Relatório 1 - Conceitos e Perspectivas

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RELATÓRIO 1 WP1 – CONCEITOS E PERSPECTIVAS SOBRE A CRIATIVIDADE URBANA

DEZEMBRO 2010


ÍNDICE

A CULTURA NAS POLÍTICAS REGIONAIS E URBANAS

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CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO URBANO E

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REGIONAL OPERACIONALIZAÇÃO DO MODELO

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A ARTE E AS EXPRESSÕES ARTÍSTICAS COMO

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VEÍCULOS DE INCLUSÃO E DE COESÃO CIDADES CRIATIVAS

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MEIOS SOCIALMENTE CRIATIVOS

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BIBLIOGRAFIA

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1.

A CULTURA NAS POLÍTICAS REGIONAIS E URBANAS

Embora o reconhecimento da cultura como dimensão essencial do desenvolvimento seja recorrente na actualidade, nem por isso a ideia de cultura deixa de ser ambígua e incerto o significado que lhe é atribuído. O conceito surge frequentemente associado aos códigos de comunicação, mas também ao sentido de identidade, ao património material e imaterial, à criação artística e às industrias criativas. Numa perspectiva muito ampla e subjacente aos anteriores significados, a cultura transmite valores.

“Culture is the expression of human values. It may be very intense and conscious, as in art objects and performances or religious practice. It may be pervasive and relatively unconscious, in the rituals of food, the use of time or family celebrations. It embraces the extremes of this spectrum and everything between. Culture is everything we don’t have to do to survive – but are compelled to do to feel human.” (Matarasso, :2001:3)

Quase sempre com alguma ambiguidade, a cultura e as expressões artísticas, em particular, assumem uma importância crescente nas estratégias e políticas de desenvolvimento territorial, quer à escala das macro-regiões, dos países, quer ao nível das regiões, das cidades ou dos bairros. É reconhecido que a cultura e as artes são instrumentos poderosos para a promoção da coesão das comunidades territoriais e para a inclusão social. Ao mesmo tempo, são entendidas como factores decisivos da competitividade dos territórios. O investimento nestas actividades parece dar muito bons resultados em termos do balanço entre coesão e competitividade, equilíbrio muito difícil de atingir (Mateus, 2005), na medida em que conjuga objectivos sociais tão relevantes como emprego, rendimento, comunicação ou identidade.

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Como resposta aos desafios da globalização e, como meio de aumentar a competitividade do espaço europeu, o modelo da sociedade da informação e do conhecimento tem sido plenamente adoptado pela União Europeia nas últimas décadas, privilegiando os sectores baseados na ciência e tecnologia mas negligenciando, de algum modo, o valor das trajectórias tipicamente europeias, entre as quais deve ser salientada a da Europa Social e Criativa, modelo a que corresponde: •

Mais de um século de segurança social pública.

Políticas públicas mais centradas na inclusão social do que no crescimento económico.

Desenvolvimento holístico das capacidades individuais.

Liberdade individual conjugada com responsabilidade social.

Longa tradição na construção de comunidades criativas de base territorial.

Diversidade linguística, cultural, religiosa e artística.

Nas últimas duas décadas, a cultura passou a ser um protagonista importante da agenda política da EU. O Tratado de Maastricht (1993) refere no Artigo 128 que “a Comunidade contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Membros, respeitando a sua diversidade nacional e regional, e pondo simultaneamente em evidência o património cultural comum.” Com uma ênfase mais acentuada no património do que na produção artística, as políticas europeias têm privilegiado domínios de intervenção como o conhecimento e divulgação da cultura e da história dos povos europeus, a conservação e salvaguarda do património cultural de importância europeia, os intercâmbios culturais não comerciais e, em menor grau, a criação artística e literária, incluindo o sector audiovisual. Antes do Tratado de Maastricht, a União Europeia já tinha instituído a iniciativa das ‘Capitais Europeias da Cultura’. Este programa, iniciado em Atenas em 1985, entende a cultura como um motor importante da requalificação das cidades. Os objectivos desta iniciativa comunitária visam valorizar as correntes culturais comuns aos europeus, promover as manifestações e as criações artísticas que associem agentes

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culturais de várias cidades (favorecendo o estabelecimento de cooperações culturais duradouras), alargar o acesso à cultura, incentivar a divulgação através de meios multimédia e duma abordagem multilinguística, promover o diálogo entre as culturas da Europa e as outras culturas do mundo e ainda valorizar o património histórico e a arquitectura urbana, bem como a qualidade de vida nas cidades. Nos anos 90, na sequência das orientações aprovadas em Maastricht, são desenvolvidos três programas no âmbito da política cultural: –

Caleidoscópio (1996-1999) – visava promover a criação artística e cultural e encorajar a cooperação entre os Estados-Membros.

Ariane (1997-1999) - incidia na promoção da edição de livros e da leitura, incluindo a tradução.

Raphaël (1997-1999) – propunha-se promover o património de significado europeu.

Desde 2000, o Programa Cultura 2000 substituiu as intervenções anteriores, apresentando um plano de 5 anos e um leque mais amplo de objectivos, designadamente a cooperação entre os criadores, os agentes culturais e as instituições culturais, a promoção da criatividade, da difusão transnacional da cultura e da circulação da produção e dos produtores culturais. Este Programa reconhece também explicitamente a importância da cultura como factor económico, de integração social e de cidadania. Em 2007, as políticas europeias colocam, decididamente, o acento tónico na produção cultural, elegendo três grandes objectivos para o Programa Cultura 2006-2013: (i) promoção da mobilidade transnacional das pessoas que trabalham no sector cultural; (ii) apoio à circulação transnacional das obras e produtos culturais e artísticos; (iii) estímulo ao diálogo intercultural.

Assim, num período de menos de 20 anos, passa-se de um conceito de política cultural associado à memória e ao património para outro ancorado na produção cultural e na expressão artística.

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FIGURA 1 – CONCEITOS-CHAVE DAS POLÍTICAS CULTURAIS

No primeiro conceito, a (re) qualificação dos territórios passa sobretudo pela reabilitação de edifícios históricos, pela modernização e constituição de museus e pela recuperação e reconstrução das tradições materiais e imateriais manifestadas através do artesanato, da música ou das danças populares. Durante este período, apesar da recuperação de património histórico e industrial nas cidades, é especialmente contemplado o espaço rural – é o período dos ecomuseus, das aldeias históricas, das feiras de artesanato ligado às tradições rurais. Actualmente, “o papel da União consiste em fomentar os intercâmbios culturais, a cooperação entre os operadores culturais e a circulação de obras. Na prática, trata-se de implicar os cidadãos, os artistas, os profissionais da cultura em projectos e redes europeus, de estimular o conhecimento mútuo das respectivas criações culturais, de reforçar as capacidades de expressão de cada um dos povos da União” (CE, 2002:4)

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Este segundo conceito privilegia mais as cidades. Por um lado, é nelas que se concentra boa parte da produção cultural e artística, por outro, as políticas culturais desenvolveram um laço estreito com as políticas económicas, nomeadamente através dos incentivos às indústrias criativas, aos grandes eventos culturais, às exposições internacionais, etc. É a ideia de cidade criativa, desenvolvida por Charles Landry (2000) e por Richard Florida (2002 e 2008) que influencia decisivamente as políticas culturais europeias. A partir dos anos 90 do Século XX, a cultura passou a estar também na agenda do governo português e, sobretudo, dos autarcas. A óptica dominante mantém-se num registo bastante tradicional que privilegia sobretudo o património e os museus. O Programa Operacional da Cultura (2000-2006) foi uma iniciativa inovadora mas não quebrou com essa visão clássica da cultura, elegendo como domínios de intervenção: o património arquitectónico, o património arqueológico, os museus, os arquivos e a recuperação dos recintos de espectáculos. Contudo, nos anos mais recentes, algumas iniciativas nacionais e locais adoptam já uma perspectiva mais pró-activa ligada à produção cultural e à criação artística. Nos últimos anos, o sector cultural afirma-se progressivamente como um factor de competitividade, muito ligado ao turismo e ao investimento imobiliário, mas também como veículo de coesão e de inclusão social, como mostram as inúmeras iniciativas desenvolvidas em bairros problemáticos das grandes cidades, entre os quais se destacam, na AML, a Cova da Moura e o Vale da Amoreira.

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Em síntese, nas estratégias e políticas de desenvolvimento dos territórios, a cultura afirma-se como:

Veículo de identidade através do património - a cultura constrói os códigos e as linguagens simbólicas em que radicam os sentimentos de pertença a um grupo ou a um lugar.

Bruxelas, 2010 Julho (Isabel André)

Via privilegiada de inclusão social e da coesão territorial – o conceito de património colectivo corresponde à valorização do bem comum e do sentido de comunidade para além dos grupos restritos; através da cultura, são construídos os códigos e as linguagens simbólicas em que radicam os sentimentos de pertença a um grupo ou a um lugar. Chester, 2008 Setembro (Isabel André)

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Instrumento de cidadania e de inclusão - a cultura e as artes promovem o debate, a consciência crítica e a capacidade de intervenção; as competências artísticas desenvolvem a auto-estima e facilitam a comunicação, dois vectores cruciais da participação cívica e da inclusão social. Bruxelas, 2008 Maio (Isabel André)

Facilitadora das relações internacionais - a cultura promove a coesão porque facilita o diálogo, o estabelecimento de pontes, baseado nos traços comuns que a história foi deixando (p.e. bacia mediterrânica); é uma marca da diversidade num mundo crescentemente globalizado, um contraponto à normalização e um meio de resistência integração (p.e. a música nas comunidades imigrantes).

Horta (Porto) 2007 Agosto (Isabel André)

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Enquanto factor de competitividade, a cultura tem também tido um protagonismo notável, nomeadamente nos seguintes campos:

Turismo – significado em termos de fluxos de pessoas e de capitais gerados pelo turismo cultural ou pela dimensão cultural dos outros tipos de turismo.

Tropea (Itália) 2010 Julho (Isabel André)

Indústrias culturais - os espectáculos, o audiovisual e multimédia, as artes plásticas, o restauro e conservação do património arquitectónico e documental, etc.. Bem como “nichos” de criatividade e de inovação que extravasam o sector cultural e são mobilizados por outros sectores, designadamente no campo do design, da mensagem publicitária, da produção de software, etc.

Salford – Manchester, 2008 Setembro (Isabel André)

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Marketing territorial – através de grandes eventos, como as exposições universais e mundiais, ao nível das capitais globais, ou pela promoção da escola de dança ou do museu, ao nível dos pequenos centros urbanos.

Gare do Oriente – Lisboa, 2010 Abril (Isabel André)

Valorização do espaço urbano – a arte e os meios artísticos funcionam, cada vez mais, como mais-valias importantes nas operações imobiliárias e na atracção de investimentos e de pessoas altamente qualificadas. Nalguns casos, como em Austin, nos EUA, a cultura associada à música tem permitido mesmo atenuar uma imagem negativa associada à indústria petrolífera. Liverpool, 2008 Setembro (Isabel André)

As capitais europeias da cultura ilustram bem a multidimensionalidade da cultura e das artes enquanto factores de desenvolvimento dos lugares e, por outro lado, concretizam uma vertente importante das políticas culturais europeias.

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2.

CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO URBANO E REGIONAL

As transformações económicas e sociais do último quarto de século foram marcadas pelo aumento da diversidade de condições sociais traduzidas na maior complexidade dos estilos de vida e padrões de consumo. O fantástico crescimento da produção e consumo de bens e a centralidade da inovação, design e conhecimento como determinantes do sucesso competitivo trazem novos desafios para as cidades, onde a presença de um leque diversificado de especialistas e uma certa massa crítica de lugares, que oferecem possibilidades de consumos individualizados, potenciam a criatividade cultural. No seu livro de “The Rise of the Creative Class”, Richard Florida (2002c) sustenta que as pessoas criativas são fundamentais para o crescimento urbano e regional, porque são tipicamente inovadoras, produzindo meios criativos e atraindo novas actividades económicas. Acrescenta ainda que as cidades e regiões têm dotações muito diferenciadas de membros da classe criativa, porque nem todos os lugares reúnem um conjunto de factores essenciais para fixar este grupo social. Conjugando estas duas ideias centrais em Florida, podemos compreender o alcance da sua teoria: os empregos seguem as pessoas (criativas) e não o contrário. Apesar da inovação ser um apanágio da concentração populacional e portanto estar ligada à cidade, como diversos autores ao longo do tempo mostraram, só recentemente se estabeleceu a ligação entre a presença de “criativos” e a competitividade dos territórios, argumentando mesmo Florida (2005) que, em vez de centrar as politicas da competitividade na atracção de empresas, se devem criar condições para potenciar o capital humano, para atrair e fixar talento e criatividade. O seu modelo de análise assenta no que é conhecido pelos e ‘Ts’, de Tecnologia, Talento e Tolerância. O efeito da tecnologia no desenvolvimento económico está bem documentado desde Solow (1956) e são muitos os trabalhos que demonstram o efeito da inovação tecnológica e do conhecimento no desenvolvimento económico em diversas vertentes (Amin & Cohendet 2004; Audretsch & Feldman 2003; Castells &

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Hall 1994; Jaffe, Trajtenberg, & Henderson 1993; Maillat 1997; Malecki 1991; Porter 1998; Sternberg 2000). Neste processo, também é evidente que o capital humano é essencial; investigação recente demonstra que a qualidade dos recursos humanos (o ‘talento’) influencia o crescimento e desenvolvimento regional (Glaeser 2000). O conceito de talento apresentado por Florida inclui a noção de capital humano mas comporta também outras dimensões. Na realidade, o talento está directamente relacionado com o conhecimento, mas convoca igualmente a criatividade e as competências que lhe estão associadas como as aptidões artísticas, o background cultural, a autonomia e capacidade de lidar com o risco e com o insucesso. Florida, Mellander, & Stolarick (2007) afirmam que a educação, no sentido de instrução, traduz apenas o talento potencial. Assim, para avaliar o nível de talento concentrado numa cidade ou região é necessário ter em conta não só o grau de instrução da população, mas também a capacidade criativa dos indivíduos, ou seja a capacidade de se envolverem na resolução de problemas complexos que requerem uma combinação de saberes, pensamento crítico autónomo e imaginação (Florida 2002c). Estas competências não são facilmente avaliáveis, mas expressam-se seguramente na ocupação profissional e na participação em actividades culturais e artísticas. Por último, o ‘T’ de tolerância, talvez o factor mais distintivo de Florida, porque oferece uma leitura contrastante com a do papel atribuído às universidades ou às amenidades locais na fixação dos recursos humanos qualificados indispensáveis à inovação e criatividade; o autor considera que os mais qualificados e criativos procuram lugares para residir que sejam tolerantes e abertos à diversidade – uma influência de Jacobs (1961, 1969) – e é este factor que inverte a lógica de relação entre o capital e o trabalho. Os engenheiros, gestores e outros profissionais detentores de elevados níveis de capital cultural e económico procuram ‘respirar o ar’ dos artistas, perseguindo-os nas suas estratégias residenciais (Ley 2003; Brito Henriques, André, & Vale 2005). A abertura a novas ideias e o predomínio de uma ‘cultura’ de tolerância são, pois, condições necessárias para a criatividade (Hall 2000). Na linha da argumentação de Jane Jacobs, Florida assume que a diversidade populacional das grandes cidades favorece os processos de criação colectiva, emergindo várias pessoas

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dispostas “a dedicar a sua energia e as suas ideias à inovação e à promoção do bemestar”. Como um lugar só pode ser demográfica e socialmente diverso se existirem possibilidades de entrada e fixação dos vários grupos da população, em termos étnicos e sociais – classes e “tribos” urbanas; indivíduos com diferentes orientações sexuais, etc -, então o “t” da tolerância é uma condição indissociável desta diversidade.

Universidade

Tolerância

Talento

Tecnologia

Desenvolvimento Regional

Amenidades e diversidade de usos

Fonte: Adaptado de Mellander and Florida (2007)

FIGURA 2 – MODELO DE TRAJECTOS POSSÍVEIS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Florida sintetiza a sua argumentação num modelo formal de relações entre estas dimensões e o seu papel para o desenvolvimento regional (ver figura), geralmente exposto através de uma função de regressão múltipla. O esquema ilustra diferentes trajectórias de desenvolvimento das regiões e permite testar o efeito per si do talento ou da tecnologia, bem como o efeito da universidade, amenidades e diversidade de usos (e serviços) e da tolerância na geografia do talento .

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No século XXI, atrair, desenvolver e mobilizar os activos criativos é mais importante do que deter o controle sobre matérias-primas ou recursos naturais ou ainda do que possuir vantagens comparativas de custos de trabalho. É essa a tese principal da ‘classe criativa’, cuja influência no crescimento económico das regiões e mega-cidades se esquematiza na figura.

Inovação Tolerância Tecnologia

Crescimento Económico

Classe Criativa Talento

Fonte: Adaptado de Florida and Tinagli (2004), p. 12)

FIGURA 3 – A CLASSE CRIATIVA E O NOVO MODELO DE CRESCIMENTO ECONÓMICO DAS CIDADES E REGIÕES

Esta inversão na teoria de desenvolvimento urbano e regional proposta por Florida suscitou inúmeras criticas, desde logo porque é discutível aplicar o conceito de “classe” aos criativos (Peck 2005) ou porque apresenta um conjunto de associações mas não consegue apresentar um modelo explicativo entre as variáveis utilizadas e, deste modo, não tem outra utilidade senão descrever a realidade. Outros criticam a tese da classe criativa por ser elitista e dar cobertura à transferência de recursos públicos para apoiar os mais beneficiados em detrimento dos grupos sociais mais carenciados. Noutra linha de argumentação, alguns autores verificaram que o efeito da classe criativa ‘desaparece’ ao introduzir no modelo variáveis de qualificação dos recursos humanos (Markusen 2006). Na verdade, embora a inovação e o crescimento do emprego estejam associados à diversidade, são sobretudo as componentes da homossexualidade e da boémia que

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traduzem esta associação, sendo o papel da imigração mais controverso. Efectivamente, embora a imigração contribua fortemente para o crescimento populacional nos EUA, com destaque para as pequenas e médias cidades, de acordo com a análise de Florida o Melting Pot Index não aparece estatisticamente correlacionado com a inovação. Esta constatação, válida para o contexto americano, não significa que a diversidade associada à imigração não tenha implicações na inovação e na dinâmica urbana, só que isto pode ocorrer por via indirecta e está sujeito a diversos matizes. Em primeiro lugar, os imigrantes recém-chegados revelam, tradicionalmente, níveis de interacção e integração mais reduzidos, o que está associado a baixos níveis de confiança recíprocos (Putnam 2007) e reflecte uma maior dificuldade inicial de incorporação destes no processo de criação colectiva. Em segundo lugar, ao medir a inovação através do número de patentes, Florida não só assume uma noção algo restritiva que não traduz, por exemplo, a ideia de inovação social, como induz, desde logo, uma associação com a imigração altamente qualificada. Convém sublinhar que a correlação que Florida encontra entre os índices gay, "de boémia" e de melting pot – que depois combina num índice compósito de diversidade (social, cultural e étnica) – e o sucesso das regiões nas actividades de alta tecnologia leva-o a propor o investimento em ambientes marcados pela diversidade e pela tolerância.

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3.

OPERACIONALIZAÇÃO DO MODELO

O modelo de R. Florida tem sido aplicado em diferentes contextos geográficos, desde obviamente os EUA (Florida 2002a, 2002b), até à Suécia (Mellander & Florida 2007), Canadá (Gertler et al. 2002) ou mesmo em diferentes regiões (Boschma & Fritsch 2007) e países europeus (Florida & Tinagli 2004). Em todos os casos, verificam-se adaptações ao modelo original, as mais das vezes devido a problemas de acesso a informação desagregada ao nível geográfico pertinente. Revêem-se, em seguida, as variáveis mais utilizadas para descrever o modelo de Florida.

3.1 Classe Criativa A identificação da classe criativa de Florida baseia-se na classificação das profissões em vez dos níveis de qualificação dos activos, em virtude do autor considerar que a criatividade não é específica de algumas actividades económicas. Com efeito, para o autor a classe criativa compreende os profissionais envolvidos em tarefas criativas e inovadoras independentemente da actividade económica. Deste modo, a informação mais adequada para descrever a classe criativa assenta na classificação de profissões, embora as profissões no sistema de classificação sejam identificadas com base em qualificações e características do processos de trabalho. Consequentemente, as profissões associadas à classe criativa apresentam uma sobre–representação dos activos com maiores níveis de instrução; excluem-se, portanto, os trabalhadores criativos com baixos níveis de instrução (Boschma & Fritsch 2007). As ideias originais e inovadoras de Florida também não têm sido fáceis de sustentar devido à dificuldade em definir (problema conceptual) e medir (problema empírico) a ‘criatividade’ (Markusen 2006). Neste estudo, segue-se uma metodologia próxima de Florida para medir e verificar a distribuição da classe criativa na Área Metropolitana de Lisboa, a partir da Classificação Nacional de Profissões (CNP), adoptando as três sub–categorias da

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classe criativa: core criativo; profissionais criativos; boémios (ver quadro). Esta sub– divisão permite computar a classe criativa em sentido restrito (core criativo e profissionais criativos) ou no sentido atribuído por Florida (incluindo os boémios).

As Profissões da Classe Criativa Sub-categorias Core criativo

Profissionais criativos

Boémios

Ocupações (CNP) 211 – Físicos, químicos e profissionais relacionados 212 – Matemáticos, estatísticos e profissionais relacionados 213 – Engenheiros e analistas de sistemas informáticos 214 – Arquitectos, engenheiros e profissionais relacionados 221 – Profissionais das ciências da vida 222 – Profissionais das ciências da saúde (excepto enfermeiros) 231 – Docentes e investigadores do ensino superior 232 – Docentes do ensino básico e secundário 243 – Arquivista, bibliotecários e profissionais relacionados 244 – Profissionais de ciências sociais (excepto assistentes sociais) 247 – Técnico superior da Administração Pública 331 – Docentes do ensino básico e primário 332 – Educadores de infância 333 - Docentes do ensino especial 339 – Outros profissionais do ensino 1 – Quadros superiores da Administração Pública, dirigentes e quadros superiores de empresas 223 – Pessoal de enfermagem 242 – Profissionais do direito 2446 – Assistentes sociais e similares 31 – Técnicos de ciências físico-químicas, engenharia civil, electrónica e similares 32 – Técnicos de ciências da vida e da saúde 341 – Corretores de bolsa, cambistas e de outros serviços financeiros 342 – Corretores de mercadorias, agentes comerciais e outros 343 – Profissionais de nível intermédio dos serviços administrativos 345 – Inspectores da policia judiciária e inspectores 245 – Escritores, pintores, músicos, actores e outros artistas 3131 – Fotógrafos e operadores de aparelhos de registo de imagem e de som 347 – Designers, artistas de espectáculos de entretenimento, atletas e similares 521 – Manequins e outros modelos

Os resultados podem ser expressos em quocientes de localização (QL) ou em simples percentagens da força de trabalho ou da população para as diferentes unidades de análise. O Bohemian Index é precisamente um QL dos profissionais identificados no quadro na sub–categoria boémios. Estes indicadores podem ser calculados para a AML com base em informação da CNP, a solicitar ao INE, desagregada ao nível geográfico pertinente.

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3.2 Tecnologia A localização da indústria de alta–tecnologia é o indicador típico para esta dimensão. Florida utilizou o Tech-Pole Index (Milken Institute) (Florida 2002b, 2002a). Trata-se de uma medida compósita (QL) baseada na percentagem do output real das actividades de alta–tecnologia das áreas metropolitana em relação ao output nacional (MSA). Na impossibilidade de utilizar um índice semelhante, deve optar-se por uma proxy. As hipóteses a considerar são o número de patentes por 10 000 hab., o emprego e/ou o número de estabelecimentos em actividades de média-alta e alta-tecnologia, o VAB em actividades de média-alta e alta-tecnologia e a taxa de start-up nas actividades de média-alta e alta tecnologia. O cálculo destes indicadores para os concelhos da AML será difícil, à excepção das patentes (por via do local de registo da patente) e eventualmente da criação de startup (por via de levantamento de informação directo) ou do nº de estabelecimento (informação dos Quadros de Pessoal).

3.3 Talento O Talent Index é uma medida da população com elevado nível de instrução (% ou ‰) de população com educação universitária (licenciados, mestre, doutores e agregados). Podem ser usadas duas medidas adicionais de talento: técnicos e profissionais; cientistas e engenheiros (no caso do estudo na Suécia, (Mellander & Florida 2007) recorrem a uma variável dummy igual a 1 (ou então 0) se o nº de docentes universitários é superior a 100, de forma a captar o efeito da universidade na região). Este índice pode ser calculado para a AML com base em informação do Anuário Estatístico para a região.

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3.4 Tolerância A diversidade não se refere apenas à presença de imigrantes – tratados no Melting Pot Index; comporta também os homossexuais – sintetizados no denominado Gay Index – e os artistas (que correspondem ao Bohemian Index).

Indicadores de relacionados com a cultura regional/urbana: O Melting Pot Index é calculado como um rácio de população residente nascida no estrangeiro em relação à população residente (‰). (É de notar que a presença de imigrantes não significa que a população residente seja tolerante; por outro lado, o papel dos outsiders é também um aspecto crucial na óptica do desenvolvimento urbano e regional, na medida em que a sua presença significa uma maior abertura ao exterior.) Gay Index é um índice de população gay calculado a partir dos agregados domésticos em que um membro e um parceiro não casado são do mesmo sexo (em geral, do sexo masculino; ou também feminino no estudo para a Suécia). O índice é apresentado como um Q.L. O Bohemian Index é um Q.L. de profissões artísticas (autores; designers, músicos e compositores; actores e directores; artesãos, pintores, escultores e impressão de arte; fotógrafos; bailarinos; artistas, artes performativas e similares) (quadro 1).

Indicadores relacionados com equipamentos e serviços na região: Na dimensão da tolerância têm sido utilizados outros índices complementares, cuja viabilidade de aplicação à AML terá de ser estudada. Apresentam-se, em seguida, alguns destes índices mais relevantes. Índice de Oportunidade Cultural Índice calculado a partir do peso do pessoal ao serviço em actividades de consumo da classe criativa, incluindo restaurantes, bares, rádio e televisão,

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cinema, galerias e museus de arte, entretenimento, bibliotecas, arquivos públicos, museus e outras actividades culturais e desporto, performances de belas artes (fine arts) e grupos musicais, ... Coolness Factor Indicador baseado na percentagem da população dos 22-29 anos, na diversidade neste estrato etário, vida nocturna (número de bares, nigth clubs, etc. (POV Magazine, Dec-Jan 1999). Índice de Prestação de Serviços Públicos Índice pretende avaliar a prestação de serviços públicos nos sectores da educação e da saúde a partir do peso na região do pessoal ao serviço nestes sectores.

Indicadores relacionados com as oportunidades de emprego e dinâmica económica e atmosfera urbana O peso das actividades e profissões criativas numa região poderá ser explicado pela dinâmica económica e pelas oportunidades de emprego na região, porque pode acontecer que ‘as pessoas sigam os empregos’. Todavia, se Florida estiver correcto este efeito será relativamente reduzido. Taxa de Crescimento do Emprego Taxa de crescimento médio anual do emprego num período temporal de 10 anos (pode considerar-se outro intervalo de tempo). Densidade Populacional De forma a avaliar a relevância da escala e da ‘atmosfera’ urbana, alguns autores incluem no modelo de análise a variável de ‘densidade populacional’, por ser genérica e fácil de calcular, traduzindo o efeito de múltiplos factores regionais, como o preços do solo, níveis salariais, etc. (Boschma & Fritsch 2007).

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Como a informação estatística necessária para o cálculo dos indicadores está disponível no INE, Anuário Estatístico e Estatística do Emprego, mediante aquisição desagregada ao nível territorial pertinente, não se prevêem dificuldades na sua computação.

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4.

A ARTE E AS EXPRESSÕES ARTÍSTICAS COMO VEÍCULOS DE INCLUSÃO E DE COESÃO

A passagem das sociedades industriais para a pós-modernidade conferiu à cultura e às artes, em particular, uma posição bastante central na vida das pessoas e das comunidades, “the creative element of our existence – expressions of who we are, where we come from, and where we wish to” (Jeannotte, Stanley, 2002:136). A certeza associada às grandes visões do mundo, às ideologias que formataram a modernidade deu lugar, a partir dos anos 70 do século XX, à dúvida, à inconstância, à “inconsistência dos sonhos”. Esta incerteza que marca actualmente o quotidiano do mundo ocidental associada também à progressiva dissolução das várias formas de transcendência, e sobretudo da crença religiosa, é, de algum modo, superada através das artes (Ruby, 2002). De diferentes modos, as artes têm ajudado a construir representações do futuro ou mesmo antecipações do futuro. “Some artists express in their work feelings or codes that forecast the future or that indicate symbolically that the present is no longer viable” (Smiers, 2005:9). Esta capacidade é crucial no contexto de indeterminação da pós-modernidade. Por outro lado, as artes não dão só a possibilidade de antever o futuro, são também o elemento central da estetização do quotidiano (Smiers, 2005; Ley, 2003), cada vez mais intensa nas sociedades actuais. O corpo, a casa, o automóvel, o espaço público ou a cidade são, em larga medida, alvos privilegiados de intervenções guiadas mais pelos critérios da estética do que pela funcionalidade, pela utilidade ou pela eficácia (Ley 2003). A identidade, pessoal e colectiva, usa um grande número de referências estéticas. “A well developed cultural identity includes the strong feeling that specific artistic expressions make us the people we want to be, and, at the same time, that other expressions disturb our lives, don’t belong to who we are, or make us feel less comfortable” (Smiers, 2005:121).

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Tanto ao nível da produção como no campo do consumo, as artes, democratizaram-se significativamente ao longo das últimas décadas. Por um lado, alarga-se bastante o conceito de arte, passando a incluir expressões como o design industrial, a publicidade, os produtos multimédia, mas também manifestações mais alternativas como os graffiti, o hip-hop ou a capoeira. Por outro lado, a telecomunicação e, mais especificamente, a Internet permitiram uma difusão incomparavelmente mais ampla da produção artística. Mas, o papel relevante que as artes passaram a ter na sociedade associa-se certamente também à sua capacidade de comunicação. As diversas expressões artísticas permitem comunicar para além da linguagem comum (Bacon, Yuen, Korza, 1999), Assim, as artes são, cada vez mais, um importante instrumento das dinâmicas sociais tanto para a afirmação da hegemonia (e.g. a destruição, pelos Talibãs em 2001, dos Budas Gigantes do Bamiyan Valley no Afeganistão) como enquanto expressão da resistência (e.g. a Guernica de Pablo Picasso). As expressões simbólicas traduzem, por vezes com maior rigor, as tensões e os conflitos entre comunidades ou no seu interior. A cultura e as artes associam-se, por isso, com grande frequência à inovação social, processo em que se conjugam a comunicação, a atitude crítica, a participação cívica, a dialética entre o individual e o colectivo, a capacidade de regeneração dos lugares e ainda a dinamização económica e a criação de emprego (Moulaert, Demuynck, Nussbaumer, 2004:231-232): Mas, o sector cultural e artístico não tem sido apenas relevante no campo social, ele tem constituído também um trunfo importante no âmbito do desenvolvimento económico. Muitas cidades da Europa e da América do Norte têm assistido ao desaparecimento das actividades produtivas tradicionais e à dissolução dos valores e das práticas sociais que, em conjunto, configuravam o tecido socioeconómico. As ameaças associadas a essas transformações têm sido, em muitos casos, ultrapassadas por via de uma aposta forte na produção cultural e artística. “Cities of the future are «creative communities» in the sense that they recognize that art and culture are vital not only to a region’s liveability, but also to the preparedness of its work force. They

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understand that art-infused education is critical to producing the next generation of leaders and workers for the knowledge economy.” (Eger, 2003:8). As actividades culturais e artísticas emergem actualmente em muitos lugares como o “golpe de mágica” capaz de transformar a degeneração em regeneração. David Ley (2003: 2542) sugere que “the redemptive eye of the artist could turn junk into art”, mas não deixa de acrescentar que “the calculating eye of others would turn art into commodity”.. Nas cidades, destacam-se actualmente 3 tipos de intervenções que conferem à cultura um papel especialmente relevante e que, por isso, merecem uma atenção especial neste estudo sendo exploradas no exercício de benchmarking a desenvolver no 2º Relatório. Essas intervenções incluem a regeneração urbana, a reabilitação dos centros históricos ,a promoção de bairros culturais e de espaços criativos. Na Região de Lisboa, encontram-se alguns exemplos especialmente interessantes dos vários tipos de intervenções que irão ser analisados em etapas posteriores deste estudo.

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5.

CIDADES CRIATIVAS

Para definir a essência da cidade criativa, Florida (2002) destaca, como já se referiu anteriormente, os "3T": Tecnologia, Talento e Tolerância. O primeiro está associado à inovação tecnológica, o segundo à educação e ao conhecimento e o terceiro à faculdade de fazer diferente. Andersson e Stromquist (citados por Nuur e Laestadius (2006, p.6) já tinham problematizado, em 1988, o desenvolvimento dos territórios em termos similares, tendo identificado os "4K" Kunskap (Conhecimento) Konst (Arte), Kreativitet (criatividade) e Kommunikationer (Comunicação). A combinação de questões económicas, sociais e culturais em estratégias integradas urbanas é interessante e vantajosa do ponto de vista do desenvolvimento urbano. Por outro lado, é importante sublinhar que o debate sobre a cidade criativa coloca as pessoas criativas (talento) como personagens principais, destacando o seu papel no desenvolvimento económico e as suas escolhas em relação aos espaços e actividades urbanas . As visões tradicionais atribuíam esta responsabilidade às instituições, especialmente às empresas. Esta mudança de ponto de vista não deixa de ser um desafio importante para as politicas urbanas que devem repensar seriamente os factores de atractividade a privilegiar. Na esteira da ideia de uma cidade criativa, as autoridades públicas procuram implementar todas as estratégias para atrair pessoas criativas e, por essa via, os investimentos em actividades criativas. Isto reflecte-se no financiamento de grandes projectos relacionados não só com a cultura urbana e as artes mas também com as infra-estruturas que possibilitam o funcionamento da cidade criativa (transportes, telecomunicações, reabilitação ambiental, etc.). No entanto, o modelo "cidade criativa” tem originado processos de exclusão social bastante problemáticos, principalmente em relação à gentrificação e à fragmentação sócio-espacial (Scott, 2006; Gertler, 2004; Miles, 1997 ). David Ley (2003) discute, de uma forma muito interessante, a apropriação pelo mercado do capital cultural

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colectivo produzido pela cidade, salientando especialmente os benefícios do mercado da imobiliário. Os

projectos

criativos

de

regeneração

urbana

multiplicam-se,

perdendo

possivelmente o valor atribuído pela originalidade (dimensão crítica da criatividade), e desrespeitando frequentemente o quadro legal do planeamento urbano e, mais importante, contrariando a vontade das populações que repetidamente são ‘expulsas’ dos bairros onde, ao longo do tempo, estabeleceram as suas relações sociais. Esta situação foi bem descrita por Moulaert et al. (2004) a propósito de Bruges - Capital Europeia da Cultura 2002, onde a fragmentação da cidade se acentuou com a separação entre áreas chic, efervescentes e criativas - onde se concentra grande parte da oferta cultural, combinada com a oferta comercial - e áreas periurbanas, cada vez mais desqualificadas (Markussen, 2006). A regeneração dos espaços urbanos apareceu no discurso político como uma necessidade e também como uma oportunidade, independentemente das comunidades afectadas por estes processos. Alguma falta de preocupação com os impactos sociais da cidade criativa vai, por vezes, demasiado longe. Há um tom de celebração da "classe criativa" que obscurece o trabalho de milhares de trabalhadores temporários considerados "não-criativos" (em contraste com os "criativos") que garantem uma

cidade

bonita, limpa

e vibrante e

pronta a funcionar

ininterruptamente. É importante notar que os argumentos habituais sobre a cidade criativa são muitas vezes transformados em discursos fáceis e inconsequentes por parte das autoridades da cidade, «low-cost, market-friendly urban placebo» (Peck, 2005, p. 760). Isto corresponde, na opinião de Peck, à erosão do planeamento urbano através da justaposição – incoerente e desintegrada – de projectos imobiliários baseados no poder do marketing urbano. Mas os riscos não ficam por aí, juntando-se frequentemente a natureza efémera dos espaços criativos, intimamente relacionada com o impacto das modas e a importância da novidade, de modo que estes espaços surgem e desaparecem com facilidade (Scott, 2006). Na mesma linha de pensamento, Scott chama a atenção para a importância de promover um «creative-field effect» ligado à comunidade local e à intensidade das relações de proximidade.

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Estes pontos de vista críticos da cidade criativa focam dois pontos fundamentais: coesão / fragmentação, por um lado, e durabilidade / natureza efémera da cidade criativa, por outro. Por um lado, a "classe criativa" tende a concentrar-se em determinadas áreas da cidade ou mesmo em cidades pequenas, com bons acessos às grandes cidades e, por via directa (projecto de regeneração urbana) ou indirecta (através do aumento nos preços das casas), acabam por expulsar grande parte da população que realmente não partilha nem aproveita os benefícios - físicos e sociais – dos ambientes criativos. Por outro lado, os "super-criativos" ligados ao «business core» têm uma mobilidade considerável e frequentemente não criam raízes e não deixam sementes nos locais onde se instalaram. Mas, apesar das ameaças referidas nos parágrafos anteriores, acreditamos que a presença de artistas da cidade, a arte pública, as novas "landmarks", a ‘street art’ ou as múltiplas expressões artísticas alternativas (p.e. o Teatro do Oprimido) podem incentivar significativamente a auto-estima dos grupos e indivíduos mais desfavorecidos, bem como a das comunidades locais e regionais e reforçar, assim, o sentido de pertença territorial, especialmente importante nas cidades onde a mobilidade é acentuada. Estas potencialidades podem ser maiores se os artistas e as actividades criativas se instalarem em áreas mais problemáticas, onde o risco de fragmentação espacial e exclusão social são mais intensos. É nesses lugares que a estitização dos espaços, bem como a comunicação e o diálogo através da arte, promovem o desenvolvimento social e urbano. No entanto, não é o que geralmente acontece. Na maioria dos casos, as cidades criativas não são inclusivas nem socialmente inovadoras. Dando expressão a estas preocupações, surgiu o conceito de cidade socialmente criativa, o seja a cidade que estimula a criatividade ao mesmo tempo que garante a coesão social e espacial (Gertler, 2004, Scott, 2006). As autoridades políticas do Canadá e de Montreal, em particular, parecem estar atentas ao debate crítico sobre a cidade criativa e as visões alternativas (Tremblay, Fontan e Klein, 2005). Gertler (2004, p.1) observa que "o objectivo das políticas públicas no Canadá deve ser - e talvez possa ser - a formação de lugares criativos socialmente inclusivos". Esta ambição da política urbana canadiana mostra que é

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possível pensar e construir lugares onde a criatividade inspira não só a inovação tecnológica, mas também a inovação social. Isto significa combinar, por um lado, o dinamismo económico e antecipar a mudança e, por outro, a transformação das relações sociais e a produção de capital social (colectivo e partilhado) especialmente nas comunidades mais vulneráveis (Klein e Harrison, 2007; Moulaert et al, 2009). Devemos, portanto, identificar neste estudo quais são as dinâmicas a implementar nestes lugares.

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6.

MEIOS SOCIALMENTE CRIATIVOS

Na perspectiva da economia, a inovação é vista como um factor crítico e crucial das estratégias de competitividade dos lugares. O conceito de ‘milieu innovateur’, desenvolvido por Aydalot e pelo grupo do GREMI a partir dos anos 80 (Aydalot, 1986), pretende essencialmente dar conta de como é que os lugares promovem ou dificultam a inovação. Contudo, a transposição do conceito de ‘milieu innovateur’ para meio socialmente inovador, ou criativo, não é linear. Embora se encontrem pontos de convergência,

sobretudo

em

termos

dos

recursos

que

incentivam

a

inovação/criatividade, muitos outros parâmetros são distintos. Em geral, a instabilidade e a incerteza estão normalmente associadas ao meios criativos: constituem ameaças mas, ao mesmo tempo, são desafios que desencadeiam novas respostas, na medida em que as soluções anteriores deixaram de ser adequadas ou porque os problemas são outros. A noção de plasticidade, adoptada da física, pode ajudar-nos a compreender a natureza e as dinâmicas dos meios inovadores, em geral, e dos socialmente criativos, em particular. « La plasticité désigne la capacité qu’ont certains composants à s’informer (recevoir une forme) et à se dé-former, tout en gardant unité et cohérence. La plasticité est donc une condition nécessaire pour que la vie apparaisse, se maintienne et puisse évoluer. » (Entrevista de Dominique Lambert à Radio France Internationale, a propósito do livro Comment les pattes viennent au serpent. Essai sur l’étonnante plasticité du vivant, Dominique Lambert, René Rezsöhazy, Editions FLAMMARION, 2004) Se se transpuser este conceito para os meios sócio-territoriais, a plasticidade significa que os lugares onde a criatividade vai germinar devem ser flexíveis e, ao mesmo tempo, suficientemente organizados para que possam sofrer transformações culturais, económicas e sociais sem perderem a sua identidade (André et al. 2009). Esta capacidade parece ser resultante de 4 condições principais: • Diversidade – o novo chega através do ‘outro’. 30


• Tolerância – o novo é arriscado. • Democracia – o novo vem do diálogo. • Capital relacional – o novo vem da interacção.

A diversidade reforça a interacção e o contacto com a novidade por via da alteridade: novos-outros produtos, novos-outros saberes, novos-outros valores e visões. A tolerância é uma condição necessária ao risco que está associado à criação e à inovação (como no trapézio, é precisa a rede para se dar um salto espectacular). Um meio não pode ser criativo se penalizar o eventual insucesso de uma acção arriscada, ou seja, se for demasiado rígido, normativo e hierarquizado. A democracia implica a participação activa e a capacidade de decisão, bem como o acesso à informação e ao conhecimento necessários às escolhas adequadas e à identificação de soluções e respostas novas a apropriadas face ao contexto onde se produzem. O capital relacional – colectivamente partilhado – proporciona a interacção resultante quer dos laços de proximidade (redes locais de vizinhança, familiares, de amizade) quer das ligações com o exterior, mais ou menos longínquo.

A acção do Cirque do Soleil em Montreal, conjuntamente com outras instituições e organizações ligadas ao circo, é um excelente exemplo de regeneração do espaço urbano através das artes, numa óptica preventiva da fragmentação e exclusão social, constituindo-se como um caso de sucesso da criação de meios urbanos socialmente criativos.

Para além de Montreal, serão apresentados e analisados neste estudo outros casos exemplares de (re)qualificação urbana através da cultura e das artes.

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