Leon Cakoff
Todo começo acho que é um pouco assim. A própria Mostra Internacional de Cinema nasceu assim. Estou muito feliz por vocês estarem aqui. Estou acostumado com isso, aprendi com o Manoel de Oliveira, inclusive paciência na construção. Essa ideia surgiu há poucos dias, antes de começar a. O conceito já existia. Há vários anos, o conceito mais forte das nossas chamadas dos spots de rádio para a Mostra é O filme da sua vida pode estar aqui . Também é algo que vem da quantidade de entrevistas que eu dou e das pessoas com as quais eu converso que perguntam mas qual é o filme da sua vida? . Ao longo dos anos fui refletindo sobre isso e concluindo que não pode existir um só filme da nossa vida. É ridículo você achar que um só filme pode representar todo o seu ser. Não, somos feitos de muitas informações, muitas reflexões, muitos conceitos. E o cinema faz parte disso. Faz parte da nossa vida. O livro que a Mostra lançou em 2007, em parceria com a editora Cosac & Naify, , A Rampa, do Serge Daney, crítico de cinema francês já falecido, também trabalha esse conceito. É como se cada filme fosse um tijolinho, que vai fazendo a casa do teu aprendizado, onde você se sente bem, confortável, onde consegue dialogar, emitir conceitos e se fortalecer, com certezas e força para tomar decisões. O cinema ajuda muito isso a construir o teu conhecimento. Estou aqui participando, não podia fugir disso, tinha que lançar essa ideia, porque vai ser legal, vai pegar, porque há nomes importantíssimos que conseguimos convidar para esta primeira edição. Acho que todo cineasta tem de ser cinéfilo, não pode ser um ente egoísta. Aprendi isso com a Mostra. Admiro muito os cineastas que vão ver filmes dos outros. Têm a humildade de ver os filmes alheios. O que mais me espanta nos festivais é o isolamento deles, embora não seja culpa dos diretores, é circunstância do próprio trabalho. O cineasta vai a um grande festival e fica por conta da divulgação do seu filme.
Ele fica cinco dias trabalhando e consegue ver um ou dois filmes dos outros, quando consegue, o que é muito triste. Essa é uma oportunidade de interação, de conhecimento e a Mostra, com o aprendizado que adquiri lá fora, propicia isto. Aqui todo mundo é igual. Talvez vocês que formam a plateia do festival não saibam disso, mas aqui todo mundo é igual. E isso encanta os diretores que participam da Mostra, o curta-metragista é igual, pode ser o Wim Wenders, pode ser quem for, todos são iguais, se misturam nos mesmos ambientes. A minha carreira de jornalista, comecei bem cedo, aos 19 anos, como crítico de cinema em jornais que não existem mais o Diário de São Paulo e o Diário da Noite, da cadeia Diários Associados, do Assis Chateaubriand. Entrei num mundo que eu não conhecia direito. Era muito curioso, adorava cinema, mas não tinha as oportunidades que as pessoas têm hoje, que é o resgate da memória do cinema. Naquele tempo não tínhamos esse direito, nem como sonhar com isso, não existia vídeo nem DVD. Ou você via no cinema ou já tinha visto no cinema. Ou você estava condenado a não ver mais. Essa era a realidade, ninguém sonhava que um dia isso iria mudar. Eu viro um crítico de cinema com 19 anos de idade e não tenho essa bagagem. Eu tenho só a paixão. O que eu podia fazer? Eu podia ler, pesquisar arquivos. Eu tinha o privilégio de estar num dos melhores arquivos de jornal do Brasil, porque concentrava os arquivos da revista O Cruzeiro, de todos os jornais da Rede Associados e tinha uma cinéfila, que era a Dulce Damasceno de Brito, que era correspondente do jornal em Hollywood. Ela mandava bagagens e bagagens de fotos e artigos e eu tinha acesso a todo esse acervo. Pesquisei muito material fotográfico e livros. Eu devorava os livros, as fotos e enciclopédias que existiam na biblioteca e nos arquivos do jornal. Aprendi que temos que nos adaptar à realidade, nos alimentar dos recursos existentes, não adianta culpar os outros pelas coisas que você não consegue ter, mas correr atrás e nos alimentar do que estiver
à disposição. Meu progresso de cinéfilo foi conseguido porque me adaptava aos pequenos privilégios que apareciam. Aprendi também a respeitar muito o papel da minha profissão e os livros. Por isso prezamos muito as parcerias que temos com a Imprensa Oficial e a Cosac Naify de lançar livros de cinema. Começamos há nove anos, quando o mercado editorial era muito pobre na oferta desse segmento. A introdução faz parte do processo de revelar o que me move nesse universo do cinema que é um constante aprendizado. Se eu ainda tenho energia é porque a cada filme que vejo ele me acrescenta alguma coisa, eu sinto que posso continuar sendo útil. E eu quero propagar essas ideias. Acho que a essência da democracia é isso. É um exercício para nunca ser egoísta. Também faz parte da minha vida de repórter, de jornalista de um tempo em que havia ditadura militar e tudo o que você podia escrever era como um ato de resistência. Poder passar nas entrelinhas alguma mensagem já era uma vitória, com toda a censura que existia nas redações. Até o meu nome é decorrência disso, já que o verdadeiro é Leon Chadarevian, filho de imigrantes armênios. Tive que mudar de nome, eu escrevia e assinava os artigos com meu nome verdadeiro, mas devido a um artigo que passou pela censura prévia da redação, saiu que existia censura no Brasil e eu tive que mudar de nome. Eu nem havia escrito isso diretamente. Disse que o filme havia sido mutilado, mas era tão paranóico, que até filme de terror não podia ser assim denominado. Tinha que ser classificado, tínhamos de escrever como sendo filme de horror .
Depoimento de Rubens Ewald Filho Vou fazer uma viagem pela memória, para tentar entender a importância que o cinema teve em minha vida. Eu nasci em Santos, o que é um dado muito importante, porque é uma cidade pequena, mas próxima de São Paulo, o que permitia ter um acesso ocasional. Há uma coisa
estranha na minha vida: há uma parte da minha infância bloqueada. Até os cinco anos de idade, eu não me lembro de nada. Dos 5 aos 9 anos, quando nasceu meu irmão, eu começo a ter flashes. Não lembro praticamente nada da história familiar, mas lembro dos filmes que eu assisti. Parece que esses anos foram perdidos. Eu sei que foram anos doloridos, difíceis. Vou explicar um pouco da estrutura familiar para esclarecer. Era de uma família de classe média alta. Santos era uma cidade bonita, agradável. Ter nascido para o mar foi uma coisa que me ajudou muito. O meu nascimento foi difícil, porque minha mãe passou 48 horas em trabalho de parto e eu fui dado como morto. É até uma história mitológica da família, que meu pai foi a um espírita que disse que haveria problemas e fez uma reza. Eu até tenho marcas na testa e nas costas, que são do fórceps, instrumento da época utilizado para ajudar no nascimento da criança. Eu tive uma avó matriarca, que controlava a família inteira não só com mão de ferro, mas também com intrigas. Era uma educação extremamente repressiva. Não me era permitido brincar na rua, ter amigos. Até então era filho único, era tímido e desastrado. Não sabia me comportar em público, a criança criada assim se acha diferente das demais. Eu sempre brinco dizendo que a minha vida é uma mistura de A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, Woody Allen,1985) com História sem Fim (Die Unendliche Geschichte, Wolfgang Petersen, 1984) A Rosa Púrpura do Cairo porque nele a Mia Farrow ia ao cinema e vivia todas as histórias dos filmes que assistia, e isso acontecia muito comigo. O cinema para mim era minha droga, minha válvula de escape, minha maneira de fugir do cotidiano que era infeliz. Tudo o que via na tela era o que eu queria viver e ser e conseguia me projetando nos personagens. Eu era o Fred Astaire, eu era o pirata... Era uma época bacana, porque os filmes voltavam a ser exibidos, havia reprise. Ingrid Bergman, eu acompanhei a carreira inteira dela, porque
ela era muito popular no Brasil. A minha família ia muito ao cinema. O primeiro filme que eu vi foi Tarzan e as Sereias (Tarzan and the Mermaids, 1948) com Johnny Weissmuller, na matinê Baby do Cine Atlântico, em Santos. Eu tenho um sonho recorrente com esse cinema. Para mim e para minha geração, o cinema era uma missa. Tinha um cerimonial, até teatral. Você ouvia um gongo, uma marcação quase de teatro, chamando o público. A luz ia diminuindo, entrava um tema musical e a tela abria devagarzinho. Passava um curta-metragem, já não eram sessões duplas e nem passavam seriados. A repressão sobre mim era tão grande e me pegou tão forte que, até os 20 e poucos anos de idade, os meus sonhos eram censurados. Eu não conseguia ter sonhos eróticos. Se eles ocorressem era como no cinema, no momento erótico a câmera desviava e ia para a lareira ou o mar quebrando na praia. Eu tive que fazer um trabalho mental para liberar o meu inconsciente. Ao mesmo tempo também lutava para não virar uma pessoa moralista ou crente religiosa. Eu acho que aí nasceu o crítico de cinema. Porque eu não sou participante da vida, eu sou um observador. A imagem que costuma me ocorrer é a do menino na sacada, olhando para baixo, vendo os outros meninos jogarem futebol. E de tanto olhar, ele passa a dar palpites sobre o modo de jogar. Ele virou um técnico, de certa maneira. E isso aconteceu comigo. De tanto observar, eu passei a pesquisar e virei um crítico. O problema de ser crítico é que você é crítico na vida também. Não dá para entrar no cinema, ligar um botãozinho e ser sardônico, bem humorado, divertido e voltar para casa e ser outra pessoa. Você exercita a verve, mas precisa controlá-la na vida real. Embora eu seja uma pessoa acessível, acho que sou insuportável. Aquele menino tímido quer ser amado e a profissão de crítico de cinema certamente não é exatamente a profissão mais adequada para quem tem esse desejo. Essas situações se passam nos anos 1950 e eu ainda pego os grandes estúdios de Hollywood que, em meados dessa década, começam a se
extinguir. Tínhamos aqui no Brasil duas revistas importantes sobre cinema a Cinelândia e a Filmelândia. As duas eram licenciadas americanas. A primeira editada pela Globo. A outra, cujo título original era Screen Stories, foi a que mais me influenciou. Porque a cada mês publicava uma novelização , pequenos contos, dos filmes que iam estrear. Eu gostava de ler não só para saber sobre o filme, mas também porque elas me deixavam saber de coisas que a minha censura não permitia. O mais curioso é que essas revistas se baseavam em roteiros originais e na edição final o diretor mudava muita coisa. Nessa época, eu já tinha um caderninho no qual anotava todas as modificações feitas. Em O Passado não Perdoa (The Unforgiven, 1960) de John Houston, por exemplo, ele cortou um personagem inteiro. Até hoje eu uso o método de dar cotações aos filmes, que aprendi lendo a revista. Outro detalhe importante é que essas revistas não eram meras traduções. Elas se adaptavam ao Brasil. Feitas por gente que gostava de cinema, elas falavam de John Ford, Franz Capra, e outros grandes cineastas. Tinham colunas permanentes de cinema europeu e até cinema argentino tinha espaço. O que era muito bom e acho que aqui no Brasil nós sempre tivemos uma cultura cinematográfica cosmopolita. A gente sempre viu tudo. Vimos o cinema italiano até ele quase acabar. Cinema francês ainda é visto, mas Jean Paul Belmondo e Alain Delon viraram astros no Japão e na América Latina, particularmente no Brasil. Até filmes de cômicos regionais chegavam aqui, como os de Cantinflas, filmes mexicanos que eram extremamente populares. Passavam até no interior do Brasil. Outra coisa fantástica é que nós somos um dos poucos países do mundo que assistia ao cinema japonês, dada a forte presença da colônia. Até em Santos tinha dois cinemas que as segundas e terças exibiam filmes japoneses. Os caderninhos que eu escrevia foram uma forma de sistematizar o meu gosto por cinema. Eu devia ter uns 11 anos de idade quando comecei a anotar dados sobre os filmes nos cadernos. Também foram neles que eu comecei a exercitar a crítica.
Depoimento Bruno Barreto Sou cinéfilo, gosto muito de cinema, mas poderia ser mais crítico. Porque quando estou fazendo filme, como agora estou divulgando Última Parada, 174 (2008) não tenho tempo para ver mais nada. Eu fiz uma lista daqueles que ficaram no meu coração e que também estejam acessíveis para as pessoas que quiserem vê-los. O primeiro filme da minha lista é O Último Tango em Paris (Ultimo Tango a Parigi,1972), do Bernardo Bertolucci, o cineasta que mexeu muito comigo. Eu era apaixonado por ele, até dei uma entrevista dizendo que era uma declaração de amor a ele. O Último Tango mexeu muito comigo. Eu vi duas vezes. Eu estava em Paris em 1972 e vi a segunda vez por várias razões, por apresentar o sexo como compensação da perda, como resgate da vida. É um tema difícil, como fazer um filme sem ser descritivo, voyerístico, porque a nudez e o sexo filmados tendem a ficar vulgarizados. Ao mesmo tempo é um filme extremamente romântico. O mais incrível é a maneira como Bernardo filma. Sempre fico fascinado quando existe uma integração entre a estética, a forma, a sintaxe usada e a história que está sendo contada. Existe uma coreografia entre a forma e o conteúdo, resultando num grande filme. Revi recentemente e é um filme que envelheceu bem. Está na minha lista um filme que foi feito para a televisão que passou nos cinemas nos Estados Unidos. Mas vou falar desse em conjunto com outro do Bernardo, o 1900 (Novecento, 1976). Eu vi a versão original, com cinco horas e vinte minutos de duração. Vi em Paris, assim que saiu. Para mim é um épico intimista, porque o Bernardo conseguiu achar o sentimento épico no coração dos personagens. É um filme extremamente político, mas muito generoso. A partir de uma matriz dramática clássica fala da condição humana. Uma das cenas mais emocionantes é aquela em que o Burt Lancaster, já velho,
aparece no curral, sentindo saudade do cheiro do estrume das vacas. A câmera está mais solta em 1900, como se Bernardo estivesse voltando ao primeiro filme. De certa forma, os cineastas procuram resgatar sempre a liberdade do primeiro filme. A experiência é boa, mas engessa o cineasta. O filme tem momentos que eu nunca vou esquecer. A aparição da Dominique Sanda no filme me deixa arrepiado. Ela acabou de sair do banho, surge com o cabelo molhado sobre o rosto, fumando uma cigarrilha. Meio Gilda (Gilda, 1946), joga aquele cabelo ruivo para trás, andando pela casa. Outro momento é quando o menino caça rãs, colocando-as numa corda que tem em volta do chapéu que ele está usando. Existem momentos de pura poesia e encantamento e ao mesmo tempo uma história está sendo contada. O cineasta deixa transparecer o exibicionismo, mostrando-se por meio do movimento de câmera, mas também desaparece e deixa a história ser contada por si só. O Bernardo foi muito atacado pela esquerda italiana na época. Até O Último Tango também foi e o diretor era um simpatizante da esquerda. Eu não sou contra nem a favor da esquerda. Mas acho interessante, uma obra de arte realmente boa não tem essa vinculação política, ela fala ao coração do ser humano. A música do Ennio Morricone é muito bonita. Um grande colaborador do Bernardo, que era roteirista e montador, era o Franco Arcalli. Ele foi o grande padrinho do Bernardo. Essas parcerias são muito importantes na vida do artista. O outro filme que me lembra 1900, mas não tem a mesma grandeza, é uma série feita para a TV La Meglio Gioventù (O Melhor da Juventude, 2003). Um 1900 mais moderno, na Itália, que começa em 1967 e vai até 2003. Embora seja mais humilde, de um novo diretor do cinema italiano, Marco Tulio Giordana, a série é deslumbrante. São seis horas de duração, passou em cinemas nos Estados Unidos, tem uma bela dramaturgia. É um dos roteiros mais bonitos. Narra a história controvertida da Itália nesse período por meio da história de vida de dois irmãos. É uma espécie de filho de 1900.
Agora vem o meu lado romântico. Eu sou muito romântico e até fiz um filme que homenageava esse filme, que é A Mulher do Lado (La Femme d'à cote, 1981) do (François) Truffaut. Acho que ele foi o último grande cineasta romântico. Ele era O Homem que Amava as Mulheres (L Homme qui Aimait les Femmes,1977), que também é o título de outro filme dele. A Mulher do Lado é uma obra-prima, embora seja uma história pequena, de dois vizinhos, o marido de um casal e a mulher do outro casal tinham tido uma história de amor há algum tempo. O Truffaut consegue mostrar a gravidade do amor, da paixão e a falta de ar de quando você se apaixona e ao mesmo tempo mostra um distanciamento, uma coisa racional. Quando um cineasta conta uma história com contraponto, ele consegue a cumplicidade, o que para mim é tudo o que uma obra de arte precisa ter. Talvez tenha sido o último grande filme do Truffaut. Ele morreu cedo e eu chorei muito, porque todo ano eu esperava o filme do Truffaut.
Depoimento Hector Babenco
Estou aqui para falar dos filmes da minha vida. Mas vou falar um pouco de minha vida com os filmes. A minha vida no cinema e a minha vida com a descoberta do ver filmes. Antes preciso contar que cresci sem ver televisão, talvez vocês não tenham ideia do que seja não ter TV em casa. Quando a TV chegou à minha casa, eu já era adolescente e não queria mais ficar em casa com meus pais à noite. O fato de não ter tido acesso gratuito, obrigatório e cotidiano a esse eletrodoméstico que traz informação e entretenimento fazia com que o jovem buscasse outras formas de lazer, que podiam ser as histórias em quadrinhos ou os livros. Eu, como a maioria dos jovens da minha geração, lia muito. A resposta à curiosidade era dada pelos mais velhos, tive muitos amigos mais velhos. Então descubro o cinema. A minha primeira memória de um filme liga-se ao subúrbio de Buenos Aires onde morava. Um lugar onde
havia uma grande fábrica de cerveja alemã e por isso também era um reduto de pessoas imigradas do pós-guerra da Alemanha nazista. Nasci em 1946, logo no final da II Guerra, e me lembro de um cartaz diferente na porta do cinema, cheio de cores e formatos. Eu tinha sete anos de idade, porque aos oito saí daquela cidade. Essa informação está muito associada ao meu entendimento de onde nasce a idéia de eu fazer cinema. A primeira vez que vejo algo projetado num lugar escuro relacionase à imagem de uma mulher vestida com uma saia rodada, um cinto muito grande, um suéter muito justo que marcava os seus peitos à la Madonna, com formato de cone e ela corria desesperadamente, olhando para trás. Ela era perseguida por uns rapazes que estavam num automóvel conversível. Eu me lembro que olhei para os lados, havia uns rapazes maiores que eu, que estavam mexendo com a mão na braguilha, fazendo assim (gesticula) e eu lembro que também senti uma coceira estranha no meu pinto. Depois a imagem que me lembro é estar lavando a mão no banheiro do cinema e esses meninos mais velhos tirando maços de cigarro chamado Chesterfield ou Luke Strike, uma marca americana, e fumando. Me deram um para fumar e eu tossi muito. E naquela situação, graças a Deus, eu senti aversão total ao tabaco, porque não consegui fumar. E até hoje eu me pergunto se aquele ereção que tive e a mão que estava lavando era porque eu me manipulei ou se eu tive que manipular alguém e alguém gozou na minha mão. Então essa situação que me persegue sem uma resposta definitiva, e já estou com 62 anos, acho que nessa incógnita e naquela sensação erótica e na libido infantil que tive acordado naquele momento é que me fazem continuar a fazer cinema, para continuar essa relação erótica iniciada aos sete anos de idade. Por problemas políticos, trabalhistas e raciais, porque éramos judeus, tivemos que sair daquele bairro, onde a maioria dos habitantes tinha
uma forte tendência nazista. Ninguém que tenha crescido no Brasil tem a menor ideia do que isso pode representar. Nunca soube de algo parecido, aqui no Brasil, como o nazismo latente que existe em determinados segmentos da sociedade argentina. Lembro-me de num domingo ao voltar do clube para casa, com meu pai e meu irmão, encontrarmos tudo arrebentado e inscrições nos móveis mandandonos sair de lá. Não sei de nada parecido que tenha ocorrido no Brasil. Viemos de navio para o Brasil. Tenho imagens cinematográficas de nossa saída. Lembro do meu pai trocando dinheiro para a viagem. Lembro de estar num barco, mas nunca ver o mar, pois ficamos num porão sem acesso a qualquer espaço ao ar livre. A chegada me fez associar a Argentina a um filme preto e branco e o Brasil, colorido. Ao chegar a Santos encontramos minhas tias, duas irmãs de minha mãe, que tinham cabelos armados, um carro Bel Air rosa choque e creme, todo cromado, maravilhoso, que nunca tinha visto na minha vida. Meu pai tinha um Lincoln velho, 1942 ou 1945, caminhonete na qual meus pais iam à frente, eu e meu irmão atrás, onde tinha uma janelinha, na forma de uma tela panorâmica de cinema, através da qual víamos a realidade. Realidade que era ver meu pai tentando fazer o carro andar, rodando a manivela. Era cinema puro! Minhas tias nos esperando, vestidas com roupas coloridas, que jamais tinha visto. E subimos a serra de Santos maravilhosa, com todo aquele verde. Passamos algum tempo no Brasil e aqui nunca fui ao cinema. Quando voltamos à Argentina, após a queda de Perón, nos instalamos em Mar Del Plata e foi aí que começou a grande festa do cinema. Cidade balneária, lotada no verão e um deserto no inverno, a 400 quilômetros de Buenos Aires, o que impossibilitava o turismo de fim de semana. Tinha cinemas enormes para atender os turistas do verão. Porém no inverno eles fechavam. Aqueles que resistiam para atender a população local faziam festivais.