Adiós muchachos, compañeros de mi vida Há palavras que têm seu momento, enquanto outras conseguem sobreviver aos modismos para permanecer no nosso cotidiano. Alguns vocábulos de presença desmedida contrastam com outros que foram condenados ao esquecimento, a ser mencionados apenas quando se evoca o passado. Todos esses processos de repúdio ou aproximação que ocorrem dentro das nossas cabeças ficam evidentes quando falamos. Daí que a morte pública de um político tenha início quando as pessoas deixam de colocar-lhe apelidos; a crise de um ideal fica demonstrada se poucos fazem referência a ele e a propaganda ideológica se debilita quando ninguém repete seus bordões maniqueístas. A linguagem pode validar ou enterrar qualquer utopia. Entre as evidências linguísticas da nossa atual apatia, está o paulatino desaparecimento do termo companheiro . Cada vez se usa menos essa fórmula para aludir a um amigo de toda a vida ou alguém que encontramos pela primeira vez. Ao serem desterra dos por suas reminiscências pequenoburguesas os apelativos senhor , senhora e senhorita , chegaram outros que queriam manifestar uma maior familiaridade entre os cubanos, como o importado camarada .
Aconteciam até casos tragicômicos, por exemplo, quando uma pessoa chamava de companheiro ao burocrata que o fazia esperar seis horas por um papel, embora na verdade tivesse vontade de insultá-lo. Durante anos, dirigir-se a outra pessoa de modo distinto da etiqueta ditada pelo Partido, podia ser entendido como um desviado ideológico. Todos éramos iguais e até mesmo o uso do usted 1 desapareceu nessa falsa intimidade que degenerava em frequentes faltas de respeito. Quando a ilha se abriu ao turismo, uma das primeiras lições que aprenderam os empregados dos hotéis foi retomar o estigmatizado senhor para dirigir-se aos hóspedes. Pouco a pouco os apelativos do passado mais recente ficaram restritos ao vocabulário dos mais fiéis, dos mais velhos. Assim, entre as milhares de saudações que se escutam hoje em nossas ruas brother, yunta, nagüe, socio, amigo, ecobio, puro ou o simples psst cada vez aparecem menos as sonoras sílabas de companheiro . 1 N.T.: Pronome usado no tratamento formal em espanhol, cujo equivalente em português são as formas o senhor e a senhora .
A conta fica em cinco A cortina vermelha de fundo, a mesa presidencial fiel ao estilo soviético e o líder no centro, mal deixando falar os que estavam sentados nas outras poltronas. Assim me lembro dos congressos do Partido Comunista de Cuba, que começaram a acontecer justamente naquele 1975 em que eu nasci. Depois do quarto, que foi realizado em 1991, o próximo demorou em parte devido às carências materiais que impediam reunir, hospedar e alimentar tantos delegados. Porém, sempre acreditei que esses atrasos revelavam a inconsistência do que está escrito no artigo 5 da Constituição cubana: o Partido [...] é a força dirigente suprema da sociedade e do Estado . A demora em estabelecer diretrizes e planos deixava evidente que o país era governado de outra forma: mais pessoal, mais reduzida à vontade de um homem. Daí eu não me surpreender com o novo adiamento do sexto congresso do pcc, pois já se vão 12 anos desde o último realizado. Afinal de contas, as dinastias não precisam de ideologias, nem do consenso dos membros de uma organização com princípios e estatutos, nem muito menos precisam ajustar-se a um roteiro traçado por um encontro partidário. Para improvisar, baixar ordens de cima, chamar à disciplina e ao controle, dizer obviedades do tipo é preciso trabalhar a terra
e continuar anunciando prazos que não se cumprem, não é necessário se reunir, chegar a acordos, nem se encontrar para acatar as demandas populares.
Telenovelas ou realidades Para Mariana e Paulo
Algum dia a história de nossas últimas décadas deverá ser contada a partir das telenovelas brasileiras que passaram pela telinha. Ouviremos os especialistas estabelecerem paralelismos entre a quantidade de lágrimas derramadas diante da televisão e o grau de resignação ou de rebeldia adotado na vida real. Também será matéria de estudo a esperança que alimentava em nós aquele sujeito o dos folhetins televisivos que conseguia sair da miséria e realizar seus sonhos. Nessa provável análise, terão que incluir, sem dúvida, a atormentada ficção de A escrava Isaura 1. A mulher mestiça que escapava de um amo cruel paralisou nosso país e, numa ocasião, fez com que passageiros se negassem a subir num trem e permanecerem na estação durante a transmissão do capítulo final. Inclusive nos serviu de fonte para analogias entre o escravocrata que não concedia a liberdade à sua serva e os que agiam como nossos patrões, controlando tudo. Nessa época, as amigas
de minha mãe se divorciaram em massa, inspiradas na personagem independente de Malu,2 que criava sozinha uma filha e não usava sutiã. Veio então o ano de 1994 e o maleconazo 3 obrigou o governo a adotar certas aberturas econômicas, que se materializaram em quartos de aluguel, táxis particulares e cafés autônomos. Nesse momento chegamos perto da trama de uma produção carioca que influiu diretamente na forma de nomear as novas situações. Nós cubanos batizamos de paladar o restaurante administrado por gente comum, da mesma forma que a empresa de alimentos criada pela protagonista de Vale tudo .4 A história da mãe pobre que vendia comida na praia e terminou fundando um grande consórcio, para nós, se assemelhava à dos recém-surgidos cuentapro-pistas,5 que equipavam a sala de casa para oferecer pratos extintos décadas atrás. Depois, as coisas começaram a se complicar e vieram seriados em que camponeses reclamavam suas terras, mulheres cinquentonas faziam planos para o futuro e repórteres de um jornal independente conseguiam conquistar mais leitores. Os roteiros desses dramas acabaram sendo nesta Ilha chaves para interpretar nossa realidade, compará-la com outras e criticá-la. Daí que, três dias por semana, fico diante da tela para ler nas entrelinhas os conflitos que envolvem cada ator, pois deles surgem muitas das atitudes que meus compatriotas assumirão na manhã seguinte. Terão mais
ilusões ou mais paciência, em parte graças ou por culpa dessas novelas que nos chegam do sul. 1 N.T.: Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo e exibida entre 11/10/1976 e 5/2/1977. Era uma adaptação, escrita por Gilberto Braga e dirigida por Herval Rossano e Milton Gonçalves, do romance A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. 2 N.T.: Personagem interpretada pela atriz Regina Duarte no seriado Malu Mulher, produzido pela Rede Globo e exibido entre 24/5/1979 e 22/12/1980, com criação e direção de Daniel Filho. 3 N.T.: Mobilização popular ocorrida em Havana no dia 5/8/1994, quando centenas de cubanos invadiram o Malecón em protesto contra a escassez de comida e energia. 4 N.T.: Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo, exibida entre 16/5/1988 e 6/1/1989. Foi escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e dirigida por Dênis Carvalho e Ricardo Waddington. 5 N.T.: Microempresários autônomos.