Capítulo 10 (Roteiro original)
Texto: Ary Santa Cruz Ilustrações: Cátia Ana
Contraparte Mesmo dormindo as perguntas não se calam: Então, como exatamente a Mulher-Fogo poderia ser? Sua personalidade, gostos, objetivos, desejos... por que decidiu ser uma heroína? Por que não uma vilã? Qual a sua identidade secreta? Médica, escritora, jornalista? Qual o seu verdadeiro nome? Cristina Monteiro, Márcia Silvana, Cátia Ana? Droga, são tantas pergunt... Minha cama estremece e ouço um grande estrondo. Abro os olhos, assustada. Apoio-me nos braços, enquanto afundo no colchão, cama adentro. Acima de mim e ao meu redor há bolhas e percebo que estou numa espécie de piscina. É desconfortável e fecho meus olhos. Perguntas amontoam-se ao meu redor: "Será que eu consigo?" "Dá para viver de desenho?" "Será que mudei?" "Devo ouvir o Mike dessa vez?" Nado, afastando algumas dúvidas que estão no meu caminho. Seguro o fôlego com dificuldade. Desse
jeito, fica difícil dormir. Mas a culpa é minha, não devia ter levado tantas dúvidas comigo para a cama. Acho que a coitada terminou não aguentando tanto peso. Nesses momentos, por mais angustiante que a experiência possa ser, eu simplesmente páro e espero passar. Mas não estou a fim de perder mais uma noite de sono. Tenho uma ideia diferente, dessa vez. Nado para cima, acima desse oceano de angústia. Alcanço a superfície e finalmente consigo ar, na maravilha de um céu estrelado. Escalo esses lindos pontos brilhantes. Ao invés de me perder em dúvidas, prefiro me perder em devaneios. Chego a uma nuvem enorme, e sorrio. Feliz e empolgada me transformo em garotinha novamente. Esse é meu mundo dos sonhos! Engraçado, mas quando era menor, os problemas eram mais fáceis de se resolver, pelo menos na minha cabeça. Quando estava realmente triste, bastava imaginar que era uma princesa encantada, esperando o beijo de um principe que viesse acabar com minha melancolia. Quando estava com problemas, me imaginava uma guerreira prestes a enfrentar um monstro (de preferência um dragão).E quando estava ansiosa por algo, me imaginava como a Maria, correndo por um caminho de jujubas até a casa de doces.
Mas com o tempo o príncipe não veio, os monstros se tornaram mais fortes do que esperava, e todo o caminho de jujubas dava em uma casa de brócolis. Como é bom ter acesso as boas lembranças novamente! Como é bom lembrar das fantasias que fizeram meus momentos mais especiais, e as que ainda fazem. Continuo deitada sob as estrelas, braços e pernas abertos, olhos fechados e um sorriso tranquilo. Ainda estou sonhando, como sempre. Sonhos são a matéria prima da minha alma. A busca para realizá-los, a expectativa em conseguir alcançá-los (mesmo que sufocante!) é o que faz todos os contratempos valerem a pena. Um caminho mais iluminado como as estrelas, e uma realidade que permita a ousadia de um conto de fadas. Seria pedir muito? Triiim...Triiim...Trimmmm. Falando em realidade. Acordo com Sabrina sobre mim, "gentilmente” me alertando sobre a hora: __ Anda menina, você vai se atrasar! Ainda dividida entre as névoas do sonho e os sacolejos
da Sabrina corro para o banheiro, tropeçando no caminho com Mike e suas recriminações matinais: __ É isso que dá não ir para cama mais cedo... Em pouco tempo (na medida do possível) lá estou eu no ônibus, preparada para mais um dia. Ou quase, a gente nunca sabe que surpresas esperar. Estou para baixo novamente. Não sei se foi por quase ter perdido a hora, ou por ter sido acordada de um sonho tão bom. Sobre o que era mesmo? Nem lembro. Só lembro do que senti. Nesses momentos, escutar uma boa música me deixa mais tranquila, mas na pressa terminei esquecendo meu mp3. Sabrina tenta me alegrar sussurrando palavras de ânimo. Já o Mike... está fazendo o que faz melhor. Chegamos na biblioteca Cora Coralina, é aqui onde trabalho. É cedo e ainda não chegou nenhum visitante. Organizo algumas prateleiras e sento para praticar um pouco de desenho. Redescobri o prazer de desenhar há pouco tempo. Ainda não sei exatamente o que fazer com essa vontade, mas sei que quero realizar meus sonhos através dela. Se possível... mas o fantasma do papel em branco me olha impiedosamente. É, hoje definitivamente não estou bem.
Sabe quando você se sente sozinha ao redor das pessoas? Seja como uma pessoa invisível, em que ninguém parece perceber que esta ali, ou em uma conversa onde os gostos e as vontades são diferentes? É assim que tem sido durante toda a minha vida. As vezes, sinto como se não fizesse parte do mundo. Uma peça fora do quebra-cabeça, uma imagem disforme através do espelho. Clarice (o mais próximo que tenho de uma amizade aqui no trabalho) chega conversando alegremente sobre algum assunto, mas sinceramente não consigo acompanhar. Não é má vontade, é só porque não estou com cabeça para tantos blá, blá, blás. Aposto que ela quer me chamar para uma festa de novo. Mas não posso, não dá, não estou a fim. Dou alguma desculpa para fugir dessa conversa e vou ao banheiro. O dia vai ser longo, preciso dar um tempo senão vou surtar. Jogo um pouco de água no rosto e me olho no espelho. Mesmo com todo o receio que sinto em tomar decisões, já tentei algumas mudanças. Mas em alguns momentos, como agora, fico imaginando se essas mudanças vão fazer alguma diferença. Onde as últimas decisões que tomei vão me levar?
Será que há um tempo, um limite, para que tudo volte a ser como era antes? Do outro lado do espelho a Virgínia antiga me olha, com seus cabelos castanhos, sua expressão triste. Ela precisa evoluir, precisa crescer, mas se recusa. Encosto minha testa na dela, apóio minhas mãos nas suas e vou ao seu encontro, dentro do espelho, dentro de mim. Caminho dentro dessa prisão de vidro e reflexo em que a Virgínia antiga ainda está confinada. Esbarro nos limites desse cárcere, só quero expandir meus horizontes, buscar coisas novas... me livrar dessa terrível sensação de que o espaço em que estou parece pequeno demais para mim mesma. Mas não basta apenas tomar essa decisão. Ela é apenas o primeiro passo. Preciso aprender a mudar tanto por dentro como por fora. Aprender a me livrar de ideias que, por mais que me esforce, não estão me levando a nada. A rir mais com a Sabrina, ouvir seus conselhos e dar mais valor a nossa amizade. Saber que, por mais que não deva deixar o Mike me dominar, não posso nunca deixá-lo completamente de lado. Resumindo: para expandir meu mundo, preciso expandir a mim mesma.
Como fazê-lo? Como concretizar isso? Percebo na minha mão, como se sempre estivesse lá, um bolinho. Há um bilhete nele que diz "me coma”. Dou uma mordida no bolinho, abro os braços e fecho meus olhos. Sim, é exatamente isso. Eu finalmente posso sentir! Me sinto crescer, todo o meu interior se expande, e quebro as paredes dessa caixa onde me encontro. Não há nada mais gostoso do que quando nossas palavras alcançam seu significado. Nuvens passam pelo meu corpo, estou nas alturas. É uma sensação de liberdade. Regrido ao meu tamanho "normal". Mas preciso continuar tentando, me esforçando. Fazer o possível para conseguir alcançar meus sonhos e superar meus limites. Olho para trás onde, ao longe, atrás do espelho, está a Virgínia ruiva, com as mãos apoiadas no espelho e me olhando com expectativa. Caminho em direção à ela, é hora de tirar esse peso dos ombros. Fecho meus olhos e sorrio, olhando para a Virgínia ruiva. Está tudo bem. Pode continuar seguindo em frente!
Ary Santa Cruz é estudante de jornalismo e pode ser localizado em: http://arquivoideologico.blogspot.com/ @Ary_N Cátia Ana é designer, ilustradora e sonhadora e está sempre por aqui: http://odiariodevirginia.com http://catiailustradora.blogspot.com @virginiaemike
Gracias!!!