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Sob a luz do sol, os detalhes ficam ainda mais próximos de uma visão cinematográfica. O céu azul, sem nuvens, combina com a cor das pequenas casas de pau a pique, que no passado, apresentando apenas a cor opaca do barro entrelaçado por bambu, dividiam espaço com grandes ocas. Uma grande cruz, fincada sobre um alto pedestal de tijolos, no centro da vizinhança, chama a atenção pela disposição simétrica em relação à igrejinha e também aos pares de árvores altas, que balançam preguiçosos no ritmo da brisa.
Dentro da capela, a simplicidade é predominante. Dois conjuntos de bancos estreitos preenchem o local. O sino, na parte superior de uma das extremidades, parece tão antigo quanto o material que preenche as paredes seculares. Na outra ponta, um pequeno altar adornado por um sacrário de madeira. Mais ao fundo, no alto, há uma grande e bem cuidada imagem: é Santa Catarina de Alexandria, a padroeira da Aldeia. Nas casas, já não há mais moradores. Hoje, dão espaço a pequenas instituições da cidade, que por vezes parecem até ser simbólicas. Uma das edificações de portas estreitas e baixas abriga uma pequena biblioteca. Os livros são antigos,
amarelados e gastos, mas todos estão devidamente enfileirados e categorizados. Ao lado da biblioteca, está a Casa de Cultura. Assim como as outras moradas, é pequena e modesta. Nela, se vê um acervo variado de imagens, artefatos, peças de artesanato e esculturas, que contam a história indígena por diferentes estilos dentro das artes. Porém, a variedade espalhada por mesas e paredes torna difícil a tarefa de decodificação dos diferentes símbolos.
“A aldeia parece um cenário montado para você ver, mas não é. Ela existe. Parou no tempo, mas preserva muita história”,
conta Alaide Di Prieto, coordenadora da Secretaria de Cultura e Turismo de Carapicuíba e companhia ideal para se conhecer a rica história por trás da atmosfera bucólica do pequeno centro histórico.
A história Fundada em 12 de outubro de 1580, pelo Padre José de Anchieta, a Aldeia de Carapicuíba foi uma das doze aldeias construídas para catequese e proteção de índios, sob a administração da Companhia de Jesus. As terras, doadas por Jerônimo Leitão e Afonso Sardinha, sofreriam um esgotamento do solo nos idos de 1698. Diante do fato, o Padre Belchior de Pontes transferiu a aldeia para Itapecerica, distante dos ataques violentos dos bandeirantes.
A primeira Aldeia seria parcialmente destruída pelos jesuítas, para impedir que os índios ali permanecessem. Entretanto, muitos enfrentariam embates mortais por optar não deixar a terra. Em 1727, a Aldeia foi reconstruída, aproveitando-se do que havia restado das antigas instalações. Desenvolveu- se, então, em torno de uma praça, para a qual voltaram-se pequenas casas. Mais a frente no tempo, em 1736, foi erguida uma nova igreja, substituindo a de Nossa Senhora da Graça, erguida em 1615. A Aldeia jesuítica foi a única que resistiu às interferências do tempo e, posteriormente, ao aumento populacional que aplacariam as outras aldeias e a própria São Paulo de Piratininga. No decorrer dos anos, o entorno da capela passou a ser ocupado por malocas erguidas para abrigar os primeiros realizadores de espetáculos populares e festas da região. A organização e exploração do comércio foram tão bem sucedidas que a Aldeia se transformou, durante os primeiros séculos de sua existência, no maior centro de folclore do Estado.
As festas Na Aldeia, firmou-se uma das mais importantes e antigas práticas populares do Brasil, a “Dança de Santa Cruz”, também chamada de Sarabaquê. Anualmente, ela reúne toda a comunidade e seus dançantes para uma celebração à Santa Cruz. A dança que começa em frente à igreja - e segue de forma circular até o ponto inicial -, tem como principal objetivo abençoar todas as casas da Aldeia e revelam o sincretismo de tradição histórica ao unir as influências religiosas indígenas e africanas. Entre outras atividades de tradição histórica, a maioria ligada à religião, destacam-se as romarias, a Festa de Santa Cataria e a confecção de tapetes de rua na data de Corpus Christi - evento que acontece logo após a Páscoa. Esta data, inclusive, é especificamente a ocasião em que a Aldeia promove o seu evento de maior visibilidade na região: a encenação do drama da Paixão de Cristo. No teatro de arena, localizado ao lado da Aldeia, a montagem é feita por atores voluntários, vestindo figurino e adereços totalmente produzidos nas oficinas da Casa do Artesão. A trama, que apresenta a morte e ressurreição de Jesus Cristo, reúne sempre uma multidão.
“Este ano chegaremos a nossa 12ª edição da Paixão de Cristo, com expectativa de presença de três mil pessoas na arena”, aponta Alaide. A encenação da Paixão de Cristo, no entanto, é um caso a parte quando se fala em aproximação do público. “Nós temos aqui, também, uma programação especial, todo dia 20 de novembro, na celebração do Dia da Consciência Negra. Mas acabamos reunindo uma maioria de pessoas vindas de fora, que vem acompanhar as discotecagens e intervenções, e não os moradores das redondezas”, lamenta Renata Trama, funcionária da secretaria. A distância entre o público da região e os projetos do centro histórico ainda é grande, visto a quantidade de atividades desenvolvidas, que geralmente não alcançam a repercussão esperada. Atualmente também são realizados o “Rock Pela Paz” e uma programação durante o carnaval, com a celebração das clássicas marchinhas. O mais novo evento da agenda, “Música na Aldeia”, visa exatamente à formação de um novo público aos finais de semana, com apresentações ao vivo de violeiros e amantes do som da viola. “Essas práticas tem como intenção atrair o público, pois as pessoas que moram nas cidades em torno, conhecem a aldeia de Carapicuíba, mas a maioria pensa que ela se trata de uma aldeia indígena. Muitos me ligam perguntando que tribo que vive aqui. Eu explico que isso é uma aldeia jesuítica, onde os índios foram trazidos no passado”, explica Di Pietro. Segundo ela, uma das maiores dificuldades da Secretaria é a divulgação dos eventos. A restrição de verbas é um dos fatores que implicam estas limitações. Para driblar o impasse, a Secretaria da Cultura lança-se atualmente também pelas redes sociais para atrair novo público. “Nós colocamos comunicação em ônibus da região, e atualmente divulgamos as programações por meio do nosso site e da página oficial no Facebook”, esclarece.
A Aldeia como cenário A despeito da rica programação cultural promovida pela Secretaria de Cultura, o público ainda custa a conhecer e aproveitar as oportunidades de lazer oferecidas. As expectativas, no entanto, são de que estas dificuldades sejam minimizadas em um futuro próximo. Atualmente, a Secretaria organiza a formação do Conselho de Cultura de Carapicuíba. A instituição do conselho possibilitará, entre outras coisas, a melhor captação de recursos para a prática dos projetos.
“Reunimos cerca de quarenta pessoas na primeira reunião para a formação do Conselho. É um começo inédito na história da cidade”, esclarece Luiz Carlos Magalhães Peixoto, Secretário de Cultura. Enquanto estas melhorias não acontecem, o centro histórico tem servido de pano de fundo para diferentes trabalhos que reverenciam o passado colonial brasileira. Já não se conta, em uma das mãos, os projetos audiovisuais que tiveram a Aldeia de Carapicuíba como cenário.
“Aqui já foram feitos inúmeros comerciais e propagandas. Filmaram, por aqui, longas do Mazzaropi, a novela Meu Pé de Laranja Lima, a novela Éramos Seis...” enumera Alaide. O mais recente projeto em que a Aldeia pode ser vista, é o videoclipe da canção “SI MI RE LÁ” do cantor e compositor Paulo Padilha, uma celebração musical de rimas, ritmos e cores populares.
Tamanha beleza e esplendor, entretanto, não são catalizadores de investimentos. “A cultura não tem um lado forte eleitoreiro. Há maior investimento na área social, na área educativa. E esta região sempre precisou de investimentos nesse sentido. A cultura fica em segundo plano”, afirma Alaide, sobre uma realidade vista não apenas em Carapicuíba, mas em inúmeras cidades da Grande São Paulo e do Brasil. Mas é uma realidade que pode e deve mudar, em favor da nossa história.
Renata Trama, funcionĂĄria da Secretaria de Cultura de CarapicuĂba e ativista cultural.
Alaide Di Prieto – uma vida ligada à Aldeia Educadora e artista plástica, Alaíde Di Prieto está há mais de duas décadas envolvida com a história e as ações culturais da Aldeia de Carapicuíba. Sua relação com o centro histórico começou com as orientações de Luis Saia em um projeto de pesquisa, realizado no final dos anos 80. Professor da USP e um dos principais especialistas em restauro de bens culturais e conjuntos arquitetônicos no Brasil, o pesquisador realizava, na época, um minucioso estudo sobre as regiões históricas de São Paulo, nos campos da geografia, geomorfologia e geologia. “Esse professor foi orientador do nosso projeto em grupo. Acompanhei, registrando em bico de pena, as características de cada local, sob as orientações dele.” Na época, integrante da Delegacia de Ensino da Cidade, Alaide uniu os registros figurativos específicos sobre a Aldeia - e a cidade de Carapicuíba - aos estudos históricos existentes até então. O trabalho concluído foi apresentado na Câmara Municipal para todas as autoridades políticas da região. Slides e apontamentos que mapeavam a relação da região com imigração libanesa e russa, bem como a implantação da Igreja Cristã Ortodoxa, deixaram vereadores e integrantes da Prefeitura surpresos. Após o seminário esclarecedor, o projeto de resgate histórico foi apresentado aos professores do município. Todo esse trabalho resultou no livro “Linhas e Memórias”, segundo Alaide, “guardado a sete chaves”, mas em vias de ser publicado. Logo após a finalização do projeto, com intenção de se dedicar inteiramente às artes, Alaide se afastou das atividades da Delegacia de Ensino. Em 2011, quando criada a Secretaria de Cultura da cidade, Di Prieto foi convidada para compor o quadro e desenvolver novos projetos para a cidade. Desde então, como Coordenadora da Secretaria, tem se dedicado à difusão do valor histórico e cultural da Aldeia. Entre suas maiores ocupações, está a Casa do Artesão, espaço que promove diferentes cursos, e as oficinas de artes para a comunidade.
Entusiasmada com o recente apoio de uma empresa privada, que tem feito o levantamento das atuais condições e necessidades da Aldeia - impedida de realizar modificações estruturais após seu tombamento em 1941, como patrimônio nacional -, Alaíde acredita na inclusão do centro histórico na rota turística de grandes eventos que irão passar por São Paulo, como a Copa do Mundo de 2014. O centro histórico está participando do PACH – Plano de Ação das Cidades Históricas do Brasil, projeto do Ministério da Cultura. “Todo este levantamento vai nos dar boas condições de receber os visitantes. Queremos que o turismo cresça nos próximos anos”, revela. Ciente de seu papel como educadora e ativista cultural na região, Alaide tem ainda muita história para contar e ideais a compartilhar, em uma sociedade cada vez mais tecnológica, cada vez mais distante de sua memória. “A intenção desta Casa do Artesão é mostrar aos turistas que o artesanato não é produzido somente de material artificial, pode sim ser feito com o fruto da terra”.
“A intenção desta Casa do Artesão é mostrar aos turistas que o artesanato não é produzido somente de material artificial, pode sim ser feito com o fruto da terra”.
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