Surfista, Ex-drogado, Ex-traficante

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Primeira parte – Capítulo 1

Prisão e liberdade O terrível frio na barriga Acordo. Estou sentado na apertada poltrona da classe econômica. O avião já começou o procedimento de aterrissagem no aeroporto de Lisboa. Hoje é dia 25 de outubro de 2004. São 10h da manhã. O comandante comunica que o voo estava atrasado cerca de uma hora. Lá se vai a minha conexão direta com o voo para Amsterdã, com saída prevista para as 9h30m. Começo a ficar preocupado. Há um paraglaider turbinado na minha bagagem. Ela já não será transferida diretamente de um avião para outro, sem passar pela alfândega de Portugal. Da janela, dá pra ver o dia: cinzento, úmido, frio. Um dia típico do inverno europeu. Vou ter que pegar minha bagagem. As mudanças de plano aumentam minha preocupação. Pergunto à comissária de bordo o que teria que fazer, já que havia perdido a conexão direta para meu destino final. Ela dá uma resposta de secretária eletrônica: – Você deve retirar sua bagagem na esteira do terminal, ir ao guichê da companhia aérea para despachar a mala e aguardar por quatro horas pelo próximo voo para Amsterdã. Passo pela imigração sem maiores problemas. Mas sinto que tem algo errado. As coisas não estão fluindo normalmente. Percebo uma movimentação estranha de agentes alfandegários em torno da esteira rolante. De longe, avisto minha bagagem, rodando ao lado das muitas outras malas que haviam sido descarregadas. Sou assaltado por dúvidas e incertezas. Sinto um terrível frio na barriga. Estou com medo. Aparentemente, não há escapatória. Aproximome da esteira e fico ao lado de outros passageiros. Deixo minha bagagem passar três vezes. Olho à minha volta. Os agentes


alfandegários continuam por perto. É um daqueles momentos decisivos da vida. Largo tudo e me mando... ou arrisco... Respiro fundo. Finjo que não sei qual é minha bagagem. Inutilmente, tento demonstrar que estou lendo as pequenas etiquetas coladas às malas que passam. Que absurdo! Não sei onde arranjei coragem, mas o fato é que, heroicamente, me preparo para pegar a mala. Mal coloco as mãos em minha bagagem, surgem dois homens. Eles se identificam: dois agentes policiais. Educadamente, um deles pede que os siga. Lá vou eu com o coração batendo a milhão, as mãos suando, a cabeça pegando fogo. Ainda assim, tento disfarçar, demonstrar naturalidade, como se tudo estivesse normal. Vamos para uma pequena sala. Dou de cara com um senhor meio careca, com um uniforme de calças azuis e camisa social branca. Deve ter por volta de 60 anos. Uma grande mesa junto à parede me chama a atenção. Os dois agentes da polícia colocam minha bagagem em cima dela. O senhor careca veste suas luvas cirúrgicas. Levanta as duas mãos à altura do rosto, como fazem os cirurgiões na mesa de operação, e me pergunta: – Posso revistar sua bagagem? Parece bastante seguro e experiente. Começo a sentir um turbilhão de emoções. Mas continuo mantendo a calma. Pelo menos é o que eu imagino. Autorizo a revista. Ele abre a mala. – Que equipamento é este? – É um paraglaider, um equipamento composto de uma vela e uma cadeira com cerca de 1 metro de altura. Tento descontrair. Digo que sou praticante daquela modalidade de esporte, muito comum nas praias brasileiras. Mas o velhinho continuava sério, impassível no seu trabalho, e não dava a mínima às minhas palavras. Ele abre a vela, esticando-a no chão. Até aí, tudo normal.


Logo ele me pergunta se poderia abrir a cadeira do paraglaider. Digo que se trata de um equipamento muito caro, que não me responsabilizaria pelas consequências de qualquer tipo de dano irreparável que ocorresse. susfistaO velhinho abre um sorriso sarcástico. – Não se preocupe, a alfândega portuguesa se responsabiliza por qualquer dano que venha a ser provocado no seu pre-ci-o-so equipamento. Quando dou por mim, ele já está com uma faca cortando a base da cadeira e arranca uma fina e transparente camada de poliuretano. O agente alfandegário, com aquele pedaço de plástico na mão, me pergunta: – O que é isto? Respondo que era apenas um plástico, que ele estava destruindo meu equipamento, que ele estava passando dos limites. Mais uma vez, eu tentava me convencer de que ainda não estava totalmente perdido. Logo abaixo dessa camada, havia uma câmara de pneu de caminhão. A câmara isola um pouco do cheiro da droga, para despistar os cães farejadores da polícia. Mais uma pergunta a respeito daquela camada de borracha. Continuo tentando disfarçar, manter uma calma que, eu sentia, estava chegando ao fim. – Essa borracha serve para amortecer o impacto nas aterrissagens. Recebo como resposta outro sorriso sarcástico, dessa vez, acompanhado de um menear de cabeça para os lados, como se ele estivesse pensando: que bobagem menino... Devo ter arregalado os olhos quando vi na sua mão uma pequena faca. Com ela, o velhinho corta a camada de borracha e me pergunta, com calma, porém incisivo: – E agora, menino, o que é isto? Meus olhos devem ter ficado maiores do que meu rosto. Mesmo assim, num imenso esforço, reúno toda a calma que ainda era possível naquele momento e respondo, pausadamente: – Isso é cocaína.


No mesmo instante, um dos agentes que me trouxeram surge à minha frente com um par de algemas. Sou algemado e o “simpático” velhinho me conduz para outra salinha. Aquele clique da algema iria reaparecer muitas vezes na minha cabeça. Na hora, não percebi. Agora, lembrando, como já lembrei tantas vezes, aquele clique, fechando uma insólita e constrangedora situação, dividiu minha vida. Na salinha, a primeira coisa que vejo é uma maldita placa: TRÁFICO INTERNACIONAL EM PORTUGAL É PASSÍVEL DE PENA DE ATÉ 25 ANOS DE PRISÃO Antes que o velhinho saísse, ainda tive tempo e coragem para perguntar: – Quanto tempo de cadeia me espera? – Brazuca... traficante... flagrante... Você pega, no mínimo, 20 anos. Baixou em mim a maior solidão do mundo.


Primeira parte – Capítulo 5

Antes e depois do clique da algema Pânico! É estranho como o pânico toma conta da gente. Podia quebrar a cela, me enforcar com o lençol, esmurrar Komodo, andar desesperadamente nesses 4 x 4 metros. Nada. Imóvel. Estado de choque. O autoengano entorpece a mente e somente agora estou começando a perceber seus efeitos destrutivos. Três longos dias e tudo que eu faço é dormir. Ainda estou atordoado, e tudo que eu mais desejo é acordar longe daqui. Mas quando abro os olhos, continuo na mesma cela fria e pequena do Estabelecimento Prisional de Lisboa. Olho para o lado e sempre dou de cara com o dragão de Komodo. Nunca o vi mais gordo e agora tenho que viver com ele todos os dias. O que eu fiz com minha vida? Tinha tudo para ser feliz, estar longe daqui. Minha cabeça não parava de tagarelar. Ouvia cada pensamento como uma martelada: imbecil, otário, vagabundo, incapaz, incompetente. Nenhuma perspectiva de alívio. Culpa. Desespero. Solidão. Agora, eles me pegaram. Na minha cabeça, volta aquele barulho do clique das algemas, agora ensurdecedor. Ele se mistura com todos os novos ruídos da cadeia, mesclados com uma avalanche de angústia, acompanhada de uma amarga e pesada culpa. Chega de fugir da realidade. A casa caiu; literalmente, caiu. Ou, melhor, desabou, implodiu. Já está na hora de encarar os escombros, senão, você não vai sair dessa. Minha casa estava alicerçada sob terreno pantanoso, baseado no autoengano. Eu me enganava. E gostava. A tempestade, o terremoto e o consequente desabamento eram uma questão de tempo.


Mas debaixo da lama, quem sabe, talvez eu encontre um alicerce rochoso sobre o qual terei chance de edificar uma nova casa. Consigo tocar nas paredes da cela. Sem qualquer dúvida, ela é absolutamente verdadeira. Decido encarar a real. Pela primeira vez me sinto um pouco melhor. É inútil anestesiar, voltar e mudar anos perdidos no autoengano, na ilusão das drogas, nas falsas amizades, na fuga da realidade, na ausência de vida, na sombra da morte. Realmente, as leis da ação e reação regem nosso universo, e minhas atitudes me trouxeram até aqui. Se você quer dançar, é preciso pagar a banda. E o lugarcomum do leite derramado fica evidente. Realmente, não adianta chorar. A parada agora é daqui para a frente. O passado, apesar de estar à minha frente e sobre minha cabeça, pesando, pesando, na verdade, passou. De repente, tudo fica presente. E nesse presente eu, sozinho, preso e falido. Mas vivo. Aquela estranha consciência de estar vivo mexeu comigo. Hoje percebo que essa consciência me ajudou. Pelo menos estou vivo. E, aparentemente, ninguém me ameaça. Só o dragão de Komodo. Ameaça que na verdade não se concretizou. A ameaça era meu medo. E pensar que tudo começou num inocente “baseadinho”, “em uns golinhos a mais”, “em uns tequinhos”, “um acidinho” ou numa inocente “balinha”, que de inocente não tinha nada. Realmente, o começo é assim, no diminutivo, na “manha” na “manhinha”. Tudo muito diminutivo. Menos a mentira. Eu vivia uma imensa mentira. A mais comum era aquela do “eu saio dessa quando quiser”. Era a ilusão do controle, da falsidade da pretensa força de vontade. De repente, impera a mais deslavada mentira. E cada um pensa que aquela droga é a verdade da vida. É, simplesmente, a verdade da morte.


Segunda parte – Capítulo 2

Surf, lança-perfume, cola, cerveja Nunca vou me esquecer do dia em que ganhei minha primeira prancha. Quando se tem 6 anos, um fato como esse marca para sempre. Já surfava com uma prancha de isopor, que ficava num quartinho, nos fundos da casa da minha avó no Guarujá. Mal chegava de São Paulo, ia direto ao quartinho. Um dia fiquei surpreso quando entrei no quartinho e vi que a “velha companheira” de isopor não estava mais lá. Corri logo em direção a minha avó e perguntei: – Cadê minha prancha? Minha avó estava ao lado de meu avô. Ambos sorriram e ele me disse: – Ô moleque, vai no seu quarto e arruma sua mala. Não entendi, porque nunca precisei arrumar a mala. Sem pensar, fui assim mesmo para meu quarto. Quando abri a porta, fiquei imóvel, boquiaberto: me deparei com meu ideal de consumo naquela época – deitadinha na minha cama estava uma prancha de fibra, feita especialmente para mim. Meus olhos deviam estar brilhando muito mais do que o brilho da resina da prancha. Meu coração disparou. Ando em direção à cama e simplesmente toco naquele “passaporte para a alegria”. Uma movimentação na porta interrompe meu delírio. Vejo meu avô e minha avó. Pulo nos braços deles e agradeço. Muitos beijos e abraços. A noite foi longa. Não via a hora de o dia clarear para poder desfrutar do meu presente. Sempre fui muito ansioso. Continuo. Era uma incontrolável ansiedade aquela espera. O tempo não passava. Tudo o que eu queria era estar na praia e surfar. No dia seguinte, o tempo passou correndo. Sábado e domingo acabaram num segundo. Aquele primeiro dia com uma prancha de fibra feita especialmente para meu tamanho foi incrível. Ao


contrário da minha velha companheira de isopor que era lenta, esse novo acessório era um verdadeiro foguete, deslizava na superfície da água em alta velocidade e fazia minha alma vibrar. As ondas estavam pequenas com meio a 1 metro, mas para um garoto franzino de 6 anos de idade, com pouco mais de 1 metro de altura, essas condições eram simplesmente ideais. Quando dei por mim já estava no carro de meu pai voltando para São Paulo após mais um fim de semana na praia. Eu morava em São Paulo. A família da minha mãe era toda do Guarujá. Descíamos todas as sextas. Mas nas férias escolares era direto; todos os dias. Esta noite de cadeia parece que vai ser longa. Tudo muito misturado. Prisão e mar. Barulho de chaves e ondas. Guarujá, Havaí, aeroporto de Lisboa. Meus amigos e Komodo. Tudo vem à minha cabeça. O começo da minha vida, minhas primeiras experiências no mundo do surf. O surf é um esporte de rara e intensa interação com a natureza. A mistura de endorfina, adrenalina, água salgada e sol deixa qualquer ser humano totalmente pirado. A imensidão do mar. Um sentimento de infinito. As ondas e aquele barulhão. O jogo de cores refletidas na superfície das águas. Tudo contagia corpo e alma, criando um estado de paz, alegria e euforia altamente viciantes. Começo a lembrar dos poucos, mas verdadeiros, amigos e muitos conhecidos das minhas três décadas de vida. Muitos deles são alguns dos melhores surfistas do Brasil: Sylvio Mancusi, Haroldo Ambrosio, Rogerio Shefer, Cinira Arruda, Fernandinho Azeitona, Fantinha, Zecão, Alfredo Bahia, Eduardo Bahia, Claudiones, Alemão de Maresias, Mazulo, Eric Arakawa, Taiú, Carlos Burle, Eraldo Gueiros, Biju, Bruno Lemos, Cezinha do Havaí, Buzzy, André da Montanha, Rogério Alemão, Paulo Moura, Tim, Levy Paiva, Pirata, Daniel Skaf, Fernando Gimenez, Tatu, Romeu Andreata. Como tem gente! Eles eram tantos. Cara, você está absolutamente sozinho. E com um dragão de Komodo. O dragão de Komodo, o verdadeiro, de Sumatra,


morde a vítima, espera ela morrer e depois a come, inteira. Cara, você não tem nada, ninguém. Você perdeu sua família, seus amigos. Meus amigos eram pessoas iluminadas, dotadas de muito talento para se equilibrar e controlar seus corpos. Eram seres humanos especiais, “artistas” praticantes de um esporte que explode natureza. Muitos hoje são pais de família ou empresários que influenciaram toda uma geração de surfistas brasileiros e ajudaram a transformar o surf num esporte mais digno e reconhecido socialmente. Muitos desses verdadeiros ídolos do esporte eram presenças constantes na praia das Pitangueiras, no Guarujá. As mesmas caras emocionavam nas páginas da saudosa revista Visual, surfando ondas alucinantes no Havaí, México e Bali. Todos estavam ali, a poucos metros de mim. Eu, uma criança de prancha nova, com o sonho de um dia me tornar um surfista como eles. Eu surfava na praia das Pintagueiras ras, entre o morro do Maluf e a ilha. Lembro de ser sempre o primeiro a entrar na água, junto com meu grande amigo Daniel. Eu e o Daniel éramos da mesma idade e compartilhávamos uma situação de vida muito semelhante: ambos morávamos em São Paulo e íamos todos os finais de semana ao Guarujá para surfar. Considero o Daniel como meu irmão. Afinal de contas, o amigo é o irmão que a gente escolhe. E a gente guarda do lado esquerdo do peito, como diz a música. A praia das Pitangueiras no Guarujá tem uma pequena ilha muito próxima da praia. Ela cria um banco de areia especial, e em ambos os lados da ilha, dependendo da direção da ondulação, o local produz ondas maravilhosas. Havia dias em que as ondas direitas da ilha ficavam épicas, ondas longas, com direito a canal. Foi lá que peguei meu primeiro tubo. Foi lá que o surf começou a fazer parte indissociável da minha vida. Entrar e sair do tubo é um momento de puro êxtase. É indescritível a emoção de estar totalmente envolto em uma massa de água em


movimento. É incrível o barulho do lip se chocando com a base da onda. É como o estrondo de uma cachoeira. E o visual de dentro do tubo é o de uma janela redonda se movimentando. Que nada, é muito mais. É como uma saída, daquelas que todos nós buscamos. Um “portal” quase místico para entrar em outra vida, onde tempo e espaço se fundem, adquirindo outra dimensão. Ali, dentro de uma onda gigante, em movimento, encontro uma liberdade que não quero perder. Aqui entre as paredes desta pequena cela o tempo também parece adquirir outra dimensão. Que merda de vida: passar 20 horas por dia trancado em um espaço com menos de 8 metros quadrados. O relógio parece andar em câmera lenta. Lentíssima. Eu e o tempo nos arrastamos em direção a nada. A comida é algo indescritível: em quantidades mínimas e sem sabor. As consequências desse isolamento atormentam a mente. A grande carga horária trancado nesta cela produz efeitos claustrofóbicos, uma sensação horrível, principalmente para uma pessoa como eu, que sempre foi acostumada com a liberdade e a natureza. Desde criança, gostava quando o mar estava de ressaca e a maré quase chegava ao calçadão da praia. Sempre fui viciado em adrenalina. Adorava a sensação do coração batendo a milhão quando uma série de grandes ondas despontava no out side. Não demorou muito para conseguir meu primeiro patrocínio. Aos 14 anos, já fazia parte da equipe da Mandingo do Nê, juntamente com Sylvio Mancusi, que hoje é um dos melhores big riders do mundo. Ganhávamos apenas roupas, mas, para um adolescente, aquilo era o máximo. O lance das drogas já rolava. Na verdade, tudo começou muito cedo para mim, com lança-perfume, cola e muita cerveja.


Segunda parte – Capítulo 6

Cartão amarelo: maconha, LSD, alucinações Começa a ficar claro o quanto que o uso constante de maconha deixou-me com a cabeça fraca. Aos 17 anos, já estava completando o terceiro colegial. Eu gostava de educação física, mas o prêmio que meu pai prometera só sairia se eu escolhesse engenharia ou medicina. Às vezes, os sonhos dos pais influenciam os filhos: o prêmio era um carro. Coloquei o espírito de lado, deixei-me levar pela matéria e o consumo diário dos “cigarrinhos verdes” me transformou num cara ambíguo, falso, mentiroso. Apesar de estudar pouco, consegui entrar na Universidade Mackenzie, uma das melhores de São Paulo, em Engenharia Civil, em 12o lugar. Ganhei o carro, uma Parati zero quilômetros. O curso foi para o espaço, não consegui me formar, acabei por perder o carro. Hoje, sou marido e pai, e estou atento, cuidando da educação de minha filha, para orientá-la para que não cometa os mesmos erros que eu cometi. O primeiro ano de faculdade foi loucura total: tinha um carro, tinha um patrocínio e ganhava uma mesada razoável. Naquela época, não havia sites especializados em surf e o negócio era o disc-surf, um telefone que informava as condições do mar no litoral paulista. Ondulação de sul e vento leste é a combinação certa para Maresias, uma das melhores cidades praianas de São Paulo. Tubos perfeitos de 6 a 8 pés, 2 metros e meio de altura, em um lugar mágico, ideal para quem gosta de ondas com power havaiano. Sempre que as condições acertavam, a gente entrava no carro, enrolava um cigarro verde e seguia para lá. A inexistência de canal deixa os braços fortes quando, em alguns dias, é normal ficar 20 ou 30 minutos remando só para atravessar


a rebentação. Naquela época, Maresias era bem diferente: mais verde, menos gente, nada a ver com a “muvuca” que tomou conta do lugar. Ao lado de Maresias fica a praia Brava, uma pequena porção de areia isolada, escondida atrás do morro de Boiçucanga, aonde se chega depois de 40 minutos de caminhada por uma trilha íngreme, em meio a belezas da Mata Atlântica. A praia Brava é demais: ondas de peso, tubos em águas cristalinas e ainda uma pequena cachoeira de água doce, em meio a uma espremida trilha cercada de plantas exóticas. Esse é outro lugar de onde guardo boas recordações de tubos e momentos alucinantes. Entre as fotos que colei na minha parede da cela estão algumas nas quais estou surfando em Maresias e na Brava. Depressão, sufoco. Entre lá fora e eu, essa maldita janela. Não dá pra ver direito. Minha visão é obstruída pelas grossas grades de segurança. Não consigo sequer ver o céu que, em pleno inverno europeu, dificilmente não está coberto por uma densa e cinza camada de nuvens. Volto ao emaranhado de pensamentos e minha mente vai longe. Foi nessa fase de Maresias e Brava, lá por 1990, que comecei a fazer uso frequente de LSD. Gostava de tomar um ácido para cair no mar e passava horas surfando e derretendo o cérebro com alucinações de todos os tipos. Não demorou muito para ter minha primeira bad trip. Era de manhã, na praia da Baleia. O mar estava flat, sem ondas, o tempo encoberto, chuvoso, e não havia muitas opções: era tomar um ácido e ficar alucinando. Em vez de um, acabei tomando alguns. Os olhos, às vezes, são maiores que a barriga, ou, nesse caso, maior do que o cérebro. Completei a viagem com algumas fumaças. Aí, a coisa ficou fora de controle. Tudo o que eu mais queria era ficar careta de novo. Mas essa alternativa já não existia. Tinha certeza de que ia morrer. Fiquei estirado na areia olhando


os urubus armando um grande circo no céu ao meu redor. Vomitei o que tinha e o que não tinha no estômago; virei pelo avesso; na boca, gosto de fel; passei mal durante horas. Como em situações desse tipo, fiz promessas do tipo “Se eu sair desta, nunca mais”. Ledo engano. Após algumas semanas, lá estava eu novamente abusando de mais um “acessório” para fugir da realidade. Lembro-me de um dia ter tomado uma “bicicleta” (nome dado ao LSD) e ficar por seis horas surfando direto em Maresias, com 6 a 8 pés perfeitos. Após um tubo fechado, levei uma pranchada na cabeça e por milagre de Deus acordei na areia vivo, mas com amnésia. Levei uma hora para lembrar quem eu era e onde estava meu carro. Começava a sentir na pele as consequências do abuso de drogas. Mesmo assim, não conseguia parar. Consegui mais um mau elemento para andar comigo dia e noite: o LSD. Numa de minhas idas ao litoral norte paulista acabei tendo um acidente que deu em perda total do meu carro: maconha, LSD e direção, definitivamente, não combinam. Na pressa de chegar logo à praia, atravessei um farol vermelho da avenida Doutor Arnaldo, a três quarteirões da avenida Paulista. Bati com tudo num carro que atravessava o farol verde. Tenho que admitir que meu anjo da guarda é realmente poderoso, porque saí desse acidente sem um arranhão. Novamente recebia um alerta, um “cartão amarelo” do que o abuso de drogas pode fazer a uma pessoa. Infelizmente, ainda não enxergava. E continuei não enxergando. Não via um palmo adiante do nariz que não fosse droga e surf. Depois de dois meses, recebi um carro novo da seguradora e continuei com a mesma postura insana e inconsequente de antes, a mesma postura que, com o passar dos anos culminou neste momento de total isolamento e privação. Não consigo ver nada que não seja angústia, projetada nas paredes desta infecta cela. Nenhum futuro. Boca seca. Acho que vou vomitar. Gosto de bílis na boca. É infernal.


Terceira parte – Capítulo 7

Os primeiros passos no tráfico paulista Acordo do nada. Ainda está muito escuro. Olho no relógio: 2h. Faço um grande esforço para tentar dormir. Não consigo. Desisto. Fico olhando para o teto da cela enquanto minha mente automaticamente volta ao dia em que, após um ano e meio no Havaí, finalmente voltava para a cidade de São Paulo, com a promessa de continuar a faculdade de engenharia. Pau que nasce torto, não tem jeito... Será verdade? Infelizmente, mais uma vez, mergulhei no autoengano. Passava a maior parte do tempo no bar, ao lado da faculdade, convivendo com pessoas tão perdidas quanto eu. Ou mais. Porque algumas delas se perderam completamente. E quase levaram a família junto. Algumas foram para sanatórios, clínicas. Outras morreram. Eu levava uma “vidinha sem vergonha”: de dia, muita natação, musculação e jiu-jítsu; à noite, “faculdade”. Transferi minha mania de varar a noite cheirando antes de cair em waymea, para competir em campeonatos de jiu-jítsu. Fui campeão paulista de uma etapa em Itu, mas quase tive uma parada cardíaca nesse episódio. Dei sorte de ter saído numa foto de página dupla da revista Surfer, surfando waymea. Acabei arrumando um patrocínio. Estava com meu ego inflado, totalmente iludido, cada vez mais egocêntrico, perdido no meu mundinho. E ainda achava que aquilo era tudo na vida. Na mesma academia de jiu-jítsu treinava o patrão do skunk de São Paulo. Skunk, quer dizer gambá, é o apelido de uma supermaconha holandesa. Seu teor de THC (tetrahidocanabinol, o componente químico que dá o “barato” da maconha) chega a mais de 50%, uma verdadeira “porrada” nos neurônios. A maconha


tradicional plantada e comercializada no Brasil possui um teor de THC de pouco mais de 15%. O patrão gostava muito de mim e logo me perguntou se eu não queria vender o bagulho e fazer uma grana extra. Aceitei na hora. Pegava o bagulho na consignação a 6 dólares o grama e vendia para a “playbozada” por 12. O negócio era bom. Vendia cerca de 200 gramas por mês, mas vivia sempre na maior tensão. Escondia o fumo em casa. Meu quarto realmente fedia a bagulho. Um dia, minha mãe achou um saco de skunk com cerca de 30 gramas. Foi o maior drama: – Filho, o que é isso? Você nunca vai tomar jeito? Que absurdo! Trazer isso para dentro de casa. Você vai agora mesmo jogar isso na privada! Ainda tentei argumentar: – Mãe, aí tem muita grana. Não posso jogar fora, senão o prejuízo é meu. Sem chance. Não teve jeito. Ainda consegui esconder um bud entre os dedos, um “Belô”, ou, para os leigos, a parte fumável do pé de maconha, enquanto via o fumo indo descarga abaixo. Fiquei desesperado. Achava que o patrão ia me matar. Que nada. Dívida perdoada, crédito dobrado. Arrumei um “mocó” mais seguro dentro de casa. Assim, continuava ganhando um dinheirinho extra para extrapolar e bancar minhas loucuras. Não dava ouvidos a ninguém. Chegava várias vezes em casa, de madrugada, totalmente drogado. Dava de cara com meu pai, desesperado, me esperando, de roupão, sentado no sofá. Ele tentava falar comigo. Tinha medo que um dia eu não voltasse. Eu ia direto para o quarto e me trancava. Mesmo aquilo era incapaz de tocar meu coração. Eu já estava totalmente possuído e prostituído pelo espírito imundo das drogas. Meu comportamento insano e inconsequente acabou provocando dois enfartes em meu pai que quase o levaram à morte. Ainda assim, eu não mudava. Hoje, olhando o teto desta pequena cela,


lembro de casa, do carinho, da preocupação de meu pai. Peço perdão a ele e a Deus. Como eu gostaria de voltar no tempo, com minha cabeça atual, só para ser mais sensato. E desfazer o sofrimento de meus pais... Mas a realidade não é assim. Esta vida é um constante processo de aprendizagem onde quem não reflete, não pensa e está cheio de si, sem ver a realidade, sem ouvir os bons conselhos, certamente enfrentará uma situação de total abandono e sofrimento. Por mais dinheiro que se tenha, por mais droga que se possua, não se compram companhia solidária e sincera, nem amizade. Acabando a droga e o dinheiro, volta a solidão. Desaparecem os amigos da droga.


Quarta parte – Capítulo 11

As drogas não me deixavam ver a felicidade Saio pelo portão de desembarque e avisto meu pai, minha mãe, minha avó e... Carol e Luana. Não consigo falar. Meu coração parece que vai explodir. Dou um longo abraço, muito apertado, e um beijo carinhoso em meu pai, mãe e avó. Falo baixinho no ouvido dele: – Perdão pai. Você me perdoa? Nossa, como a Luana cresceu nesses dois longos anos! Ela pula em meus braços e me abraça, me beija. – Amo muito você, minha querida filha. Nunca mais ficaremos longe um do outro. Finalmente, estou frente a frente, olho no olho da mulher de minha vida. Ela está linda. Estende a mão e me dá de presente um escapulário de prata. Em seguida, um beijo, tão intenso e tão maravilhoso como o primeiro beijo que trocamos há quase dez anos. Sinto-me flutuar. Mais uma vez, essa mulher de “m” maiúsculo está aqui, ao meu lado, estendendo os braços, provando que o amor verdadeiro é maior e mais importante do que qualquer outra coisa neste mundo. Nunca me senti tão feliz e realizado. Fomos todos jantar em uma churrascaria. Nossa mesa era a mais feliz daquele restaurante. Estava tão emocionado que mal conseguia comer direito. Apenas sorria, contemplando tudo e todos, vivendo aquele momento tão belo e especial, o que, na correria do dia a dia, acabamos por não dar o devido valor. De repente, minha mente vai longe. Retiro dela o burburinho da churrascaria. Apenas observo os sorrisos de minha família à minha volta. Agora, por alguns segundos, tudo o que ouço são


meus pensamentos. Percebo agora que, quando estava livre apenas fisicamente, estava na realidade acorrentado por um vício e era incapaz de ver e apreciar toda a beleza de momentos simples como este. Precisei estar fisicamente preso para finalmente me libertar das minhas amarras interiores. Olho para o lado e vejo Carol me observando. Como se estivesse lendo meus pensamentos, apenas diz: – Tudo já passou. Eu te amo e nós seremos muito felizes. As lágrimas escorreram naquele momento e escorrem agora, enquanto escrevo. Sinto o quanto sou abençoado pela família que Deus me deu. Passo uma noite maravilhosa de amor com minha esposa. Como é bom ter tido a sorte de encontrar um verdadeiro amor e saber que tenho uma companheira eterna, na alegria e na tristeza. Minha reinserção social foi a melhor possível. No dia seguinte, já estava trabalhando na empresa da minha mulher. Durante todo o tempo em que estive preso, além de ter dado o que há de melhor em termos de educação a nossa filha, se formou em jornalismo e ainda transformou um pequeno negócio familiar de segurança em uma grande empresa que hoje presta serviços até no exterior. Sou recebido de braços abertos por meu sogro e por minha sogra. Eles também me dão mais uma chance. Poucas pessoas são realmente capazes de perdoar e acreditar em alguém que trouxe tanta infelicidade. É muito bom estar cercado de pessoas assim, seres humanos especiais, amorosos, caridosos e, acima de tudo, misericordiosos. Eu, Carol e Luana voltamos a morar juntos, na casa de meus pais. Consegui estar presente no aniversário de minha filha. O primeiro ano de liberdade passou voando. Estar limpo de drogas é libertador. Viver em família é maravilhoso. Encontrar e manter um relacionamento com Deus, praticando os


Seus princípios e ensinamentos no dia a dia é fundamental. Renasci das cinzas. A vida, em qualquer lugar, nem sempre é um mar de rosas. Mas as dificuldades estão aí para serem superadas, para que possamos aprender e crescer constantemente. Manter uma rotina alicerçada em espiritualidade, família, esportes e muito trabalho rapidamente deu frutos. Em menos de 12 meses em liberdade, finalmente, conseguimos nossa primeira grande conquista e compramos nosso primeiro apartamento. Luana está com quase 10 anos. Só agora temos o prazer de realizar o sonho da casa própria. Nossa alegria e gratidão por essa grande conquista beiram a euforia. Sentimos como se tivéssemos ganhado na loteria. Realmente ganhamos. Na loteria da vida. Somos uma família vencedora. Não foi fácil chegar até aqui. Mas, dando um passo de cada vez e vivendo o presente com os pés no chão, sem ilusão, sem ganância, acreditando na proteção Divina, perseverando no trabalho e através de muita gratidão, tenho certeza de que muitas outras bênçãos serão derramadas sobre nossas vidas. Ainda frequento reuniões dos Narcóticos Anônimos. Não quanto eu gostaria e deveria. Afinal de contas, tenho algo a relatar. Mas tenho ido na quantidade que é viável para mim. Não tenho mais a vontade de usar drogas. Consegui o mais importante: perdi a vontade de usar drogas, perdi a necessidade de me anestesiar para poder viver. Estou livre desse vício infernal. Mas sofri muito para chegar nesse lugar onde me encontro. Sinto pena das pessoas que ainda estão perdidas no submundo sombrio das drogas. Espero que minha experiência, de alguma forma, as ajude a sair dessa ilusão, dessa anestesia. Meus valores já não são invertidos. Dou valor às pequenas coisas da vida, mas que, na verdade, são imensas: um sorriso de minha filha, um final de semana na praia, as belezas da natureza, os desafios do trabalho, um carinho da minha esposa. Nem mesmo o trânsito enlouquecedor de São Paulo me abate.


Quarta parte – Capítulo 12

A vida é bela e vale a pena Hoje, sentado na areia da praia, sentindo o cheiro do mar, observando a imensidão do horizonte, ouvindo o barulho das ondas e admirando o contraste de cores no céu, em mais um início de final de tarde, no litoral norte paulista, é que definitivamente compreendo o quanto somos abençoados pela simples dádiva da vida. Minha esposa está sorrindo e nossos olhos brilham enquanto nossa filha corre de um lado para o outro, atrás de pequenos siris. Minha mente está serena, feliz, e me sinto satisfeito, grato, em puro estado de êxtase. Não preciso nem precisarei mais de ecstasy... Pego minha prancha, atravesso a arrebentação. Remo em uma onda da série, fico em pé, termino um drop. Quando dou por mim, estou novamente dentro do tubo. O tempo passa lentamente, enquanto as placas de água desabam ao meu redor. A boca do tubo vai ficando cada vez menor, e após alguns intensos segundos finalmente enxergo a luz no fim do tubo. Num passe de mágica, completo esta seção, saindo do tubo impulsionado pela baforada, um spray de água que é lançado de dentro do tubo. Realmente, há luz no fim do tubo, assim como há sempre uma saída para qualquer desafio ou barreira que encontramos nesta vida. O melhor é que sempre crescemos nesse processo. Com um grande sorriso estampado no meu rosto, miro minha prancha em direção à praia. Em instantes, estou saindo do mar. Coloco minha prancha debaixo do braço e, de cara limpa, andando com meus próprios pés, sentindo a areia da praia entre os dedos, caminho em direção à minha amada família. Estamos juntos curtindo esse doce momento. Olho para as montanhas tão imponentes e cobertas pela exuberante, densa e verde Mata Atlântica. A verdadeira felicidade sempre esteve bem


perto de mim. Como é bom ter descoberto essa verdade e poder vivê-la intensamente. Como é bom descobrir que me aceito como sou, que amo a vida como ela é. Como é libertador aceitar e ser grato por ser simplesmente quem sou. Como é bom descobrir que sou dotado de diversos recursos internos para lidar e extrapolar limites, mudar estados de consciência sem o uso de qualquer substância, simplesmente apreciando o momento, saboreando-o. Demorei 31 anos para entender essa simples realidade. Agora, aos 36 anos, comemoro cinco anos limpo de drogas. Cada dia de vida ao lado de minha família e limpo de drogas é para mim uma imensa vitória. À medida que os dias vão passando, tudo o que eu mais quero é poder viver fazendo de minha existência uma fonte de luz e paz. Espero que minha história, de alguma forma, traga uma luz de esperança a todos que neste momento estão passando por situações semelhantes às que eu passei. O arrependimento é um triunfo, uma vitória, e implica mudança radical de atitude. Agora, estou realmente arrependido de tudo que fiz. Mas sei que tudo por que eu passei e todo o sofrimento que causei não foram em vão. Espero, de coração aberto, que este depoimento possa ajudar as pessoas, sobretudo aquelas dominadas pelo vício, a encontrar as ferramentas para superar suas dificuldades, evitando a solidão, o sofrimento e a degradação moral e espiritual. E se além de minha palavra houver necessidade de minha voz, farei todo o possível para levá-la aonde for necessária. A vida vale a pena, quando ela é vivida com dignidade.


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