De Bebedouro para o mundo p o r Pa u l o d a S i lva
Em 2002 iniciei meu mestrado em Teaching English to Students of Other
Languages (TESOL) na Universidade Columbia, Teachers College, em Nova York. No decorrer da primeira semana de aulas, soube de uma instituição que recrutava estudantes internacionais como voluntários para irem a escolas públicas da cidade de Nova York e compartilhar com alunos do Ensino Fundamental e Médio as experiências educacionais e culturais em seu país de origem. Bastante interessado nesse projeto, informaram-me do perfil predominante dos alunos a quem eu iria palestrar. A coordenadora desse projeto, à época chamado Metro International – Global Classroom, à vontade, disse-me que a maioria deles guardava comigo algumas similaridades, como a pele escura – eram filhos de imigrantes, predominantemente africanos ou latino-americanos, além daqueles alunos cujas famílias haviam se mudado para a “América” de regiões tão longínquas como o Oriente Médio, a Ásia, o Leste Europeu etc. Também ressaltou que o que eu lhe havia dito quando fui entrevistado a fim de me juntar ao projeto era justamente o que esses alunos e suas famílias traziam em mente: sonhar com a possibilidade de a educação formal se traduzir em melhoria de vida, aquisição de melhores oportunidades empregatícias, enfim, o que se entende por mobilidade social, que propicia ansiar por uma condição de vida mais digna, confortável, respeitável. E já mesmo antes de chegar à escola em que eu debutaria fazendo minha primeira palestra ficou claro para mim, ao perceber a estrutura do bairro em que a escola se localizava, a condição das moradias, a dinâmica socioeconômica que me circundava, que ali residiam indivíduos que se juntavam à massa de pessoas de famílias de classe trabalhadora ou baixa renda. Mais à frente vou me aprofundar naquilo que significou participar dessa experiência tão enriquecedora. Por enquanto, voltemos ao Brasil, mais precisamente ao interior do Estado de São Paulo. Bebedouro é onde tudo começou. 23
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Importa ressaltar que Bebedouro, até o início dos anos 1990, era considerada a capital nacional da laranja, o que a colocava no mapa das cidades mais prósperas do interior paulista. A crise da laranja tirou-lhe esse posto. Nunca soube à qual cidade a faixa de “Capital da laranja” foi entregue. Mas isso nos foi tão incutido por sucessivos anos que se torna desnecessário dizer do orgulho que tínhamos de nossa cidade, que se destacava no cenário nacional ao menos em alguma coisa. No âmbito pessoal, lutava para identificar quais elementos poderiam fazer de mim, um menino negro de família de classe trabalhadora, de pai militar e mãe “do lar”, alguém orgulhoso de sua própria história. Fora do seio familiar, carecia-me construir a autoestima. Justamente ela, que nos fortalece e serve de escudo para que possamos lidar com várias adversidades, inclusive situações de bullying na escola, o campo fértil onde florescem as inúmeras provocações que se valem de fatores que claramente podem espelhar a insegurança de alguém. Bullying, em meu caso, vinha em forma de uma série de xingamentos. Apelidado de macaco, tiziu, beiçola, filhote de urubu etc., retraía-me; carecia de meios para me impor. Tornei-me mais distante, reservado, tentando buscar conforto em algum porto seguro. Onde fui parar? Nos livros! O mundo literário, ora aventureiro, ora lírico, ora etéreo, ora dramático, aos poucos se descortinava diante de mim e, além de servir de fuga, ajudou a delinear meu perfil de estudante: um domínio sólido da norma culta da língua portuguesa, uma paixão pela leitura e uma única certeza: não importava o mundo para o qual os livros me transportavam, sabia que aquele refúgio era confiável e garantido! E mais: tornei-me o teacher’s pet de um grande número de professores, que viam em mim a encarnação daquilo que para eles representava um ótimo aluno: comportado, atento e com um excelente aproveitamento escolar. A mim ficou claro, a partir dali, que se eu quisesse atrair o respeito e a admiração de meus colegas de classe, professores e diretores a solução já não era segredo: manter-me nessa trajetória. Em casa, ser bom aluno era apenas obrigação. Nada de recompensas. Entendo hoje que certas coisas pouco mudam, mesmo com o passar do tempo. Guardo em mim o que aprendi já em tenra idade: não adianta apenas ser bom. Importa estar entre os melhores. E isso não guarda nenhuma similaridade com a famigerada competição, às vezes insana, que é instigada em determinadas culturas. Em meu caso, tudo passou a fazer sentido após minha busca por aceitação, 24
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aquela necessidade que temos de ganhar um elogio, de saber estar fazendo ao menos alguma coisa da forma correta. E por saber que, direta ou indiretamente, essa postura ajudou-me a entender qual trajetória deveria seguir em minha vida escolar, eu me vejo como um indivíduo de sorte, abençoado, iluminado, chamem do que quiser. E é importante ressaltar que a percepção das coisas boas, positivas, que nos fazem bem, só passa a fazer sentido quando nos dispomos a trabalhar por elas, em função delas, visando a elas. Digo isso para deixar claro que mesmo uma dádiva, ou um dom, requer trabalho dobrado e muito esforço para ser mantido. E esse ensinamento nunca esqueci! Hoje, mesmo em Nova York, aplicar esse lema ao que faço nunca fez tanto sentido. Vejamos como consegui chegar até aqui.
Trajetória pessoal rumo à capital do mundo O primeiro passo rumo à oportunidade de estudar fora do Brasil, principalmente quando existe dependência de um órgão, uma instituição, uma fundação que possa financiar tal empreitada, é estar atento às várias possibilidades de bolsas de estudos criadas especificamente para alunos com o nosso perfil. A contradição maior reside no fato de nem sempre as informações sobre essas oportunidades chegarem até nós de forma clara, direta e rápida. Lembro-me de ficar sempre antenado a tudo o que se referia a bolsas de estudos nos Estados Unidos. Para isso, utilizava o Counseling Center da Associação Alumni em São Paulo. Esse centro possuía profissionais especializados e informação atualizada de como dar os primeiros passos na direção desejada. Meu interesse era focado em bolsas para mestrado e doutorado. Duas fundações me chamavam a atenção: a Ford Foundation, que oferecia um programa de mestrado e doutorado no exterior a afrodescendentes; e a Fulbright, cujo prestígio poderia me colocar nas melhores universidades norte-americanas. No ano de 2000, após ter sido aprovado em um concurso público e tomado posse como tradutor juramentado e intérprete comercial do Estado de São Paulo, surgiu a primeira oportunidade concreta de concorrer a uma bolsa de estudos da Fulbright. Dadas a raridade de surgir um concurso como o de tradutor juramentado e a possibilidade de trabalhar em uma área tida como extremamente rentável, decidi não me candidatar à bolsa. Assumi as responsabilidades 25
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de tradutor juramentado e mantive as demais que já possuía: supervisor acadêmico e professor do Departamento de Inglês da Alumni, e professor do Departamento de Tradução e Interpretação, além de fazer traduções simultâneas para algumas empresas. Foi um período profícuo do ponto de vista profissional. Contudo, a Fulbright, uma vez mais, abriu vagas para mestrado em minha área nos Estados Unidos. O ano era 2001 e sabia que não poderia deixar tal oportunidade passar. Decidi concorrer. O processo seletivo envolvia uma entrevista com diretores da Fulbright de Brasília, dos Estados Unidos e outros membros do Conselho. Antes da entrevista, conduzida em inglês, em São Paulo, os candidatos criam um portfólio com um statement of purpose, histórico escolar e cartas de recomendação. Eu havia escrito um statement of purpose baseado na importância de fornecer feedback aos alunos. Já tinha lido muito a esse respeito e contei com minha diretora acadêmica para fazer um proof-reading do texto, já que ela cursava mestrado na mesma área em uma universidade em Vermont, na costa leste dos Estados Unidos. A carta de recomendação adveio de minha coordenadora acadêmica, que guardava por mim um respeito incondicional no que se relacionava à minha conduta profissional. E meu histórico escolar sempre foi exemplar, fruto daquelas horas sem dormir às vésperas das provas, da necessidade de me fazer respeitar em sala de aula e da vontade de acolher para mim qualquer tipo de atenção positiva, fosse dos professores ou dos colegas de classe. A sorte tinha sido lançada! Em um mês saberíamos quem seriam os esco lhidos pela Fulbright para fazer um mestrado nos Estados Unidos a partir do segundo semestre de 2002. Conforme esperado, o anúncio foi feito e a lembrança daquele dia ainda mantenho vívida: fui acordado por um telefonema em casa. Sim, eu dormia! E a ligação chegou por volta das 9 horas da manhã. Era minha coordenadora dizendo que eu fora escolhido e que havia pouco tempo para eu cumprir a próxima série de exigências da Fulbright. Acordei de sobressalto, ainda incrédulo e tentando depreender o que essa nova experiência, de forma geral, poderia acarretar para minha vida. Impossível dimensionar ali, naquele momento. Era simplesmente hora de arregaçar as mangas e partir para o trabalho! A Fulbright requeria que os selecionados – salvo engano, cinco em todo o território nacional – indicassem as instituições de ensino superior nos Estados Unidos que lhes interessassem e a razão para isso. Amigos e amigas que já 26
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estudavam fora não se furtaram de me aconselhar a escolher as melhores. O raciocínio era lógico: sonhe alto, pense ambiciosamente. Escolha as tops, de preferência Ivy League. Assim fiz. E assim aconteceu. Fui escolhido pela Universidade Columbia, Teachers College. Meu regozijo não encontrava fronteiras! E o sonho de morar em Nova York? E a possibilidade de vivenciar outra cultura, de forma inconteste e integral? Ter de fazer o Toefl, o GRE, de buscar mais cartas de recomendação, de refazer meu statement of purpose, tudo se tornava um desafio menor, dada a certeza de que, amparado pelo prestígio da fundação Fulbright, eu certamente acabaria em alguma universidade norte-americana. Nunca imaginei que fosse alguma do porte da Columbia e em uma das cidades mais fascinantes do planeta.
Nova York: desafios e conquistas Clichê dos clichês, morar em Nova York confirmou ser como um sonho. Mantém-se como centro de atenções do mundo, onde tudo acontece, onde há gente de todas as esquinas do planeta que empresta à cidade uma energia ímpar, que faz dela uma cidade única aos olhos de cada um. E a partir daquele momento eu passaria a fazer parte daquela grandiosidade e ali moraria por no mínimo dois anos! E estudando em uma universidade que, no ano em que cheguei, completaria 250 anos! Meu mestrado foi em Teaching English to Students of Other Languages (TESOL), no Departamento de Arts and Humanities do Teachers College, a escola de Educação da Universidade Columbia. A fim de completar o mestrado, é necessário um total de 36 créditos. Cada disciplina que se cumpre no decorrer de um semestre pode valer até três créditos. As formas de avaliação variavam enormemente: às vezes uma prova discursiva, outras vezes uma resenha ou uma monografia. A participação em seminários e workshops também ajudava a compor a avaliação final dos mestrandos. No meu caso específico, tinha de dar aulas no curso de inglês comunitário oferecido pelo Teachers College. Era durante essas aulas que recebíamos feedback de nosso desempenho como professores de inglês e aplicávamos as teorias e metodologias discutidas em sala de aula. Minha vantagem ficou evidente em virtude da larga experiência acumulada nos anos em que lecionei em faculdades e escolas de línguas no Brasil. E 27
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meu orientador, que era chefe de departamento do curso, dispensou-me da prática – como eram chamadas as aulas dadas pelos mestrandos a alunos majoritariamente imigrantes –, o que me permitiu cumprir créditos em disciplinas que trariam maior vantagem para meu crescimento acadêmico e intelectual. No primeiro ano de mestrado, eu era o único brasileiro no meu departamento. No ano seguinte, uma professora de Curitiba veio se juntar a mim. Demos maior visibilidade a tudo o que se referia ao Brasil, principalmente durante a chamada International Week. Os alunos estrangeiros eram incentivados a participar, no intuito de dar visibilidade a aspectos culturais de seu país. Outro aspecto digno de nota que é bastante estimulado em universidades norte-americanas é a participação em atividades extracurriculares, ou mesmo atividades voluntárias na comunidade que a escola serve.
A importância de fazer trabalho voluntário No início deste artigo falei de meu envolvimento com o programa Global Classroom, de uma ONG chamada Metro International. Eu me voluntariava durante as tardes, três vezes por semana. E outras vezes, durante o período matutino, visitava escolas onde dava workshops sobre cultura brasileira. Mais especificamente, falava sobre a “influência africana no Brasil”, uma aula bastante dinâmica que sempre colhia ótimo feedback das escolas e dos alunos. As aulas sobre o Brasil traziam essa expectativa de ser dinâmicas, pois em minhas apresentações, além de eu me debruçar nas políticas de cunho social e racial que estavam sendo implementadas pela primeira vez no Brasil naqueles anos do meu mestrado, eu inseria informações e práticas de capoeira, samba de roda, tropicalismo, carnaval etc. Atuar por meio de um compromisso firme com a ONG Metro International me abriu várias oportunidades. A princípio, adquiri maior exposição a um ambiente de trabalho típico daquele país. Trabalhava bem próximo da coordenadora de Recrutamento de Alunos Internacionais. Era eu que oferecia um testemunho aos alunos que tínhamos em perspectiva sobre a importância de o programa Global Classroom levar aos alunos das escolas públicas de Nova York uma noção fiel do que representa ser brasileiro, sul-africano, libanês, japonês, paquistanês etc. E ser capaz de demonstrar sem uma visão errônea ou 28
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estereotipada toda a riqueza de culturas até então tidas como exóticas ou distantes. O programa rendia frutos inimagináveis! Tanto palestrantes como ouvintes, neste caso alunos do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas, interagiam e quebravam barreiras, mitos e preconceitos. Colocávamos um alemão para falar sobre a herança do nazismo nos dias atuais daquela nação, ou um israelense para discorrer sobre o conflito com palestinos. Ou mesmo eu, um brasileiro, para assegurar a certa aluna de Ensino Médio que no Brasil não existem canibais, pergunta que ela havia feito da maneira mais franca possível. Quando não isso, afora os clichês relativos à Amazônia e ao Rio de Janeiro, a pergunta que mais me era dirigida tinha a ver com a beleza da mulher brasileira, um conceito que os alunos, fanáticos por hip-hop, haviam adquirido ao assistir vídeoclipes de rappers norte-americanos filmados no Rio de Janeiro. Era a beleza da mulher brasileira se alçando a níveis de globalização. Minha atuação nessa organização não governamental me levou às Nações Unidas, onde fui escolhido para proferir uma palestra sobre o cenário educacional brasileiro durante um jantar de gala em homenagem a Fundação Fulbright, em 2004, que culminou com o convite para integrar o seu Conselho de Diretores no período entre 2005 e 2006. Uma oportunidade preciosa para ser a voz dentro do Conselho que representasse os estudantes internacionais. Foi um mandato de um ano que me fez aprender muito sobre os mecanismos de iniciativas do terceiro setor. Todos os diretores, além de tomar decisões sobre o rumo da organização, tinham a responsabilidade de buscar expandir o campo de atuação da Metro International. Passei a visitar universidades e a apresentar tutorials sozinho, conduzir workshops preparando novos estudantes internacionais para fazer apresentações interativas e bem-sucedidas a alunos das escolas públicas de Nova York, e acompanhá-los em suas exposições. Como tutor, abria e encerrava as apresentações e decidia detalhes logísticos com a direção das escolas.
Mestrado abrindo portas para o doutorado Importante assinalar, reiteradas vezes, que a maioria de minhas conquistas profissionais está firmemente condicionada a meu esforço e minha dedicação às aulas, disciplinas e escolas que frequentei. Em minha trajetória escolar somente me contentava se estivesse entre os melhores alunos; e como meu 29
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