ajudou a povoar; que desbravou feito um bandeirante a procura de subsistência; que padeceu pala escassez de serviços básicos e saneamento. Em nossos dias, as benesses da modernidade ali chegaram, um bairro novo se apresenta, porém, Manuel descansa no seu ápice, de onde pode descortinar novo horizonte, horizonte de luz e de paz, sob a bênção de Deus. Nem tudo foi narrado, certamente, todavia o quanto aqui se revela aconteceu Entre duas viagens.

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Renato Mendonça é o caçula da primeira geração dos filhos de Manuel. Após concretizar a formação escolar em Manaus, decidiu enfrentar São Paulo. Semeado naquela terra assaz competitiva, logrou germinar. Construiu um quinhão de sua história como membro da Petrobrás, onde participou de vários concursos literários. Num desses, teve seu conto A Última Noite laureado e incluído na coletânea Prata da Casa 2012. Tempos depois, escreveu o livro Memórias, Crônicas e Contos: Renato, aos Poucos. Festejava este, quando foi surpreendido pela morte do patriarca, para quem se planejava uma festa secular. Em mesa de bar, surgiu este projeto. Como artífice central, ao Renato coube balizar o plano desta crônica. E atesto que o fez com empenho, caçando minúcias da trajetória do nosso genitor. Cuidou com estofo da revisão, debateu cada parágrafo e cada foto inseridos. Pelejou – e como! – para resenhar a “viagem” quase centenária de José Manuel Mendoza.


M

anuel (Mendonça ou Mendoza) revelou-nos sua epopeia como em capítulos, refinados a cada ocasião. Era como se sua memória, sobrecarregada de recordações, necessitasse se recompor periodicamente. Estas reminiscências, que faziam vigília em seu pensamento, possuíam sempre a mesma versão, mesmo que reveladas após longos anos. Narradas desse modo, restou-nos a tarefa de catalogar e encaixar os eventos em ordem cronológica. E mais, contextualizar a micro-história de Manuel na História; desvendar os porquês e as motivações não bem externados, mas plenamente alcançáveis nas entrelinhas de suas narrativas.


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