Filosofia para a Formação da crianças

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Paula Ramos de Oliveira é formada em Ciências Sociais - licenciatura e bacharelado (Antropologia) pela Unicamp, mestre em Filosofia e Metodologia das Ciências e doutora em Educação pela UFSCar e professora de Filosofia da Educação, de Filosofia Para Crianças e de Teoria Crítica e Educação do Departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp (Araraquara).

Filosofia para a Formação da Criança configura-se como uma reflexão sobre o ensino de Filosofia e sobre a pertinência da introdução dessa disciplina no currículo desde os primeiros anos escolares. Assim como Freud é referência obrigatória para os estudos em Psicanálise, Matthew Lipman o é para os de Filosofia para crianças. Nesse sentido, o trabalho em questão parte dos fundamentos teóricos e metodológicos desse filósofo, bem como do currículo que elaborou para a disciplina. No entanto, a fim de adequar essa proposta de origem norteamericana à realidade brasileira, surgiu uma experiência com ensino de Filosofia em torno do Grupo de Estudos e Pesquisas “Filosofia para Crianças” (GEPFC), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara que, desde 1998, produz material alternativo para aulas de Filosofia - em especial, pequenas “histórias filosóficas” e poesias. O presente estudo focaliza a aplicação do material do GEPFC em dois projetos de extensão universitária de ensino de Filosofia e, desse modo, trata de outras questões, tais como a formação da criança e do professor a partir do ensino de Filosofia. A obra traz também algumas histórias e poesias de autoria dos membros do GEPFC que poderão interessar àqueles que se preocupam com a formação da criança e do professor, com o ensino de Filosofia, e os que simplesmente desejam conhecer uma experiência que se propôs a fazer uma releitura de Lipman.

Caminhos do Ensino Nélio Parra Educando para o Pensar Eder Alonso Castro e Paula Ramos-de-Oliveira (org.) Ensinar a Ensinar Amelia Domingues de Castro e Anna Maria Pessoa de Carvalho (org.) Formação Continuada de Professores: Uma Releitura das Áreas de Conteúdo Anna Maria Pessoa de Carvalho (coord.) Formação em Contexto: Uma Estratégia de Integração Júlia Oliveira-Formosinho e Tizuko Morchida Kishimoto (org.) História da Educação Brasileira Maria Lucia Spedo Hilsdorf

Aplicações Estudantes e profissionais de Pedagogia e Filosofia em nível de graduação e pós-graduação, bem como todos os envolvidos direta ou indiretamente com a educação e com crianças. I SBN 85 - 221 - 0393 - 3

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Outras Obras

9 788522 103935

Revisitando a Prática Docente João Gualberto de Carvalho Meneses e Sylvia Helena S. S. Batista (coord.)


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Oliveira, Paula Ramos de Filosofia para a formação da criança / Paula Ramos de Oliveira. -- São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

Bibliografia. ISBN 85–221–0393–3

1. Crianças e filosofia 2. Educação de crianças 3. Filosofia – Estudo e ensino 4. Lipman, Matthew – Crítica e interpretação I. Título.

03–5654

CDD–108.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Formação de crianças

108.3


FILOSOFIA PARA A FORMAÇÃO DA CRIANÇA

Paula Ramos de Oliveira

Austrália mllm Brasil

Japão México Cingapura mllm Coréia mllm mllm

Espanha

Reino Unidomlllm Estados Unidos mllm


Filosofia para formação da criança Paula Ramos de Oliveira

Gerente Editorial: Adilson Pereira Editora de Desenvolvimento: Eugênia Pessotti

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Capa: Ana Lima © 2004 Cengage Learning. Todos os direitos reservados. ISBN 13: 978-85-221-2611-8

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Impresso no Brasil. Printed in Brazil. 1 2 3 4 06 05 04


A meus pais, à minha irmã e ao GEPFC, pelo apoio intelectual e afetivo. Por tudo. A você.



APRESENTAÇÃO

“Antes eu pensava que todas as perguntas tinham respostas.” Frase de um aluno de Filosofia para Crianças

O

presente livro é fruto de trabalho de doutorado, defendido em 2002 na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pequenas modificações no texto original foram realizadas – a maior parte delas com o objetivo principal de atualizar alguns dados. A questão central deste estudo reside na defesa da introdução de Filosofia no currículo e de que esta disciplina deve começar a ser ensinada nos primeiros anos escolares. Para tanto, partimos dos estudos de Matthew Lipman, filósofo pioneiro nesta iniciativa, e de seu Programa Educação para o Pensar – Proposta de Filosofia para Crianças. Os seus fundamentos teóricos e metodológicos, bem como o currículo elaborado por ele para a disciplina de Filosofia para Crianças são objetos de estudo nesta pesquisa. Analisamos também a experiência da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara a partir do material alternativo produzido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Filosofia para Crianças (GEPFC) e da aplicação deste material em dois projetos de extensão universitária. Enfim, fazemos uma releitura de Lipman, na qual ressaltamos a importância de adequar este programa de origem norteamericana ao contexto educacional brasileiro e alertamos sobre a necessidade de o professor, em seu processo de formação contínua, caracterizar-se enquanto sujeito autônomo e dotado de reflexão. Dificilmente conseguiria agradecer a todos os que contribuíram com este trabalho, uma vez que considero que meu esforço reflexivo só se tornou possível pela existência de um trabalho coletivo. Assim sendo, agradeço a cada nome que aparece neste texto pela participação na experiência que se desenrolou a partir da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista de Araraquara – membros do vii


Filosofia para a Formação da Criança

Grupo de Estudos e Pesquisas Filosofia para Crianças (GEPFC), monitores dos projetos de extensão universitária, autores de histórias infantis e de poesias para aulas de Filosofia, bolsistas, alunos dos projetos e demais envolvidos. Agradeço também às bancas de qualificação e defesa – Profs. Drs. Antonio Álvaro Soares Zuin (UFSCar), Claudia Maria Menes Gontijo (UFSCar), Maristela Angotti (FCLAr), Renato Bueno Franco (FCLAr) e Éster Buffa (UFSCar), minha orientadora – e a revisão técnica de Newton Ramos de Oliveira, bem como suas contribuições lingüísticas. Por fim, meu agradecimento ao Prof. Dr. Walter Omar Kohan pelas importantes contribuições teóricas a este trabalho. A todos, por me ajudarem a pensar melhor.

viii


SUMÁRIO

PREFÁCIO

xv

INTRODUÇÃO

1

“Pequenas histórias”: elementos para reflexão

1

A (des)educação promovida pela escola

4

Filosofia e educação para o pensar: resgatando a criança como pessoa-sujeito

6

Decifra-me ou devoro-te

9

CAPÍTULO 1 DO INTERESSE E DA NECESSIDADE DA FILOSOFIA NO BRASIL

21 34

Recapitulemos

CAPÍTULO 2 A PROPOSTA LIPMAN: FUNDAMENTOS, METODOLOGIA E CURRÍCULO

43

2.1 Fundamentos

43

2.2 Metodologia

55

2.3 Currículo

60

As novelas filosóficas

60

Entre a narrativa e a descrição

60

O texto fala

62

O currículo de filosofia para crianças no Brasil

64 64 66

Issao e Guga (Kio and Gus) Pimpa (Pixie) A descoberta de Ari dos Telles (Harry Stottlemeier’s Discovery)

68 71

Luísa (Lisa)

ix


Filosofia para a Formação da Criança

Satie e Marcos (Suki, Mark)

72 74

Análise crítica das novelas e dos manuais do professor

76

Rebeca (Rebecca)

CAPÍTULO 3 A EXPERIÊNCIA DO GEPFC DA UNESP DE ARARAQUARA

83

3.1 Histórico do GEPFC

83

3.2 Projetos de Extensão Universitária

90

3.2.1 Educação para o pensar: ensino de Filosofia para crianças e xadrez no município de Araraquara 3.2.2 Educação para o pensar: Filosofia para crianças e contação de histórias – Casa da Criança “Cristo Rei” no município de Araraquara

3.3 Alguns relatos de aulas de Filosofia para crianças Primeira aula História 1 – Brincadeira de menina Idéias principais Plano de discussão História 2 – Planeta Água Idéias principais Plano de discussão Atividades O que a história trabalha História 3 – O mundo de cada um Idéias principais Plano de discussão História 4 – Quer trocar? História 5 – O encontro do Sol com a Lua Avaliação das aulas pelos alunos da EMEF Waldemar Saffiotti Avaliação das aulas pelos alunos da Casa da Criança Avaliação dos professores da EMEF Waldemar Saffiotti

Comentários Gerais

90

91 93 94 95 96 97 103 105 105 107 108 111 114 114 119 125

131 135 136 138

CONCLUSÃO

143

ANEXO

147

BIBLIOGRAFIA

149

x


Sumário

APÊNDICE

159

Histórias Filosóficas para o Ensino Fundamental (1a a 4a série)

161

Questão de gosto – Alessandra Aparecida de Souza

161

De onde surgiu? – Ana Lígia Malagolli

163

Carta ao amigo Israel – Ana Paula Zerbato

164

Confusão do amor – André Luiz Sena Mariano Curiosidade – Gislaine Cristina Pavini

164 166 166 167 167 168

Idéias principais Plano de discussão Sobre a história Habilidades desenvolvidas na história

Com jeitinho ninguém percebe – Gislaine Cristina Pavini Idéias principais Plano de discussão Sobre a história Habilidades desenvolvidas na história

Mamãe, cachorro pensa? – Gislaine Cristina Pavini Idéias principais Plano de discussão Sobre a história Habilidades desenvolvidas na história

168 169 169 170 171 171 172 172 173 173

Férias na fazenda – João Fernandes Neto

174 175 175 176 176 177 177

Nome ou apelido? – João Fernandes Neto

178

O vento – João Fernandes Neto

179

Abandonado – Lee Yun Feng

180

Um grãozinho de pólen – Gislaine Cristina Pavini Idéias principais Plano de discussão Sobre a história Habilidades desenvolvidas na história Sugestão de atividade

Vontade de ir para a escola – Marina Carla Ozias

181

Maluco ou normal? – Paula Ramos de Oliveira

182

Um espelho cheio de bocas – Paula Ramos de Oliveira

183

xi


Filosofia para a Formação da Criança

Será que você consegue me entender? – Paula Ramos de Oliveira Idéias principais Plano de discussão

Lição de casa – Raquel Baraldi Ramos Soares Como são os seus pais? – Ricardo Fernandes Mudando de nome – Ricardo Parra Catarina Sopa de letrinhas – Rita de Cássia Garcia Só para mim – Rosa Aparecida dos Santos Ferreira Passarinho na gaiola – Vânia Mesquita Idéias principais Plano de discussão

Amigos para sempre? – Vânia Mesquita Idéias principais Plano de discussão Sobre a história Habilidades cognitivas desenvolvidas pela história Sugestões de atividades

Medo de quê? – Vânia Mesquita Idéias principais Plano de discussão Sobre a história Habilidades cognitivas desenvolvidas pela história Sugestão de atividades

As coisas que vi – Vânia Mesquita Idéias principais Plano de discussão

Histórias Filosóficas para a Educação Infantil Quem me quer? – Juliana Santos de Souza O esconderijo – Juliane Dias Cardoso Margalho Pires Tristeza cor-de-rosa – Lia de Moura Idéias principais Plano de discussão

A prisão da bailarina – Lígia de Almeida Durante Por que a chuva cai? – Marcela Cecília Porcelli

xii

185 186 187 189 192 193 194 196 197 198 198 199 200 201 202 203 203 203 208 208 210 210 210 211 212 212 215 215 216 217 217 218 219 219


Sumário

Poesias

221

Felicidade – Ana Nicolaça Monteiro

221

É verdade? – Ana Nicolaça Monteiro

222

Beleza – Ana Nicolaça Monteiro

222

Direção – Andréia Mascia Ferreira

223

Família – Andréia Mascia Ferreira

223

Idéias – Andréia Mascia Ferreira

224

Outro – Andréia Mascia Ferreira

225

Cheiros, vozes, sabores e texturas... – Andréia Mascia Ferreira

226

Em cena – Andréia Mascia Ferreira

226

Tempo – Andréia Mascia Ferreira

227

Transtorn ação – Andréia Mascia Ferreira

228

Mundo – Andréia Mascia Ferreira

229

Eterno retorno – Paula Ramos de Oliveira

230

Déjà vu, ao som do Djavan – Paula Ramos de Oliveira

231

Por onde ando – Paula Ramos de Oliveira

232

O que ninguém pode ver – Vânia Mesquita

234 234 235

Idéias principais Plano de discussão

237

Me mória – Vânia Mesquita

xiii



PREFÁCIO

U

m prefácio é o que antecede a um livro, o que vem antes, o que o inaugura. É aquilo que, embora escrito depois, é colocado antes, no início. Seu sentido é apresentar, convidar, sugerir a leitura do que importa: o corpo do livro. Como apresentar Filosofia para a formação da criança de Paula Ramos? Como inaugurar, convidar e sugerir sua leitura? Como não entreter exageradamente ao leitor e, a uma só vez, propiciar-lhe elementos que o levem, com entusiasmo, à leitura do livro? Talvez seja interessante situar o livro no contexto da área na qual se inscreve: a Filosofia para Crianças. Praticada no Brasil desde 1985, nos últimos anos ela tem ganho uma força significativa nas universidades brasileiras, através de cursos de extensão e especialização, pesquisas individuais e coletivas, eventos regionais, nacionais e internacionais e outras iniciativas que permitem, aos poucos, ir consolidando espaços para pensar este desafio inaugurado pelo filósofo estadunidense Matthew Lipman, já há mais de três décadas. No decorrer deste tempo, tem-se produzido um número significativo de monografias de cursos de especialização, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre Filosofia para Crianças. Um destes trabalhos é a Tese de Doutorado em Educação na Universidade Federal de São Carlos de Paula Ramos de Oliveira, que compõe este livro. Produto de um importante esforço individual e coletivo, esta tese presta contas da experiência do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia para Crianças (GEPFC) criado e coordenado pela autora no Campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Embora a autora se inscreva na tradição inaugurada por Lipman, resulta nítido o interesse em recriar esta proposta tanto no que se refere à sua metodologia quanto ao marco teórico que permite pensar a prática filosófica das crianças e, de forma mais ampla, as possibilidades educacionais da filosofia. Neste sentido, merece destaque, no âmbito teórico, a tentativa da autora por confrontar os princípios de Lipman xv


Filosofia para a Formação da Criança

com autores da Escola de Frankfurt, em particular, Th. Adorno e W. Benjamin e, no âmbito metodológico, a tentativa por produzir outros materiais de Lipman. Contudo, o aporte mais significativo do livro está localizado, na minha opinião, justamente na experiência que a autora e um grupo expressivo de alunos desenvolveram em Araraquara desde 1998. Trata-se de diversas formas de recriar e levar a filosofia para além dos muros da universidade: filosofia com os da terceira idade e pessoas com Síndrome de Down; filosofia com xadrez; filosofia e contação de histórias. Talvez o destaque esteja mesmo na atividade de produção de histórias infantis, algumas das quais são oferecidas no Apêndice deste livro. Afinal, este livro trata de uma experiência, de uma tentativa de aproximar a filosofia das crianças, ou, para melhor dizer, de pessoas com espírito de criança. Ele tem as riquezas e limites de toda experiência e, sobretudo, a enorme riqueza de uma experiência que procura ser fiel a si mesma no percurso de sua interlocução com outros. Finalmente, é possível que a presente obra nos ajude a pensar nossa própria experiência da e na infância. Comentando aquele famoso opúsculo kantiano O que é o iluminismo, no qual Kant chama a humanidade a sair da menoridade e a fazer uso, com decisão e coragem, de seu próprio entendimento, M. Foucault expressa suas dúvidas sobre se alguma vez nos tornaremos maiores de idade. Mas expressa o valor e o sentido de uma “ontologia crítica de nós mesmos”, a importância e a significação da reflexão crítica sobre o que estamos sendo (M. Foucault, “O que é o iluminismo?”, Dits et Écrits, vol. IV, p. 577) em um momento particular da história. Neste sentido, aquele/aquela que ler este livro com os sentidos bem abertos encontrará, certamente, a companhia de uma experiência que, por sobre todas as coisas, se mostra capaz de pensar-se a si mesma. Walter Omar Kohan Rio de Janeiro, fevereiro de 2003.

xvi


INTRODUÇÃO “Cala a boca já morreu: quem manda na minha boca sou eu!” Dito popular

“Pequenas histórias”: elementos para reflexão1

I

nfelizmente, apesar de toda crítica já operada sobre o positivismo, ainda encontramos muitos professores que ensinam e se guiam pela lógica positivista. Acreditam piamente na neutralidade, na objetividade total e em verdades absolutas. Suas atitudes em sala de aula, o modo como tratam o conteúdo, suas concepções sobre os papéis do aluno e do professor no processo de formação, os textos e o modo como o utilizam são alguns exemplos que explicitam essa lógica perversa, que carrega consigo o desmoronamento do sujeito ao não se comprometer com uma educação que tenha uma perspectiva emancipatória. Selecionamos alguns relatos que demonstram o que indicamos. Qualquer semelhança com casos reais não é mera coincidência...

Cena 1 Um aluno do Ensino Fundamental de uma escola estadual de uma cidade do interior do Estado de São Paulo faz algo recriminável, segundo os critérios de sua professora. Ela precisa tomar uma atitude – sempre disseram para ela que professor sem autoridade não é um verdadeiro professor. Assim, chama este aluno e diz: “Vá, imediatamente, para a ‘cadeira do pensar!’ Fique lá pensando sobre o que fez de errado.” E o aluno vai. Ele pensa? Ela pensa? O que pensam eles e os demais? Os A parte inicial desta apresentação encontra-se publicada em Educando para o pensar, coletânea de artigos organizada por Eder Alonso Castro e Paula-Ramos-de-Oliveira (São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002). 1

1


Filosofia para a Formação da Criança

alunos já sabem o que é cadeira do pensar. Sabem o caminho da cadeira do pensar. Mas, o que podem pensar sobre o próprio pensar? Qual é a conseqüência desta postura corriqueira e cotidiana tomada por essa professora? O pensar como castigo. Cantou? Então, dance agora! Errou? Então, pense agora! Existem hora e lugar para pensar. Há uma cadeira pronta para receber os rebeldes. Essa cena causa-nos espanto; porém, reconhecemos nela outras tantas com o mesmo teor, que nos espantamos, ao mesmo tempo em que a achamos normal. E se é normal, é natural. Deve ser... É quase automático chegar a essa conclusão. Ficar de castigo atrás da porta ou no fundo da sala, não ter intervalo, ser chamado de burro ou sofrer outras agressões… Como é difícil aprender! Aprender é preciso – torna-se ato obrigatório. Não aprender implica castigo. Aprender também não seria castigo? Não nos enganemos: alunos do Ensino Fundamental sabem muito bem fazer inferências. Não os subestimemos. Conforme lembrou Maristela Angotti,2 a “cadeira do pensar” originalmente integra o conjunto de medidas didático-pedagógicas do Método Montessori. Pretende estimular a autodisciplina: o aluno que atrapalha a dinâmica do grupo ou danifica o material será nela colocado para que possa visualizar o trabalho do grupo e, ao repensar seu comportamento, indicará qual contribuição poderá oferecer. Como se vê, sua transformação em castigo revela como partes de um método que busca “…ensinar aos adultos a respeitarem as diferenças individuais e que enfatiza a interação social para formar uma personalidade integrada…”3

podem ser transformadas e até invertidas pela repetição mecânica irrefletida. Cena 2 Uma garotinha causa a maior polêmica em outra escola – desenhou uma flor e a pintou de preto! “Essa menina deve ter problemas...” Preocupados em acompanhar o aluno de perto, a coordenação e direção chamam uma equipe de especialistas e convocam os pais para colocar o

Membro da banca de qualificação e de defesa. Objetivos do método concebido por Maria Montessori (1870-1952). Cf. http://www. montessori.edu/method.html. 2 3

2


Introdução

problema da pobre garota. Quando me contaram essa história, lembrome que interrompi a conversa neste exato momento e perguntei: Alguém se lembrou de conversar com ela sobre sua flor preta antes?!” “Não… ninguém”. Eis a resposta que escutei. Ela só foi ouvida no momento da reunião quando, finalmente, alguém resolveu fazer a pergunta básica: “Por que você pintou a flor de preto?” E a garotinha desmontou a todos com sua resposta: “Ué, e se era noite?!” A criança estava exercendo a expressão artística. A poesia subverte o mundo rotineiro, maçante. Convenhamos, será que é ela quem tem problemas?! De fato, não podemos negar que há, por parte desta escola, uma intencionalidade positiva frente a seus alunos, revelada pelo cuidado com o episódio e com a aparente preocupação em compreender a criança. Contudo, o encaminhamento dado ao caso indica, pelo menos, um grande equívoco: a criança como ser incapaz de ter voz. Cena 3 Uma outra menininha sempre gostou de desenhar. Desde muito pequena vivia com folhas de sulfite e suas canetinhas. Fazia desenhos realmente bons. Um deles foi selecionado pelo Maurício de Souza para a publicação na Folhinha, antigo caderno do jornal Folha de S. Paulo. Traços firmes, noção de perspectiva e criatividade eram algumas das qualidades de seu desenho. Crianças vistas de costas, com suas tranças. Um belo dia essa menina começa a freqüentar um lugar chamado “escola” e sua professora imediatamente proíbe o uso de canetinhas. Ela segue a determinação de sua diretora para todas as professoras da escola: é proibido usar canetinhas, pois suja o verso da folha; só é permitido usar lápis de cor. O que aconteceu com a pequena desenhista e pintora? Perdeu o gosto pelo desenho. Mas, está certo, não é?! Afinal, imaginem quantos versos de folhas iria sujar! Essa menina traumatizouse quanto a essa atividade de que tanto gostava e na qual era tão criativa. Ficou moça. E hoje, acredita não ter criatividade, nem jeito para atividades artísticas. Todos os que vêem seus desenhos de criança tentam convencê-la de suas potencialidades artísticas. Mas o caminho, pelo menos por enquanto, é irreversível. Não há quem a faça retornar à alegria e realização do ato de desenhar e colorir. Cena 4 Adultos tentando adivinhar a mímica das crianças. Uma delas faz um movimento com as duas mãos como se cada uma delas estivesse a tocar 3


Filosofia para a Formação da Criança

em algo: os dedos correm de lá para cá, o ritmo é de uma dança. O sorriso no rosto mostra o prazer da ação. O que será? Não há dúvida. Alguém está tocando piano, dizem os adultos. Porém, a criança revela o significado de sua mímica: “É a minha tia no computador!” A criança vê o mundo como um lugar cheio de possibilidades. O mundo se desenvolve a ela de maneira aberta, surpreendente. Os adultos tendem a enxergá-lo de modo estereotipado, ou a não enxergá-lo. Cena 5 “Façam fila, meninas de um lado e meninos do outro”, dizem as professoras. Fazer fila por quê? Por que “meninas de um lado e meninos do outro”? Meninas e meninos não devem ficar juntos? Formam-se, então, os clubes dos Bolinhas e os das Luluzinhas. Este mundo é mesmo sem significação, preconceituoso e estereotipado.

A (des)educação4 promovida pela escola Retomando a questão apontada no início, vemos que a concepção positivista de educação explicita suas mazelas por um fazer pedagógico que muito mais deseduca do que educa: trata-se da deseducação travestida, fantasiada de educação. Há diferença entre o conhecimento que se pretende neutro e o conhecimento que assume seus limites. O aluno tem que estar ciente deste limite e situar-se a partir dele; deve compreender o conhecimento enquanto processo, diferentemente da visão positivista, que compreende o mundo de forma estática, linear, que busca modelos e padrões e recusa as diferenças. Na realidade, o professor que não considera seus alunos como parte do processo assume como intocável e inquestionável a premissa de que os alunos são incapazes de refletir. Para este tipo de professor, transmissão de conteúdo parece pressupor a própria idéia de neutralidade. O conhecimento é reelaborado a todo instante; está sempre em construção. Na verdade, talvez falte a esse tipo de professor... a capacidade de refletir.

4 Deseducação e semiformação são termos paralelos. No entanto, a semiformação liga-se mais diretamente (embora não exclusivamente) a processos sociais difusos (mídia, senso comum etc.), a deseducação liga-se mais diretamente (ainda que não exclusivamente) a processos escolares ou familiares. Ambos constituem-se como entraves à formação.

4


Introdução

Imaginem uma caixa com blocos de madeira. Quantos blocos, quais as cores, as formas e os tamanhos? Sabemos que há blocos coloridos que apresentam tamanhos e formas diferenciados. Os conceitos aqui envolvidos são da maior importância. Há uma possibilidade de motivar os alunos para a descoberta de relações e significados. Este esforço é necessário. Dois triângulos podem formar um quadrado? Descobrir sozinho isto, ver um amigo fazê-lo ou contribuir para que juntos descubram é mais significativo do que ouvir o professor contar. Uma “caixinha de surpresas” interessa mais do que uma caixinha com oito blocos, de tais tamanhos, cores e formas. Se o professor já contou como ela é, se já apresentou o conhecimento como algo pronto e acabado, o que resta aos alunos?! Constatar que a realidade é intocável? Que apreendê-la é apenas repetir conhecimentos estabelecidos e imutáveis? Quais as conseqüências desta concepção positivista de educação? Como esses alunos estão sendo “formados”? Para quê? É possível elencar algumas conseqüências desta concepção equivocada de ensino. São elas: • reforça preconceitos ao trabalhar com estereótipos. • institui a relação mando-obediência. • assegura a “autoridade” do professor, detentor único do saber e do poder. • inibe e/ou destrói a criatividade do aluno. • cerceia a liberdade de expressão do aluno. • promove o medo do erro. • institui a perspectiva do castigo. • não educa para a autonomia. • faz do aluno uma não-pessoa, pois o considera um ser sem voz. • “forma” alunos para o não-pensar, seres submissos, ao excluí-los do processo de construção do conhecimento. Como reverter tal situação? É claro que não podemos ignorar outros entraves que o ensino brasileiro nos coloca. Apenas queremos enfatizar a formação como questão crucial a ser enfrentada. O conceito de formação é muito mais complexo do que o de simples aprendizagem. Wolfang Leo Maar desenvolve o sentido de formação como entendido pela Teoria Crítica: 5


Filosofia para a Formação da Criança

“Em alemão, a expressão possui um sentido ‘educacional’. Refere-se, porém, sobretudo conforme a tradição da filosofia hegeliana, ao processo dialético de formação do homem no mundo, em que aquele, ao se impor a este, adquire sua realidade, enquanto o mundo, simultaneamente, é humanizado pelo homem em interação com ele. Articulam-se deste modo o processo de formação do sujeito, e a constituição dos elementos humanos do mundo, que serão a ‘cultura objetiva’. O processo formativo constitui a base do movimento dialético e seu paradigma é o processo do trabalho social. O ideal formativo corresponderia, nestes termos, a um processo de trabalho social autônomo, permitindo a realização total das potencialidades de seu agente como sujeito emancipado da sociedade.” (1994:141)

Queremos ressaltar que o educador não pode fazer do processo educativo uma corrente de mão única. Precisa ver o aluno como parte essencial deste processo, estimulando-o a usar sua voz e levando-o a desenvolver sua reflexão, seu pensar. Desmistificar a concepção positivista de educação é apenas o princípio do processo. Há a necessidade de uma inversão de certos valores. Por exemplo, compreender o erro como parte da aprendizagem e ter consciência de nossa ignorância para que possamos querer conhecer com liberdade. Tal preocupação integra o conjunto de “bom senso” que Gramsci reconhece no interior do “senso comum”, é fato de observação cotidiana que se incorpora na experiência dos indivíduos e das nações. Já na época medieval, o valor pedagógico do erro revelava-se na sentença latina “Errando discitur” (Tosi, 2000:184), ou seja, “é errando que se aprende”. De fato, o reconhecimento do erro é um dos primeiros passos para suplantá-lo e progredir na busca do conhecimento e da compreensão. Enfim, saber dos limites do conhecimento nos tranqüiliza quanto aos erros e quanto às ausências de respostas para tudo.

Filosofia e educação para o pensar: resgatando a criança como pessoa-sujeito Kant insiste na necessidade de o homem sair da menoridade. Sair da menoridade significa ganhar voz, ter sua voz escutada: resgatar o indivíduo como pessoa-sujeito. “Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a 6


Introdução

incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se a si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.” (1985:100)

Observe-se que “maioridade” em alemão (Mündigkeit) indica a capacidade de se fazer uso da boca (Mund), ou seja, de se fazer ouvir. O mesmo fato lingüístico acontece com o termo “infância”, que, pela raiz latina, indica também “fase em que não se tem a capacidade de se fazer ouvir, de falar”. Analisemos mais duas cenas: Cena 6 – Aula de Filosofia para Crianças. A metodologia utilizada pressupõe o diálogo. Diante de uma nova dinâmica em sala de aula, ouvimos um aluno do Ensino Fundamental dizer: “A professora diz que não pode conversar porque senão não dá para aprender.” Esses alunos são seres sem voz. Não são pessoas; são não-pessoas, são não-educandos. Cena 7 – Aula de Filosofia para Crianças. Os alunos avaliam a disciplina após um ano de aulas. Um deles afirma: “Antes eu pensava que todas as perguntas tinham respostas.” Ah, se eu soubesse disso aos oito anos! Ah, se os professores soubessem, estivessem cientes de que não são deuses... Qual o papel da Filosofia perante uma educação voltada para o pensar? Qual o significado da existência de um programa específico desenvolvido para estimular o pensar? Ao nos referirmos à idéia de programa pensamos em um conjunto de concepções que fornecem a fundamentação teórica para uma determinada proposta de ensino. Desta forma, vários conceitos são repensados: há uma certa concepção de educação que pretende sustentar a proposta que será colocada em prática. Vou viajar de barco ou de avião? Vou para uma região em que faz calor ou frio? Preciso de muitas informações para fazer a minha mala. O mesmo ocorre com um programa quando abriga algumas concepções de professor, aluno, conhecimento, ou de como o seu currículo deve ser construído, sua metodologia, entre outras. 7


Filosofia para a Formação da Criança

Ao longo do tempo, outros materiais de Filosofia para Crianças surgiram no currículo dessa disciplina. Novas questões vêm à tona: o que faz um texto ser filosófico? O que o define? Qualquer texto que seja considerado “reflexivo” pode ser considerado um bom material para ser trabalhado no ensino de Filosofia para Crianças? Quais são as diferenças entre um texto literário e um texto filosófico? A literatura infantil de reconhecida qualidade cumpre o mesmo papel que o texto filosófico? Além disso, há uma necessidade premente de se repensar a adequação deste programa, de origem norte-americana, ao contexto brasileiro, estudar novas possibilidades para esta proposta, talvez mais adequadas à realidade brasileira. O Brasil tem revelado grande interesse pelo programa Educação para o Pensar – tanto nas escolas, quanto em nível acadêmico. Talvez porque Filosofia para Crianças apareça como uma alternativa ao ensino fundamental, tão carente de novas propostas. A carência e/ou a má qualidade dos materiais didáticos para o Ensino Fundamental também reforçam a busca por novas alternativas – basta ver a lista de livros reprovados pelo MEC por apresentarem conceitos errados ou estarem carregados de conteúdos ideológicos. Essa é também outra tarefa urgente: realizar a crítica aos materiais utilizados nesse nível de ensino. Uma Educação para o Pensar traz consigo a perspectiva emancipatória tão necessária para uma formação mais integral e humana; uma educação voltada para o pensar que forma pessoas com voz, autônomas, criativas e críticas é também aquela que busca a razão vital e que faz a denúncia da razão instrumental. Talvez essa seja a chave para a dissolução da dicotomia “habilidade x conteúdo”. Esta questão adquire outros contornos com a explosão de informações e com os novos meios de comunicação. Não podemos ignorar esta realidade, ainda que essa não seja a realidade da maioria. Como diz Marilena Chauí, no Brasil temos o primeiro mundo e o terceiro mundo. “Há, em cada país, um ‘primeiro mundo’ (basta ir aos Jardins e ao Morumbi, em São Paulo, para vê-lo) e um ‘terceiro mundo’ (basta ir a Nova Iorque e Londres para vê-lo). A diferença está apenas no número de pessoas que, em cada um deles, pertence a um dos ‘mundos’, em função dos dispositivos sociais e legais de distribuição de renda, garantia de direitos sociais consolidados e da política tributária (o grosso dos impostos não vem do capital, mas do trabalho e do consumo);” (CHAUÍ, M.: 1997, 04) 8


Introdução

O fato é que a educação informal existe e começa a ganhar força. A escola, enquanto local de educação formal, deve estar atenta aos outros modos de educação que se instalam na sociedade e cuidar para que não sejamos atingidos pelo “efeito cegueira”. Assim, justifica-se ainda mais uma educação voltada para o desenvolvimento do pensar.

Decifra-me ou devoro-te Decifra-me ou devoro-te: o enigma lá está. O conhecimento é a esfinge. Poço sem fundo. O limite confunde-se com o ilimitado. Que a questão possa ser colocada, que o desafio esteja nela. Que decifrar e devorar em educação possam ter o gosto e o sabor dos céus – e não a angústia que aprendemos equivocadamente a sentir diante de um dilema. Dilema com gosto de néctar. Dilema não como questão de vida ou morte. Gostar da dúvida, da reflexão, do pensar é saudável; distancianos do dogmatismo. Dilema com sabor do desejo do conhecimento. Que o educando – ser em formação como nós – perceba a complexidade, reduto dos grandes enigmas, do ser humano e das questões que lhe dizem respeito; que compreenda o dilema como fruto desta complexidade que merece ser decifrada ad infinitum; que esse processo tenha sempre o sabor, o cheiro e o gosto que sentimos na infância e que buscamos quando adultos para nos invadir de prazer – um encantamento, uma rememoração, uma reelaboração. Que o dilema do conhecimento deixe de se pautar pela máxima “Aprendas ou serás castigado”. O conhecimento deve ser como uma fruta que merece ser devorada-decifrada com prazer e não como castigo. * * * As ciências humanas sempre destacaram a importância de se analisar o projeto educativo de cada sociedade com o intuito de compreender que tipo de cidadão se pretende formar naquele espaço geográfico e contexto histórico. A sociedade moderna ocidental, considerada democrática, deveria ter escolas também democráticas que propiciassem a formação de cidadãos livres e autônomos. Não é o que ocorre na realidade, pois não basta que a sociedade seja democrática para que se tenha a garantia de que as instituições o sejam. Uma escola interessada em formar pessoas autônomas tem que criar estruturas e processos democráticos que norteiem a vida escolar; além 9


Filosofia para a Formação da Criança

de elaborar um currículo que ofereça experiências democráticas aos alunos, o que pode levá-los a ser leitores críticos da sociedade em que vivem e não apenas consumidores de um saber pronto e acabado. A polêmica quanto ao papel da educação na moderna sociedade é justamente em relação à heteronomia x autonomia. Michel Foucault (1988a; 1988b) mostra como a sociedade moderna instaura “uma nova tecnologia do poder” – o poder disciplinador das instituições atinge os indivíduos em sua totalidade, corpos e mentes, tornando-os dóceis, disciplinados, padronizados para viverem e servirem a uma sociedade que se quer democrática: “... passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis [...]” (1988 a: 172)

Para Foucault, esses mecanismos científico-disciplinares constituem uma pedagogia normalizadora, isto é, na qual estão suspensas a originalidade e a autonomia. A escola e as demais instituições sociais tentam disciplinar a mente e o corpo, reforçando a heteronomia (1988a: em especial da p. 153 a 172). Sabemos, no entanto, que muitos estudiosos educadores buscam formular novas propostas de educação que objetivam formar pessoas autônomas, aptas a exercer um pensamento reflexivo. Em várias épocas, desde a Scuola Giocosa criada na Itália pelo pedagogo humanista Vitorino de Feltre (1378-1446), educadores têm tentado transformar o ensino cansativo e desinteressante em algo vital, sem que ele perca a seriedade dos estudos significativos. Vitorino de Feltre não deixou obra escrita, mas sua escola de caráter aberto demonstra seu conceito e sua prática de educação: “Antes de tudo se preocupou com a formação integral do homem. Segundo os ideais da humanitas, tratou de educar harmonicamente os jovens. (...) colocou no centro do plano de ensino as ‘artes liberais’, porém ensinou aos jovens a literatura e história de Roma em vez de meras fórmulas lingüísticas. Com freqüência dizia: ‘Quero ensinar os jovens a pensar, não a delirar.” (LARROYO, 1974:353-354) 10


Introdução

Na virada do século XIX para o XX, vários movimentos escolares progressistas instalaram-se nos mais diversos países, tais como: Alemanha, Itália, Rússia etc. Mas, em termos de nosso país, devemos assinalar o florescimento das Escolas Novas5 a partir dos Estados Unidos, cujos fundamentos filosóficos foram traçados por John Dewey (1859–1952), cuja influência repercutiu aqui através dos chamados “Pioneiros da Escola Nova” (Buffa & Nosella, 1991; Nosella, 1986). No Brasil, o movimento das Escolas Novas gozou de amplo prestígio desde a década de 30 até aproximadamente a de 60, quando, de certa maneira, conviveu com o Método Paulo Freire. O regime militar que se instaurou aqui em 1964 trouxe, porém, a ideologia do capital humano e a defesa de uma escola tecnocrática. Ao mesmo tempo, várias teorias sociológicas, em especial francesas (Althusser, Bourdieu e Establet), denunciavam que a escola cumpria a função de reproduzir as estruturas da opressão. Os governos implantavam escolas cada vez mais burocratizadas, como vimos acontecer também em nosso país, sob o regime militar na época. Em reação a esta escola sustentada ideologicamente por variedades do neopositivismo e a uma visão nãodialética – que, segundo os sociólogos super-radicais, desvalorizava totalmente a ação escolar –, os educadores mais conscientes tentaram desenvolver uma escola mais crítica, fundamentada no materialismo histórico. Esta tentativa, entretanto, aliou-se a um combate sistemático contra a escola nova (Saviani, 1985; 1989; 1996), à qual se acusava, sobretudo, em uma sociedade capitalista, de ter servido mais às crianças de classes sociais elevadas. Culpa da escola nova ou mais um efeito da desigualdade social? No final da década de 60 e início da de 70, no século recém-terminado, novamente surgem, em plano mundial, inúmeras experiências educativas, o que desnudava, uma vez mais, a insatisfação dos educadores e da sociedade para com as escolas tradicionais existentes. Estas propostas inovadoras revelaram-se como fenômenos transversais, uma vez que ocorreram no mesmo momento histórico em diferentes países, sendo indicadoras de uma busca por caminhos democráticos. Também no Brasil, experiências renovadoras do ensino acontecem, embora atraves-

5 Cf. Duarte (1986): nome genérico atribuído a formas inovadoras de organização escolar baseadas na necessidade de adaptação à sociedade e na liberdade da criança: na Rússia, a escola Isnaia-Poliana, de Tolstoi; na Alemanha, as “Länderziehungsheime”, de Lietz e a “Freie Schulemeinde”, de Winneken e Paul Geheeeb. No Brasil, o termo costuma restringir-se às escolas renovadoras mais presentes em nosso ensino de 1920 a 1950.

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Filosofia para a Formação da Criança

sássemos, na época, o regime militar que tentava implantar sua pedagogia burocrático-tecnicista (Revista de Pedagogia, 1969). Certamente, os movimentos de protesto estudantil, cujo auge se deu na França e Alemanha em 1968, indicavam que a juventude e os intelectuais – às vezes, com entusiasmo progressista, e outras, com convicções infirmes e até equivocadas – exigiam uma ruptura comportamental, política e também educacional que abrisse novas alternativas a uma sociedade mais sadia. Segundo Helena Singer (1997:19), o mapeamento das escolas alternativas mostra que elas são mais recorrentes nos Estados Unidos, Alemanha e Áustria, mas são também encontradas em vários outros países, como: Grã-Bretanha, Espanha, Dinamarca, França, Suíça, Canadá, Colômbia, Equador, Japão, Israel, Índia, Nova Zelândia e Zaire. Dentro deste contexto de busca de inovações pedagógicas é que aparece o programa Educação para o Pensar, concebido e aplicado pelo filósofo norte-americano Matthew Lipman, na Universidade de Colúmbia, EUA, em fins da década de 60. O programa conseguiu aglutinar vários pensadores, merecendo destaque a Dra. Ann Margareth Sharp, que, juntamente com Lipman, fundou o Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC). O programa, desde o seu início, sempre buscou estimular um pensar crítico, criativo e cuidadoso como uma tarefa cotidiana. Ensinar filosofia seria ensinar a pensar e não simplesmente descrever a história linear da filosofia. Na década de 70, o programa Educação para o Pensar, já contando com amplo material de apoio, teve boa acolhida em diferentes países, como: Áustria, Canadá, Taiwan, Islândia, França, Alemanha, Austrália, Havaí, México e Portugal. Foi ainda introduzido em vários países da América Latina: Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Argentina etc. No Brasil, o programa surgiu por uma iniciativa da professora Catherine Young Silva, que fundou o Centro Brasileiro de Filosofia para Criança (CBFC) em janeiro de 1985, em São Paulo. Após a morte de Catherine, foram criados diversos centros regionais em cidades paulistas de médio porte, tais como: Campinas e Ribeirão Preto.6 Rapidamente, o programa espalhou-se pelos demais Estados brasileiros: Belo Horizonte (MG), Cuiabá (MT), Curitiba (PR), Petrópolis (RJ), Florianópolis (SC) e São Luís (MA). Dentre tais centros, destaca-se o Centro Catarinense por

6 A partir de 2003, o atendimento a esta região encontra-se sob a responsabilidade do CBFC (SP).

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Introdução

seu dinamismo: conta com uma editora, a “Sophos”, e um jornal trimestral gratuito, “Corujinha”; além disso, produziu sempre amplo material impresso e audiovisual (cf. Silveira, 2001:24-25). Com o passar do tempo, este centro, sob a presidência de Sílvio Wonsovicz, obteve sua autonomia quanto ao CBFC, sob a denominação de “Centro de Filosofia – Educação para o Pensar”. Atende agora a um considerável número de escolas e desenvolve programa com suas próprias novelas e manuais. Também algumas universidades têm acolhido o Programa de Lipman para aplicação e estudos críticos, dentre as quais podemos citar a Universidade Federal de Mato Grosso (MT), a Universidade Católica do Paraná (PR), a Universidade de Passo Fundo (RS), a Universidade de Brasília (DF), a Universidade Católica de São Paulo (SP). (Kohan, 2000: 99-104). Na área da educação, poucos pesquisadores debruçaram-se para análise destas novas escolas e teorias que, por serem diferenciadas, ficam sempre à margem das pesquisas e da sociedade. Este fato motivou-me a pesquisar a introdução da disciplina Filosofia para Crianças nestas escolas que, assim, se aliam ao movimento mundial por escolas democráticas, alternativas e pioneiras. No ano de 1994, submeti-me a um concurso para ser professora da Cooperativa Educacional de São Carlos (SP). Aprovada e contratada, lecionei, durante três anos, aulas de Filosofia nas duas primeiras séries do Ensino Fundamental para crianças de 6, 7 e 8 anos. Na época, conhecia a proposta de ensino de Filosofia para Crianças. Entretanto, durante o tempo em que ministrei esta disciplina, não apliquei as novelas filosóficas de Lipman. Desenvolvi um programa alternativo nesta escola, embora alicerçado na proposta oficial desse filósofo. A prática em sala de aula durante este período, assim como os contatos, cursos e colóquios realizados pelo Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças foram indispensáveis para que, conhecendo os pressupostos e a metodologia do programa Educação para o Pensar, eu buscasse um caminho alternativo de ensino de Filosofia para Crianças, ou seja: dediquei-me a investigar como se processava a introdução do ensino de Filosofia para Crianças no Ensino Fundamental a partir do contexto brasileiro. Desta experiência deparei-me com vários questionamentos e refleti sobre aspectos positivos e negativos da proposta norte-americana, o que me levou à idéia de criar material pedagógico adequado às escolas e estudantes brasileiros. Seria uma maneira de revisitar os pressupostos lipmanianos e atingir uma visão mais crítica, sem aceitação incondicional, mas também sem recusas radicais por encontrar este ou aquele ponto polêmico. Minha 13


Paula Ramos de Oliveira é formada em Ciências Sociais - licenciatura e bacharelado (Antropologia) pela Unicamp, mestre em Filosofia e Metodologia das Ciências e doutora em Educação pela UFSCar e professora de Filosofia da Educação, de Filosofia Para Crianças e de Teoria Crítica e Educação do Departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp (Araraquara).

Filosofia para a Formação da Criança configura-se como uma reflexão sobre o ensino de Filosofia e sobre a pertinência da introdução dessa disciplina no currículo desde os primeiros anos escolares. Assim como Freud é referência obrigatória para os estudos em Psicanálise, Matthew Lipman o é para os de Filosofia para crianças. Nesse sentido, o trabalho em questão parte dos fundamentos teóricos e metodológicos desse filósofo, bem como do currículo que elaborou para a disciplina. No entanto, a fim de adequar essa proposta de origem norteamericana à realidade brasileira, surgiu uma experiência com ensino de Filosofia em torno do Grupo de Estudos e Pesquisas “Filosofia para Crianças” (GEPFC), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara que, desde 1998, produz material alternativo para aulas de Filosofia - em especial, pequenas “histórias filosóficas” e poesias. O presente estudo focaliza a aplicação do material do GEPFC em dois projetos de extensão universitária de ensino de Filosofia e, desse modo, trata de outras questões, tais como a formação da criança e do professor a partir do ensino de Filosofia. A obra traz também algumas histórias e poesias de autoria dos membros do GEPFC que poderão interessar àqueles que se preocupam com a formação da criança e do professor, com o ensino de Filosofia, e os que simplesmente desejam conhecer uma experiência que se propôs a fazer uma releitura de Lipman. Aplicações Estudantes e profissionais de Pedagogia e Filosofia em nível de graduação e pós-graduação, bem como todos os envolvidos direta ou indiretamente com a educação e com crianças.

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Outras Obras Caminhos do Ensino Nélio Parra Educando para o Pensar Eder Alonso Castro e Paula Ramos-de-Oliveira (org.) Ensinar a Ensinar Amelia Domingues de Castro e Anna Maria Pessoa de Carvalho (org.) Formação Continuada de Professores: Uma Releitura das Áreas de Conteúdo Anna Maria Pessoa de Carvalho (coord.) Formação em Contexto: Uma Estratégia de Integração Júlia Oliveira-Formosinho e Tizuko Morchida Kishimoto (org.) História da Educação Brasileira Maria Lucia Spedo Hilsdorf Revisitando a Prática Docente João Gualberto de Carvalho Meneses e Sylvia Helena S. S. Batista (coord.)


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