Revista virus 02 desconhecido

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Revista política e de ideias II série

O Socialismo Por Que Lutamos dossiê Entrevista a Alexis Tsipras Notas acerca da teoria política em Žižek Astúrias e Leão: a rebelião mineira + ler, ver e ouvir

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Projeto Editorial 1

A Vírus é uma revista com edição semestral iniciada em Junho de 2012. Tem tido, e continuará a ter, uma edição online consultável agora no site: www.revistavirus.net

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A nova série da Vírus, agora em edição impressa, define-se como um espaço de debate de ideias e de intervenção direcionado para o entendimento crítico da realidade e para a construção de alternativas democráticas e socialistas à violência predatória do capitalismo e à deriva autoritária dos seus governos e do seu Estado. Esse é o seu objetivo.

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Com esse fim, a Vírus fomentará o concurso e o debate de todas as opiniões que, à esquerda, queiram contribuir para uma consistente corrente contra-hegemónica e para a superação da (des)ordem atual. Esse é o seu campo.

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A Vírus afirma-se como espaço de reflexão, discussão, formação e divulgação de apoio às ativistas e aos ativistas nos terrenos da política, dos movimentos sociais, da intervenção cultural, científica e cívica ou de uma cidadania informada e com opinião. Simultaneamente, recebe do seu pulsar, das práticas sociais mais diversas, o influxo inspirador para o seu trabalho. Esse é o seu compromisso.

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A Vírus pretende fazer eco e participar ativamente nos grandes debates do internacionalismo, dar conta dos seus passos e desafios, uma vez que não há soluções puramente nacionais ou autárquicas para a ação emancipatória. Esse é o seu âmbito.

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Editorial Fernando Rosas Dossiê: O Socialismo Por que Lutamos

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Socialismo e alternativa: seis hipóteses em busca de um ator por José Soeiro E Miguel Cardina Tomar São Bento: Estado, reforma e revolução por Carlos Carujo O partido do socialismo por José Gusmão Socialismo: o rumo das raízes e do horizonte por Bruno Góis e Fabian Figueiredo

Entrevista a Alexis Tsipras

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Ler, Ver, Ouvir

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por José Soeiro e Marisa Matias

Salazar e o século XX por Luís Trindade A Revolução no Alentejo. Memória e Trauma da Reforma Agrária em Avis por Constantino Piçarra Mulheres de Armas por Ana Sofia Ferreira A revolta de Beja por João Madeira A memória é a morada do tempo por Sofia Roque Retorno a 1975 por Marco Marques Os dias do arco-íris por Pedro Ferreira As Mulheres da Fonte Nova por Cristina Paixão As flores da guerra por Júlia Garraio To Rome with Love ou como jogar com o clichê por Fabrice Schurmans Avis Rara por Helena Romão PÁG. 61

Vária

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Acontece

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Astúrias e Leão: a rebelião mineira por Miguel Pérez A prostituição como ponto de rutura por Andrea Peniche Auditoria ao centro do neoliberalismo por Luís Bernardo PPP’s: via verde para o enriquecimento ilícito por Heitor de Sousa A crise e o pensamento crítico no campo cultural por Rui Matoso Primavera Érable. História do movimento estudantil no Québec por Rodrigo rivera e Marina Januário Silva

Liberdade 2012 por Isabel Pires A construção do socialismo por MOISÉS FERREIRA 15 de Setembro: um milhão na rua. Unidos pela solidariedade por Ricardo Martins Vigília – 21 de setembro por Marco Marques

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revista semestral O Socialismo Por Que Lutamos Diretor FERNANDO ROSAS Edição Gráfica RITA GORGULHO Conselho de redação ANDREA PENICHE BRUNO GÓIS CARLOS CARUJO HUGO DIAS HUGO FERREIRA FABIAN FIGUEIREDO JOÃO RODRIGUES JOSÉ SOEIRO LUÍS TRINDADE MARIANA AVELÃS MARIANA SANTOS MIGUEL CARDINA NÁDIA CANTANHEDE SOFIA ROQUE

Pensar o Socialismo Hoje

Notas acerca da teoria política em Žižek por Luís Fazenda

REVISTA POLÍTICA E DE IDEIAS

Colaboraram nesta edição ana sofia ferreira constantino piçarra cristina paixão fabrice schurmans heitor de sousa HELENA ROMÃO isabel pires joão madeira josé gusmão júlia garraio luís bernardo luís fazenda marco marques marina januário silva miguel pérez ricardo martins rodrigo rivera rui matoso REGISTO ERC - n.º 125486 ISSN: 2182-6781 Proprietário/editor: Bloco de Esquerda Morada: Rua da Palma, 268 1100-394 Lisboa Tiragem: 500 IMPRESSÃO: A TRIUNFADORA, artres grfícas lda., Rua D. Sancho I, 36-A ALMADA


editorial Fernando Rosas

O número 2 da VÍRUS respira o ar do tempo que vivemos em Portugal e na Europa. Reflete sobre os desafios políticos e ideológicos que nos coloca o presente, procura intervir sobre eles e pretende contribuir para adubar o futuro, num espírito de debate e interação com todas e todos os que se cruzam e encontram neste caminho.

Depois de no número 1 termos discutido o que seria Esta Direita Que Combatemos, o Dossiê da presente edição debruça-se sobre O Socialismo Por Que Lutamos, não com a pretensão de apresentar qualquer tipo de receitas unívocas, mas de reunir contributos para desenhar um campo onde há vários campos e diferentes caminhos para lá chegar. Essa é a luta emancipatória dos nossos dias. Contamos com as colaborações de Miguel Cardina e José Soeiro, de Carlos Carujo, de José Guilherme Gusmão e de Fabian Figueiredo e Bruno Góis. Quando o povo grego está na rua a combater a troika local, a nossa Entrevista vai direita ao assunto: é com Alexis Tsipras, Secretário-Geral do Syriza. A conversa, em Atenas, foi conduzida por José Soeiro e Marisa Matias e passou em revista os grandes problemas com que hoje se debate a esquerda na Grécia. O Ler, Ver e Ouvir abre com a recensão crítica de Luís Trindade à biografia de Filipe Meneses sobre Salazar. Também Constantino Piçarra sai a terreiro a propósito de outro livro sobre a Reforma Agrária no concelho de Avis mas que vai bem para além dele. Chamo a atenção do leitor e da leitora para a grande variedade desta secção: Júlia Garraio e Fabrice Schurmans escrevem sobre os filmes que viram, Helena Romão sobre a música que escutou e os livros e leituras suscitaram comentários a Sofia Roque, Ana Sofia Ferreira, João Madeira, Pedro Ferreira, Marco Marques e Cristina Paixão. A todas e todos agradecemos a sua excelente colaboração que nos permite uma visão crítica atualizada sobre parte da mais recente criação cultural. A secção Pensar o Socialismo Hoje desta vez é especificamente sobre a teoria política de Žižek, que mereceu a atenção do artigo de Luís Fazenda. Em Vária reunimos uma série de contributos de relevante interesse e atualidade: Miguel Pérez fala-nos da luta dos mineiros das Astúrias e Leão, Andrea Peniche reflete sobre o tema da prostituição, Luís Bernardo sobre a auditoria ao centro do neoliberalismo, Heitor de Sousa escreve sobre o escândalo das PPP no setor rodoviário e Rui Matoso analisa a crise do pensamento crítico no campo da cultura. Nádia Cantanhede coordenou a secção Acontece onde se reflete sobre as lutas e as mobilizações dos últimos meses e as que estão para vir. Colaborações de Isabel Pires, Marco Marques e Ricardo Martins. Aí está o número 2 da Vírus. Precisamos que o leia, o comente, o divulgue e, sobretudo, o assine. Só com isso poderemos prosseguir. Traga um amigo e uma amiga também.

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O Socialismo Por Que Lutamos

Dossiê

Socialismo e alternativa: seis hipóteses em busca de um ator josé soeiro E Miguel cardina

1. O socialismo está grávido de história mas não tem um destino A história do socialismo é uma história feita de cruzamentos e bifurcações. Anarquismo, comunismo e social-democracia constituíram-se ao longo dos séculos XIX e XX, muitas vezes com substanciais clivagens internas, como os três grandes veios da larga família socialista. Fortes discussões e algumas roturas pungentes fizeram com que a história do socialismo fosse também uma história de desencontros. No âmago das disputas encontramos temas como a natureza dos sistemas de dominação, a relação entre indivíduo e coletivo, a visão dos partidos e dos movimentos sociais, o papel do Estado, a extensão da crítica à propriedade ou a posição diante da Modernidade e do progresso. Alguns acontecimentos, trágicos ou heroicos, serviram também para estruturar os diferentes campos da esquerda: da 6

Comuna de Paris à Revolução Russa e à posterior emergência do estalinismo; da Guerra Civil Espanhola às lutas independentistas em África, Ásia e América Latina; das conquistas sociais do pós-2.ª Guerra Mundial durante os “trinta anos gloriosos” aos novos radicalismos emergentes nas décadas de 1960 e 1970. O socialismo tem este lastro concreto e plural, ao mesmo tempo que produziu diferentes olhares sobre o tempo histórico. Uma certa leitura da Modernidade pensou o progresso como uma rota contínua e inevitável em direção ao futuro. Um otimismo determinista que teve eco, quer na social-democracia evolucionista, tal como foi formulada por Eduard Bernstein, quer na ortodoxia marxista-leninista que se viria a impor a partir do centro soviético. Uma outra leitura do tempo é possível fazer na esteira de autores como Walter Benjamin. Tratar-se-ia assim de


Dossiê conceito de um lugar outro, mais perfeito ou feliz, designa uma ideia remota que se encontra quer na tradição judaico-cristã do jardim do Éden, quer nas projeções de um Estado perfeito como o desenhado na República de Platão. Entre o século XVIII e XIX, autores como Saint-Simon, Charles Fourier ou Robert Owen e algumas experiências de organização social afirmaram o que ficaria conhecido como “socialismo utópico”. Esta perspetiva viria a ser frequentemente

O socialismo não é um destino mas uma possibilidade cuja realização não se encontra inscrita nas estrelas 2. O socialismo vive de um pulsar utópico Poucos conceitos foram tão maltratados nas últimas décadas como o conceito de utopia. A imposição do neoliberalismo correspondeu à glorificação da tecnocracia e do mercado como “fim da história”. Expandida ao resto do globo, a civilização que daí resultaria foi vista como o último estádio da humanidade, o que se entendia ratificado pela ideia de que as alternativas – o socialismo real a Leste ou outras tentativas de construção de modelos que visassem a superação do capitalismo – resultariam sempre num “estado de terror”. Para a utopia antiutópica2 do neoliberalismo, os erros, perversões ou fracassos das experiências que, no século XX, se reclamaram do rótulo socialista deviam ser explicados pelo próprio espírito do socialismo. Ou seja, em última análise o “crime” seria inerente ao pulsar utópico que se empenha no combate pela igualdade, pela possibilidade de realização humana integral e pelo fim da exploração do ser humano. O termo “utopia” foi utilizado por Thomas More, na sua obra homónima de 1516, mas o

acusada pelo campo marxista-leninista de não ter em conta a força estruturante do desenvolvimento histórico. A utopia seria assim um espaço que não só não contribuiria para a eliminação da falsa consciência produzida pelo capitalismo como, em certa medida, a alimentava. Uma outra leitura no campo socialista identifica a utopia com uma aspiração irrenunciável dos seres humanos e um necessário trabalho de imaginação do novo. O filósofo Ernst Bloch dedicou uma obra monumental, O Princípio Esperança, à análise das diferentes utopias historicamente formuladas e à fundamentação filosófica da esperança como princípio ontológico.3 Bloch distingue aí entre «utopias abstratas» e «utopias concretas». As primeiras não visam a transformação do real e apontam sobretudo para a satisfação autossuficiente do indivíduo – o sonho de ganhar a lotaria, de habitar numa ilha deserta e remota, de ser resgatada por um príncipe encantado. As segundas consistem na imaginação de um futuro transformado e tornam-se veículo de articulação entre meios e fins, paixão e razão,

1 - BENJAMIN, Walter (2006). “Tesi di Filosofia della Storia”. In Angelus Novus. Saggi e frammenti. Turim: Einaudi, pp. 75-86. 2 - A expressão é de Boaventura de Sousa Santos. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa (2005). O Fórum Social Mundial. Manual de Uso. Porto: Edições Afrontamento, p. 14. 3 - BLOCH, Ernst [1994 (1.ª ed.: 1959)]. Il Principio Speranza. Milão: Garzanti. 3 volumes.

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O Socialismo Por Que Lutamos

pensar um tempo simultaneamente disruptivo e capaz de herdar a “tradição dos oprimidos”. Um tempo que é experienciado não como passagem mas como interrupção de um continuum que urgiria fazer saltar.1 Nesta medida, a história não é entendida como um movimento previsível de um passado para um futuro mas um terreno aberto à indeterminação. O socialismo não é um destino mas uma possibilidade cuja realização não se encontra inscrita nas estrelas.


aspiração e possibilidade. Este pulsar é dirigido pelo conceito de ainda-não – tão central na ontologia blochiana quanto esquecido na história da filosofia que o precede – e define o modo como o futuro se inscreve no presente. O socialismo é pois um horizonte cuja possibilidade está latente no aqui e agora onde sempre nos encontramos.

3. O socialismo é uma política concreta As fronteiras entre propostas e programas têm a marca do tempo. O programa das sociaisdemocracias do pós-guerra seria hoje uma rotura profunda com o capitalismo realmente existente. O socialismo não é por isso a discussão obsessiva de um “programa revolucionário” em abstrato, como se os programas de cada momento não desenvolvessem uma afinidade dinâmica com o tempo do qual dimanam. Gramsci deixounos conceitos fundamentais para refletir sobre o socialismo a partir das sociedades concretas, das relações entre as classes, da configuração do Estado, da luta pela hegemonia. Contextos diversos reclamam estratégias diferentes: guerras de movimento nas brechas de desequilíbrios e transformações bruscas; guerras de posição na acumulação de forças, na disputa da hegemonia, no desafio ao consentimento. A política socialista não é por isso uma religião, a propaganda de uma ideia, o culto de um mito. É uma interven8

ção aqui e agora. É uma política concreta para hoje. Rosa Luxemburgo contestou, no início do século XX, a ideia do socialismo como mero discurso para dias de festa. Era precisamente nessa crença consoladora segundo a qual a história se encarregará do socialismo “a longo prazo” que a social-democracia alemã fazia repousar uma ação cada vez menos transformadora. Nos debates de hoje, essa espera de um momento redentor surge também por outras vias: a apologia do acontecimento que irromperá do nada. Transformar a possibilidade da revolução numa filosofia abstrata – como parece fazer Badiou – acaba por subtraí-la à história e à razão estratégica, associando-a a uma estética do evento mais da ordem do “teológico” do que da ordem do labor ativista e político que intervém no quotidiano. Desembaraçada de vontades divinas, de esperas metafísicas, de garantias científicas ou de determinações históricas, a transformação vive das escolhas e das bifurcações da política. O socialismo é assim uma política concreta, mas tem horizonte estratégico. Não se trata pois de uma mera “resolução de problemas” que não tome como referência a possibilidade de transcender a ordem capitalista. Mergulhado na incerteza da batalha, na inconstância da relação de forças, o socialismo dispensa a crença tranquilizadora num sentido da história que funcionaria necessa-


Dossiê 4. O socialismo não abdica da disputa pelo Estado mas não se resume a essa tarefa Excluídos do Estado-nação e da política institucional, muito antes de qualquer compromisso entre “capitalismo” e “democracia” sob a forma de Estado-Providência, os interesses dos “de baixo” começaram por organizar-se como contrassociedade. Foi assim no início do movimento operário, que assentou raízes no mutualismo e nos seus mecanismos de solidariedade auto-organizada, nas mundivisões proletárias e na sua experiência da exploração, em redes de lazer e de produção cultural, em comunidades militantes que dariam origem a sindicatos e partidos operários. O socialismo é essa tradição, esse espaço de emancipação e de organização popular. O debate sobre o Estado, sobre a natureza do

poder e a estratégia face a ele vem de longe. A oposição ao poder centralizado, à burocracia em geral e ao Estado em particular ficaram como marcas das várias matizes do anarquismo. Pelo contrário, o campo do marxismo revolucionário teria nas experiências vitoriosas da Revolução Russa e da estratégia de Lenine um dos mais importantes pontos de referência. Já a socialdemocracia, apostada em conseguir arrancar aos dominantes melhorias na condição do trabalho, foi transformando uma tática reformista na sua estratégia e instalou-se definitivamente no Estado dos países capitalistas. Polémicas de hoje reeditam por isso, em muitos aspetos, a questão de saber se o Estado é apenas uma expressão dos interesses dominantes ou se é uma relação social intrinsecamente contraditória, que exprime as diferentes relações de força em cada momento. Do ponto de vista da ação política, trata-se de saber se se privilegia a ação direta, a ação institucional ou uma articulação das duas. O socialismo não se resume ao Estado, mas também não abdica dele. A crítica à redução da luta política da esquerda à conquista do poder de Estado - na sua versão gradualista ou na sua versão revolucionária - produziu contributos importantes. Althusser aponta a importância dos aparelhos ideológicos do Estado (a escola, as Igrejas, os meios de comunicação social, etc.) na manutenção do status quo. Foucault mostra como o poder está disperso na sociedade e se exerce através do cruzamento de práticas, saberes e instituições. Assim, se o poder é relacional e se encontra disseminado, então a sua contestação pode desenvolver-se em campo múltiplos e não se subsume nessa “luta final” na qual a classe operária toma o Estado e suprime o conflito5. Dispensados os faróis do socialismo, feita a crítica do monstro burocrático e do seu autoritarismo, esta conceção larga dos poderes que há que tomar repolitiza o quotidiano e traz novas esferas da vida para o centro do conflito social. Confinado ao Estado, o socialismo perde a vita-

4 - BENSAÏD, Daniel (2011). La Politique comme Art Stratégique. Paris: Syllepse.

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O Socialismo Por Que Lutamos

riamente a seu favor, mas exige que permaneça essa hipótese estratégica do radicalmente novo em relação ao que existe. Há pouco mais de uma década, emergiu um novo internacionalismo que teve no movimento alterglobal a sua expressão mais forte. Esse movimento de “um não e vários sins” foi capaz de juntar em espaços comuns a velha esquerda do movimento operário tradicional, os movimentos socialistas e nacionalistas da periferia, os herdeiros da esquerda radical de 1960/70, os novos movimentos sociais, as chamadas “organizações humanitárias” e uma parte importante da galáxia das ONG. Essa dinâmica fez nascer também novos sujeitos políticos. Gente vinda do mundo dos partidos comunistas, setores que romperam com a social-democracia, organizações da esquerda radical e ativistas de movimentos sociais fizeram caminho e construíram novas organizações políticas à esquerda, que têm articulado um projeto de radicalidade com a perceção do instante propício e a decisão sobre a conjuntura, reabilitando-se deste modo a política como «arte estratégica»4.


lidade da emancipação e pode sucumbir à razão gays e lésbicas, presos, migrantes, ou qualquer burocrática. Ao chamar a atenção para a necesoutro tipo de combinação entre estas e outras casidade de transformar as instituições e de criar tegorias) situam-se nos antípodas de identidades formas de resistência aos mecanismos subtis de como “povo” ou “classe operária”, cuja ambição poder no dia a dia, o projeto igualitário ganha alera precisamente que pudessem coincidir, pelo cance e profundidade. Empenhar o combate em menos em termos estratégicos, com toda a societodos os espaços e condade. Boa parte do trabalho de inovação teórica atual instestar a dominação nas creve-se por isso numa linha múltiplas formas que que busca problematizar poela assume não implica lítica e epistemologicamente contudo o salto em diO socialismo não reção à desconsideração estes novos atores sociais. É tem pois de limitarda importância do poder o caso dos trabalhos de Juse a uma resistência do Estado. Quem tentou dith Butler, questionando as nos poucos espaços contorná-lo acabou ora identidades sexuais, dos escooptado, ora esmagatudos sobre o subalterno de de liberdade que o Dipesh Chakrabarty, Ranajit do por ele. O socialismo capitalismo deixa Guha ou Gayatri Spivak ou não tem pois de limitarem aberto. do interesse de Badiou pelos se a uma resistência nos migrantes indocumentados, poucos espaços de liberque condensam em si as tendade que o capitalismo dências atuais do capitalisdeixa em aberto. Não mo: mobilidade, diminuição dos salários, degraprecisa de conformar-se com uma estratégia de dação das condições de trabalho. exílio ou de fuga face ao aparelho de Estado que A visão ortodoxa de acordo com a qual a cenrecusa, de facto, o seu afrontamento. Alimentando-se também da desobediência e dos espaços tralidade da contradição de classes era interpreautónomos, o socialismo é uma luta que quer ser tada como a subordinação hierárquica de todas maioritária e ganhadora e por isso exige uma esas lutas à luta em torno da questão do trabatratégia para virar o mundo de pernas para o ar. lho e da propriedade encontra-se desadequada. O direito à diferença e ao reconhecimento das identidades é um elemento fundador da luta pela 5. O socialismo igualdade. Recusar a ideia de que algumas lutas constrói-se com muitos atores ficam em lista de espera até que venha a tomada A erosão da centralidade da classe operária do Palácio de Inverno é uma condição do socia– centralidade essa que era não apenas demolismo enquanto emancipação: todos os direitos gráfica mas também produto de uma hegemonia são prioritários, todas as lutas são políticas se política paulatinamente construída – esboroouconfrontam qualquer sistema de opressão. Mas se a partir de finais da década de 1950, dando isso não quer dizer que a única opção estratégica origem a novos sujeitos históricos – ou seja, atoseja uma soma de micro-reivindicações. O sociares suscetíveis de serem os vetores da transforlismo é o nome de uma alternativa global, que mação social – para além da classe operária intem como objetivo a articulação e a tradução endustrial. Os novos sujeitos sociais e políticos que tre as diversas lutas para que haja uma gramátiganharam importância a partir das décadas de ca política comum. A questão dos sujeitos trans1960/70 (jovens, estudantes, mulheres, negros, 5 - Ver por exemplo: FOUCAULT, Michel (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal.

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Dossiê 6. O socialismo é democracia A luta pelo socialismo parece então convidar à superação da fragmentação do social ao mesmo tempo que implica o reconhecimento da pluralidade dos sujeitos históricos. Os sujeitos sociais, como as classes, mesmo quando parecem socialmente uniformes (e nunca o serão completamente), são suscetíveis de uma pluralidade de representações no campo político, e isso reclama necessariamente o pluralismo. A política socialista não cabe portanto em qualquer “partido único”. Na esteira de Gramsci, ela é o campo de uma articulação de grupos, é o trabalho de hegemonia como princípio de uma convergência de forças na luta de classes. Num tempo em que nas ruas se exige “democracia real” contra o sequestro da política pelos poderes financeiros, pelas agências internacionais e por diretórios não eleitos, a luta socialista identifica-se com essa reivindicação. A democracia, enfeudada pelos liberais no espaço do Estado e da representação, é também e sobretudo a

expressão desse inquietante princípio igualitário que transgride todas as hierarquias sociais. O socialismo é por isso democracia: nele a política faz intervir a lógica da igualdade na ordem hierárquica do social. Contra a especialização e a monopolização da política pelos profissionais, pondo em causa a divisão social do trabalho que dá a uns o direito de falar e de pensar e condena outros à condição de observadores passivos do espetáculo democrático, a política socialista pode ser identificada, na linha de Rancière, com a afirmação da igualdade como pressuposto e não apenas como objetivo6. É a ambição da participação de todos na definição do bem comum, contra os interesses privados, a exploração de classe e todas as formas de dominação. A democracia socialista não prescinde das mediações entre o social e o político nem abdica da representação e da delegação. Só fazendo-o pode ampliar ao máximo os mecanismos de controlo do poder e de controlo da representação pelo povo – e isso é verdade para um país como para uma cidade, uma greve ou uma associação. Uma alta intensidade de participação reclama a existência de instituições, do mesmo modo que valoriza as práticas insurgentes e disruptivas. Ao contrário das deformações e do terror autoritário de experiências que se reclamaram desse nome, o socialismo por vir deverá ser um movimento baseado em duas recusas. Por um lado, a recusa das per11

O Socialismo Por Que Lutamos

rafael tovar / FLICKR

formadores não é por isso de ordem sociológica, mas sim uma escolha estratégica, um processo de procura não de essências, mas de identificações partilhadas. Um processo de criação de consciência coletiva que, ultrapassando diferenças, encontre processos de universalização nos combates comuns.


versões que dissociaram o preceito igualitário da liberdade de opinião, do direito à dissidência e da existência organizada e autónoma face ao Estado de partidos, sindicatos ou outros movimentos sociais. Por outro, a recusa do corte efetuado pelo liberalismo entre o político e o económico, e que em última análise pretende afastar este segundo domínio da crítica política, do escrutínio democrático e do usufruto comum. O socialismo alimenta-se da democracia e busca a sua expansão a todas as esferas da vida. Se hoje em dia, em plena ditadura da dívida, assistimos na Europa à tentativa dos governos de se desembaraçarem mesmo de alguns dos aspetos formais da democracia, é porque, sob o capitalismo, a democracia nunca deixou de assentar num constante medo das massas e numa mais ou menos inconfessada paixão pela ordem. O socialismo é a defesa do património democrático, mas é sobretudo a ambição da sua extensão a todos os espaços sociais e essa irreprimível vontade igualitária de, em nome da liberdade e da participação, transgredir sempre as formas instituídas. Mas o que é então o socialismo? Convém notar que todo o esforço de definição traça uma fronteira entre um interior e um

exterior, gesto esse que muitas vezes não é mais do que um processo de legitimação do próprio campo. Herbert Morrison, um destacado membro do Partido Trabalhista britânico na primeira metade do século XX, terá dito um dia que socialismo «é aquilo que o governo trabalhista faz». Distante politicamente, mas aplicando uma fórmula retórica algo semelhante, Lenine definiu o socialismo como sendo «os sovietes mais a eletrificação». Neste texto procurou-se uma definição englobante, que não encerre em paredes conceptuais estritas aquilo que cada tempo histórico se encarrega de modelar. O socialismo é uma prática concreta - que se envolve na disputa pelo Estado, na luta pela hegemonia política e no combate contra todas as opressões e discriminações - e é também uma aspiração de fundo, baseada na convicção de que é possível e necessário a ativação de modos de organização social fundados na igualdade, na solidariedade e na cooperação. Porque, como um dia disse alguém, ninguém pode ser feliz sozinho.

O socialismo alimenta-se da democracia e busca a sua expansão a todas as esferas da vida.

6 - RANCIÈRE, Jacques (1998). Aux bords du politique. Paris: La Fabrique.

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Dossiê O Socialismo Por Que Lutamos Imagem do filme Outubro de Sergei Eisenstein de 1928 que retrata a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques.

Tomar São Bento: Estado, reforma e revolução Carlos carujo

1 - Uma revolução à moda de João de Deus? Vestido de militar, entra num quartel. É preso. Declarará orgulhosamente no interrogatório: «sou um intelectual de esquerda». Porque o fez? Quer tomar São Bento. Adivinha-se como óbvia a resposta que o chefe da polícia lhe dará, classificando-o como indigente e internando-o como louco. Não parece uma verdadeira ameaça. Só é ridículo só. Ou melhor, apenas ridiculariza. E o ridículo não mata o Estado. João de Deus, personagem de César Monteiro, não se reduz a isto. Nem o tema da revolução se circunscreve ao individualismo heroico-patético ou à temática do golpe militar. Pelo contrário, em vez de ser um capricho de uma vontade generala, a teoria revolucionária procurou inscreverse na realidade enquanto inevitabilidade, com

toda a força material da crise necessária do capitalismo. Nem o leninismo, enquanto estratégia, é um cesarmonteirismo: mesmo numa situação de crise revolucionária, e com todo um exército por detrás, é necessária toda uma relação de forças, toda uma sabedoria do momento propício, todo um trabalho anterior incansável para construir a “dualidade de poderes”. A farsa é só uma entrada (auto)provocatória: tanto que nos vestimos de linguagem militar para, com ou sem “exército” por detrás, e mais ou menos organizados, militarmos, acreditarmos ser uma vanguarda com uma disciplina excecional e com o dever de planear as táticas e estratégias de que o mundo estava carente: partidos-exércitos, partidos-corpos especiais de intervenção, partidos-generais a aplicar diretamente à guerra de classes o modelo militar. Não se partilhando de forma alguma o extravagante 13


plano de João de Deus, o objetivo era semelhante: a tomada. A farsa é só um pretexto para questionar. Questionar essa pulsão para a tomada que nos toma de urgência, já que as condições objetivas para a revolução de tão maduras parecem estar sempre a apodrecer. Questionar esse simbolismo da tomada enquanto momento catártico de libertação das amarras do poder instituído. Questionar alguns dos espaços em branco depois da tomada. Questionar se a história da tomada estará terminada.

2 - Reformar São Bento em lume brando Claro que nem todo o socialismo pretendeu tomar assim São Bento. No outro polo da grande dicotomia, era advogado um modelo de transformação social distinto. Se os trabalhadores são a esmagadora maioria social, se votarem nos partidos que defendem os seus interesses, então as portas de São Bento não seriam arrombadas pela revolução, seriam abertas suavemente pelas eleições. Reforma versus revolução, mudança pacífica versus violência, gradualismo versus repentismo. Outros temas, outro simbolismo. E um outro ridículo sem a espetacularidade do instantâneo caricatural da tomada de João de Deus. Tão gradualmente como sonhava ir moldando o Estado, foi afinal São Bento que tomou conta deste socialismo. O movimento, que era tudo, emperrou. O objetivo final, esse, permaneceu nada face aos mecanismos do capitalismo. O social-liberalismo dos herdeiros de Bernstein resultou afinal tão só nisso: um nada de socialismo. Assim, sem terem tido resultados comparáveis mas combinando-se no tempo, as duas es-

tratégias parecem saldar-se por balanços desoladores. O Estado revolucionário que propunha autodestruir-se foi-se, falhada a hipótese de uma revolução rápida a Ocidente, transformando-se num Estado que destruía qualquer possibilidade revolucionária. Tomar o Palácio de inverno, ser tomado pelo poder invernal dos palácios. O Estado social-democrata, que se propunha construir pacientemente o socialismo revelouse, por sua vez, uma forma eficaz de gestão das relações de forças entre classes sociais no interior do capitalismo. Num longo e interessante artigo, Ernest Mandel1, para além de reafirmar algumas posições tradicionais dos revolucionários sobre o reformismo em geral (defesa de que a demarcação não é feita através da questão da violência, da luta por objetivos imediatos ou da participação eleitoral mas da ilusão reformista do gradualismo2), faz a história dessa molecular transformação da social-democracia realmente existente defendendo que: - em tempo de crescimento económico, a gestão da social-democracia permitiu um aumento do nível de vida dos trabalhadores apenas de forma a salvar o capitalismo; - a burguesia pagou esse preço, em certos casos por interesses materiais (caso de algumas nacionalizações de matérias-primas e energia que acabaram por ser subvenções à indústria), noutros para se defender do risco de agitação social; - a social-democracia, invadida pelos burocratas estatais e permeável a interesses do sistema, acabou por pagar um outro preço, sendo incapaz de reagir à onda longa depressiva da economia capitalista, fechando-se num tecnicismo sem projeto, na aceitação de uma austeridade indistinta das propostas do grande capital. Esta tese liga assim complexamente a ascen-

1 - MANDEL, Ernest (2005). “Social-democracia desamparada, Natureza do reformismo social-democrata”. In revista Combate nº 284, outubro/ dezembro de 2005, pp. 6-21. 2 - Idem. «Nacionaliza-se primeiro 20%, depois 30%, depois 50%, depois 60% da propriedade capitalista. Assim, o poder económico do Capital, dissolve-se, pouco a pouco. Em primeiro lugar, arranca-se à burguesia uma grande metrópole, depois dois municípios, depois a maioria parlamentar, depois o poder de legislar os programas do ensino, depois a maioria da tiragem dos jornais, depois o controlo da polícia municipal, depois o poder de seleção da maioria dos altos funcionários, dos magistrados e dos oficiais: o poder político do Capital evaporar-se-ia por si-mesmo.

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Dossiê

3 - A dicotomia subterrânea

Se as duas hipóteses de transformação política dos séculos passados fracassaram por vias diferentes, pode recuar-se até ao individual, ao comunitário ou pode mesmo descontextualizarse o sucedido e ficar com a resposta do pessimismo antropológico: faça-se o que se fizer, tomemos São Bento suavemente ou à força, o poder lá estará para nos corromper. Resta desistir. Se quisermos insistir no desafio de trabalhar para transformar a sociedade, continuaremos a ter de lidar com aquela dicotomia histórica que nunca foi simples e que hoje parece ainda ser mais complicada. E teremos de desarmadilhar a tentação de reduzi-la a uma escolha entre for-

pensemos, por mais vontade altruísta de unidade que tenhamos, a dicotomia e os seus efeitos permanecem ativos, tal como permanecem forças que se alinham em cada um destes campos. Por isso, o não dito não será forma de construir unidade política, já que os vários problemas que a dicotomia encerra permanecem como uma força subterrânea da política que fazemos. Por isso, o que poderia parecer uma picuinhice teórica ou um fétiche identitário é afinal uma questão que está imbricada no debate estratégico sobre prioridades de intervenção política, sobre o sistema de alianças sociais e políticas e a sua razão de ser, sobre a participação em governos. Uma questão de modo de ver e fazer a política. Uma questão onde já encalharam algumas tentativas que pareciam auspiciosas.

4 - Anticapitalismo, encontros e desencontros

Os projetos de construção de partidos anticapitalistas amplos do final dos anos 1990 e início

Por mais vontade altruísta de unidade que tenhamos, a dicotomia e os seus efeitos permanecem ativos, tal como permanecem forças que se alinham em cada um destes campos. mas políticas que recairão necessariamente ou na loucura quente de João de Deus ou no calculismo frio do social-liberalismo. Uma solução seria arrumar a dicotomia nos livros de História, afirmar que hoje já não é operativa: novos tempos, novos conceitos, novas políticas. Outra seria considerá-la como um empecilho e colocá-la de lado em nome da unidade premente dos dias que correm. De qualquer forma, de que serviria antecipar o problema de um futuro desconhecido? E, contudo, por mais inovações teóricas que

do século XXI, em vez da reprodução de organizações ideologicamente puras, fizeram-se de encontros e desencontros entre reformistas e revolucionários. Produziram-se através de fusões entre organizações autónomas preexistentes e/ ou cisões nos movimentos tradicionais comunista mas também social-democrata, sendo recomposições diversas na duração, na expressão e nas formas organizacionais. Foram respostas urgentes ao estado calamitoso das esquerdas depois do descalabro da União Soviética e do absolutismo neoliberal. Foram também respostas à transformação da 15

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são e queda da social-democracia aos ciclos económicos, interesses do capitalismo e respostas do proletariado. E Mandel prefere obviamente a efervescência revolucionária ao lume brando reformista porque o próprio capitalismo cria os momentos de exceção, os únicos onde seria possível desequilibrar os poderes estabelecidos.


tas histórias se pode arrogar a contar-se como a social-democracia em social-liberalismo. Sendode um partido-síntese em que tenha acontecido o, encontraram espaço de crescimento na repoliuma superação/conservação dialética acabada tização do sentimento de orfandade política que das contradições entre reformistas e revolucioesta deixou, mas não se limitaram, porque não nários. Permanece a tensão que compõe este podiam e porque não queriam até por via da sua campo político e que deve ser avaliada criticacomposição, a pretender ser um revivalismo das mente e discutida abertamente. tendências dominantes da social-democracia dos anos 1970/80 que já tinham arrumado definitivamente as suas aspirações a uma alternativa ao capitalismo. Aliás, uma vez que o espaço político é de geometria variável, o cálculo é bem mais complexo do que o preenchimento de um vazio ou um Sem concessões a um pseudo-gradualismo hiregresso ao passado. Foi toda a política que foi pócrita que meta o socialismo na primeira gaveta puxada à direita. E até é por isso mesmo que, em que encontre, cruzem-se num movimento antitempos desesperados de perda radical de direicapitalista as discussões sobre se a concretização tos, a própria afirmação de uma social-democrado programa socialista cabe dentro do Estado cia de antanho parece já uma ousadia (como se capitalista, sobre a natureza e função do Estado soasse já tão estranho o desígnio de restaurar/ num sistema capitalista e sobre como este serve defender o Estado Providência quanto o desígos interesses capitalistas e como poderia servir nio de João de Deus). A esta “radicalidade” deveos interesses do conjunto da população. O texrá responder uma política de alianças com quem, to prossegue sem a pretensão de resolver estas ainda dentro ou já fora dos PS, procura ressusquestões. Por isso dedica-se agora apenas a uma citar esta tradição política ou que aproveite mesexcursão de regresso a alguns clássicos para as mo quaisquer hesitações sociais-liberais em noenquadrar. me da melhoria concreta das condições de vida. Uma unidade que preserve a autonomia de um O marxismo original, seguindo uma versão projeto político anticapitalista consciente de que, simplificada ao limite, que interessa aqui sobredadas as relações de forças, a globalização e a critudo pela sua força histórica e pelo seu poder de se, não é possível equilibrar a situação através de propagação, situa o Estado na cobertura do edium suave puxão para a esquerda protagonizado fício social com uma função secundária de apoio por uma velha social-democracia reeditada. É à dominação burguesa (pela força das leis e das neste ponto que os novos reformismos radicais suas armas), refletindo a política a infraestrutura e as velhas tradições revolueconómica (a inevitável tópica cionárias se encontrarão. Será marxista) e sendo determinada o bastante para estabelecer a por ela “em última instância” (o consistência e organicidade de significado dessa determinação um movimento político? “em última instância” e o grau A história desta convivênde autonomia da esfera política cia política tem sido tão diverfizeram correr rios de tinta ensa quantos os contextos e partre marxistas). ticularidades de cada uma das Por sua vez, a abordagem tentativas. Do conflito permagenealógica de Engels (em A nente à convivência taticista, à Imagem do filme Recordações da Casa origem da família, da propriedade tensão criativa. Nenhuma des- Amarela de César Monteiro. e do Estado) vai ancorar a exis-

5 - São Bento como o topo do edifício

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Dossiê do para o seu fim, mas suficientemente forte para resistir às investidas dos interesses burgueses. O Estado em dissolução encontrava nos livros o seu modelo transitório, precário e inacabado na democracia radical da Comuna de Paris. O depois do adeus ao Estado nem isso. Tornouse um espaço em branco, utópico no discurso revolucionário. Por modéstia antiutópica pôde correr o perigo de ser habitado pela vontade de um corpo social perfeito que correspondesse ao vazio político do fim da história. De qualquer forma, a transição para o socialismo é colocada como um movimento de apropriação revolucionária de uma máquina estatal que se deve virar contra o seu criador e fazer desaparecer.

6 - Que tipo de mecanismo é São Bento? Para além de qualquer definição genérica do papel do Estado, os anticapitalistas confrontamse com a questão concreta: como funciona este poder a favor dos capitalistas? Esta pergunta transformou-se, no final dos anos 1960, num debate que parte de pressupostos filosóficos diferentes mas nem por isso é desprovido de consequências políticas marcantes entre, nomeadamente, Ralph Miliband e Nicos 17

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kris hammer / FLICKR

tência do Estado na história longa: não há sociedade desenvolvida, sociedade de classes, sem Estado. Ao passo que a ideia de uma “dialética histórica” fará com que este momento não seja “o fim da história” política mas dê lugar à sua superação na sociedade comunista. Ao momento de materialização da análise do Estado junta-se o de um projeto político que é revolucionário porque antiestatal. Será Lenine quem, suportado em Marx, se tornará o mais conhecido advogado do estranho caso da apropriação do Estado para o destruir. A tese do Estado e a revolução, hoje lida sobretudo como se fosse um estéril jogo escolástico de citações do mestre, era, à altura em que foi formulada, tudo menos imediata e consensual. O marxismo da Segunda Internacional fixavase na transformação social por via eleitoral e da ação do aparelho estatal e esquecia o desígnio de acabar com o Estado. O marxismo tradicional assimilava o Estado à espada violenta que é um fio do nó górdio que amarra os trabalhadores à exploração de que são alvo. Emaranhar-se-á nele o reformismo que pretender desatá-lo a partir de dentro. Precipitar-se-á o anarquismo que pretender cortálo simplesmente de um golpe, esquecendo que apenas cortou um dos fios do poder. Tratar-se-á portanto de saber como cortá-lo, fazendo uma revolução que deixe o Estado preso por um fio, já a “definhar” ou a “perecer”, precário e caminhan-


Poulantzas. A primeira abordagem (instrumentalista) defende que “no esquema marxista”, a “classe dominante” da sociedade capitalista é a que possui e controla os meios de produção e que é capaz, em virtude do poder económico que assim lhe é conferido, de usar o Estado como instrumento de dominação da sociedade. Daqui se retira a necessidade de utilizar um método empirista que investigue os mecanismos que ligam a classe dominante ao Estado, as relações concretas entre interesses destes e políticas daquele, como as conexões sociais entre indivíduos que ocupam poder político e económico, por exemplo, os preconceitos ideológicos da elite estatal que acabam por beneficiar as grandes empresas e a capacidade concreta de pressão dos interesses instituídos.

de acordo com estratégias pessoais localizadas não conseguiria perceber como existem políticas que contrariam os interesses específicos dos capitalistas). Atribui-se assim uma possibilidade de autonomia relativa do Estado, considerandose que esta acaba por beneficiar o capitalismo, já que, por vezes, são necessárias concessões devido à força das lutas de classe e até como forma de desorganizar as contestações e interferir na unidade dos trabalhadores. A crítica habitual a esta tese centra-se no seu desinteresse ou incapacidade de explicar como todos estes mecanismos funcionam concretamente. A arqueologia deste debate marxista poderia valer por si só. Mas, neste caso, interessa sobretudo porque tem implicações nos discursos

Gramsci propõe, bem no interior da metáfora militar, uma mudança de estratégia de uma “guerra de movimentos” para uma “guerra de posições”. São Bento, enquanto centro de poder, torna-se apenas um ponto de uma malha de poderes, falhando o seu assalto extemporâneo. A segunda abordagem (dita estruturalista) defende que a «participação direta dos membros da classe capitalista no aparelho de Estado (…) não é o aspeto importante do assunto. A relação entre a classe burguesa e o Estado é uma relação objetiva. (…) A participação de membros da classe dominante no aparelho de Estado não é a causa mas o efeito»3. Portanto, partindo-se do princípio que as funções do Estado são determinadas pelas estruturas da sociedade, atenta-se em como o Estado reproduz o sistema produtivo, nomeadamente atomizando as classes trabalhadoras e garantindo o interesse da classe capitalista como um todo. Esta perspetiva do “todo” abstrato do interesse capitalista permite ao funcionalismo escapar ao que se considera o desvio personalista do instrumentalismo (que explicando quase tudo

da esquerda anticapitalista, em como aí se pode traduzir em oscilações entre a denúncia concreta e imediata dos interesses instalados com uma ausência de um pensamento sobre o papel do Estado no capitalismo e a denúncia abstrata e estrutural do capitalismo não acompanhada de um pensamento sobre como estes mecanismos de poder se estendem concretamente na sociedade. Estas representações imiscuem-se nos debates sobre as prioridades de análise mas também de intervenção. E, claro, nas representações sobre os modos de funcionamento do Estado joga-se ainda a questão do dentro e do fora das instituições políticas, da possibilidade reformista de uma disputa interna dentro do Estado (a “subversão lenta” e a “longa marcha nas instituições”) ou da necessidade revolucionária de uma subversão por fora.

3 - Leia-se a síntese deste debate em: GOLD, David; LO, Clarence e WRIGHT, Erik Olin (1975). Developments in Marxist Theories of State. Monthly Review, outubro/novembro de 1975.

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Dossiê Para além do debate sobre o modo como o Estado reflete os interesses capitalistas e como reproduz o próprio sistema económico, um outro debate paralelo tem implicações nas estratégias políticas. Pode o Estado reduzir-se a São Bento? O que está incluído na esfera estatal? Da aceitação da definição mínima do Estado do marxismo original (a metáfora do Estado “guarda noturno” detentor do monopólio da violência, com a sua burocracia permanente e as suas leis enquanto garantias da propriedade privada) passou-se à influência dos marxismos ditos ocidentais que vivem num tempo em que já cabe bem mais do que São Bento na ideia de Estado e em que parece que “tomar São Bento” se torna um objetivo demasiado curto alargando o âmbito da vontade reformista ou revolucionária. Assim, Gramsci “amplia” o conceito de Estado (para seguir a expressão althusseriana de BuciGlucksman) ao considerar que, no sentido lato, o Estado soma à sociedade política a sociedade civil. A forma de funcionamento da política nas sociedades ocidentais alterou-se tendo-se passado da centralidade do poder coercivo para a força do consenso. Partindo desta constatação, Gramsci propõe, bem no interior da metáfora militar, uma mudança de estratégia de uma “guerra de movimentos” para uma “guerra de posições”. São Bento, enquanto centro de poder, torna-se apenas um ponto de uma malha de poderes, falhando o seu assalto extemporâneo. A repressão torna-se apenas uma estratégia recuada e de recurso do Estado, sendo a fabricação da hegemonia a forma habitual do poder, o que desmultiplica as trincheiras e

frentes de combate onde seria necessário intervir. Essa intervenção é urgente e, na perspetiva de Gramsci, substitui a espera do grande dia da tomada de São Bento, inscrita no fatalismo trajado de mecanicismo económico. Althusser seguirá esta ideia com o conceito de “aparelhos ideológicos do Estado” (AIE), somando ao tradicional aparelho, constituído por governo, administração, exército, polícia, tribunais e prisões, a Igreja, as escolas, os partidos, os meios de comunicação e as instituições culturais. Estes AIE são, ao contrário da coesão própria dos corpos estatais tradicionais, dispersos por natureza e somente unificados pela ideologia dominante. Também por essa dispersão, são lugares de lutas de classe e neles as classes dominadas conseguem penetrar. O que terá claras consequências no debate sobre as formas de intervenção política. E, para além dos alargamentos “políticos” do conceito de Estado, também se deve referir a existência de vários defensores de um necessário alargamento económico do conceito. Das funções económicas mínimas e subalternas do Estado em tempo de imperialismo, o Estado em tempo de economia em crise e de Estado do bem-estar seria, por natureza, um Estado intervencionista economicamente, alterando assim a sua natureza e a natureza da relação da esquerda com ele.

8 - Um césarmonteirismo final

Vestido de intelectual de esquerda, escreve um artigo. Declara orgulhosamente: «sou um revolucionário». Porque o fez? Quererá ainda tomar São Bento? E, ainda que pense que não está tão sozinho como João de Deus, não será igualmente ridículo num mundo tomado por um pragmatismo incapaz de sonhar?

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rita gorgulho

7- O Estado para além de São Bento


rafael tovar / FLICKR

O Partido do Socialismo José gusmão A discussão sobre o Partido é quase tão antiga como a discussão sobre a ideia socialista e foi evoluindo a par com esta. Esse simples facto seria suficiente para perceber como o debate sobre a forma-partido, o seu papel na luta política, as questões se colocam ao seu funcionamento e organização são inseparáveis do debate sobre o socialismo, a sua construção e múltiplas configurações e desfigurações. A visão do Partido como uma ferramenta é útil na medida em que o coloca no seu lugar e evita o processo através do qual uma organização se pode tornar mais importante do que o objetivo da sua existência. Esse processo permite, não poucas vezes, que a fidelidade à organização legitime as maiores entorses ao projeto político, até à descaracterização total. Mas essa não é a única forma de chegar a tão triste fim. Na realidade, uma perspetiva extrema (não 20

radical) sobre o caráter instrumental da organização, tributária de uma separação total entre fins e meios, pode, e leva frequentemente, a subvalorizar o papel do partido enquanto projeto emancipatório em si mesmo e, portanto, a necessidade de o pensar em coerência com os propósitos do seu projeto político. Essa perspetiva permite uma situação paradoxal: a criação de um modelo de partido em que preocupações sobre a eficácia ou até a proteção da identidade política da organização introduzam mecanismos de funcionamento (por exemplo, ao nível da democracia interna ou falta dela) incompatíveis com o projeto que precisamente visa construir. A questão menos simples sobre a construção do partido é, portanto, a de como conceber uma organização de ação política em que milhares de mulheres e homens se possam coordenar e


Dossiê A austeridade como crise da política O contexto atual, a crise económica e as suas consequências sociais e a austeridade criam um caldo político distinto daquele que é habitual em cenários de crise económica. À degradação do sistema político, frequentemente associada a momentos de crise económica e social, juntase a multiplicação de escândalos de corrupção e favorecimento e toda a espécie de denúncias, justas e injustas, de despesismo e desperdício. Um dos aspetos mais particulares deste contexto é o da banalização da mentira e da violação sistemática de promessas. Embora não seja propriamente uma novidade, este fenómeno adquire uma dimensão aguda no quadro do programa de ajustamento, à medida que os sucessivos pacotes de austeridade mergulham o país na recessão e num ainda maior endividamento. À medida que o tapete lhe foge debaixo dos pés, os governos vão apresentando as medidas que meses, semanas ou mesmo dias antes tinham abjurado. Este espetáculo tornou-se corriqueiro e corrói a imagem de toda a atividade e representação políticas e da própria democracia. Em momentos como este, um dos combates ideológicos mais importantes é o do debate entre uma resposta assente numa alternativa emancipatória ou a resposta dos populismos, que a neutralizam. O tema fundamental do populismo é o da descredibilização da representação política plural em benefício de soluções pretensamente unificadoras.

A crise da política como crise dos projetos Uma das declinações mais na moda do populismo é a ideia de tecnocracia. A proposta de um governo “técnico”, já ensaiada na Grécia e

namorada em Portugal, visa precisamente tirar do caminho o combate político entre diferentes visões sobre a organização da sociedade e os seus protagonistas, os partidos políticos. Essa pretensão atinge essencialmente quem pretende, através de formas de organização popular, construir e fazer vencer projetos emancipatórios. As soluções de tipo tecnocrático ou autoritário procuram cavalgar uma dimensão da revolta contra as políticas de austeridade, que é a irritação com “os políticos”, para impôr soluções assentes em personalidades ou instituições “fora da política”, que, no entanto, respondem pelos mesmos interesses e implementam o mesmo programa. Trata-se de uma tentativa de, perante o esgotamento da tolerância para com os protagonistas do costume, os transvestir em técnicos, continuando a mesma política por outros meios. É por isso que o combate à atual moda antipartidos e antirrepresentação política é, para a esquerda emancipatória, um combate de vida ou de morte, que tem de ser travado e ganho, independentemente dos custos políticos, como condição de viabilidade de qualquer projeto político alternativo. A alternativa é a diluição de todo o protesto e resistência na revolta sem perspetiva ou no desespero, ambientes propensos às piores soluções de tipo autoritário.

Crítica e crítica da crítica Um dos desafios mais interessantes que se coloca a esses partidos é o de como manter viva e dialogante a construção e a reflexão de um projeto emancipatório e, portanto, contra-hegemónico, reflexão essa que é condição da sua própria existência e, ao mesmo tempo, manterse autónoma em relação às pressões intelectuais do pensamento dominante. Esse é um problema importante à esquerda. A crise da social-democracia, tão flagrante no atual contexto e no processo de construção europeia, resulta da total incapacidade de manter um corpo teórico crítico perante a evolução das circunstâncias históricas. A terceira via é 21

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mobilizar e que seja, ao mesmo tempo, a “cara” do seu projeto político. Se os debates sobre partido e projeto são inseparáveis, a crise dos partidos é também inseparável da crise política, entendida não apenas enquanto crise da política, mas enquanto crise dos projetos.


um produto ideológico particularmente esclarecedor (até pela sua pobreza, inconsistência e debilidades enquanto projeto intelectual) da incapacidade daquela tradição política para desenvolver um pensamento autónomo em tensão com os discursos de legitimação do capitalismo. A deriva da terceira via é muito menos uma inovação teórica do que de uma tentativa de legitimar, através de um cadáver esquisito, uma prática política que subordinou a dimensão do projeto às exigências do pragmatismo de curtíssimo prazo, e de organizações nas quais a disputa do poder substituiu o debate ideológico e se tornou no grande (ou único) elemento identitário (“a esquerda que vence”).

se repetem nos tempos atuais. É útil observar que, em ambos os casos, o debate sobre o projeto é tolhido, ou porque é secundarizado ou porque é condicionado por balizas dogmáticas.

A vida das ideias Desse facto, decorre um princípio fundamental: a autonomia no desenvolvimento de um projeto emancipatório e contra-hegemónico não pode ser confundida com autismo. Na realidade, as ideias socialistas evoluíram em permanente disputa, diálogo e contaminação com outras tradições de pensamento. Essa é a história da origem do próprio pensamento marxista e é nessa linha de construção que se

Não é razoável esperar que um pensamento crítico floresça num bunker intelectual e, portanto, o combate ideológico dos socialistas tem de se travar em campo aberto, com as suas melhores armas. A resposta da pequena (ou grande) esquerda doutrinária foi diferente e assentou na combinação variável de três processos: 1. A ortodoxia – a consagração de um corpo teórico “legítimo” e de uma determinada interpretação sobre esse corpo teórico, associada a instrumentos para a sua reprodução protegida; 2. A depuração – a manutenção de uma identidade ideológica pura através da permanente definição de linhas de fratura e da sua proteção pela cisão ou exclusão; 3. A vanguarda – a consagração (normalmente por autoproclamação) de um núcleo esclarecido ao qual cabe a direção política de um espaço político mais alargado, seja esse espaço o partido no seu conjunto, uma frente política ou o movimento social, entendidos como correia de transmissão. A esquerda conhece bem os resultados destas duas hipóteses de deriva. Porque os exemplos históricos são muitos e porque estas hipóteses 22

produziram as melhores ideias dos socialistas. Por essa razão, não há provavelmente uma fórmula de tão fácil aplicação como as apresentadas acima para assegurar a consistência e renovação de um projeto político. Não é razoável esperar que um pensamento crítico floresça num bunker intelectual e, portanto, o combate ideológico dos socialistas tem de se travar em campo aberto, com as suas melhores armas. Se não vencer assim, não vencerá de nenhuma outra forma. Para tal, é necessário mobilizar: 1. Uma sólida implantação popular, que enquadre em permanência a reflexão coletiva num conhecimento em primeira mão das realidades sociais e crie a máxima diversidade de fontes de experiência, ativismo e referências culturais; 2. Instrumentos próprios, abertos, multiformes e plurais, de comunicação, reflexão política e ideológica, e de debate com outros setores políticos que desafiem a estagnação da reflexão ideológica;


Dossiê Será a opção pela democracia possível? Um dos elementos do discurso antipartidos assenta na ideia de que os partidos são organizações rígidas e que, por isso, são menos democráticas do que outras formas de organização mais “abertas” e “flexíveis”. Esta imagem parte de uma visão parcial sobre o papel das regras na organização coletiva. Considera as regras apenas no que estas têm de constrangedor. Esta perspetiva impede que se compreenda que as regras são também capacitadoras, na dupla medida em que (1) permitem configurar um contrato de organização coletiva sem o qual a ação política é inconsequente, para não dizer impensável e (2) contribuem para que cada ativista, de forma desejavelmente independente da sua condição social e pessoal, nas suas múltiplas dimensões, possa ter um papel e uma intervenção em igualdade com os restantes. Esta é uma questão decisiva. Porque a democracia nos partidos está longe de ser um dado adquirido e porque ela é tão fundamental para a consistência e vitalidade do seu projeto, vale a pena pensar se existe alguma relação entre a formalização do funcionamento de uma organização e a sua democraticidade. Ela existe, embora não seja mecânica. E há várias razões para pensar que a correlação entre o formalismo e o potencial democrático de uma organização é positiva: 1. A garantia do direito de oposição e de crítica só pode ser assegurada pela existência de regras que o protejam. As arbitrariedades encontram terreno fértil, não nas regras, mas nos espaços de omissão. Onde os direitos militantes

Correntes, correias e currais Daqui decorre que um dos traços mais marcantes do partido democrático é a forma como lida com a pluralidade. E um dos desafios mais difíceis é o de construir um partido plural em que as sensibilidades são um fator de enriquecimento do debate interno e em que a cultura partidária privilegia a síntese política e as escolhas democráticas, em detrimento da balcanização ou das fraturas. Muito da definição desse rumo passa pelo papel que têm as correntes ou tendências dentro dos partidos. A ideia de um partido plural e democrático é inseparável de um entendimen23

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Formalismo? Sim, obrigado.

não estão consolidados em regras de funcionamento claras e formas de assegurar a sua implementação, é o controlo do aparelho que ditará regras não-escritas; 2. Claro que podem existir sistemas de regras que consagram mecanismos de (re)produção política não democráticos. No entanto, quando assim é, a existência dessas regras torna esses mecanismos visíveis, concretos e, portanto, suscetíveis de crítica e alteração; 3. As organizações partidárias existem no quadro de uma sociedade marcada por discriminações e exclusões várias. A utilização de regras de funcionamento democrático e de discriminação positiva é indispensável para a construção de uma organização que não importe para o seu funcionamento interno esses mecanismos; 4. Finalmente, a formalização nos partidos, entendida também enquanto estabilidade e durabilidade nos seus processos e funcionamento, constrói uma memória e identidades políticas que criam as condições, embora não as assegurem, para a aprendizagem, a formulação de balanços, a compreensão e a crítica construtiva das escolhas ao longo do tempo. paulete matos

3. Um funcionamento radicalmente democrático, que assuma a pluralidade de referências políticas em todas as suas consequências, incluindo o conflito e a instabilidade.


pedro simões / FLICKR

to radical sobre a liberdade de construção de alternativas para o rumo desse partido. Aqui entram as correntes, as tendências e outras formas de organização de militantes em torno de plataformas próprias. A reflexão sobre os problemas que levanta a existência e a expressão de correntes é importante para a construção de um partido democrático e plural, se dermos como evidente que a proibição administrativa de formas de associação dos militantes não pode ser um ponto de partida. Sem essas formas de associação, são as direções em funções que detêm o monopólio da proposta. Essa reflexão é necessária, para evitar ou minorar três riscos: 1. O sequestro da organização e da democracia pelo funcionamento das correntes. Este risco é particularmente sério em organizações pouco estruturadas, sobretudo na presença de correntes altamente formalizadas. Resulta da possibilidade de que o funcionamento das correntes se sobreponha em forma de curtocircuito ou esvazie os mecanismos de decisão próprios da organização; 2. A compressão da pluralidade da organização, através da marginalização dos militantes não enquadrados em correntes ou através da imposição pelas correntes aos seus membros de disciplina no debate interno do partido no seu conjunto. Aqui é preciso ter em conta que (1) as correntes são uma expressão da pluralidade política de uma organização mas (desejavelmente) não a esgotam, pelo que a vida democrática 24

não pode ficar reduzida às disputas e sínteses entre correntes, e (2) as correntes compõem a pluralidade, mas também a contêm, ou seja, são plurais no seu próprio interior, razão pela qual a imposição de disciplina de corrente pode produzir o efeito indesejado de tornar as correntes um fator de empobrecimento, em vez de enriquecimento, do debate político. Neste sentido, as correntes podem enfermar dos mesmos males que afetaram organizações partidárias no seu conjunto; 3. A propensão para a fratura. A sobreposição de lógicas de disputa pelo poder e legitimidade interna, e de seleção de quadros, à construção política coletiva do partido encerra um risco mais grave: o de enfatizar dinâmicas de conflito, em detrimento das convergências. O agravamento dessas tendências pode impedir a construção de sínteses possíveis, favorecendo confrontos evitáveis e, no limite, inviabilizar a unidade da organização.

O modo de produção de sínteses O processo de elaboração de uma linha política comum, a partir de uma organização plural, nas suas tradições políticas e quadros de referência, é complexo e será tanto mais bem sucedido quanto mais as correntes funcionarem como polos de reflexão, mais do que como exércitos internos, coesos e disciplinados. Esses polos de reflexão mantêm vivas e atuantes diferentes grelhas de análise que acrescentam perspetivas à abordagem dos problemas. Nesse


Dossiê organização política, é o seu programa, que é indissociável e tão importante como a sua função de disputa do poder político. O programa político não é um caderno reivindicativo e não é a soma do conjunto de reivindicações dos movimentos sociais, aliás frequentemente contraditórias entre si. Define o que é o campo do político e pretende ser exaustivo na proposta sobre os domínios por ele abrangidos. Isto não quer dizer que (1) tenha de ter posição ou política para tudo, (2) não tolere a multiplicidade de posições sobre aspetos específicos do mesmo ou (3) construa um programa político imutável e independente das diferentes conjunturas e relações de forças. Nada disto implica que a militância num partido se faça exclusivamente (ou sobretudo) em relação a esse projeto. Na realidade, a militância partidária assume as mais variadas formas e

O esforço de integração de opiniões minoritárias ou externas ao partido deve ser constante e não entra necessariamente em contradição com o apuramento democrático de maiorias. Isso exige espaços de debate próprios e multifacetados, com diferentes níveis de organicidade, desde o plenário até aos fóruns abertos ao público. O esforço de integração de opiniões minoritárias ou externas ao partido deve ser constante e não entra necessariamente em contradição com o apuramento democrático de maiorias. Esse esforço facilita, por outro lado, a unidade na ação e no discurso que, num partido plural, só pode ser o resultado de processos de debate e decisão inclusivos que facilitem a convergência e a disciplina voluntária.

Um programa, mil ativismos A síntese fundamental na construção da identidade política de um partido, que é também, provavelmente, o seu elemento distintivo mais importante enquanto forma específica de

muitas delas passam essencialmente pela atividade fora das estruturas do Partido. Assim sendo, se o partido é um coletivo político agrupado em torno de um programa, isso não quer dizer que esse projeto no seu conjunto esgote o universo da militância partidária. Antes coloca um problema que é o de, em cada momento, saber prevenir uma das tendências mais perversas da atividade partidária: a atração pela estrutura. O caráter multifacetado da atividade dos militantes partidários implica que os militantes têm graus muito diferenciados de relação quotidiana e participação na atividade orgânica do Partido, para já não falar de níveis diferentes de atividade tout court. Essa heterogeneidade espera-se constitutiva e fator de enriquecimento do quadro de referências em que a reflexão da organização é construída. 25

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sentido, podem enriquecer o debate sem obstaculizar a construção de uma opinião coletiva. Se essa possibilidade se concretiza ou não também depende dos mecanismos de debate existentes. É por isso que um partido democrático deve ter mecanismos altamente formalizados para a resolução democrática de divergências, mas também uma cultura que favoreça a emergência de sínteses. O exercício da democracia numa organização não se limita ao apuramento de maiorias. Pelo contrário, uma organização plural deve privilegiar uma cultura de debate que promova sínteses políticas. Não se trata meramente de um processo de negociação política, ainda que esta também possa ter lugar. Está em causa o processo através do qual um debate pode conseguir uma verdadeira aproximação de posições, não através de cedências, mas através do cruzamento e sinergia de argumentos e referências.


Por isso mesmo, um ra a sua própria eficácia. dos desafios mais diPara perceber melhor, o caráter contraproducente destas fíceis que se coloca à tendências, é útil ter presente organização é o de imalguns traços distintivos que pedir o peso excessivo Os movimentos, se podem observar, de forma em organismos de disobretudo os mais autónomos, têm adotado muito variável, em movimenreção e coordenação de um discurso crescentos sociais: atividade dos ativistas temente marcado 1. Especificidade. A quaque concentram a sua pelo antagonismo em se totalidade dos movimentos atividade em áreas mais relação aos partidos debruça-se sobre temas partiorgânicas. Essa tendênem geral culares e/ou pretende reprecia para o fechamento é sentar setores da sociedade, absolutamente natural dispensando portanto os seus e resulta da combinação membros de partilharem plade um fator de recotaformas comuns sobre outras nhecimento (os ativistas mais orgânicos assumem frequentemente questões políticas que não as que constituem o funções de apoio e coordenação do trabalho de centro da sua atividade. 2. Transitoriedade. Alguns movimentos todos) e disponibilidade para tarefas de direção partidária. Mas retira a capacidade de escuta e não duram e não são para durar. São criados de cruzamento de perspetivas que deve formar objetivos específicos ou combates particulares uma boa direção política. A abertura do partido e esgotam a sua existência uma vez alcançados (e a de qualquer organização?) à sociedade não (ou não) esses objetivos. 3. Informalidade. Os diferentes movimentos decorre, portanto, de nenhum processo “natural”. É um esforço permanente que resulta de têm formas variáveis de concretização orgânica, uma escolha política. Se essa escolha não for desde organizações com existência legal e filiaclara e assumida, a tendência é para o enquis- ção até às manifestações ditas “espontâneas”. 4. Protesto e/ou reivindicação. Aos movitamento. mentos não é exigido (embora também não seja Partido e (outros) movimentos - separar interdito) que formulem alternativas políticas. Um movimento pode perfeitamente unificar-se para somar As particularidades da forma-partido, quan- para ações de protesto e de denúncia sem ter de do comparada com outros movimentos sociais, construir consensos sobre soluções. É interessante verificar que estes traços no em qualquer das suas múltiplas formas, não seu conjunto desenham um negativo das organisão justificação para teorias da hierarquia ou do antagonismo. No entanto, a tradição das zações partidárias. Talvez por isso seja habitual relações entre partidos e movimentos sociais falar indiferenciadamente de movimentos como em Portugal tem sido marcada por essas duas todas as organizações políticas que não são partendências. Os partidos frequentemente não tidos. Também ajuda a compreender porque é resistem à tentação míope da instrumentaliza- que os sindicatos, por serem organizações mais ção de movimentos sociais, com prejuízo para formais, são frequentemente tratados como se a sua abrangência. Os movimentos, sobretudo não fossem movimentos. Obviamente, há neste os mais autónomos, têm adotado um discurso universo diferenças enormes, mas as caractecrescentemente marcado pelo antagonismo em rísticas acima elencadas, entre outras, fornecem relação aos partidos em geral, com prejuízo pa- algumas pistas sobre qual pode ser o papel fun26


Dossiê dos movimentos sociais não diminui, antes aumenta, a responsabilidade do partido. Se a interdependência entre partidos e movimentos é fundamental, também as plataformas de unidade têm de ter expressão em ambos os níveis. Para o partido, o programa é central mas não é uma estratégia. A tarefa mais importante para a definição de uma política de unidade é a de definir o eixo fundamental em torno do qual as convergências têm de ser estabelecidas. Trata-se de encontrar, em cada conjuntura histórica concreta, a fratura política decisiva e, uma vez encontrada, mobilizar todas as alianças sociais e políticas em torno dos combates correspondentes.

A tarefa mais importante para a definição de uma política de unidade é a de definir o eixo fundamental em torno do qual as convergências têm de ser estabelecidas.

O segundo aspeto é o da interdependência entre partidos e movimentos. A consolidação de uma cultura antipartidos no movimento social é o grande risco (em conjunção com o controlo partidário) para essa interdependência. Essa cultura desarticula uma ligação fundamental para qualquer projeto emancipatório: a necessidade de um movimento social que dê suporte a uma representação política que, por sua vez, lhe acrescente expressão e consequência. Este nexo é fundamental.

A unidade: uma forma com conteúdo O facto de a unidade ser o terreno natural

Isso significa romper a longa tradição de sectarismo e incomunicabilidade que persiste na história da esquerda. As propostas dos casamenteiros vários que sempre se perfilam em momentos de crise não resolvem problema nenhum porque partem da aritmética ou de simpatias ocas, na esperança de que a política trate de si própria. Mas se os objetivos não são claros à partida, a atração pelo centro é irresistível. Estas propostas são, portanto, sempre ingénuas, a não ser que sejam conscientemente oportunistas. Uma unidade que valha a pena constrói-se a partir da política, dos combates fundamentais do nosso tempo.

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damental dos movimentos. O tipo de participação, de tema, de duração e de objetivos nos movimentos pode servir para potenciar uma muito maior abrangência nos seus membros do que aquela que é possível nas organizações partidárias. Essa é provavelmente a grande vantagem e o grande contributo dos movimentos e a principal razão pela qual o controlo partidário enfraquece o movimento social. É por essa razão que os partidos interessados num movimento social forte ganham em abdicar de intervir de forma disciplinada na tentativa de controlo, em benefício de dinâmicas verdadeiramente unitárias que mobilizem todas as forças para cada combate.


carlos pinto 73 / FLICKR

Socialismo: o rumo das raízes e do horizonte Bruno Góis e Fabian Figueiredo Três coordenadas históricas são fundamentais antes de passarmos à “palavra”. A primeira é 1789, data da Revolução Francesa, ambiente histórico em torno do qual a palavra “sociedade” e a palavra “socialismo” começam a emergir. Segue-se 1917, data da Revolução Russa, a primeira revolução socialista vitoriosa. E a terceira data que guia esta introdução é 1989, a queda do Muro de Berlim. Assumidas estas coordenadas, inscrevemo-nos no “partido” de quem, com os olhos no futuro, saúda a queda do Muro de Berlim sem abraçar o “Fim da História” e não desiste do socialismo. Os acontecimentos derivados de 1989/90, queda do Muro de Berlim e colapso da União Soviética, deram base material à emergência do referido discurso do “Fim da História”, expressão divulgada por Francis Fukuyama (1992). Com a saída de cena das experiências do “socialismo 28

realmente existente” caía o socialismo e com ele o conservadorismo (especializado que estava em ser uma ideologia essencialmente “anticomunista”). Restava, com todo um mudo para se propagar, o triunfo do modelo liberal: “democracia liberal”, “mercado livre” (ou seja, desregulado) e supostamente decorrente “paz internacional”. A história que se segue nós conhecemos: nem prosperidade pelo mercado (México 1994, Leste e Sudeste Asiático 1997-98, Argentina 19992002, América do Sul 2002, Crise Financeira de 2007-2010, Crise do Euro), nem paz pelo mercado (Guerras do Golfo, Guerra da Bósnia 1992-95, Segunda Guerra do Congo 1998-2003, Guerra do Afeganistão desde 2001 e Invasão do Iraque desde 2003), nem democracias de mercado. Também contra o “fim da história”, a existência de movimentos políticos que reivindicam


Dossiê latim socius (do campo lexical de “associação” e “partilha”, e que pode ser lido companheiro, camarada, etc.) começam a aparecer na filosofia política. Enquanto “ciência do Estado e da sociedade”, aparece em texto inédito do também autor de O que é o Terceiro Estado?, EmmanuelJoseph Sieyès3. A versão mais divulgada da origem da palavra “socialismo” é a presente em A New English Dictionary on Historical Principles, que afirma ter o nome socialismo nascido em 1832, cunhado por Pierre Leroux. É curioso que Leroux afirma ter criado o termo para operar uma crítica simétrica ao “individualismo absoluto” e ao “socialismo absoluto”, conforme o texto “De l’individualisme et du socialisme”. No entanto, Leroux acrescentará, posteriormente, em 1850, numa nota a esse texto4 que embora tenha inventado o termo

A existência de movimentos políticos que reivindicam a luta pelo socialismo, e só para falar do espaço europeu, é uma evidência. o nosso país não é perfeito. Mas aquilo em que acreditamos inspira muita gente em todo o mundo. Talvez nos tenhamos perdido algumas vezes. Mas reencontrámo-nos. Socialismo não significa viver atrás de um muro. Socialismo significa chegar às outras pessoas e viver com elas. Não apenas sonhar com um mundo melhor, mas fazer do mundo um lugar melhor. Por isso, decidi abrir as fronteiras da RDA.»2

1 - Era uma vez um nome… O nome é jovem e de origem controversa. Pelos anos 1780, “sociedade”, “socialismo” e outras palavras etimologicamente derivadas do

“socialismo” para criticar os “falsos sistemas” projetados por Saint-Simon e os seus discípulos, aceita ele próprio ser considerado socialista no sentido em que este signifique «a doutrina que não irá sacrificar nenhum dos termos da fórmula Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mas que [pelo contrário] os reconciliará a todos»5. Há muitas ideologias políticas nascidas nos séculos XIX e XX que adotaram o nome socialismo. Já em 1848, Karl Marx e Fredrich Engels consideravam sistematicamente a existência de um “socialismo reacionário” (que incluía o “socialismo feudal”, o “socialismo pequeno-burguês”, o “socialismo alemão ou verdadeiro”), um

1 - Wolfgang Becker, 2003. 2 - Tradução do original por Ana Bárbara Pedrosa e Bruno Góis para o blog adeuslenine.blogspot.com 3 - BRANCA-ROSOFF, Sonia e GUILHAUMOU, Jacques (2002). “De ‘société’ à ‘socialisme’, l’invention néologique et son contexte discursif ”. In Revista da Abralin, 1, 2, dezembro de 2002, pp. 11-52. 4 - LEROUX, Pierre (1997). ”De l’individualisme et du socialisme”. In Revue du MAUSS, nº 9 (1997, 1er sem.) pp. 203-216. 5 - Mais tarde, expressão é amplamente citada sem contexto. Marx chamar-lhe-á «o genial Leroux». Porém, esta expressão vem no âmbito de uma crítica à proximidade de Leroux com o pensamento de Schelling (Cf. MARX, Karl, “Lettre à Ludwig Feuerbach du 8 Octobre 1843”. In MARX, Karl e ENGELS, Fredrich (1971). Correspondance, Tomo 1. Paris: Editions Sociales, p. 302.

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a luta pelo socialismo, e só para falar do espaço europeu, é uma evidência. Embora seja de referir que há partidos, como é o caso do Bloco de Esquerda, que se repetem nestas distintas formações, saliente-se também que o Grupo da Esquerda Unitária Europeia no Parlamento Europeu é composto por 17 forças políticas, o Partido da Esquerda Europeia integra 27 membros e 10 observadores e 13 partidos participam na rede das Esquerdas Anticapitalistas Europeias. Dito isto, e antes de retomarmos o percurso que vai da abstração do nome ao concreto do movimento político, vale a pena retermos uma definição fornecida pelo filme Adeus Lenine!1. Numa das cenas do filme é ficcionada uma história diferente para a queda do Muro, Sidmund Jähn investido como novo presidente do Conselho de Estado da RDA declara: «Sabemos que


“socialismo conservador ou burguês” (onde incluíam Proudhon) e um “socialismo crítico-utópico”, neste último incluindo Saint-Simon, Fourier e Owen. Curiosamente, Marx, a quem seria estranho adotar o nome marxismo, falava do seu método como “socialismo racionalista crítico”6. Anos mais tarde, Engels, no prefácio à edição inglesa de 1888 do Manifesto do Partido Comunista, onde figuram aquelas classificações, esclarece que «quando foi escrito não lhe podíamos ter chamado um Manifesto Socialista», dado que «[e]m 1847 entendia-se por socialistas, de um lado, os aderentes aos vários sistemas utópicos — owenistas em Inglaterra, fourieristas em França, já reduzidos ambos à condição de meras seitas, e que estavam a morrer gradualmente; do outro lado, os mais variados charlatães sociais. (…) O socialismo era um movimento da classe média e o comunismo um movimento da classe operária. (…) [O] socialismo era, pelo menos no Continente, “respeitável”; o comunismo era precisamente o oposto»7. Mais tarde, voltará a ganhar pertinência na conjuntura histórica fazer distinção entre socialistas e comunistas, quando os partidos da Segunda Internacional cedem ao belicismo apoiando “patrioticamente” os respetivos governos na I Guerra Mundial. As cisões de esquerda, portadoras das aspirações populares antiguerra, são então catalisadas pela emergência da revolução socialista da Rússia de 1917 e virão a adotar o nome de “comunistas”. Essa distinção, sendo tendencial na diferenciação dos movimentos políticos genealogicamente separados por aquele evento, não abria nenhum abismo teórico-filosófico já que “revolucionários” (tendencialmente chamados “comunistas”) e “reformistas” (tendencialmente chamados “sociais-democratas”) continuavam a reclamar-se do “socialismo”, continuavam a aspirar à superação do capitalismo.

Tanto se chamavam socialistas aos grandes partidos operários sociais-democratas da Europa Ocidental como às repúblicas herdeiras das diversas revoluções e independências de caráter ou inspiração socialista no Leste Europeu, na Ásia, na América Latina e em África. E não faltavam, por essa razão, para além dos muitos matizes trotskistas, autogestionários, marxistasleninistas etc., as doutrinas que visavam fundir a política nascida dos movimentos operários europeus com as culturas locais e circunstância histórico-geográfica da luta contra outras contradições geradas pelo imperialismo e o colonialismo: falamos do “socialismo árabe” de Nasser e do “socialismo africano” de Nkrumah. Além de toda esta diversidade de movimentos e realidades que se reclamam da luta pelo socialismo, há ainda quem junte confusão ao que já é complexo. Atualmente há quem queira tornar incompatíveis e antagónicos os termos “comunismo” e “socialismo”, dando dignidade de antagonismo filosófico à referida divergência de nomes por razões conjunturais. Falamos de Slavoj Žižek, que se afirma defensor do “comunismo” e repudia o “socialismo”8. Além dele, Antonio Negri, autor do elucidativo Adeus, Sr. Socialismo9, contribui para a confusão com termos como “o comunismo do Capital” e o “comunismo dos comunistas”. Como dá para perceber, a família do socialismo “é como o bacalhau, há inúmeras formas de o preparar e algumas nem bacalhau levam”. É deste última inovação política, combinada com a metáfora da ausência do peixe e da presença abundante de espinhas, que introduzimos o socialismo sem socialismo a que os partidos da atual Internacional Socialista nos foram habituando: o social-liberalismo. A receita criada por Anthony Giddens, sob o signo de Terceira-Via e posta em prática pe-

6 - HAUPT, Georges (1980). L’Historien et le mouvement social. Paris: François Maspéro, p. 93. 7 - MARX, Karl e ENGELS, Fredrich [2004 (1ª ed.: 1848)]. Manifesto do Partido Comunista. Manifesto do Partido Comunista. 4ª Ed. Lisboa: Edições Avante, p. 17. 8 - ŽIŽEK, Slavoj (2010). “How to begin from the beginning”. In DOUZINAS, Costas and ŽIŽEK, Slavoj (eds.), The idea of Communism. Londres/ Nova Iorque: Verso, pp. 209-226. 9 - NEGRI, Antonio (2007). Adeus, Sr. Socialismo. Que Futuro Para a Esquerda?. Porto: Ambar.

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Dossiê 2 - Práxis ou “o que é, hoje, a política socialista?” O objetivo da política é a conquista, a manutenção e o exercício do poder. Se esse é o objetivo de todos os atores políticos, também o é para as e os socialistas. Mas não é indiferente, para quem luta pelo socialismo, o que se faz com o poder, a quem serve o poder. Por isso convém falar em princípios estratégicos socialistas. «Lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento»10. Esta breve citação do Manifesto, em nosso entender, sintetiza os dois princípios estratégicos da política socialista.

O acervo de lutas, reivindicações e conquistas do socialismo foi crescendo com a experiência histórica das lutas populares e as próprias formas da emancipação socialista evoluíram com essa prática. Se era claro para Marx que a Comuna de Paris fornecia pistas para o que seria o poder dos trabalhadores, se Gramsci não tinha dúvidas que não era preciso inventar formas políticas porque a Revolução de Outubro tinha já criado o sistema soviético, hoje, as formas políticas da emancipação socialista são também herdeiras das lutas populares pelo Estado de Direito, a democracia representativa, os avanços da democracia participativa e o conteúdo social da cidadania. O socialismo moderno é feminista, anticapitalista, ecologista, democrata, anti-imperialista e antirracista. Foi a luta popular pelo progresso que incrementou o acervo socialista de reivindicações e conquistas. Este progresso programático em nada contradiz, antes aprofunda, a base fundacional do socialismo moderno. A teoria da mais-valia de Marx fundou o socialismo moderno ao definir o antagonismo de interesses entre a classe trabalhadora e a classe que se apropria da mais-valia, a burguesia. Esta diferença de campos políticos, de interesses opostos entre exploradores e explorados marcou todo o socialismo moderno, incluindo todas as correntes políticas socialistas que degeneraram, capitularam e abandonaram o socialismo. Apesar da

10 - MARX, Karl e ENGELS, Fredrich [2004 (1ª ed.: 1848)]. Manifesto do Partido Comunista. Manifesto do Partido Comunista. 4ª Ed. Lisboa: Edições Avante!, p. 71.

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surizar / flickr

lo New Labour de Tony Blair, representou a capitulação definitiva dos chamados partidos socialistas, trabalhistas e sociais-democratas aos méritos do mercado e à inevitabilidade da globalização capitalista. Na ementa desta forças políticas, entre privatizações e desregulações do mercado de trabalho, o socialismo já não se encontra no menu. Apesar da projeção e influência intelectual dos autores neocomunistas e autonomistas, anteriormente referidos, e da pertinência que as discussões sobre os atuais e ex-campos do socialismo têm para este trabalho, apenas tem relevância um conceito de socialismo que corresponda a uma política socialista.


sobredeterminação da luta de classes sobre o todo social, assumindo esta como motor da história, importa sublinhar que embora o capitalismo parasite, impulsione e se cruze com as mais diversas formas de opressão e alienação, estas não se resumem à luta de classes. Para exemplo: o patriarcado é anterior ao próprio capitalismo e há dimensões transclassistas da violência de género e do poder patriarcal; isso não nega a luta de classes e a importância que a luta anticapitalista tem para a luta feminista, mas também não subordina a luta feminista à luta anticapitalista. O argumento justo da não subordinação das lutas é muitas vezes subvertido, traficado, por aquelas e aqueles que seguem a máxima bernesteiniana de “o movimento é tudo, o fim é nada”. Esta visão bernesteiniana (embora originária da vertente reformista do campo socialista) é antagónica aos princípios estratégicos socialistas modernos segundo os quais a esquerda socialista luta para alcançar os fins e interesses imediatos das exploradas e dos oprimidos, mas no movimento presente representa simultaneamente o futuro do movimento. Um partido político socialista não é um movimento social (de objetivos limitados) disfarçado de partido, o seu objetivo é ser poder, é realizar (seja só, seja em coligação) um programa político que se enquadre nos referidos princípios estratégicos. Não pode ser um “partido-sindicato” que, apenas preocupado com a luta económica e sem um programa político, negoceie lugares de ministro e medidas avulsas do seu setor indiferente às políticas conservadoras que venham no pacote da aliança governista. Do mesmo modo, não pode ser como os Verdes europeus que aceitam ser ministros de guerras imperialistas. Um partido socialista também não pode ser um partidoqueer capaz de suportar um governo antissocial em nome de justos progressos em direitos civis (como o casamento livre para todas e todos, uma 32

adoção livre das “fobias”, uma lei avançada para a identidade de género), mas esquecendo, por exemplo, estudantes bissexuais, precários intersexuais, trabalhadoras lésbicas, gays desempregados e pensionistas transexuais. Todas e todos pela luta toda não é só um slogan, decorre daqueles princípios socialistas. A melhoria da vida das exploradas e dos oprimidos, o preenchimento dos seus interesses imediatos sem trair as outras lutas e o futuro da luta toda, exige o empenho da política unitária na defesa de cada uma das causas, com todas as aliadas e todos os aliados democratas que se possam juntar nessa defesa. Assim, por exemplo, os conservadores sociais-cristãos podem estar ao nosso lado em momentos concretos da defesa do Estado social. Noutros momentos, os liberais da fúria privatizadora podem ser grandes aliados contra os referidos conservadores, quando a luta é pela despenalização do aborto. Não temos qualquer problema em ter conservadores ou liberais como aliados em causas concretas. Mas esses fins são concretos e efémeros, não são razões para fazermos governos com uns ou com outros, o que trairia umas lutas em nome de outras. Do mesmo modo, os partidos da Internacional Socialista que quiserem levar a cabo políticas de delapidação da propriedade pública encontrarão melhores parceiros nos partidos da Internacional Liberal e melhores alianças de governo para apoiar as guerras da NATO nos Verdes europeus. A esquerda socialista quer ser poder para cumprir o seu programa político. Isso exclui alianças com outros setores? Não. A questão é alianças para quê, com que objetivos. O poder pelo poder, sem princípios, não serve. São precisas táticas e uma estratégia de luta, mas há princípios estratégicos. E estes princípios não caíram do céu, nasceram da fusão do pensamento socialista com o movimento popular, derivam do seu progresso e da sua experiência.


Alexis Tsipras

ENTREVISTA

Entrevista a Alexis Tsipras, Secretário-Geral do Syriza (Grécia)

Mais de um milhão de pessoas votaram em nós Entrevista: José Soeiro e Marisa Matias. transcrição e tradução: Amarílis Felizes, Jorge

Como foi o sentimento geral depois do resultado eleitoral do Syriza nestas últimas eleições? Foi mais ou menos como se a seleção do Burkina Faso chegasse à final do campeonato do mundo... e perdesse. Passados alguns dias da euforia inicial de todos pela batalha dura que travámos, houve uma certa tristeza com o resultado. Há que salientar que esse sentimento relativamente a estes resultados vinha, sobretudo, das pessoas que não são membros do Syriza, mas de uma parte mais alargada da população,

Paiva e José Soeiro

da sociedade, porque as pessoas tinham esperança que nós vencêssemos esta batalha eleitoral. Agora o novo governo, que prometeu às pessoas que ia renegociar a dívida, acabará por seguir o mesmo memorando assinado pelo anterior governo. Vão seguir o memorando e os planos da Troika. Tenho a sensação que depois do verão a verdade da realidade vai ser muito dura para o povo grego. O Syriza decidiu constituir-se como partido. O que é que esperam deste processo?

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E quais as principais características do projeto? Houve um grande debate que tivemos de superar ao longo dos últimos anos, mas às vezes a vida traz-nos as soluções para os problemas que achávamos que nunca conseguiríamos resolver. O próprio facto de o Syriza e os partidos da coligação não terem mais de 30 000 membros ou inscritos, e termos tido mais de 1 milhão de pessoas a votar em nós, uma boa parte delas querendo agora inscrever-se, cria essa necessidade. Tivemos de pensar como é que estas pessoas se poderiam integrar na estrutura. Quereriam integrar uma coligação com vários pequenos partidos? Ou querem fazer parte de um grande partido? A autonomia ideológica não se perderá, apesar de passarmos a funcionar com as estruturas de um partido. As organizações podem funcionar como plataformas de ideias, agora num grande partido.

Como dar continuidade à participação popular? Houve um papel importante da mobilização social em todo este processo. As greves gerais, o movimento das praças, as assembleias populares... Como é que isso está agora? Conseguirá o Syriza dar continuidade a este movimento de participação popular? Qual a ligação entre este tipo de participação política e o partido? Este movimento das praças permitiu-nos tirar algumas conclusões. Por um lado, houve uma crise de representação no sistema político grego, mas este movimento fez-nos perceber também que havia um retorno. Começámos a pensar que devíamos mudar o tipo de contacto que estabelecíamos com as pessoas, com o quotidiano das pessoas, e mudar as nossas 34

estruturas internas para nos aproximarmos delas. No entanto, este movimento teve uma componente menos política e mais de confronto direto. Havia motins, podemos dizer que houve uma guerra, porque esse movimento foi destruído pela repressão do Estado, houve ataques com “químicos”, etc., mas as ideias geradas abriram um novo caminho na vida social e política da Grécia. O Syriza provou ser a nova esperança, não só da mudança e da possibilidade de nos vermos livres da Troika e do Memorando, mas também de mudar todo o sistema político desde a raiz. O que estamos a tentar fazer é incluir todas estas estruturas democráticas e horizontais nas nossas próprias estruturas. Onde toda a gente pode participar. Não é como se estivéssemos a falar frente às pessoas, mas a partir de dentro, com elas, de forma horizontal. É por isso que estamos a tentar utilizar esse modelo. São estes mesmos métodos que estamos a tentar utilizar na nossa campanha, nas praças, a recrutar novos membros. Para ser sincero, é algo a que não estamos habituados, as pessoas a quererem entrar num partido político, sobretudo nestes tempos. O único problema que enfrentamos é que temos de corresponder às expectativas das pessoas e às suas esperanças. Não se consegue crescer assim em dois dias. Ainda temos estruturas pobres para acolher tanta gente que votou em nós e temos de nos organizar. Esperamos poder beneficiar deste tempo e vir a dizer que não queremos guiar as pessoas, mas antes que as pessoas nos guiem.

Grande parte da verba dos deputados vai para redes de solidariedade Como é que articulam esta nova condição e esta ligação com os movimentos com o facto de terem agora 71 deputados?


ENTREVISTA Alexis Tsipras

renato soeiro

Alexis Tsipras entrevistado por Marisa Matias e José Soeiro. Há o perigo de isso nos poder converter num partido baseado apenas nos nossos deputados no Parlamento. Nós não queremos isso. Queremos um partido com as suas bases enraizadas na sociedade e não apenas no Parlamento. Esta altura é para nós muito importante. Precisamos de nos organizar no Parlamento e de compreender os problemas da sociedade, porque temos de estar preparados para disputar o governo. Estamos a trabalhar em duas direções. Uma é a organização das estruturas do partido e a outra é a organização do grupo parlamentar em comissões para conhecermos os problemas e a forma de enfrentá-los com alternativas. Precisamos de utilizar estas ideias que estão na sociedade e trazê-las da base até às instituições, pois somos agora o segundo partido. Na próxima segunda-feira terei uma reunião com os 71 deputados do Syriza. Vamos falar da estrutura, da organização e, claro, sobre como vamos utilizar os fundos que recebemos do Estado. Posso dizer-vos desde já que uma grande parte da verba que os deputados recebem vai ser transferida para as estruturas sociais de apoio e para as redes de solidariedade que se organizam entre os mais pobres para fazer face às consequências da crise.

Como estão a lidar com o crescimento dos grupos neonazis, com o facto de não terem perdido apoio eleitoral e de haver muitos jovens que os apoiaram? Este fenómeno, na verdade, não nos surpreendeu, dado que em tempos de crise há consequências políticas que resultam da atitude antipolítica de uma parte da sociedade. Honestamente, não acredito que tenhamos tantos milhares de fascistas e neonazis na Grécia. Penso que se trata mais de um voto de punição para o conjunto do sistema político, mas claro que estou preocupado com o facto de o partido neonazi estar a crescer. O poder instalado tenta passar a ideia de que assistimos a um choque entre os “dois extremos” do espectro político e atacam-nos de todas as formas possíveis. É óbvio que é um fenómeno negativo, temos de viver com ele e de enfrentá-lo.

Syriza incluiu o PC Grego na proposta de um governo de esquerda E em relação ao KKE (Partido Comunista Grego), que perdeu metade dos votos? O Syriza continua a fazer apelos à unidade? 35


Que desenvolvimentos existem? O Syriza tem sempre incluído o KKE na proposta de um governo de esquerda e continuaremos a fazê-lo. O KKE fechou-se. Vamos esperar pelos desenvolvimentos, ver o que vai acontecer. Na reunião do comité central do KKE, as conclusões sobre os resultados eleitorais foram que estes são culpa de toda a gente menos da direção do KKE. Como dizemos na Grécia, é a ideia de que não somos nós que estamos errados, são os outros todos que estão errados. Têm insistido muito na dimensão europeia da resposta à crise. Quais são, na tua perspetiva, as lutas comuns e a articulação europeia que pode ser construída agora? Como sabes, houve um grande entusiasmo em Portugal com o Syriza, com comícios, um manifesto de solidariedade... Que ideia existe na Grécia sobre o que está a acontecer em Portugal e sobre a situação da esquerda portuguesa? Sentimos que a situação é muito semelhante no sul da Europa, mas percebemos que os casos não são exatamente iguais, já que existem especificidades de país para país. Temos percebido que o Syriza tem tido importância muito para além da Grécia. Isso também se deve ao facto de o nosso país ter sido escolhido para laboratório das experiências neoliberais, assim como podemos ser agora o detonador que pode explodir com a austeridade, na Europa e no mundo. Pelo facto de estarmos no epicentro da crise, nós tivemos uma grande dinâmica e esperamos que isso contribua para que a esquerda europeia, especialmente nos países do Sul que sofreram as mesmas medidas e vivem as mesmas consequências, cresça como nós. O problema é como dar sequência a este processo, que tem de ter continuidade. Vimos o exemplo de Espanha, onde assistimos a um verão quente de protestos. Em Portugal existiram também mobilizações sociais importantes, assim como em Itália, mas esta esquerda social tem que ter 36

um efeito e uma tradução política para que haja uma alteração na relação de forças.

É necessário um sistema bancário socializado A esquerda europeia tem insistido na proposta de criação de um banco público europeu para financiar a criação de emprego. Em que medida esta proposta poderia fazer a diferença em relação à Grécia e aos países do Sul? Este ideia tem que ver com duas dimensões. Temos de rasgar o Memorando, romper com as medidas de austeridade, e temos que financiar as necessidades sociais. É uma questão de prioridades, agora. A austeridade conduz à destruição. Necessitamos de uma economia centrada no desenvolvimento social, contra a hegemonia dos bancos sobre a política e sobre as pessoas. Para caminharmos nessa direção, é necessário um sistema bancário público socializado para servir as necessidades da população e promover o emprego. Para relançar a economia grega, em que campos deve o Estado investir? A Grécia pode ser competitiva em alguns setores. Por não gostar do termo competitivo, prefiro dizer que há alguns setores específicos nos quais, se apostarmos, podemos ter bons resultados. Temos algumas particularidades por causa da nossa posição geográfica vantajosa. Temos vários recursos no setor primário, na agricultura, no turismo, nas energias renováveis, nos propriamente ditos recursos naturais. No entanto, para fazer funcionar estes setores, temos de ter financiamento público para os desenvolver. Por outro lado, o Memorando diz que temos de fazer cortes na “despesa pública”, mas sabemos que não se trata de “despesa”, trata-se antes de necessidades básicas. Entendo que vai ser muito difícil relançar a economia sem ser a partir de alguns setores e assente em políticas públicas fortes. Neste momento, queremos falar


Achas que a Grécia pode ser forçada a abandonar a Zona Euro ou são ameaças que não passam disso mesmo porque não podem realmente fazê-lo? Acho que não é viável a saída de um país do euro sem consequências negativas para o conjunto da Zona Euro. É claro que tem havido um movimento para minimizar os custos da saída de um membro da Zona Euro. Creio, no entanto, que o modelo da saída ainda não é viável.

O crash de 1929 devia ter ensinado que não se combate a crise com austeridade O que deve mudar na Europa para que os povos do Sul se vejam livres das medidas de austeridade? Que medidas de emergência? As medidas têm de ser pensadas à escala europeia. O défice dos países do Sul não é a razão do problema, é um sintoma. Pensamos que o problema é a estrutura da Zona Euro porque está dependente do financiamento nos mercados; o problema é haver um Banco Central que não pode emprestar diretamente aos países. O

crash de 1929 deveria ter dado uma lição: não se combate uma crise com medidas de austeridade, mas antes, por exemplo, com a emissão de mais moeda. Esta é, infelizmente, uma lição que parece não termos aprendido na Europa. Deveria haver uma espécie de Plano Marshall para o sul da Europa e não mais medidas de austeridade. Devia haver financiamento para o desenvolvimento social porque isso iria ser útil não apenas para os países do Sul mas também para os do Norte, uma vez que o défice dos países do Sul é o resultado da mais-valia dos países do Norte. Se tivermos em conta que muitos dos países do norte da Europa exportam os seus produtos para os países do Sul, então, é preciso perceber que se desaparece o poder de compra do Sul, os países do Norte também serão afetados. E não se pode ir também pela via das políticas de compressão salarial porque, em algum momento, a economia explode. A luta deve ser numa escala nacional ou deve priorizar as estruturas europeias? Ambas são importantes. Não podemos separar os níveis nacional, europeu e internacional. Temos de adquirir experiência sobre o que se passa nos nossos países mas também alterar as estruturas europeias. Cada país tem as suas particularidades, mas temos instituições europeias comuns. Por exemplo, se houvesse manifestações de massas à escala europeia, juntando o movimento sindical e o movimento das praças, lembrar-nos-íamos dos tempos de 2001, 2002 e 2003. Nessa altura, os líderes europeus nunca podiam reunir-se sozinhos porque havia sempre manifestações massivas. 37

ENTREVISTA Alexis Tsipras

renato soeiro

com pessoas com experiência em economia, do partido mas também fora do partido, da Grécia mas também de outros países, pessoas que pensam a economia de outra forma para podermos pôr a economia a funcionar. Queremos avançar com a ideia de uma reestruturação coletiva da economia, falar de desenvolvimento sem que este seja sinónimo de desenvolvimento do capitalismo, em que a mais-valia vai para uns poucos, mas antes desenvolvimento centrado nas necessidades sociais.


livros

ler, VER, OUVIR Filipe Ribeiro de Meneses Salazar. Uma biografia política D. Quixote, 2010

Salazar e o século XX luís trindade

O fim do século XX – segundo uma leitura entretanto tornada canónica, o ano de 1989 – cristalizou uma narrativa assente numa forte dicotomia. Tal narrativa, no essencial, organizase em torno de um confronto entre duas formas políticas que no fundo têm a sua origem em distintos regimes económicos, mas que a historiografia que primeiro a vulgarizou prefere tratar como modelos civilizacionais: o liberalismo e o comunismo. A vitória do primeiro deixou-o, durante algum tempo, a falar sozinho e foi precisamente dessa solidão que a narrativa se pôde tornar consensual. Desta forma, o discurso liberal não só decretou a sua vitória como pôde definir sem atrito, e retrospetivamente, o seu adversário. O comunismo, no momento em que parecia sair do mapa da história, foi assim reduzido a um papel meramente instrumental da nova narrativa dominante, como o lado derrotado da vitória do progresso contra a barbárie. Curiosamente, este discurso civilizacional adapta-se bem à versão política da narrativa, onde o liberalismo quer dizer democracia enquanto comunismo significa opressão, mas menos bem à terminologia económica – onde se oporia socialismo a capitalismo – cujas conotações históricas são muito menos passíveis de consenso. Mas é exatamente por isto – porque liberdade e democracia têm sobretudo servido, nos últimos vinte

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anos, para ocultar a palavra capitalismo – que se torna tão importante pensar o último enquanto tal, e através de todas as suas formas de existência histórica. Pensar os vários papéis, versões e cenários do capitalismo no século XX convida-nos por sua vez a pensar o lugar do fascismo, bem como do colonialismo, no interior da dicotomia liberalismo-comunismo. Porque enquanto o liberalismo, entendido como a “civilização da liberdade e da democracia”, pode facilmente atribuir-se um lugar na resistência antifascista (e um papel na história do colonialismo que, apesar de ambíguo, acaba sempre cedo ou tarde em processos de descolonização), já como capitalismo é mais difícil ignorar a cumplicidade entre as elites económicas liberais e os regimes fascistas (ou, naturalmente, o imperialismo como sistema de exploração económica). O problema mais evidente – mas não o principal, como veremos – de Salazar. Uma Biografia Política, de Filipe Ribeiro de Meneses (FRM), é a sua inscrição tão acentuada, em boa parte inconsciente, nesta narrativa dominante do século XX. Para resumir em excesso uma obra que, dada a dificuldade da pesquisa e a ambição da


narrativa, merecia uma leitura mais exaustiva, o Salazar de Meneses foi, ao contrário do senso comum na sociedade portuguesa sobre a figura, um sujeito histórico pouco autónomo e fortemente sujeito àquelas vicissitudes que tornaram o século XX – como a grande epopeia da vitória do liberalismo – um período tão violento e contraditório. É, dada a natureza de uma narrativa biográfica, impossível não ver na desqualificação do objeto do livro – escolhido, naturalmente, em função da sua relevância –, sobre o pano de fundo da incomensurabilidade do século, um singular exercício de determinismo histórico: Salazar é um democrata-cristão – e porque o é nunca deixa de o ser – que encontra, contrafeito, dois fenómenos estranhos num percurso matri-

ou «(…) é impossível imaginar Mussolini, Hitler ou Franco a participar em semelhante encontro» , que parecem responder a um espetro que assombra FRM – o dos historiadores que defendem ter o Estado Novo sido um fascismo – mas que em nada parecem contribuir para a narrativa do livro], ao passo que o antifascismo e o anticolonialismo são sempre vistos como meras perturbações da ordem estabelecida [a frase «(…) em finais de 1960 já não restavam dúvidas de que a violência estava prestes a chegar a Angola» é notável no branqueamento que faz do colonialismo como sistema opressivo]. A narrativa, nestes momentos, torna-se particularmente afim aos discursos autolegitimadores do próprio regime.

Um singular exercício de determinismo histórico: Salazar é um democrata-cristão – e porque o é nunca deixa de o ser – que encontra, contrafeito, dois fenómenos estranhos num percurso matricialmente destinado ao grande combate (mais cristão ou mais democrata é aqui de somenos) contra o comunismo: o fascismo, primeiro, e o fim do colonialismo, depois.

cialmente destinado ao grande combate (mais cristão ou mais democrata é aqui de somenos) contra o comunismo: o fascismo, primeiro, e o fim do colonialismo, depois. A dificuldade que desta leitura resulta em enquadrar a missão de Salazar na grande narrativa do século quando confrontada com o fascismo e os movimentos de libertação coloniais torna-se sobretudo visível nos momentos em que o que é predeterminado na figura parece desculpabilizála de tudo o que não estava à partida previsto no destino que lhe deu o historiador: há, por um lado, um esforço visível por afastar a figura de Salazar das dos grandes ditadores fascistas [o leitor depara-se, perplexo, com momentos extemporâneos, como «(…) é, pois, claro que não estamos perante um Mussolini ou um Hitler»

Em suma, e sempre em função da lógica dicotómica, Salazar aproxima-se do fascismo contra sua vontade e apesar da sua formação e índole, e mais tarde persiste teimosamente em África porque, ainda devido à sua matriz inicial, vê nas guerras coloniais uma defesa da civilização contra a barbárie (posição que aqui necessariamente articula o comunismo com o racismo, embora o segundo nunca apareça no texto mais do que implicitamente). É importante acrescentar que o problema não está apenas na mundivisão que parece ser a do historiador – nos seus traços ideológicos mais salientes – mas na forma como essa mundivisão não só não diverge fundamentalmente da do próprio biografado quanto à estrutura básica da narrativa do século, como parece criar uma ine39


vitável empatia entre ambos. A competência do historiador – visível em muitos aspetos da pesquisa e da narrativa – esbarra na lógica biográfica, que raramente impede – e neste caso nunca – um tratamento do objeto que, por um lado, evite tratá-lo como uma figura constante e coerente (a tal matriz democrata-cristã que o impede de ser fascista apesar de se comportar como um e não o deixa ver como racista apesar da evidência do seu racismo), o que, por outro lado, contamina a narrativa com uma espécie de hesitação esquizofrénica – já notada por Manuel Loff – em que Salazar ora controla completamente o texto da sua própria narrativa, como seria de esperar, ora desaparece em momentos onde parece perder o controlo e a autonomia, momentos onde se perde o próprio registo biográfico, com a inevitável desresponsabilização do biografado em situações particularmente sensíveis. Na primeira página de Salazar, o autor confessa a sua incapacidade em entrar na mente do biografado. É um momento auspicioso, que alimenta a expectativa num estudo distanciado da

Salazar. Ilustração de Abel Manta. 40

lógica do objeto e o seu tratamento crítico num contexto mais alargado. Uma biografia, porém, dificilmente se distancia excessivamente do biografado e a hesitação, aqui, pagou-se caro, num livro desequilibrado, oscilando entre mais uma síntese da história do Estado Novo e a primeira biografia académica do Presidente do Conselho. Costuma dizer-se de Salazar e do regime que se confundem, mas é difícil aceitar a incómoda sensação, que se vai ganhando ao longo da leitura, de que o Estado Novo falhou apesar dos esforços, persistência e visão do seu líder. Semelhante visão da história, convenhamos, parece exigir demasiado a um homem só. Deixemo-lo descansar em paz. Procurar forçar a história do regime à visão de Salazar (ou a qualquer outra figura do regime) é um exercício historiograficamente pobre. A história do Estado Novo há de fazer-se pelo caminho inverso: procurando, por exemplo, o que faz de Salazar uma figura tão representativa de um período histórico, de um sistema económico, de um regime político e de um ambiente cultural que insistimos em chamar salazarismo.


constantino piçarra

O livro A Revolução no Alentejo. Memória e Trauma da Reforma Agrária em Avis, de Maria Antónia Pires de Almeida (MAPA), é a adaptação da dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea, sobre a temática da reforma agrária, apresentada pela autora, em julho de 2004, no ISCTE. Obtendo, aquando da sua publicação, alguma visibilidade na imprensa generalista, facto pouco normal em obras de índole académica, o livro foi, inclusivamente, alvo da atenção da revista Análise Social1, onde António Araújo, Juiz do Tribunal Constitucional, entre outros encómios, classifica a obra de «notável (…) produto de uma investigação académica que pode considerar-se modelar a todos os níveis»2 e «o primeiro [trabalho] que consegue captar de uma forma objetiva e isenta o que se passou no conturbado tempo da reforma agrária»3. Vejamos, pois, de que trata o livro, ou seja, que tese defende sobre uma das temáticas que maior controvérsia e mais interesse suscitou dentro e fora do país e de que alicerces se socorre para suportar os seus pontos de vista. Apesar dos 71 livros de ficção referidos como fontes, onde se inclui a obra completa de José Régio, das 480 referências bibliográficas citadas, que incorporam obras tão diversas como as de D.

Luís Filipe de Castro, publicadas de 1893 a 1927, e de Maria Lamas, sobre as mulheres, é com base nas 63 entrevistas realizadas – nomeadamente as efetuadas aos proprietários agrícolas do concelho de Avis –, nos trabalhos de António Barreto e no pensamento dos defensores da estrutura política, económica e social existente no Alentejo antes de Abril de 1974, casos de Vacas de Carvalho, José Pequito Rebelo, João Garin, José Hipólito Raposo e Jorge de Morais, que MAPA,

ao longo da introdução e dos sete capítulos que constituem o livro, conclui que a reforma agrária, no fundo, se resumiu a uma luta entre as forças do “mal” e as do “bem”, sendo as primeiras agentes do Partido Comunista Português (PCP) que, instrumentalizando os trabalhadores os conduziu às ocupações de terras, das quais resultaram a derrota das forças do “bem”, os grandes proprietários agrícolas e empresários capitalistas, com isto se quebrando a harmonia em que o Alentejo vivia, fruto de um casamento perfeito entre patrões e assalariados rurais.

1 - Análise Social , Vol. XLII (183), 2007, pp. 603 – 611. 2 - In Revista Análise Social, Vol. XLII (183), 2007, pp. 605. 3 - Idem, pp. 608.

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livros

Revolução no Alentejo

LER, VER, OUVIR

Maria Antónia Pires de Almeida A Revolução no Alentejo. Memória e Trauma da Reforma Agrária em Avis Imprensa de Ciências Sociais (ICS), 2006


Segundo a autora, é a partir do verão de 1974 que o PCP, em comícios e manifestações por todo o Alentejo, inicia o processo de manipulação dos trabalhadores agrícolas, através de «canções e [de] palavras de ordem (…) invariavelmente acompanhadas de insultos aos fascistas, aos reacionários, aos capitalistas, latifundiários e agrários» (p. 148), com isto visando criar «uma solidariedade de classe», uma vez que no livro se defende que nunca os assalariados rurais constituíram «um grupo social coeso e unificado» (p.114), conclusão que MAPA retira das entrevistas por si realizadas a trabalhadores rurais, as mesmas, aliás, que lhe servem para desvalorizar a importância da greve pelas 8 horas de trabalho de 1962 (p. 130). Portanto, para a autora, foi este «tipo de linguagem e os slogans ritmados» que, fazendo parte de «uma estratégia de manipulação de multidões», conduziram a «uma verdadeira lavagem ao cérebro» (p. 148), o que arrastou os trabalhadores rurais para as ocupações e a realização da reforma agrária, o que para MAPA não podia ser de outro modo, pois «aos trabalhadores rurais faltava a capacidade crítica para interpretarem a situação que se lhes colocava» (p. 152). Em síntese, segundo a autora, foi num estado de hipnose, reforçado pelas declarações dos governos provisórios e do MFA, que os assalariados rurais integraram «um movimento que muitos clamam ter sido espontâneo, mas que, pelo contrário, apresentou todas as características de um movimento bem dirigido politicamente», o qual para atingir o seu objetivo teve de criar, através da propaganda, um inimigo: o grande proprietário agrícola. E assim, «um povo tradicionalmente submisso e de cabeça baixa» se transformou «numa turba violenta» (p. 148), que sob o comando do PCP avançou para as ocupações, facto que «aboliu completamente algumas solidariedades anteriormente existentes entre as classes» (p. 150). E, desta forma, num livro pejado de juízos de ordem moral, se evacua qualquer referência ao papel do latifúndio enquanto sistema de domi-

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nação social, bem como à agudização, no pós-25 de Abril de 1974, das linhas de tensão existentes nos campos do sul, facto que conduziu ao movimento de ocupações de terras e à realização da reforma agrária, entendida pelos trabalhadores como a única forma capaz de garantir o pleno emprego. Se a tese defendida nada tem de original, uma vez que se insere na linha de pensamento dos defensores da reforma agrária como outorga do poder político, mais concretamente obra do PCP e do MFA, ambos agindo através do aparelho de Estado, o mesmo já não se pode dizer em relação à narrativa que a explicita e aos fundamentos que a suportam. Num texto onde a erudição, conferida pelas abundantes citações bibliográficas, se mistura com os lugares comuns do discurso dos representantes da ordem latifundista, a autora constrói uma narrativa, no mínimo original, não só pelo “colorido” das descrições que produz, mas também por algumas afirmações temerárias que profere. Escrever sem qualquer fundamentação, entre outras coisas, que se a percentagem de analfabetos no Alentejo é grande, «isto apenas significa que os alentejanos que aprenderam a ler saíram quase todos de lá» (p. 110); que os proprietários agrícolas ocupados «foram obrigados a passar os seus dias fechados em casa com as respetivas famílias», para concluir pesarosamente que «podemos imaginar as depressões nervosas e o clima de sofrimento que se instalou durante aqueles fatídicos anos» [os da reforma agrária] e que «entre 1975 e 1980 (…) não havia viagem entre Lisboa e Avis que não implicasse algumas paragens compulsivas e a revista aos carros por parte das “forças populares” à entrada das vilas mais quentes», (p.231) pode imprimir algum pitoresco à escrita, mas faz seguramente deste livro um dos estudos menos objetivos e isentos sobre a reforma agrária nos campos do sul de Portugal.


ana sofia ferreira O livro de Isabel Lindim, Mulheres de Armas, traz-nos duas realidades pouco estudadas, debatidas e conhecidas na sociedade portuguesa: a luta armada contra o marcelismo e o papel das mulheres nesta luta. Em 1970 foram fundadas as Brigadas Revolucionárias (BR) no seio de um contexto internacional de agitação e revoltas. Por toda a Europa e EUA aparecem movimentos e organizações que defendem a luta armada como forma de luta legítima. É todo um movimento que, criticando o “estalinismo”, se levanta contra a invasão da Checoslováquia pela URSS e pelo Pacto de Varsóvia e que defende o “socialismo de rosto humano” e a “democracia de base” e que contesta a autoridade, a sociedade burguesa e o capitalismo. Em Portugal, neste contexto internacional e no quadro de desilusão face à Primavera Marcelista, radicalizam-se setores políticos contra o regime e contra a guerra colonial, com criticas contundentes ao PCP pela sua recusa em enveredar pela luta armada. Nos anos 1970 não foram só as BR a enveredar pela luta armada no país. Também a LUAR (Liga de União e Ação Revolucionária) e a ARA (Ação Revolucionária Armada) o fizeram. Na primeira parte do livro, Isabel do Carmo, fundadora e dirigente das BR, sublinha a evolução do lugar das mulheres na sociedade portuguesa desde a I República até ao 25 de Abril, enfatizando o papel destas dentro das estruturas

partidárias e na luta pelos direitos civis e políticos. Em Portugal, as mulheres sempre estiveram nas lutas e quando foi necessário também pegaram em armas. No entanto, na maioria dos casos, os seus nomes foram esquecidos pela história e pela memória. As estruturas partidárias seguiram o modelo masculino da sociedade patriarcal em que a mulher é vista em função do homem. Mesmo no Partido Comunista clandestino, foram poucas as mulheres que ascenderam a cargos de direção, tendo quase todas começado por ser “companheiras” de uma casa clandestina. Estas mulheres permaneciam na sombra e tinham como principais tarefas cuidar da casa, dar uma ar de aparente normalidade, avisar o companheiro de eventuais perigos, ler os jornais Avante!, Militante e Voz das Camaradas, que depois discutiam, quando discutiam, com o companheiro ou outro membro do partido. Mas, sobretudo, executavam as tarefas domésticas, consideradas femininas e essenciais à manutenção das instalações clandestinas. Quando o PCP cria a ARA em 1970, uma organização armada, a estrutura patriarcal continua a ser a mesma. As mulheres eram as companheiras dos operacionais que faziam as ações armadas. Nenhuma mulher foi escolhida para realizar uma ação ou para fazer parte do aparelho militar, limitando-se, num ou dois casos, à

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livros

Mulheres de Armas

LER, VER, OUVIR

Isabel Lindim Mulheres de Armas Editora Objetiva, 2012


realização da preparação de explosivos. Mesmo na LUAR, criada em 1968, não houve mulheres a pegar em armas, salientando-se contudo o caso de Helena Vidal que, em 1961, participou no sequestro do avião da TAP, tendo sido a responsável por levar as armas escondidas para dentro do aparelho (ainda que na altura não existisse a LUAR, embora os participantes desta ação tenham mais tarde feito parte do grupo que fundou aquela organização). A LUAR teve, no entanto, bastantes mulheres entre os seus apoiantes; algumas apoiaram logisticamente as ações, mas nenhuma participou diretamente numa ação armada. As BR vêm mostrar que se vivem novos tempos. Fruto de uma nova geração que viveu o maio de 68, a luta pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietname, a primavera de Praga, mudanças sociais, políticas e de mentalidade profundas e, internamente, a contestação académica de 1962 e 1969 e as eleições desse ano. As novas organizações que se formam no início dos anos 1970 passaram a ter na sua estrutura mulheres em lugares de responsabilidade. Nas BR, elas vão pegar em armas e participar em ações contra o regime. A autora não se limita, porém, a falar do papel das mulheres. É interessante como, recorrendo ao contexto internacional, a autora nos traça um perfil das BR como um produto da sua época, insinuando a influência de organizações congéneres que pululam pela Europa e EUA (Brigadas Vermelhas, em Itália, Brigadas Baader-Meinhof, na Alemanha, os Weathermen, nos EUA, etc.), mesmo que sublinhando as muitas diferenças operacionais em relação a elas. É importante a relevância dada ao que será um dos princípios fundamentais das BR, como aliás, das outras organizações armadas que atuaram em Portugal, que era não fazer vítimas civis, norteando as suas ações em função do ataque à máquina política e de guerra do regime. Neste quadro, os assaltos aos bancos eram ações fundamentais, pois permitiam obter o financiamento que assegurava a sua independência perante 44

apoios de países e/ou organizações estrangeiras. Na segunda e terceira partes de Mulheres de Armas, Isabel Lindim entrevista várias mulheres que participaram nas ações das BR - assaltos a bancos, colocação de bombas contra alvos militares e símbolos do poder político-militar do regime - e outras que, não pegando em armas, deram um apoio fundamental à organização, fornecendo casas de apoio, transportando e escondendo material ou fazendo de correio. Através das suas vivências procura-se perceber as motivações de cada uma delas para enveredar pela luta armada e a razão da sua ligação às BR, já que nenhuma destas mulheres teve alguma filiação partidária anterior nem pertenceram a qualquer organização política antes ou depois da passagem pelas BR. Todas referem que tinham a sensação que era necessário “fazer alguma coisa” e que a oposição feita de abaixoassinados e manifestações em momentos simbólicos, como o 31 de Janeiro ou o 5 de Outubro, era insuficiente e frustrante. Para elas estava na hora de passar à ação, de sentir que estavam a agir concretamente para derrubar o regime. A amostra utilizada pela autora foi constituída pelo método “bola de neve” (as pessoas entrevistadas vão indicando outras potenciais entrevistadas). Consegue, no entanto, mostrar uma grande diversidade de percursos e de origens sociais e culturais destas mulheres, que adquiriram as suas ideias políticas através de relações familiares ou de amizade, camaradagem, estudo ou trabalho. Este livro constitui um documento fundamental para a compreensão da história da oposição ao Estado Novo e do papel das mulheres na luta contra a ditadura, aspetos tão desvalorizados da nossa história recente.

Isabel do Carmo com a autora.


João Madeira

Na madrugada do 1º de Janeiro de 1962, um pequeno grupo de militares intenta tomar, a partir de dentro, o Regimento de Infantaria 3, em Beja. Apenas dois deles eram Oficiais naquela unidade militar, os restantes tinham vindo de Lisboa propositadamente para o efeito. Seriam secundados por civis que transpõem os muros altos do quartel. Na tentativa de prender o Segundo Comandante, este reage a tiro e atinge gravemente o Capitão Varela Gomes, que comandava a operação. A partir daí, a confusão instala-se e agrava-se a descoordenação entre os revoltosos. O plano frustra-se, a revolta fracassa e avolumam-se as prisões. É sobre estes acontecimentos que, 50 anos depois, José Hipólito Santos escreve, ele próprio um dos jovens participantes na operação. A Revolta de Beja constitui um episódio marcante do nosso imaginário sobre a resistência antifascista, onde a participação do então Capitão Varela Gomes e de Manuel Serra surgem como protagonistas centrais de um episódio que os levou às portas da morte e à tortura. Mas a Revolta de Beja marca, ao mesmo tempo, o fim de um ciclo e o início de outro. Conjuntamente com outros acontecimentos ocorridos em 1961 e 1962, marca o fim do ciclo aberto com as manifestações de apoio a Humberto Delgado

e as confrontações de rua com as forças repressivas; prosseguido com várias tentativas de golpes militares, embora todas improcedentes – a 2 de junho de 1958 e a 11 de março de 1959, este conhecido como Golpe da Sé; assinalado também com as greves e protestos espontâneos pós-eleições, com o desvio do paquete Santa Maria, em abril de 1961, com as manifestações de Aljustrel um ano mais tarde e os confrontos de rua no 1º de Maio de 1962 ou a luta pelas 8 horas dos assalariados agrícolas dos campos do sul, ainda nesse ano. Despontavam novos setores socialmente dinâmicos – um proletariado recente, novas e mais amplas camadas terciarizadas, crescimento das periferias à volta principalmente de Lisboa ou uma oficialagem jovem desconfortada com a caducidade do aparelho militar e dos seus chefes. Vivia-se um ambiente de efervescência, uma efervescência larvar que queria mudanças, outras formas de luta, que gerava impaciências e radicalizava os setores mais combativos, que respondiam violentamente às forças repressivas, que pediam armas – alastrava a convicção de que o regime não cairia senão pela força das armas - e é esse debate que não mais para de se instalar no seio das oposições em Portugal. Mesmo a partir de 1962, quando o regime de Salazar retoma as rédeas da situação, este ambiente prossegue. Esse debate atravessa o interior do PCP, on-

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livros

A Revolta de Beja

LER, VER, OUVIR

José Hipólito Santos A Revolta de Beja Âncora Editora, 2012


de apesar da saída de Martins Rodrigues e da criação da FAP ( Frente de Ação Popular), não parará de se desenvolver. Está presente no MAR (Movimento de Ação Revolucionária), nas intensas e agrestes discussões no seio da FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional), tem expressão na LUAR (Liga de União e Ação Revolucionária), na esquerda radical maoísta, nas Brigadas Revolucionárias, no próprio PCP com a ARA (Ação Revolucionária Armada).

A ação de Beja insere-se num plano mais vasto, gizado a partir do Brasil por Humberto Delgado. José Hipólito Santos narra com detalhe e vivacidade a sequência de acontecimentos que estiveram na origem da operação – as duas tentativas anteriores, improcedentes, mas a servir para avaliar o terreno; os encontros e desencontros, as tensões mútuas, a desconfiança e consequente descoordenação entre a componente militar e a civil; a inesperada presença e resistência do Major Calapez no interior do quartel; as voltas trocadas aos planos traçados, as mortes ocorridas entre fogo cruzado, as esperas impacientes por orientações e ligações que não chegavam, a fuga meio desordenada dos que haviam participado, as prisões ritmadas, os vexames, torturas e isolamento, o julgamento, a vida prisional… Ação planeada e realizada à margem do Partido Comunista, fechado que estava na sua tese do levantamento nacional e na sua prudente contenção em relação aos arroubos mais radicais que saíam também, e em larga medida, das suas fileiras, das suas bases. Dado o espírito da época, 46

não parece ter sido difícil mobilizar e enquadrar umas boas dezenas de militantes civis que de pronto aceitaram integrar o movimento, entre os quais muitos militantes do PCP. Pertenciam a gerações diferentes, vinham da Margem Sul, sobretudo de Almada, Barreiro, Setúbal, mas também de Lisboa, do Bairro da Liberdade. A Revolta de Beja, pela narrativa, pelos detalhes novos, pela escrita rigorosa, pelo empenhamento, não quis ser apenas memória, quis ser, e conseguiu, sobretudo História. José Hipólito traz-nos o espírito radical, corajoso, voluntarista, de segmentos sociais novos que atrai, que mobiliza, que impulsiona e que, apesar do desaire verificado e das pesadas consequências, faz da Revolta de Beja um marco incontornável da história da resistência. veio mostrar um modelo de ação de tipo novo, que se afastava dos velhos golpes reviralhistas de trinta anos antes. Não eram mais caudilhos militares de patente superior e extração republicana que pretendiam arrastar várias unidades militares, trazendo a reboque grupos e redes de civis que os secundavam. Eram, agora, patentes intermédias, Tenentes, Capitães, descontentes com a situação militar e com o espectro da guerra colonial que se adensava, movendo-se entre redes de sociabilidade e de cumplicidade tecidos na Academia Militar. Humberto Delgado, como Manuel Serra e Varela Gomes, acreditava na possibilidade de êxito. O plano de Beja acreditava que tomado o Quartel de Infantaria 3, importante e decisivo dispositivo militar na defesa do sul, sublevando como que por contágio outras unidades do país, ocupados os meios de comunicação, cortadas algumas pontes e estradas e lançado o apelo à sublevação da população, o êxito do movimento estava garantido. Não foi assim, mas ficou a coragem, a determinação e a audácia desse punhado de homens. E o livro de José Hipólito Santos está aí, devolvendo-nos esses dias e esses tempos.


Sofia roque

Para Marcel Proust, o escritor que mais visceralmente se apropriou da temática do tempo, a memória tornou-se o instrumento privilegiado da sua criação literária, assumindo existencialmente a busca do tempo perdido, missão transformada em suprema vocação artística. O exercício meticuloso da recordação permitia uma fuga da linha do tempo, transmutando o tempo perdido em tempo redescoberto. A memória involuntária era o ponto de partida para essa viagem que baralhava metafisicamente a ordem temporal – o presente tornava-se inadvertidamente na vívida sensação do passado. Podia sentir-se o tempo. No penúltimo livro de Antonio Tabucchi, o último editado em Portugal, O Tempo Envelhece Depressa, também é possível sentir o tempo. Mas, neste conjunto de nove contos particulares, a memória não é involuntária – encontra-se a si mesma nessa busca do tempo. A memória constrói-se nesse desejo de construção de uma linha de sentido temporal, a partir da qual se avaliam todos os atos, os conseguidos e os que ficaram por realizar. A linha do tempo é a da História e a das estórias que compõem este livro, cada uma citando vidas singulares. O tempo perdido poderá ser redescoberto, mas esse acontecimento surge sempre acompanhado de uma sensação de perda. É impossível fugir ao

tempo. E é por isso que «Ao seguir a sombra, o tempo envelhece depressa», como se lê no fragmento pré-socrático citado em epígrafe por Tabucchi. O modo de escrever deste escritor italiano que se apaixonou por Portugal revela-nos, nestes contos, um universo denso, fascinante e até misterioso. A liberdade narrativa é uma constante pontuada tanto pelo relato preciso e realista como pelos momentos marcadamente oníricos e fantásticos, devedores do sonho que invade o quotidiano das personagens. As estórias surpreendem-nos e as vidas que as habitam procuram uma reconciliação com o tempo que a nós nos provoca um confronto implícito com a História. «Por vezes, o sentido profundo de um acontecimento revela-se apenas quando esse acontecimento já foi dado como encerrado», lêse em «Entre Generais». O confronto desenhase entre versões oficiais e destinos individuais que não coincidem. Antonio Tabucchi escreve numa nota final que «Algumas destas histórias, antes de ganharem corpo no meu livro, existiram na realidade. Limitei-me a ouvi-las e a contá-las à minha maneira». Para além do sentimento de oferta, retribuição e agradecimento que surgem destas palavras, o que é relevante é a ideia de testemunho que assim se torna evidente. As estó-

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livros

A Memória é a morada do tempo

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Antonio Tabucchi O Tempo Envelhece Depressa D. Quixote, 2012


rias contadas foram experienciadas por pessoas de carne e osso que viveram de perto algumas das convulsões políticas que marcam a História do século XX. No conto «Os mortos à mesa», um ex-agente da RDA que durante anos expiou Bertold Brecht, vagueia por Berlim até ir ter ao túmulo do escritor para lhe contar um segredo. Em «Nuvens», numa localidade de férias na ex-Jugoslávia, um oficial italiano da ONU, que durante a guerra do Kosovo sofreu radiações do urânio empobrecido, ensina a uma miúda a arte de ler o futuro nas nuvens. Em «Contratempo», um homem que engana a sua solidão contando histórias a si próprio tornase protagonista de uma aventura que inventara numa noite de insónia. Há também o caso do herói da resistência húngara à invasão soviética que se encontra com o oficial russo contra quem combateu, em «Entre generais», ou o do advogado e do realizador que filma a realidade sem película na câmara, em «Festival».Ao (re)escrever estas estórias, episódios biográficos que se desenrolam na sua relação com o passado ou determinando o futuro, Tabucchi persiste no exercício da memória para encontrar o sentido do tempo que é dialético, irreversível, embora redimível - «Perguntei-lhe por aquele tempo, de

quando éramos ainda realmente jovens, ingénuos, arrebatados, patetas, incautos. Alguma coisa ficou, a juventude não – respondeu.» Autor de cerca de 25 títulos, entre ficção e ensaio, Tabucchi foi também tradutor e crítico da obra de Fernando Pessoa. Muitas das suas obras foram adaptadas ao cinema, destacando-se Afirma Pereira (1995), cujo protagonista foi Marcello Mastroianni. Tabucchi foi também um escritor comprometido, nunca abdicando da sua condição cívica. Dezenas de vezes escreveu artigos severíssimos acerca da questão italiana, zurzindo, implacavelmente, Berlusconi e o que ele considerava ser «uma quadrilha de gente indigna». Em 2004 chegou a integrar a lista do Bloco de Esquerda às eleições europeias. Faleceu este ano, na capital do seu “país de adoção”, Lisboa. Ao lermos estes contos de Antonio Tabucchi, sentimos um desassossego na alma, apesar da forma do conto, contida, eficaz, direta. Ficanos o aviso: ao habitarmos a memória não podemos correr o risco de, tal como o tempo, acabar perseguindo a nossa sombra. Sabemos que só mais tarde poderemos, enfim, afirmar como László: «Deixa-me dizer-te uma coisa, Ferenc, talvez não acredites, mas os melhores dias da minha vida passei-os em Moscovo».

Escritor italiano com nacionalidade portuguesa, morreu em Lisboa aos 68 anos. Autor de vasta obra, apaixonado por Fernando Pessoa, costumava dizer que sonhava em português.

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Dulce Maria Cardoso O Retorno Tinta da China, 2011

Marco marques

A história é sempre muito mais rica do que aquilo que nos tentam convencer diariamente, e o passado mais recente de Portugal é bastante rico em processos libertadores, que foram duros e morosos, e que ainda hoje condicionam as características e a personalidade dos portugueses. Estas características foram transmitidas à geração seguinte, que se encontra hoje a viver uma contrarrevolução política que impõe valores exatamente opostos àqueles pelos quais os seus pais lutaram nos anos 1970.

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, será certamente a introdução a um acontecimento da História mais recente de Portugal para uma geração como a minha, que apesar de não ter vivido este período, só pode ser explicada por ele. “Entrar” neste livro é uma oportunidade para viver uma das partes dessa rica história recente. Este livro retrata pormenores de um dos D do 25 de Abril: a descolonização. A autora propõe aqui um regresso a 1975, primeiro em Angola e depois na metrópole. Mas se o que se espera é um retrato amadurecido e direcionado sobre os retornados que voltaram ao continen-

te depois de anos a viver em África, não é isso que se vai encontrar. Neste livro, o «retorno» a essa época leva o leitor à idade do narrador e assim conhecemos esse período com a mesma inocência e curiosidade deste adolescente. O Rui descobre 1975 através dos seus pensamentos, das suas ações, vivências e mesmo contradições. O livro divide-se entre dois grandes espaços – Angola e a metrópole – que se cruzam em todos os momentos, porque estão sempre ligados, seja pelo físico seja pela memória. O jovem Rui vê-se sempre num permanente conflito entre o facto de não ser mais desejado em Angola e, chegado à Metrópole, a terra onde «há cerejas», também aí não ser bem-vindo: «Os de cá gostam cada vez menos de nós, andámos lá a explorar os pretos e agora queremos roubarlhes os empregos (…). Mesmo na escola a professora faz essa divisão quando pede a “um dos retornados que responda”». É entre estes dois espaços, e na condição de discriminado, que o Rui se cruza com assembleias durante o período do PREC, com a sua capacidade de assumir o papel de “chefe de família” e com as novas amizades entre “retornados”.

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livros

LER, VER, OUVIR

Retorno a 1975


Depois de ler o romance, percebe-se porque é que Dulce Maria Cardoso diz que foi este livro que a fez tornar-se escritora e também porque só agora poderia escrever este livro desta forma. O retrato da experiência de se ver num limbo, entre dois espaços – um que só poderia existir na memória e para o qual não poderia voltar, outro que só existia na sua imaginação e que na realidade se tornava muito diferente – precisou de distância para que a autora pudesse, de novo, estar presente naquele tempo. O Retorno é, portanto, um livro onde se vi-

vem as contradições de um processo revolucionário que tinha de lidar com as marcas de um passado autoritário e resolver esses problemas de forma rápida. É também um registo emocional e histórico. Mas é ainda mais do que isso: é um livro que revela uma escrita cuidada, onde se ouvem os talheres a tilintar nas mesas, se sente a frescura das «Cucas», se para «p’ra ver a banda passar», se cheiram os quartos de hotel. É por isso que digo que se “entra” neste livro, porque ao virar de cada página “habitamos” mesmo o ano de 1975.

Dulce Maria Cardoso foi condecorada, em 2012, pelo Ministério da Cultura francês como Cavaleira da Ordem das Artes e Letras pelo papel que a sua obra tem tido na «irradiação da cultura em França e no mundo».

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Pedro Ferreira

Chegou a Portugal, em 2011, Os Dias do ArcoÍris de Antonio Skármeta, pela Teodolito, chancela das Edições Afrontamento, e coordenada pelo editor Carlos da Veiga Ferreira. Chegou às nossas mãos no ano em que o autor ganha o Prémio Iberoamericano de Narrativa Planeta-Casa de América. Skármeta acumula uma longa lista de prestigiosos prémios internacionais: Prix Médicis, Grinzane Cavour, Elsa Morante, Boccaccio Internacional, Medalha Goethe e Prémio Mundial de Literatura Infantil da UNESCO. Os seus livros encontram-se traduzidos em mais de 35 idiomas. O Carteiro de Neruda alcançou êxito mundial e o filme, realizado Michael Radford, obteve cinco nomeações para o Óscares. Esteban Antonio Skármeta Branicic nasceu em Antofagasta em 1940, descendente de croatas. Cursou filosofia e literatura na Universidade do Chile, completando seus estudos nos EUA e graduando-se na Universidade de Columbia. Foi membro da organização de esquerda Movimento de Ação Popular e Unitária (MAPU) e em 1973, quando era professor de literatura da Universidade do Chile, abandonou o país por força do golpe militar promovido por Pinochet. Após morar na Argentina, fixou residência na Alemanha, regressando ao seu país apenas em 1989. Os Dias do Arco-Íris revisita o momento em que Pinochet foi tirado do poder pela campanha do Não, uma coligação que embalava a resistência à ditadura em anúncios com jingles, cores

do arco-íris e amplos sorrisos - uma estratégia brilhante e arriscada para derrotar um legado de pesadelo. Em outubro de 1988, foi realizado um referendo nacional exigido pela Constituição para determinar se Pinochet deveria permanecer no poder por mais oito anos. O “não” venceu e Pinochet caiu. Até parece fácil!

Skármeta disse que se Pinochet «não foi derrotado, permitiu-se ser destituído», e que, a seu ver «ainda não foi dito nada» sobre todo o ocorrido neste período «de luzes e de sombras». A 30 de agosto de 1988, os Comandantes e Chefes das Forças Armadas e o General Diretor dos Carabineros, em conformidade com as normas transitórias da Constituição em vigor, propuseram como seu candidato Augusto Pinochet. Os partidários do “Sim” integravam membros do governo e os partidos Renovação Nacional, União Democrata Independente e outros partidos menos significativos. Por outro lado, a oposição criou a Concertação de Partidos pelo “Não”,

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livros

A história de um não que queria ser sim

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Antonio Skármeta Os Dias do Arco-Íris Teodolito, 2011


que agrupava 16 organizações políticas opositoras ao regime, entre as quais se destacavam a Democracia Cristã, o Partido pela Democracia e algumas fações do Partido Socialista. O Partido Comunista ainda estava proscrito. A 5 de setembro desse ano foi permitida propaganda política, após quinze anos de ditadura. A propaganda seria um elemento chave para a campanha do “não”, ao mostrar um futuro colorido e otimista, contraponto da campanha oficial, notoriamente deficiente em termos de qualidade técnica e que pressagiava o retorno do governo da Unidade Popular em caso de uma derrota de Pinochet. Ainda que a campanha do “sim” conseguisse reverter os magros resultados do começo, revitalizando a sua campanha, os resultados finais entregaram a vitória à oposição: o “sim” obteve 44,01% contra 55,99% do “não”. Ao silêncio inicial de Pinochet, que aparentemente havia pensado em não reconhecer os resultados do referendo, sucede-se a aceitação da vitória do “não” e a afirmação da continuidade do processo traçado pela Constituição de 1980. Assim, marcaram-se eleições para a presidência e parlamento para o dia 14 de dezembro de 1989. Em comparação com outras experiências de transição democrática de países latino-americanos do chamado Cone Sul, o Chile apresentava, no início da década de 1990, uma tríplice particularidade: em primeiro lugar, não herdava uma crise económica, uma vez que a mudança fundamental de modelo económico e seus respetivos custos haviam sido realizadas sob o regime militar; seguidamente, tratava-se do único caso em que a maioria do bloco de oposição à ditadura se converteu numa coligação de partidos de governo, ao iniciar-se a fase democrática; por fim, as duas vantagens anteriores chocam com a profundidade e extensão dos enclaves autoritários, o que estabelece o seguinte paradoxo: no Chile dá-se uma das transições mais incompletas, que convive simultaneamente com um novo regime bastante consolidado. A transição para a democracia no Chile tal-

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vez seja o maior exemplo de um processo político que quanto mais avança mais se distancia do seu impulso original. Quanto mais avança mais se vê cancelado o processo de democratização, entendido como aprofundamento e expansão da participação, ao mesmo tempo que se cristaliza a impossibilidade de qualquer reforma na estrutura de representação política da cidadania. Neste livro Skármeta serve-se de dois narradores, que nos vão relatando a história em capítulos alternados: Adrián Bettini e Nico. Bettini é um publicitário talentoso e desempregado que aceita a incumbência de criar a campanha do “não”. Nico é um adolescente, filho de um professor de liceu desaparecido às mãos do regime chileno. É também colega e namorado da filha de Bettini, sendo esse o elo de ligação entre as duas narrativas. O estilo de Skármeta é direto e conciso. À medida que avançamos na história, mergulhamos no modo como se vivia, trabalhava, estudava e amava no crepúsculo do regime de Pinochet. Não parece ter sido de forma diferente do que se passa em tantas outras ditaduras, onde qualquer gesto, mesmo o mais inocente, pode ser mal interpretado e levar à morte. O drama dos desaparecidos é focado no livro, sobretudo através da história do professor Santos. Um aspeto interessante do livro é a forma como nos permite compreender as hesitações daqueles que querem opor-se ao regime, com os naturais receios de eventuais represálias. Outro aspeto muito bem conseguido é o retrato que é feito da total ausência de direitos de cidadania perante a arbitrariedade de quem exerce o poder. Os Dias do Arco-Íris como uma obra literária responde aos requisitos de um bom romance. Divertido pela forma como é contado e como as histórias nos são apresentadas. Agarra-nos pelos factos históricos que contam brevemente, mas com clareza, a história de uma país. Tudo é escrito numa linguagem acessível e cheia de pormenores regionalistas que nos enquadra também cronologicamente.


Alice Brito As Mulheres da Fonte Nova Editorial Planeta, 2012

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As Mulheres da Fonte Nova Cristina Paixão

nacional cujas coordenadas tendem a persistir. As biografias que se contam e cruzam nesta cidade de província mais não são, portanto, que o paradigma de um país ao qual a história dos vencedores colou um certo sentimento coletivo, quase subterrâneo, de um conformismo fatalista, mas que mostra a resistência de um povo mal tratado, numa secreta insubmissão e desobediência a destinos que se recusam como inelutáveis. E não deixa de ser simbólico que o desfecho da narrativa culmine nas vésperas da Revolução de abril, que é como quem diz, nas vésperas de um momento histórico libertador. As dimensões políticas, sociais, culturais e económicas da história portuguesa recente são-nos, deste modo, repostas com sucesso e precisão, ao qual não escapa um exemplar rigor histórico, através de uma narrativa que em nenhum momento perde emoção e que se revela bem-sucedida no equilíbrio entre o dramatismo da trama proposta pela autora e o humor desconcertante que, a par de um inteligente recurso estilístico, acaba por induzir o leitor a um interessante efeito de distanciação, impedindo assim qualquer laivo de sentimentalismo excessivo. 53

livros

Não é sem um laivo de íntima e prazenteira surpresa que o leitor se deixará absorver na viagem pelo nosso passado recente, dos anos 30 à década de 60 do século XX, que As Mulheres da Fonte Nova tão bem desvelam. Não que a matriz estruturante de tal viagem se resuma ao caráter lúdico da narrativa, também patente na desconcertante ironia do narrador e num sarcasmo queirosiano que honram a melhor tradição literária portuguesa. Há um indelével e incontornável sentido nesta obra que nos recorda, com a premência que a conturbada atualidade exige, que, se por um lado, como diria Joyce, a história é um pesadelo do qual tentamos acordar, por outro, dirá o leitor, para que tal missão se cumpra há que a reconhecer com o rigor dos factos conhecidos, malgrado a crueldade e a brutalidade que lhes encontremos implícitas. Será portanto no sentido em que a cultura histórica mantém viva a consciência coletiva do passado e subsequentemente do seu presente que as personagens apresentadas e solidamente estruturadas abrem ao leitor as portas de uma cidade piscatória profundamente marcada pela indústria conserveira, arquétipo de “um país gerúndio”, amordaçado e eternamente adiado, transformando a geografia do lugar num mapa


É neste contexto que as vidas de Arminda e Maria João, ambas nascidas no bairro do Troino, se encontram. Maria João é filha única de mãe solteira; aliado a esse estigma carrega também o da pobreza, reforçado pelas humilhações sofridas na escola que a farão abandonála prematuramente. A força das circunstâncias obrigá-la-á a começar a trabalhar, ainda praticamente criança, numa fábrica de conservas propriedade de um francês déspota e arrogante. O filho desse francês, sombra do próprio pai, acabará por assediá-la, violá-la e deixá-la grávida. Arminda, órfã de mãe quando ainda criança, é educada por uma professora viúva, escapando assim à esmagadora pobreza da sua família biológica. Já jovem, dará início a um namoro para a época ousado, com o francês filho do industrial conserveiro. Será em torno destas duas personagens, ligadas pela sua relação com o francês, filho do industrial, que toda a narrativa se desenvolve. Mas mais do que isso, serão elas também o veículo para a introdução e desenvolvimento de

uma abordagem crítica, transversal à história, do tema da discriminação de género e violência doméstica, num retrato social de época sobre o estatuto da mulher na sociedade portuguesa. Com um estilo surpreendentemente amadurecido para uma primeira obra, Alice Brito alia a fluidez da palavra à inteligência da metáfora, num registo que navega em liberdade entre o literário e o coloquial, sem espartilhos que impeçam o português vernacular, no que se pressente como um espaço de osmose entre o narrador e o ambiente social descrito. Mais do que um contributo importante para a compreensão do Estado Novo e para a literatura portuguesa contemporânea, As Mulheres da Fonte Nova são uma lufada de ar fresco no romance histórico português, tão frequentemente perdido nas memórias de remotos antepassados. E de ar fresco é seguramente o que os homens e as mulheres deste século XXI mais precisam.

Com um estilo surpreendentemente amadurecido para uma primeira obra, Alice Brito alia a fluidez da palavra à inteligência da metáfora, num registo que navega em liberdade entre o literário e o coloquial, sem espartilhos que impeçam o português vernacular, no que se pressente como um espaço de osmose entre o narrador e o ambiente social descrito.

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cinema

As Flores da Guerra, Yimou Zhang, China, 2011

cinema

As Flores da Guerra júlia garraio

Em 1937, o Exército Imperial Japonês conquistava Nanquim, a capital dos nacionalistas chineses, no que ficaria conhecido como o massacre (ou a violação) de Nanquim. Nas semanas que se seguiram, os soldados japoneses pilharam, violaram, torturaram, mutilaram e assassinaram impunemente civis e militares chineses. É este o pano de fundo para o mais recente filme de Yimou Zhang, o aclamado realizador chinês (Herói, O Segredo dos Punhais Voadores...) a quem, em 2008, foi confiada a sessão de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. E é por aqui que entra uma crítica recorrente ao filme: Zhang, assumindo-se como uma espécie de “cineasta oficial do regime”, apresenta, com As Flores da Guerra (China, 2011), um típico produto de propaganda para promover o soft power chinês no Ocidente, com uma mensagem nacionalista cheia de estereótipos antijaponeses. Dificilmente se conseguiria fazer um filme sobre o massacre de Nanquim sem mostrar japoneses a assassinar e violar. Embora tenha havido numerosos soldados que não participaram nas atrocidades, é

inegável que um elevado número, doutrinado na crença da superioridade nipónica e sem refreio dos superiores, protagonizou uma das maiores orgias de violência do século XX. Tendo em conta os relatos da batalha, o realizador poderia ter ido muito mais longe na representação do horror. Porém, a Zhang interessava não tanto o massacre em si, mas a natureza humana e a sua capacidade de dádiva nos momentos de maior desespero. Trata-se, de facto, de um filme sobre o amor, a renúncia, a abnegação e o autossacrifício. As imagens da carnificina são até reduzidas no filme, que se desenrola predominantemente num espaço fechado e temporariamente protegido, uma igreja católica, onde se refugiam dois grupos de mulheres que aparentemente não podiam ser mais distintas: algumas alunas de um convento e um grupo de exuberantes prostitutas. Os seus destinos cruzam-se com o de John Miller, um aventureiro americano com gosto pelo álcool, que, disfarçado de padre, acabará por assumir o papel de protetor. Miller lembra-nos outros heróis improváveis do cinema americano, oportunistas mulherengos que, 55


numa situação de guerra, se redimem através da dádiva a um outro indefeso. A introdução desta personagem tem, é certo, uma base histórica: os missionários e diplomatas ocidentais que ficaram na cidade e criaram uma zona de refúgio para os civis. Mas resta a suspeita de que Miller serve sobretudo para justificar a forte presença do inglês, fundamental para o êxito do filme em certos mercados. A vontade de seduzir o Ocidente parece aliás ser confirmada pela escolha de Christian Bale, o Batman do momento, para o papel, bem como por uma fotografia marcada pela imagética cristã. A personagem de Miller aparece, de facto, como acessória num guião centrado no confronto entre os dois grupos de mulheres. Do desprezo inicial pelas “mulheres perdidas”, as alunas vir-

todos se entreajudam e se sacrificam, mesmo os colaboradores, em prol daquelas que simbolizam a pureza e o futuro da nação. É assim que o sacrifício das prostitutas não passa de um espelho do sacrifício do soldado solitário da primeira parte. Não admira pois que os japoneses quisessem tanto as estudantes virgens: elas simbolizavam a nação chinesa que tinha de ser protegida a todo o custo. Ou seja, é certo que o filme subverte um dos mitos mais persistentes da violação, ao mostrar que, para as prostitutas, a violação não é mais fácil do que para as “outras”. No entanto, o mesmo filme reafirma um outro mito que frequentemente leva as mulheres a serem violadas na guerra: a mulher ser vista como símbolo da nação. Em suma, estamos perante um filme esteti-

O que Zhang nos quer oferecer é uma comunidade chinesa unida, onde todos se entreajudam e se sacrificam, mesmo os colaboradores, em prol daquelas que simbolizam a pureza e o futuro da nação. gens irão aprender a ver nessas prostitutas companheiras de infortúnio, uma espécie de irmãs mais velhas, o que elas próprias poderiam ter sido. O relato do passado de Yu Mo num convento, a sequência da troca de bagagens ou o pânico de uma prostituta no momento da entrega aos japoneses apontam claramente para esse questionar de uma moral tradicional. No entanto, convém olhar com atenção para as razões que levam as prostitutas a sacrificarem-se. Embora o altruísmo seja fundamental (não fazer aquelas adolescentes ter de passar pelo que elas passaram na adolescência quando foram empurradas para o mundo violento da prostituição), não menos importante é a motivação nacionalista. Yo Mu diz que o seu ato irá mostrar que as prostitutas não são indiferentes ao esforço de guerra. E é aqui que aqueles que acusaram o filme de ser um mero produto de exaltação nacionalista não deixam de ter alguma razão. O que Zhang nos quer oferecer é uma comunidade chinesa unida, onde 56

camente bem feito, o que aliás era de esperar de Zhang, que nos habituou a cenários monumentais, à fotografia cuidada, ao uso hábil da cor e da luz. Mas, para além disto, o filme pouco tem a oferecer. Ensina-nos, é certo, a nós ocidentais e com uma visão eurocêntrica da história universal, que Nanquim deve figurar junto a outras cidades martirizadas pelas grandes guerras do século XX. Porém, pouco ou nada nos ensina sobre o contexto político específico em que ocorreu a batalha. Os factos que poderiam incomodar uma leitura linear nacionalista estão habilmente ausentes do filme: as rivalidades entre as diversas forças políticas chinesas; os numerosos atos de sadismo dos soldados japoneses que, para se divertirem, obrigavam homens chineses a violarem-se entre si e a violarem as suas filhas, mães e irmãs. Resumindo, estamos perante um filme típico do cinema comercial que aposta nas emoções “universais” na busca do êxito internacional.


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To Rome with Love , Woody Allen, 2012

To Rome with Love ou como jogar com o Fabrice Schurmans

Para o seu filme mais recente, Woody Allen escolheu Roma como cenário para uma comédia que entrelaça várias histórias: um jovem casal que chega da província para se encontrar com a família do marido, um famoso arquiteto que revisita (os lugares d)a sua juventude, um desconhecido que se torna famoso porque a televisão o escolheu para ser famoso e um encenador reformado que descobre no sogro da própria filha um tenor nato. Allen sabia o risco de escrever um guião deste tipo com Roma como pano de fundo: repetir o clichê da cidade do amor e da luz. E, de facto, é o que aparentemente faz: filma os lugares mais frequentados pelos turistas, do Coliseu à Praça de Espanha, com planos que

relembram os postais à venda nesses mesmos lugares. Só que o faz a brincar com os próprios clichês, assumindo-os pelos que são: lugares-comuns que se transformaram em lugares de visita obrigatória. Este jogo assume-se como tal em vários momentos do filme: veja-se, por exemplo, o polícia que, numa famosa rotunda de Roma, se apresenta como o narrador das histórias que se seguem, continuando a controlar o trânsito à medida que se dirige diretamente ao espectador. Enquanto isso, em off, ouve-se o ruído de um choque, o que, por um lado, remete para mais um clichê – o trânsito caótico em Roma – e, por outro, anuncia os vários choques que estruturam as histórias do filme. 57


Ver neste filme uma declaração de amor que se traduziria em planos esteticamente bem conseguidos seria reduzi-lo a algo semelhante a um passeio de coche filmado com uma câmara digital. Ora, a arte de Allen reside justamente na gestão do hiato entre a intenção aparente – para que remete o título – e o tratamento de cada história. É que por detrás deste cortinado de beleza paralisada no tempo se escondem personagens que Allen traz à luz, deliciosamente cruel, através da sua máquina de filmar. É o caso do anónimo Leopoldo (Roberto Benigni) que, por misteriosas vias, é escolhido para ser o famoso da semana numa televisão privada. Vive justamente, por trás dos postais, a vida de milhares de outros anónimos romanos até a televisão distinguir a sua normalidade entre as outras: a partir daí os gestos do quotidiano adquirem outro significado e Leopoldo transforma-se em símbolo da fábrica industrial de ídolos.

O que esta história revela não é certamente uma declaração de amor genuína à cidade, mas antes um olhar cómico feroz perante uma certa sociedade. É o que também acontece na história do dono da agência funerária, o futuro compadre do encenador americano (Woody Allen). Quando este o ouve por acaso cantar no duche e descobre nele um incrível tenor (note-se de passagem que o ator Fabio Armiliato é na realidade um famoso tenor), convence-o a ir a uma audição, mas Giancarlo só consegue cantar no

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duche. Jerry decide então encenar uma nova versão de Pagliacci (1892) com uma cabine integrada no palco. O êxito desta excêntrica releitura da ópera de Ruggero Leoncavallo leva-nos a olhar justamente com certa ironia para o público deliciado com as façanhas molhadas de Giancarlo. Este episódio central dá-nos igualmente outra chave para ver no filme de Allen algo mais do que uma comédia ligeira com Roma como pano de fundo. Pois a ópera de Leoncavallo abre, como o filme de Allen, com um prólogo onde o autor, através de uma das suas personagens, apela ao espectador para que ignore a fronteira entre a realidade e a ficção. Em To Rome with Love esta interseção surge em vários momentos e atinge de forma diversa as personagens: de Milly (Alessandra Mastronardi), a jovem provinciana, que espera que o ícone do cinema da sua juventude a faça sentir a ilusão dos filmes românticos, até Leopoldo, que acaba por preferir o artefacto em que a televisão o tornou, sem esquecer os encontros do consagrado arquiteto: só essa mistura entre o real e o irreal dá sentido a esta história de um amor infeliz. To Rome with Love, um jogo com os clichês então, mas um jogo assumido numa mescla entre real e ficção (as mise-en-abyme são aliás recorrentes no cinema de Allen). Não é por acaso que, a certa altura, alguns figurantes deitam um olhar à câmara, reforçando a ideia de que o jogo em questão é bem mais subtil do que uma variação sobre Roma, a cidade eterna.


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música

Avis Rara, Gaiteiros de Lisboa, 2012

música

Avis Rara helena romão

O CD Avis Rara é, antes de mais, como um encontro de amigos gravado para o público. Aos Gaiteiros de Lisboa juntaram-se os Adiafa, Sérgio Godinho, Zeca Medeiros, Armando Carvalhêda, Ana Bacalhau e André Pires para lançar um olhar contemporâneo sobre a cultura tradicional portuguesa. Uma vez que o lançamento já foi há alguns meses, muitos dos aspetos interessantes deste álbum foram abordados em entrevistas com os músicos, artigos e reportagens. Para evitar a repetição, deixa-se de lado a interessante história da capa ou de como surgiu o nome Avis Rara. É de salientar a edição pela d’Eurídice, a etiqueta da associação cultural d’Orfeu: após a gravação do CD, os Gaiteiros procuraram editora durante três anos sem sucesso, antes de se depararem com esta associação de Águeda. Do Avis Rara evidenciam-se três aspetos principais: a tradição musical como património em constante evolução; a crítica social e política como parte integrante dessa tradição; a partilha de património e a familiaridade cultural entre Portugal e Espanha.

Durante largos anos, os preconceitos sobre a música tradicional eram muitos e tomavam a forma de lugares-comuns: é sempre triste, pobre e demasiado simples. Se o conhecimento mina o preconceito, esta música tem percorrido nos últimos anos o caminho do estudo etnológico, da criação e reinvenção. Sabemos cada vez melhor o quão complexa, diversa e bela pode ser. Os Gaiteiros de Lisboa foram um dos primeiros grupos a trilhar esse caminho e continuam a mostrar o quanto é possível inovar. Uma cultura de transmissão oral, pela sua própria natureza, nunca para de evoluir e de se reinventar. A harmonia modal com polifonias cerradas e o uso de instrumentos tradicionais conferem à música dos Gaiteiros o caráter sonoro ancestral, mesmo quando se trata de canções escritas recentemente. A este caráter identitário o grupo acrescenta elementos de atualidade, como novos instrumentos ou a utilização de recursos eletrónicos. Carlos Guerreiro cria para o grupo instrumentos curiosos, uns novos, outros adaptados 59


de instrumentos já existentes: a cadeireta, o caixofone, o sanfonocello, entre outros. Este último, por exemplo, é uma variação da sanfona em tamanho maior e com som mais grave. A proximidade cultural e a vida em comum dos dois países da Península, sobretudo no norte, é outro dos aspetos postos em evidência neste CD. As recolhas diversas mostram-nos amiúde os mesmos temas ancestrais cantados ou tocados de ambos os lados da fronteira (aqui o romance do Conde Ninho, de que se canta apenas uma estrofe, oriundo do norte de Portugal e da Galiza). A Uma Ingrata é uma canção sobre um poema de Alexandre O’Neill (século XX) que conta os amores mal sucedidos entre um português e uma espanhola. Ainda brincando com a história comum entre os dois países, os Gaiteiros surpreendem-nos com uma salsa (sem título), a

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verdadeira ave rara da sua carreira, onde cantam em “portunhol” uma viagem surreal de um português por Espanha. A crítica social e política e o jogo de palavras são desde sempre elementos essenciais da tradição oral. Destaca-se a «metáfora ornitológica» (definição de Carlos Guerreiro) Avejão, sobre o poder e o seu abuso; à luz das mais recentes notícias sobre o atual governo, ninguém diria que esta canção está gravada há mais de três anos! Proparóxitonias (quase) encerra o CD com mais um jogo de palavras, que parecendo non sense, não deixa de fazer algumas afirmações bem sérias. Com este Avis Rara os Gaiteiros de Lisboa continuam a dar-nos razões para redescobrir e apaixonarmo-nos pelo nosso património cultural tradicional.


PENSAR O SOCIALISMO HOJE

Slavoj Žižek

Notas acerca da teoria política em Žižek por luís fazenda

1. Não há muito tempo exprimi1 afirmações e dúvidas sobre os conteúdos do pensamento político de Žižek. Não voltaria ao assunto não fora a publicação de Living in the End Times, que confirma e divaga em redor das mesmas proposições e análises do texto Da Tragédia à Farsa, de que então me ocupei. O que veio sublinhar muito mais que Da Tragédia à Farsa é o texto estratégico mais consistente do filósofo esloveno. Refirome, sem encolhas, apenas à dimensão política de uma obra ensaística com múltiplas categorias.

Não deixo reticências ao que antes escrevi, contudo, estas notas habitam mais os temas do que as suas consequências.

2. Apocalipse

Slavoj Žižek tem acentuado o recorte apocalíptico da situação presente do binómio humanidade-planeta. Em Living in The End Times (o título é tese), mais do que em trabalhos anteriores, pode expor o seguinte: «a premissa implícita neste livro é simples: o sistema capitalista global

1 - Cf. Comuna, nº. 25, pp. 39-45. Disponível em: http://www.acomuna.net/images/stories/revistas/a%20comuna%2025-2.pdf

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Não pode haver confusão entre um combate tenaz ao capitalismo, da mais pequena luta à luta maior, e a impaciência erigida como tese de necessidade, como se insinua nesta declaração de emergência vital aproxima-se do ponto zero apocalíptico. Os seus “quatro cavaleiros do apocalipse” compreendem a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, desequilíbrios do próprio sistema (problemas com a propriedade intelectual, lutas que se preveem por matérias-primas, alimentos e água), e o crescimento explosivo de divisões sociais e exclusões».2 Sabe-se que o autor preza o racionalismo. Por isso, não se pode atribuir a esta sua prevenção qualquer sentido escatológico, ou profético, do “juízo final”. Para Žižek, os antagonismos da globalização têm um sentido de urgência SOS, ontem era tarde. É nesta linha que se compreendem os apelos à ação multitudinária contra o sistema global e a desvalorização da luta política parlamentar e mediática, tal como a menorização dos movimentos sociais ativos. Os agentes políticos, sindicais, ou outros, são tidos como resistentes condenados à resistência ou como colaboradores por migalhas, de facto auxiliares da manutenção do sistema, nessa ótica. Ora, não pode haver confusão entre um combate tenaz ao capitalismo, da mais pequena luta à luta maior, e a impaciência erigida como tese de necessidade, como se insinua nesta declaração de emergência vital. Dispensar a luta política parlamentar (ou, em muitos casos, a luta pela existência de um parlamento livre), ou a luta sindical, ambiental, feminista, ou outras, porque “não temos tempo para isso” pode parecer sedutor, mas ignora de rompante as reais dificuldades da luta de classes. É certo e provado que o parlamentarismo, o sindicalismo, o ecologismo ou o feminismo podem conduzir à integração oportunista da esquerda no sistema capitalista. Mas também é certo e

provado que pode acontecer exatamente o contrário e que pode desejavelmente abrir brechas nesse sistema. É da cor dos movimentos que se faz a sua bandeira e não nos corredores por onde se passa. “Não ter tempo” pode ser o desagrado pelo aborrecimento acomodado, mas também pode ser, porventura infelizmente, o desprezo pelo tempo de maturidade da consciência social, a subestimação do relógio das massas. Na abordagem dos “quatro cavaleiros do apocalipse”, em Living in The End Times, já presentes, com ligeiras nuances, em Da Tragédia à Farsa, nenhum espírito objetivo anticapitalista negará os antagonismos aí reconhecidos. Mas a escolha não é neutra. Revela a visão de Žižek que, a pretexto do combate à ordem global, não identifica como causas iminentes do apocalipse a dominação imperialista, o lucro e o produtivismo. Aliás, é estranho que quem toma as cores do fim do tempo não se refira à guerra e à escalada do belicismo, inimigo primeiro da sobrevivência das espécies e dos géneros.

3. Anti-ideologia

Žižek interroga-se longamente sobre os recursos e os valores da ideologia, sobretudo no Living in The End Times. Não se trata apenas de abrasar a mistificação ideológica da ordem global, que já vinha desconstruindo em vários escritos, mas de atacar o próprio conceito de ideologia. Com abundante exemplificação, infere que a “ideologia” não é mais do que uma simplificação da realidade, uma abstração sem contexto, um enredo vago. O autor traz-nos esta pressuposição: «Durante um debate público, há alguns anos, na New York Public Library, Bernard-Henry Levy construiu um argumento patético a favor da to-

2 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2010). Living in The End Times. Londres: Verso, p. 10 (Introdução).

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Slavoj Žižek

porais, essa crítica é muito certeira. Mas quando excede essa rejeição até á dispensabilidade de ideologias alternativas dificulta o combate à ideologia dominante, a ideologia da classe dominante, sabemo-lo desde Marx e até antes. Žižek censura os marxistas que querem utilizar a ideologia em sentido positivo. Segundo ele, abandona-se o estudo científico neutral (no sentido de irrefutável) do capitalismo para um discurso de mobilização de massas. Acontece que a luta de classes, em qualquer das suas aceções, não existe por perceções de ciência mas por aquilo que é empurrado pelo conflito de interesses. A ideia de que a compreensão do contexto dispensa o texto é talvez magnânima, mas pertence ao domínio de uma “religião laica”. A expectativa redentora de que contra a simplificação ideológica toda e cada pessoa apreende racionalmente a densidade dos factos em presença para tomar partido é, por si, um idealismo exacerbado, marcado pelo distanciamento da materialidade social. Seria pensar que cada pessoa, como átomo, teria as condições de individualmente exercer aquilo que conforta Žižek: o cógito cartesiano, isto é, o impulso do conhecimento, o registo da razão. Na verdade, não é a ciência, que também não é neutral, que move o mundo, mas sim os interesses de classe. As ideologias podem ser mistificatórias ou, ao invés, próximas de adquiridos científicos, mas seguramente representam sem-

PENSAR O SOCIALISMO HOJE

jeff howard / FLICKR

lerância liberal (“Não gostariam de viver numa sociedade onde pudessem parodiar a religião predominante sem receio de ser morto por isso? Onde as mulheres são livres de se vestirem a seu gosto e escolherem o homem que amam? E por aí…”) enquanto eu construí um similar argumento patético a favor do Comunismo (“com a crescente crise alimentar, a crise ecológica, as incertezas sobre como lidar com questões como a propriedade intelectual e a biogenética, com o levantamento de novos muros entre países e dentro de cada país, não será necessário encontrar uma nova forma de ação coletiva que se diferencie radicalmente do mercado e da administração estatal?”). A ironia da situação foi que, com argumentos enunciados em termos abstratos, não podíamos senão concordar um com o outro.» A caricatura terá piada mas não deixa de ser uma caricatura. As ideologias, entendidas como sistema de ideias explicativas da vida social e natural, propõem objetivos de poder, de regime de economia, e têm fundas implicações culturais. Se os temas abstratos de Levy e de Žižek se tivessem traduzido em objetivos de transformação social, por exemplo, da natureza do poder, aí sim o antagonismo entre o liberalismo e o comunismo seria visível. As ideologias podem ser insuficientes mas são completas. No caso, os filósofos em confronto foram talvez suficientes, mas de certeza incompletos. Quando Žižek aponta o dedo reprovador às vulgatas ideológicas, às bíblias políticas intem-


pre interesses de classe. A força do marxismo, em mais de século e meio, não esteve em ter sido uma anti-ideologia, mas exatamente, ao contrário, em fornecer a essência de uma ideologia socialmente vinculada.

4. Puzzle democrático

Por paradoxo, Žižek é muito afirmativo na generalidade dos temas que aprecia, exceto nesse mistério que é a democracia política, onde percebemos ambiguidades, zonas brancas ou ambivalência. É importante frisar que Slavoj Žižek defende, de modo quase sanguíneo, um regime de liberdades políticas e civis. Tanto o faz acerca do capitalismo ou do pretérito “socialismo real”, das patologias estalinistas e afins. Esse é, sem dúvida, um ponto luminoso. Também nos apresenta uma categórica posição a favor da superação da democracia liberal e critica aqueles que acham que esse tipo de poder pode ser a estação terminal da linha vermelha. Podemos ler: «É fácil ridicularizar a conceção que Fukyama propõe do “fim da história”, mas a maior parte das pessoas são hoje fukyamistas, aceitando o capitalismo democrático liberal como a forma enfim encontrada da melhor sociedade possível, pelo que o mais que podemos fazer é tentar torná-la mais justa, mais tolerante, e assim sucessivamente.»4 Qualquer socialista digno desse nome acompanha a ideia de que precisamos de uma democracia diferente, de um regime não-capitalista. Afinal, esse é o conceito da revolução: a mudança do regime económico-social e da natureza do poder. Žižek apreende, e divulgamos com gosto, até com fina argúcia, aspetos essenciais do tipo de política que se confronta nas conjunturas das chamadas democracias ocidentais: «Na presente democracia pós-politica, a tradicional bipolarização entre o centro-esquerda social-democrata

e o centro-direita conservador está gradualmente a ser reposicionado para uma nova bipolarização entre política e pós-política: o partido tecnocrático-liberal multiculturalista-tolerante da administração pós-politica e o seu contraponto direitista-populista com paixão política, não admira que os velhos opositores centristas (conservadores ou democrata-cristãos e social democratas ou liberais) sejam muitas vezes compelidos a juntar forças contra o inimigo comum.»5 Esta análise, que reflete tendências, ilustra bem aquilo que tem sido a deriva burguesa do consenso liberal para a voragem ultraconservadora e populista. Acarreta para a democracia, subsistente, escolhas primárias de autoridade, relegando escolhas sociais para segundo plano. Contudo, naquilo que é propositivo, apesar de vago, Žižek anda na corda bamba. Repare-se que, sem propriamente exigir a sua eliminação, insurge-se contra o sistema representativo, o parlamentarismo. Também Lenine, no seu tempo, defendeu o fim do parlamentarismo e a instituição dos sovietes, conselhos de operários e camponeses, forma de democracia direta. Pelo menos, tomada como tal. No entanto, Lenine nunca advogou o abandono dos parlamentos dominados pela burguesia, nem mesmo de parlamentosfantoche sob ditadura. O revolucionário russo sabia a importância do combate parlamentar para a acumulação de forças da esquerda alternativa, para a popularização do seu partido, para o reconhecimento público de chefes do movimento, para a visibilidade de alianças. Žižek, embora na atualidade tudo possa ter outra envolvente cultural, entende que o sistema representativo não passa de uma armadilha para a esquerda e um mero mecanismo de estabilização do capitalismo. Não carece de empenhada demonstração entender que é muito ténue a fronteira deste pensamento com formas de anarquismo político. E, ainda mais, assim é quando o autor estende a reserva da representatividade à supressão do

4 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2009). Da Tragédia à Farsa. Lisboa: Relógio D’Água, p. 105. 5 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2010). Living in The End Times. Londres: Verso, p. 9 (Introdução).

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próprio princípio do sufrágio universal. Žižek cita e acompanha Karatami: «Karatami assume aqui um risco heroico propondo uma definição aparentemente louca da diferença entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado: “Se o sufrágio universal por voto secreto, ou a democracia parlamentar, é a ditadura da burguesia, a introdução da tiragem à sorte podia ser concebida como a ditadura do proletariado”».6 Imagine-se que o filósofo esloveno, que pretende a introdução direta do comunismo sem qualquer fase socialista intermédia, e pretende a introdução direta da ditadura do proletariado, adere, sem mais, a este sorteio do poder! No caso, o autor está convicto de que a democracia local, participativa e imediata, leva à supressão de escolhas nominais e toma, sem tibiezas, essa

ponto, é completamente fortuito que alguns seguidores sejam mais papistas do que o dito. Sobre a assimetria das reações que sofrem as suas ideias, o pensador sabe dos seus efeitos: «Quando, em 1948, Sartre viu que provavelmente seria malquisto por ambos os lados da Guerra Fria, escreve “se isso tem de acontecer, só prova uma coisa: ou sou muito desastrado, ou estou no caminho certo”. Quando tal acontece, é como muitas vezes me sinto: sou atacado por ser antissemita e por espalhar mentiras sionistas, por ser um assumido nacionalista esloveno e um traidor antipatriota da minha nação, por ser um criptoestalinista defendendo o terror e por espalhar mentiras burguesas sobre o comunismo. Então talvez, apenas talvez, eu esteja no caminho certo, o caminho da fidelidade à liberdade».8

Fixar uma ou várias ideias de um caminho revolucionário não se fará, por certo, num quadro de imobilidades e de referentes dogmáticos, isso não será; contudo, o evolutivo das ideias para acrescentarem moral e contundência a um movimento alternativo está no mínimo obrigado a alguma coerência. perspetiva: «Teremos de levar as coisas até ao fim e de assumir a perspetiva fundamental da democracia antiga: a escolha por tiragem a sorte é a única escolha verdadeiramente democrática».7 Entende-se que a crítica mordaz que é feita à democracia parlamentar liberal não tem depois, na ótica do argumentário marxista, consequente no que possam depois ser as vias e o genérico de um poder democrático-socialista.

5. A dúvida simpatiza com a dúvida

Žižek não tem de ser, entre outros, um estratego da luta dos oprimidos contra o capitalismo global. Nem ele se propôs a esse papel. Neste

Ninguém, no seu normal juízo, enjeita no campo progressista a liberdade de opinião, mais do que isso, elogia-se a liberdade crítica, até nos termos kantianos que tão caros são a Žižek. Ninguém teme, embora estranhe, que um pensador tenha ideias díspares, por vezes opostas, sobre questões essenciais do comportamento político-social. Fixar uma ou várias ideias de um caminho revolucionário não se fará, por certo, num quadro de imobilidades e de referentes dogmáticos, isso não será; contudo, o evolutivo das ideias para acrescentarem moral e contundência a um movi-

6 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2009). Da Tragédia à Farsa. Lisboa: Relógio D’Água, p. 174. 7 - Ibidem. 8 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2010). Living in The End Times. Londres: Verso, p. 14 (Introdução).

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mento alternativo está no mínimo obrigado a alguma coerência. Conceda-se até que a coerência nem sempre é linear, que o todo perfaz uma coerência que pode não ser obtida pela microscopia das partes. Mas alguma coerência precisa-se! Por exemplo, tomemos uma questão-chave da estratégia, e também uma polémica eterna da revolução: a violência. Žižek escreve, em 2008, um ensaio9 estupendo no modo e no entalhe como identifica as formas de violência na sociedade atual e dos modos de opressão. A desconstrução do discurso dominante leva-o à desmistificação da violência como barbárie que se pretende civilizada, à denúncia da brutalidade que se pretende invisível, à acusação da perversa cruzada antiterrorista, tudo isso em páginas notáveis. E na desconstrução da banalidade da violência, do poder, tanto aponta ao capitalismo como ao ex-socialismo. Isso não impede, apesar de tudo, o afloramento de uma ambiguidade singular. O último parágrafo do referido ensaio expressa este conceito condicionado: «Se por violência entendermos uma alteração radical das relações sociais de base, então, por mais insensato e de mau gosto que pareça dizê-lo, o problema dos monstros históricos que massacraram milhões de seres humanos foi não terem sido suficientemente violentos. Por vezes, não fazer nada, é a coisa mais violenta que temos a fazer.»10 Alvíssaras para melhor leitura do aparente enigma! Não se trata de estar aqui a isolar uma frase, realmente o contexto também é formulado no mesmo desenho. Recorrendo a um texto de Žižek de apresentação de um escrito de Mao Tsé-Tung sobre A Prática e a Contradição, também curiosamente nas pa-

lavras finais, este exprime posição semelhante; comentando um artigo de Mao em que este se determina a enfrentar uma guerra imperialista pela vitória final do socialismo, uma guerra atómica, diz: «É fácil demais desqualificar essas linhas como a posição vazia de um líder pronto a sacrificar milhões em nome de seus objetivos políticos (a extensão ad absurdem da impiedosa decisão de Mao deixar morrer dezenas de milhões no final de 1950) – o outro lado dessa desqualificação envolve a mensagem básica: “Não devemos ter medo”. Não será essa a única atitude correta diante da guerra? Primeiro, somos contra ela; segundo, não a tememos. Há definitivamente algo de aterrador nessa posição e, no entanto, esse terror nada mais é senão a condição da liberdade».11 Esta compreensão de que a violência intima a ética e desafia a inteligência, mas pode ser a condição da liberdade, é uma provocação pelo absurdo. O elogio da não-razão não pode justificar a violência. Os marxistas, e outros, desde há muito entenderam a violência como parteira da história. Mas sempre olharam à cabeça para o levantamento dos povos e não para a violência das classes opressoras. Recusamos a guerra de indivíduos, grupos ou Estados fora de uma situação de legítima defesa. Os tormentos de consciência de Žižek fazem uma amálgama dos processos de violência conhecidos e tornam a sua perceção confusa e indiferenciada. Essa coisa do pacifismo com pecados, alguns até pesados, é que não cola na prática revolucionária. Em momentos diferentes, esse tipo de opinião influencia quer a desobediência passiva, quer as aventuras da ação direta. Não trabalha, porém, para a revolução popular.

9 - Cf. Edição portuguesa. ŽIŽEK, Slavoj (2009). Violência, Seis Notas à Margem. Lisboa: Relógio D’Água. 10 - Idem, p. 188. 11 - ŽIŽEK, Slavoj (2008). In Mao Tsé-Tung, Sobre a Prática e a Contradição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 38.

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Quando se diz que Slavoj Žižek não é marxista, deve entender-se que o seu pensamento pode até ter afinidades, mas não segue os conceitos de Marx naquilo que lhe é absolutamente nuclear, longe de elementos acidentais. Dizer isso não é uma qualificação nem é, tão pouco, o seu contrário, trata-se de um juízo de facto. Que, aliás, o próprio, a seu modo, salienta: «Também não devemos decerto abandonar a noção de proletariado, ou de posição proletária: a conjuntura presente obriga-nos a radicalizá-la a um nível existencial muito para além da imaginação de Marx. Precisamos de uma noção mais radical do sujeito proletário – de um sujeito reduzido ao ponto evanescente do cogito cartesiano.» Veja-se que o proletariado não é aqui, neste enfoque, sequer um estado objetivo, uma classe social, aquela que só tem a sua força de trabalho para vender na cadeia do valor mercantil. Passa a ser uma noção de subjetividade social de todos aqueles que estão reduzidos à sua própria força do conhecimento. É, de facto, muito para além da imaginação de Marx.14 Como se sabe, o proletariado, qualquer que seja a fronteira dessa classe social, é bem mais vasto que o protótipo do operário industrial porquanto os assalariados que vivem só do seu salário pontificam em muitas áreas da economia. O conceito de proletariado em Marx traduz, contudo, a centralidade contraditória do trabalho e do capital. Não é mesmo o caso em Žižek: «O que nos une é que, por contraste com a imagem clássica do proletariado que “nada tem a perder senão as suas próprias cadeias”, estamos em perigo de perder tudo: a ameaça é sermos reduzidos a sujeitos abstratos, esvaziados de conteúdo substancial, despojados da nossa substância simbólica, com a nossa base genética poderosamente manipulada, vegetando num meio ambiente impróprio para

12 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2009). Violência, Seis Notas à Margem. Lisboa: Relógio D’Água, p. 188. 13 - Cf. Le Monde Diplomatique, novembro de 2010. 14 - Cf. ŽIŽEK, Slavoj (2009). Da Tragédia à Farsa. Lisboa: Relógio D’Água, p. 109.

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PENSAR O SOCIALISMO HOJE

6. A imaginação de Marx

Slavoj Žižek

Vimos aqui o exemplo da contradição interior de Žižek sobre a violência. Porém, os exemplos de incoerência/incongruência podem multiplicar-se naquilo que são as questões de estratégia do movimento. Anote-se: «É melhor não fazermos nada do que empenharmo-nos em ações localmente limitadas que em última instância funcionam fazendo com que o sistema aja com menos atrito (ações do tipo proporcionar espaço para a multidão das novas subjetividades). A ameaça hoje não é a passividade, mas a pseudoatividade, a premência de sermos “ativos”, de “participarmos”, de mascararmos o nada que se move. As pessoas intervêm a todo o momento, estão sempre a “fazer alguma coisa”; os universitários participam em debates sem sentido, e assim por diante. O que é verdadeiramente difícil é darmos um passo atrás, abstermo-nos.» 12 E, em linha com a pronúncia da abstenção, Žižek promove como ferramenta o Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago a favor do fim da democracia burguesa: a abstenção e o voto branco são o modo de dissolver o governo e anular o regime. De nada valerá então dizer que há muitos e muitos anos a grande maioria dos norteamericanos já não vota: não consta que o imperialismo tenha entrado em phase out. Em todo caso, a mensagem contradiz-se, pois dois anos mais tarde, em 2010, Žižek já sob o efeito da referida “aceleração apocalíptica” dizia: «A nossa situação atual situa-se no ponto exatamente oposto ao do que prevalecia no início do século XX, quando a esquerda sabia o que devia fazer, mas tinha de esperar pacientemente o momento propício para passar à ação. Hoje não sabemos o que devemos fazer, mas temos de agir imediatamente, porque a nossa inércia pode ter em breve consequências desastrosas.»13 Do não fazer nada passámos ao fazer qualquer coisa, seja lá o que for. A dúvida organizada é a desorganização da dúvida.


a vida. Esta tripla ameaça a todo o conjunto da nossa existência torna-nos a todos proletários, reduzidos a uma “subjetividade sem substância”, como escreve Marx nos Grundisse»15. Dando de barato a extensão do “todos proletários”, a invocação de Marx, aqui, é abaixo da imaginação do autor dos Grundisse. A teoria da alienação do trabalho não é uma mera coisificação do trabalho, ela provém da extorsão da mais-valia, do roubo da força de trabalho. A imparidade entre o valor do produto e o valor do salário pago inferioriza a substância dos sujeitos na mercadoria trabalho. Isso é o que se pode ler em O Capital. Se a ideia do que seja o proletariado difere de Marx para Žižek, obviamente este também não tem a mesma perceção do que possa ser o sujeito revolucionário: «Por estas razões, uma nova política emancipatória não emanará já de um agente social particular, mas de uma combinação explosiva de diferentes agentes».16 Žižek toma aqui de Negri a noção desclassizada de multidão, travestindo-a de uma noção subjetiva, inteiramente subjetiva, de proletariado. Em palavras simples, na hora do apocalipse do planeta todos são revolucionários… O que importa sublinhar, na antítese de Marx, é que escapa a Žižek que a luta de classes é o motor da história. Não chama a si o enfrentamento das classes beligerantes mas submerge tudo isso numa abstrata luta da humanidade pela subsistência contra a ordem global.

Aos ouvidos dos conservadores e dos sociaisdemocratas, o som desse «proletariado» pode parecer marxista, mas não é a mesma coisa, e tem implicações profundas no modo como se abordam as contradições sociais e se organiza a resistência capitalista, ou se prepara uma saída socialista. O desprezo pela economia, lá onde se estabelecem as classes, transporta o fator subjetivo, a consciência social, para o mais puro idealismo, para o super-heroísmo da vontade. Afinal, onde sempre se alimentaram todas as teorias anarquizantes.

7. As asas e o voo A crítica, avulsa e notificada, ao pensamento de Žižek não ignora o fascínio que este intelectual tem exercido, sobretudo já neste século. Não será excessivo dizer que a adesão de muitos à sua obra, uma adesão mediada pela desconfiança da razão, hoje tão dominante, reflete também muitas das encruzilhadas de pensamento daqueles que são potencialmente atores de transformação. Nesse sentido, as ideias, para além do seu valor facial, têm materialidade própria e são ficheiros nos espaços do conflito que mantemos com o austeritarismo burguês. Só se pode achar excelente o desafio da crítica ou a contracrítica a Žižek. Ainda bem que ela é possível, mesmo para os seus prosélitos. Ainda bem porque longe vão os tempos das verdades oficiais na esquerda. Não contam as asas mas o voo.

15 - Idem, p. 110. 16 - Ibidem.

Zlavoj Žižek é professor da European Graduate School e pesquisador sénior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias universidades dos EUA, entre as quais a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e a Universidade de Michigan.

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VÁRIA

Astúrias e Leão: a rebelião mineira miguel pérez

A greve mineira de junho e julho foi um dos momentos mais altos do movimento operário e sindical no Estado Espanhol nos últimos anos. Mais de sessenta dias de paralisação colocamna como uma das greves mais longas no tempo, e as formas de luta usadas não fazem mais do que enlaçar este movimento com os que o precederam desde os anos 1980. A calma que voltou às minas no final de julho é apenas aparente. As mobilizações dos mineiros continuam e o clima político do país, com a crise na Catalunha e a repressão do 25-S, não convida a bons presságios. Este artigo tenta dar uma perspetiva ampla

desta luta, a partir de uma posição informada e refletida de quem já participou no passado nestes movimentos, e centrar-se-á na realidade das comarcas asturianas que necessariamente não diferirá muito do que acontece do outro lado da cordilheira, em Leão. Pretende-se sobretudo contextualizar a luta, explicar a crise industrial da região, as características do conflito e a sua relação com uma imagem que vai para além deste movimento e que faz referência a uma longa história de luta e solidariedade. A greve teve início durante o mês de maio, quando sucessivas paralisações de 48 e 72 horas culminaram na convocatória de greve por tem69


po indeterminado, que se manteve até o final de julho nas explorações asturianas. Durante esse tempo, grupos de trabalhadores mantiveram-se encerrados a centenas de metros de profundidade, enquanto à superfície se repetiam diariamente cortes de estrada e confrontos com a polícia, tornando as comunicações e a vida quotidiana na região muito complicadas. Referiremos mais à frente o recurso à violência, mas salientamos, em primeiro lugar, o elevado grau de solidariedade manifestado pelas comunidades afetadas e pela opinião pública geral, patente na greve geral das comarcas mineiras de 18 de junho e na enorme manifestação em Madrid de 11 de julho. De facto, o apoio nas comarcas afetadas foi unânime, e não seria de esperar outra coisa. A origem do conflito situa-se na própria natureza da atividade, que subsiste praticamente desde sempre à sombra da proteção contra a concorrência. O carvão nacional é de baixa qualidade e de difícil extração, o que o coloca em desvantagem face ao forâneo. Desde a adesão à Comunidade Europeia que a produção de car-

na construção naval, os outros dois setores que centravam a vida económica. Assim, no carvão passou-se de mais de 25 000 trabalhadores na Hunosa (Hulheiras do Norte, estatal) em 1984 para 1700 hoje; na siderurgia de 27 000 trabalhadores da empresa pública Ensidesa, por volta de 1980, para cerca de 6000 na privatizada Arcelor-Mittal; e os estaleiros estão praticamente desativados. É necessário enquadrar o problema mineiro na crise geral da indústria das Astúrias (e na de Leão, por extensão), um modelo de desenvolvimento sempre assente na indústria pesada e numa forte participação do Estado. A faísca propulsora foi a intenção do governo central cortar cerca de 100 milhões de euros no subsídio pago às companhias mineiras (Hunosa e privados), que assegura a sua liquidez, um corte consonante com a linha geral do governo do PP e que tudo indica tinha um objetivo político de fundo: partir a espinha dorsal do movimento sindical num setor de grande tradição de luta e que historicamente é o bastião do movimento operário espanhol.

A origem do conflito situa-se na própria natureza da atividade, que subsiste praticamente desde sempre à sombra da proteção contra a concorrência. vão foi fortemente reduzida, implementando-se políticas que assumem o fim lento da indústria, sem despedimentos, e a pretensão de gerar alternativas económicas nas comarcas mineiras. Diga-se, em abono da verdade, que este último objetivo está longe de ter sido atingido, situando-se o desemprego acima da média e sendo a realidade das comarcas mineiras a da falência de sucessivos projetos de atividades alternativas. Estas políticas seguidas desde meados dos anos 1980 reduziram drasticamente o número de trabalhadores e marcaram o calendário da mobilização social na região das Astúrias. Uma política semelhante foi aplicada na siderurgia e 70

A resposta esteve à altura do que era de esperar, a condizer com a nossa história mais recente. Como nas grandes greves precedentes (1987, 1992, 1998, 2005), que se ajustam ao esquema referido acima (movimentos de protesto contra as políticas de redimensionamento), a paralisação foi geral e durou semanas. Os trabalhadores recolheram apoio social e usaram formas de luta que levaram ao confronto físico com as “forças da ordem”, numa dinâmica de cortes de estrada e vias férreas, cargas policiais, recurso a armas rudimentares e “guerra de guerrilha”, ajudada pela orografia e pelo domínio do espaço e da ferramenta de trabalho, num recurso à força que


ves que estiveram na origem da fundação do Sindicato dos Operários Mineiros das Astúrias (SOMA), mas a verdade é que a Comuna de Outubro de 1934 consolidou essa imagem, criando o mito do mineiro armado com dinamite a fazer frente, com toda a coragem, à tropa. Trata-se da única data que não foi comemorada nestes últimos meses: em 2011 cumpriu-se o centenário do SOMA e em 2012 os 50 anos da greve de 1962, para além da evocação das greves de 1987 e 1992. É desta longa história que vamos falar seguidamente e com algum pormenor. Se bem que a indústria do carvão e do aço têm uma longa história, remontando a meados do século XIX, as organizações sindicais estáveis só se implantaram no início do século XX. Alguns mineiros, perseguidos e emigrados em França, com destaque para a figura de Manuel Llaneza, constituíram o sindicato mineiro SOMA em 1911, juntando uma série de grupos locais preexistentes. O sindicato tornou-se a primeira organização proveniente do setor industrial da União Geral de Trabalhadores, a central sindical do PSOE, que até então tinha apenas sindicatos de ofício. Durante os primeiros anos de existência, o SOMA conquistou, empresa a empresa, o reconhecimento das entidades patronais, conseguiu melhorias nas condições de trabalho e na contratação coletiva e alcançou uma enorme vitória na empresa Hulheira Espanhola, onde existia uma “organização amarela” ligada à Igreja Católica. O SOMA floresceu nos anos da I Guerra Mundial, quando a rarefação do carvão originou um grande crescimento das explorações nas Astúrias, registando-se pleno emprego e salários elevados. Em 1918 as minas asturianas empregavam 45 000 trabalhadores. Em 1919, o SOMA conquistou uma jornada de trabalho de 7 horas diárias 71

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é assumido socialmente face à situação da indústria ameaçada de encerramento e porque se enlaça com a história do movimento, que tradicionalmente soube recorrer a essas formas de luta. As cenas mais impressionantes vistas na televisão durante a greve explicam-se, para além da história e da geografia, pela existência de uma forte organização sindical e quadros com experiência, pela disponibilidade de oficinas de construção metalo-mecânica e pela proximidade do local de trabalho e residência. Os confrontos mais duros aconteceram junto a algumas explorações de beira de estrada, respondendo a uma estratégia de bloquear as principais vias de comunicação (que chegou a atingir 60 barricadas num só dia). Repetiu-se o uso de algumas armas rudimentares: o já habitual “lança-foguetes” - um tubo de PVC com uma manilha que lança foguetes de feira - e o inovador e perigoso “trabuco” - um tubo de aço com uma boca e uma abertura para a mecha, que é carregado com um “barreno” ou petardo e uma bola de golfe que é disparada com enorme força conseguindo abrir buracos na chapa. A consequência deste nível de combatividade foi a forte repressão que se abateu sobre os trabalhadores em luta. Os sindicatos referiram um total de mais de 100 detidos e 200 feridos a 11 de julho, no final da marcha a Madrid. Para a memória ficam os acontecimentos de Ciñera (Leão) em junho e Lena (Astúrias) em julho: verdadeiras ocupações de vilas com estratégias de tipo militar, em operações que faziam lembrar o terrorismo estatal-policial de tempos não tão longínquos. Como dissemos acima, a história do movimento operário nas minas é marcada por conflitos duros e muitas vezes violentos. Já no início do século XX eram comuns os rebentamentos de dinamite e as sabotagens durante as gre-


nos trabalhos no interior da mina, sendo que o tempo contava desde o momento de entrada na mina até a saída. Enquanto isso, Llaneza era eleito o primeiro presidente de Câmara do PSOE, na cidade de Mieres. Com a crise da indústria carvoeira, devido às tensões na economia dos anos 1920 e à depressão de 1929, a situação alterou-se nas duas décadas seguintes. O desemprego aumentou e o SOMA viu-se obrigado a abrir mão das conquistas precedentes, criando condições para uma contestação interna organizada em torno do recém-nascido PCE. Na altura da proclamação da II República, a organização mineira estava em forte crise; era contestada por um sindicato rival comunista (o Sindicato Único Mineiro), tendo a presença do PSOE no governo republicano sido fundamental para ajudar o SOMA a recuperar influência. É no contexto de crise económica e colaboração socialista com os republicanos, e o seu colapso em 1933, sob forte influência dos acontecimentos europeus, que podemos explicar a insurreição de 1934. Com efeito, o esmagamento da social-democracia alemã e austríaca nesses anos, assim como a deceção com a República, empurraram o PSOE e a UGT para a esquerda, com os mineiros asturianos na vanguarda. Num clima de enorme agitação social (em 1934 houve mais de dez greves gerais nas Astúrias), a nomeação de vários ministros da CEDA (Confederação Espanhola de Direitas Autónomas) levou à convocatória de uma greve 72

geral revolucionária em toda Espanha, em outubro. O movimento organizado pelo PSOE em todo o país não vingou, mas nas Astúrias, onde existia uma Aliança Operária que agrupava socialistas, anarquistas e comunistas, houve uma verdadeira revolução operária que abrangeu a zona central da província e as comarcas do norte de Leão. Durante duas semanas, de 5 a 19 de outubro, as milícias de mineiros dominaram a situação e fizeram frente às tropas enviadas pelo general Franco. Nesses dias de outubro, os operários engendraram uma nova sociedade, com toda a torpeza mas também com toda a ingenuidade e boa-fé que as revoluções sempre mostram. A força da repressão foi inaudita, com milhares de mortos e fuzilados e dezenas de milhares de presos, ficando para história a figura mítica de Aida Lafuente, uma jovem comunista de 16 anos assassinada pela tropa em circunstâncias nunca esclarecidas. Outra imagem que também ficou na memória coletiva foi a do mineiro dinamiteiro. Confrontados com a falta de munições, os operários usaram a dinamite das minas contra a tropa, o que constituiu um pesadelo para o Exército. É no rescaldo de outubro que a esquerda espanhola se recompõe, retomando a iniciativa em fevereiro de 1936. Sem as Astúrias não teria sido possível a recomposição da aliança entre republicanos de esquerda e socialistas (estendida ao PCE, que viria a formar a Frente Popular) e muito menos que a CNT


a pudesse apoiar. Foi com a palavra de ordem de libertar os presos que a esquerda venceu as eleições que se constituíram como o antecedente da guerra civil. Vale a pena referir a guerra civil nas Astúrias, quanto mais não seja pelo facto de na região central, controlada pelo Conselho Interprovincial das Astúrias e Leão, se ter repetido a experiência de confronto bélico entre o Exército e as milícias operárias. A região ficou isolada da zona sul da República e condenada após a queda de Bilbau e Santander no decurso de 1937. É, no entanto, nessas condições particulares de isolamento e desespero que o Conselho se proclama soberano, respondendo ao abandono a que Madrid o botara. Efetivamente, nesse

do alguns protestos, como o da greve da Mina La Camocha (Gijón) em 1957, que viu nascer a primeira Comissão Operária. Na primavera de 1962 as Astúrias recuperam a tradição de terra de luta e resistência, através de um grande movimento de greves que se estende por dois meses das minas à indústria metalúrgica de Gijón, a Bilbau e a outros pontos do país. O regime é obrigado a conceder volumosos aumentos salariais e a negociar diretamente com as comissões representativas, o que significou um momento de não retorno para a ditadura que conhecia, assim, o início do seu crepúsculo. Diz uma canção alusiva às greves de 1962 que «há uma luz nas Astúrias», uma luz que Picasso imortalizou numa pintura de um candeeiro mineiro.

episódio, que se tornou fértil para as mais variadas e fantasiosas interpretações, foi proclamada “de direito” a independência de uma parte do território espanhol. Com a conquista de Gijón e a queda final da frente norte, iniciava-se um período negro de repressão que iria durar décadas. Enquanto a organização operária era massacrada e as minas colocadas sob a alçada militar, as Astúrias conheceram um forte movimento de resistência armada, com grupos de “fugados” a escapar da morte certa às mãos dos fascistas. Os anos 1940 e 1950 são a meia-noite do século nas Astúrias e em toda Espanha, com essa repressão brutal e um agravamento das condições de vida difícil de imaginar para nós. Não se conhecem episódios de resistência nas minas e nas fábricas nesses anos, tal era o nível de violência e abjeção dos repressores. Só nos finais da década de 1950 a situação se vai alterando e vão surgin-

A crise do franquismo e das comarcas mineiras corre em paralelo. É na década de 1960 que nascem os processos que nos acompanham até hoje. A abertura económica implica o início do fim da proteção do carvão nacional; e em 1969 assiste-se à saída do capital privado das minas dos vales centrais da região com a criação da Hunosa. Ao mesmo tempo, a siderurgia, presente nos vales mineiros (em Mieres e La Felguera), é deslocada para as cidades da costa. Em Avilés, o Estado cria uma siderurgia integral de raiz, a Ensidesa, uma obra faraónica que empregou mais de 30 000 trabalhadores na sua construção. Poucos anos depois, as companhias siderúrgicas privadas fundem-se na Uninsa e iniciam a construção de um complexo gigante em Gijón, que acabará por ser absorvido na Ensidesa pouco antes da morte de Franco. A siderurgia fusionada nasce com quase 30 000 operários. São estas empresas mastodônticas, 73

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Na primavera de 1962 as Astúrias recuperam a tradição de terra de luta e resistência, através de um grande movimento de greves que se estende por dois meses das minas à indústria metalúrgica de Gijón, a Bilbau e a outros pontos do país.


a Hunosa e a Ensidesa, que vão marcar a vida económica e social das Astúrias no período democrático constitucional que segue à morte de Franco. A história destas duas grandes empresas já foi referida acima. Diminuídas, a Ensidesa foi privatizada em 1997, enquanto Hunosa continua pública até hoje, mas com um número muito reduzido de trabalhadores. Estas são empresas onde o próprio sistema engendrou todo o tipo de esquemas e falcatruas tão comuns nas grandes companhias, públicas ou privadas. Ao mesmo tempo, as explorações do ocidente asturiano e de Leão ganhavam peso e renascia o papel do capital privado no carvão. Este vivia à sombra das subvenções europeias e estava permeado de figuras sinistras, como as dos empresários corruptos e parasitas, que Victoriano Alonso, o principal empresário da zona, tão bem encarna. Atualmente há uns 7000 mineiros, divididos entre as Astúrias e Leão, sendo os trabalhadores da Hunosa uma minoria desse total. É esta a realidade de várias comarcas monoindustriais. Aqui não geram alternativas de vida para as populações, os jovens não têm futuro estando condenados a uma morte lenta sob o olhar de velhos operários reformados, numa equação que ainda nenhum poder público conseguiu resolver. Muitas críticas têm sido feitas aos mineiros

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e às suas organizações. Violência, corrupção, amiguismo corporativismo têm sido alguns dos adjetivos usados, especialmente por membros do governo e do seu partido num exercício habitual de demagogia. Não é a primeira vez que se ouvem estas acusações, que até poderão ter um fundo de verdade, mas para que alguém as possa fazer exige-se, como condição necessária, autoridade moral. Estou convicto que por trás destes cortes no financiamento há um objetivo político marcado por um profundo ódio de classe contra os trabalhadores mineiros. Eles saberão lutar e como lutar. Como foi dito no início, a luta dos mineiros não terminou. Sobre o corte atual, ainda a procissão vai no adro, e abre-se a negociação para um novo plano de redimensionamento que vigorará até 2018. Entretanto, na siderurgia paira a ameaça de redução salarial e vivese a permanente chantagem de deslocalização, prevendo-se abertura de outra frente de luta industrial. E tudo isto num país que diz que não quer austeridade para alimentar a finança e onde o desemprego atinge números recorde. Será que Mariano Rajoy se enganou no cálculo? Pela nossa parte, estamos prontos para que as Astúrias (e Leão) voltem a ser o caixão dos projetos da direita espanhola, como o foram no passado.


A prostituição como ponto de rutura Para a questão aqui em análise, a delimitação do conceito de prostituição é fundamental. Prostituição é aqui entendida como a troca de serviços sexuais por dinheiro, levada a cabo por mulheres que escolheram livremente esta atividade como profissão. Assim, o tráfico de seres humanos, a prostituição forçada e a prostituição de crianças e jovens não tem lugar nesta discussão. Essas práticas são crime e como crime devem ser tratadas. Dentro do vasto campo que é o trabalho sexual, debruçar-me-ei apenas sobre a prostituição heterossexual feminina, defendendo a sua legalização e o seu reconhecimento enquanto trabalho sexual.

Se me impressiona o discurso abolicionista por nele reconhecer uma estranha e perigosa aliança entre o conservadorismo puritano e misógino e algum feminismo e mesmo alguma esquerda, também não subscrevo os discursos celebratórios sobre a prostituição. Para mim, «a questão não é tanto se estes comportamentos são ou não politicamente corretos, mas antes, como parece, se fazem parte das manifestações sexuais de algumas mulheres [ou se constituem uma forma de garantir o rendimento necessário à sua sobrevivência] e, por conseguinte, não temos o direito de os condenar. Afinal, porque haveríamos de fazê-lo? Porque não gostamos deles? Porque não nos convencem? Porque não 75

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vão de encontro às nossas conceções?»1. Creio que o reconhecimento do trabalho sexual nos obriga, em primeiro lugar, a reconhecer as prostitutas como seres humanos com direitos, ao mesmo tempo que nos desinstala do conforto da moral burguesa onde, apesar de tudo, nos habituamos a estar.

Podem as subalternas falar?2 A relação entre o feminismo e as prostitutas, de uma forma geral, tem sido uma não-relação ou, em alguns casos, uma relação tensa. A discussão da prostituição é herdeira dos grandes debates ocorridos nos anos 1980 que opuseram as feministas antipornografia às feministas pró-sexo. A prostituição é, em meu entender, e dito de uma forma simplificada, um prolongamento desta discussão. Por um lado, temos as feministas abolicionistas que veem as mulheres prostitutas como vítimas do patriarcado, ensaiando mesmo uma nova normativa relati-

a dita expressão»3. A consideração do feminismo conservador de que a prostituição configura uma manifestação do poder patriarcal e, por conseguinte, uma violência de género coloca as prostitutas em dois lugares distintos, mas ambos depreciados. Por um lado, as prostitutas são vistas como traidoras da luta feminista, uma vez que destroem todo o edifício teórico que sacraliza a sexualidade e a encerra no espaço privado da intimidade; por outro lado, são encaradas como vítimas, económicas e culturais, como mulheres que só exercem esta atividade porque não têm outro remédio. Esta visão, simultaneamente condenatória e salvífica, encerra as prostitutas no espaço do infra-humano e da infantilidade cognitiva: são encaradas ora como devassas, como prescritoras da degenerescência da relação sexual sã e púdica, ora como mulheres incapazes de tomarem decisões, dentro dos constrangimentos da sua vida, e decidirem o caminho

Que lugar sobra para a autonomia e para a liberdade das mulheres quando se prescreve uma sexualidade bem comportada? va a uma suposta sexualidade feminista. Mas, pergunto, não é a sexualidade um campo de expressão pessoal que não deve ser constrangido? Não propõe o feminismo uma sexualidade liberta dos constrangimentos da moral patriarcal? Que sentido tem substitui-la por uma outra normativa? Que lugar sobra para a autonomia e para a liberdade das mulheres quando se prescreve uma sexualidade bem comportada? Por outro lado, temos as feministas pró-sexo que destacam «o prazer como possibilidade de desfrute sexual da mulher, reconhecem a existência de grandes diferenças entre as várias mulheres na hora de expressar a sua sexualidade e a necessidade de permitir, e não de coartar,

que querem trilhar. Tudo isto redunda numa espécie de protecionismo caridoso: as prostitutas são vítimas de uma situação económica que as obriga a “andar na vida” e, por conseguinte, a resposta social deve ser capaz de prevenir a sua entrada nesta atividade, por um lado, e redimir e reabilitar as que já estiverem nesse mundo, por outro. Neste imaginário conservador e salvífico, a decisão de continuar a ser prostituta é ilegítima; as “boas” prostitutas devem antes confessar o seu arrependimento e pedir ajuda para “sair da vida”. Estranhamente, o debate sobre a prostituição tem sido feito sem as prostitutas. Kate Millet dizia que para se discutir a prostituição a

1 - OSBORNE, Raquel (1989). Las Mujeres en la Encrucijada de la Sexualidad. Barcelona: Lasal, Edicions de les Dones. 2 - Cf. SPIVAK, Gayatri (1988). “Can the subaltern speak”. In NELSON, Cary e GROSSBERG, Lawrence (eds.), Marxism and the Interpretation of Culture. Londres: Macmillan. 3 - OSBORNE, Raquel (1989). Las Mujeres en la Encrucijada de la Sexualidad. Barcelona: Lasal, Edicions de les Dones.

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Sul, com as sociedades mercantis, etc. Concebemos as prostitutas com toda a sua dignidade e com capacidade para decidir sobre si mesmas e sobre as suas condições de vida. São trabalhadoras a quem se deveria reconhecer os mesmos direitos que têm o resto dos trabalhadores»5. A cegueira epistemológica instaura uma dicotomia que coloca as prostitutas no lugar do Outro, da transgressão à norma, ao mesmo tempo que afirma um Nós amputado, um Nós que não reconhece as prostitutas como parte da categoria mulheres nem tão-pouco admite que há prostitutas feministas; um Nós portador de uma sexualidade autorizada e que qualifica a transgressão a esta norma como “pecado patriarcal”. «As trabalhadoras sexuais feministas não se sentem envergonhadas do seu trabalho. De facto, sentem-se muito orgulhosas de não sentir vergonha e de ter superado tabus e preconceitos sexuais. Não consideram que ninguém deva decidir por elas se o seu trabalho é opressivo, prejudicial ou humilhante»6. «A prostituição nunca foi degradante para mim porque eu acredito que o sexo é algo positivo, independentemente de ser feito com amor ou como um serviço. Desde que seja consensual, é positivo»7. O feminismo deve, pois, questionar-se sobre a forma como ele próprio reproduziu a opressão; deve perceber a necessidade de integrar

4 - OLIVEIRA, Alexandra (2011). Andar na Vida. Prostituição de Rua e Reação Social. Coimbra: Livraria Almedina. 5 - HETAIRA - Coletivo en defensa de los derechos de las trabajadoras del sexo. Disponível em: http://www.colectivohetaira.org/web/ 6 - NICOLÁS, Gemma (2005). Planteamientos feministas entorno al trabajo sexual. 7 - ALMODOVAR, Norma Jean (1993). Cop to Call Girl: Why I Left the LAPD to Make an Honest Living as a Beverly Hills Prostitute. Nova Iorque: Simon & Schuster.

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única figura relevante eram as prostitutas e que sem a sua participação o debate converter-se-ia numa espécie de escolástica. Compreender como se veem, que representações têm de si e do trabalho que exercem é um passo fundamental para abandonar o discurso heterónomo sobre a prostituição. Quando as prostitutas se assumem e são reconhecidas como sujeito do seu próprio discurso, o que dizem desestrutura as conceções e os preconceitos que sobre si e o seu trabalho são criados. Ouvilas permite perceber que a grande maioria encara a sua atividade como um trabalho, não tem baixa autoestima nem se vê como vítima, nem, tão-pouco, sente que o seu trabalho é indigno4. São vítimas não da atividade que exercem mas do estigma que as coloca num lugar social subalterno, sendo precisamente esse estigma que origina sentimentos ambivalentes em relação ao seu trabalho. «Consideramos a prostituição como um trabalho, uma atividade que pode exercer-se de formas muito diferentes. Pensamos que é importante distinguir quem o faz obrigada por terceiros de quem o faz por decisão individual, mesmo que, obviamente, condicionada pelas situações pessoais, como tudo o que fazemos na vida. Para nós, a existência da prostituição tem a ver não só com a situação de desigualdade das mulheres em relação aos homens, mas também com a pobreza, com as desigualdades Norte/


as trabalhadoras sexuais no feminismo para que este se assuma como projeto emancipatório onde cabem todas as mulheres. Na verdade, os direitos das mulheres estão inexoravelmente ligados aos direitos das trabalhadoras sexuais, quanto mais não seja porque o estigma “puta” é usado para desqualificar qualquer mulher que manifeste iniciativa sexual ou económica. «Através do estigma isolase a prostituta e cria-se uma categoria – a de puta – que nos divide entre putas e não-putas; da mesma forma, aplica-se àquelas que não entram na categoria em sentido restrito mas que podem ser designadas como tal por várias e diversas razões: pelo tipo de trabalho, pela cor da sua pele, pela classe social, pela sua sexualidade, pela sua orientação sexual, por uma história de abuso, pelo estatuto matrimonial ou, simplesmente, pelo estatuto de género»8. O reconhecimento do trabalho sexual como atividade profissional retira as prostitutas do lugar do Outro e resgata-as para um Nós abrangente e diverso. A diluição desta fronteira permite integrar as prostitutas no movimento feminista da mesma forma que obriga o feminismo a romper com a malha estreita e conservadora de uma moral que retira as prostitutas do discurso e da proposta emancipatórios. Do rompimento da fronteira entre as mulheres bem comportadas (Nós) e as mulheres transgressoras (Outras) deve emergir um novo sujeito social diverso e polifónico.

E se o género nos aprisionasse? Com frequência ouvimos caracterizar a prostituição como a “profissão mais velha do

mundo”. Esta caracterização sugere um fixismo histórico que não tem correspondência com a realidade. Engels afirmava que a família não é uma emanação divina, é antes uma realização histórica que conheceu várias formas ao longo dos séculos. O que disse sobre a família é válido também para a prostituição. Sabendo que a prostituição tem forçosamente que tratar o aspeto do género, centrarse quase exclusivamente nele implica perder muitos elementos de uma realidade mais complexa e contraditória. É, pois, necessário convocar outros saberes e alargar o horizonte de compreensão. O papel e a representação sociais das prostitutas têm variado ao longo das épocas: na Antiguidade esta era uma atividade reconhecida e sobre a qual não pendia o estigma da indignidade e da vitimização - as heteras tinham grande relevância social e eram mesmo as mulheres mais instruídas da Grécia: frequentavam livremente o espaço público masculino, participavam nas atividades reservadas aos homens e eram formadas em escolas onde aprendiam literatura, filosofia e retórica. Aspásia, por exemplo, foi uma prostituta admirada pelas suas qualidades intelectuais. A moral judaico-cristã veio impor um ferrete sobre a sexualidade, de uma forma geral, e sobre a prostituição, de uma forma particular. Com a Reforma do século XVI, o puritanismo passou a ditar os costumes e a moral. A ação conjunta das Igrejas Católica e Protestante não acabou com a prostituição, mas empurrou-a para a clandestinidade. Foi com o advento da Revolução Industrial e a ascensão da moral e da

8 - OSBORNE, Raquel (2000). “En primera persona: las prostitutas, el nuevo sujeto de la prostitución”. In Unidad y diversidad. Un debate sobre la identidad de género. Materiales para reflexión. Secretaría de la Mujer de la Federación de Enseñanza de CCOO.

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das mulheres neste negócio era a da sócia minoritária: sem poder, sem voz e sem voto. O casamento não surgia como consumação de uma relação de amor mas como resposta à necessidade de garantir a propriedade e acautelar a sua transmissão, impondo, para o efeito, regras de moral e de conduta diferenciadas: a monogamia feminina, como forma de controlo sobre a legitimidade dos filhos herdeiros, e a tolerância da poligamia masculina. O casamento garantia «(…) sustento económico e proteção dados pelo homem em troca da subordinação em todos os aspetos e assistência sexual e doméstica gratuita dada pela mulher»11, ou seja, garantia o monopólio sexual do homem sobre a sua esposa, considerada sua propriedade, assemelhando esta relação contratual ao servilismo entre o senhor e o servo, onde a subordinada é totalmente destituída e privada de direitos morais, sociais, sexuais, políticos e legais. O casamento-negócio revela a forma como a sexualidade feminina era entendida: menorizada ou inexistente, pura e marital. As mulheres foram dessexualizadas a favor da “fada do lar” e da procriadora. A prostituição é, por isso, o território interdito onde as mulheres praticam e exploram a sua sexualidade; é o território dos prazeres ilegítimos: para elas, que se transformam em seres sexuais, portadoras de desejo, e para eles, que realizam as suas fantasias sexuais inconfessáveis sem colocar em causa a sua identidade social. A existência da prostituição representa, em última análise, o reconhecimento cabal da hipocrisia e da falência da moral sexual burguesa.

9 - BEBEL, August [2009 (1ª ed.: 1879)]. Woman under Socialism. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/30646/30646-h/30646-h.ht 10 - OSBORNE, Raquel (2000). “En primera persona: las prostitutas, el nuevo sujeto de la prostitución”. In Unidad y diversidad. Un debate sobre la identidad de género. Materiales para reflexión. Secretaría de la Mujer de la Federación de Enseñanza de CCOO. 11 - PATEMAN, Carole, (1993). O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

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família burguesas que a prostituição ganhou novos contornos. Auguste Bebel, em 1879, refere que apesar de a prostituição ter existido quer na Grécia e Roma Antigas quer no Feudalismo só no capitalismo se converteu em fenómeno de massas. Apresentou, inclusive, dados para analisar a prostituição em termos de classe, explicando que a maioria das prostitutas o eram devido à pobreza e à necessidade, apesar de existir uma minoria que a praticava por outras razões. «A prostituição converte-se numa necessária instituição social da sociedade burguesa, como a polícia, o exército, a Igreja e a classe capitalista»9. A divisão entre mulher pública e mulher doméstica é o resultado da posição subordinada das mulheres e uma emanação da família burguesa que emergiu no século XIX. O ideal burguês de família implicava esta «dicotomia entre as mulheres: de um lado a esposa, mulher decente e virtuosa, sem sexualidade própria, submetida ao dever conjugal não recíproco, rainha do lar, da domesticidade e da maternidade legítima. Para o homem, o complemento ideal desta figura consistia na prostituta, o seu inverso: personificação do sexo – mulher viciosa - (…) e encarnação, se fosse esse o caso, da maternidade ilegítima. Em comum, estas duas mulheres têm o facto de ambas estarem ao serviço do homem»10. O casamento foi durante muito tempo encarado como uma relação económica de transmissão da propriedade e da tutela sobre as mulheres, era o rito através do qual estas passavam da tutela do pai para a tutela do marido. A posição


Esta diversidade histórica e os discursos que emergiram através da tomada da palavra pelas prostitutas mostram que a categoria de género, que lê na prostituição uma manifestação de domínio masculino sobre o corpo das mulheres, é demasiado estreita para compreendermos esta problemática em toda a sua complexidade. A opressão sexual não é a única interpretação possível da prostituição. Não só as mulheres têm direito a escolher livremente os usos do seu corpo – seja interrompendo uma gravidez que não desejam, seja comercializando serviços sexuais - como também têm direito a reivindicar o prazer ou o sexo como fonte de rendimento.

Desestabilizar a teoria Na análise de Engels, a prostituição resulta da monogamia imposta. Esta monogamia é de base económica e tem como fim a transmissão da propriedade e a manutenção da linhagem. «A monogamia não aparece na história (…) como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimónio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos (…)»12. A sociedade socialista é para Engels a res-

posta do futuro: aqui, as relações serão livres e emergirá o «amor sexual individual»13, baseado na reciprocidade e na igualdade de direitos. Este «amor sexual individual», que Engels generosamente anuncia como resultado da libertação humana, não tem contudo respaldo histórico: ele não aconteceu nos países do socialismo real nem nas sociedades capitalistas que viveram a segunda vaga feminista. Assim, afirmar que o homem novo e a mulher nova que emergirão no socialismo, livres dos constrangimentos económicos impostos pelos casamentos de raiz económica e libertos em toda a sua expressão sexual, construirão uma nova sociedade onde a prostituição não tem lugar, não porque seja reprimida mas porque não é necessária, sendo comovente é simultaneamente pueril. Mas, e sobretudo, não adianta atirar o problema para o futuro; adianta, sim, encará-lo agora e ter políticas concretas para pessoas concretas. A imposição da monogamia como relação autorizada explica não só a existência e o papel social da prostituição como demonstra que este preceito não serve nem homens nem mulheres: «Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido torneado. (…) O adultério,

12 - ENGELS, Fredrich [1985 (1ª ed.: 1884)]. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 13 - Idem.

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proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável, junto com a monogamia e o heterismo»14. Esta constatação parece autorizar a conclusão de que as sociedades convivem bem com a hipocrisia que envolve as relações monogâmicas, sejam elas de raiz económica ou assentes no mais profundo «amor sexual individual». Ora, então o problema da prostituição não reside no facto de estas serem relações sexuais adúlteras, mas antes no facto de o sexo ser encarado como mercadoria e trocado por dinheiro. Tal como a maioria das transações sob o capitalismo, a prostituição baseia-se na compra e venda de mercadorias ou serviços. O sexo é, pois, convertido numa mercadoria, num bem

as mulheres. Como pergunta a prostituta Margot St. James, «Que parte do corpo você vende para pagar as contas? Os seus dedos digitadores? A sua voz ao telefone? O cérebro com o qual pensa?»16. Como muitos serviços e indústrias produtivas capitalistas, a prostituição acontece de formas muito diversas, tendo a prostituta diferentes relações com os meios de produção e com os compradores de serviços sexuais. Muitas delas encaram a prostituição como prazer e como vivência e manifestação da sua sexualidade; muitas outras como fonte de rendimento. Se umas se realizam profissionalmente, outras preferiam exercer outra atividade. Muitas delas são assalariadas: vendem serviços sexuais a um

exterior às prostitutas que é transacionado. Na linguagem do senso comum diz-se que as prostitutas vendem o seu corpo. No entanto, e como estas afirmam, o que é vendido são os serviços sexuais, uma vez que no final da transação o seu corpo não é propriedade do cliente. Como o próprio Marx explicou, «o dono da força de trabalho deve vendê-la apenas por um período definido, pois se fosse para vendê-la (…) de uma vez por todas, estaria a vender-se, a converterse de homem livre em escravo, de proprietário de uma mercadoria em mercadoria»15. A mercadoria é, pois, o sexo, ou o serviço sexual, e não

cliente através da intermediação de um patrão, que paga uma percentagem à trabalhadora. A maior parte delas é, no entanto, trabalhadora independente, isto é, vende diretamente os serviços sexuais. São, na sua maioria, trabalhadoras precárias e sem qualquer proteção social. Sobre todas recai o estigma da indignidade, que as coloca no lado da transgressão moral e as procura diminuir enquanto mulheres, fragilizando, consequentemente, a sua posição na relação que estabelecem com os clientes. Se, por vezes, alguns clientes oprimem as prostitutas, tratando-as de forma degradante e violenta, o

14 - Idem. 15 - MARX, Karl (1887). O Capital, vol. 1, p. 88. Disponível em: http://libcom.org/files/Capital-Volume-I.pdf 16 - ST. JAMES, Margot (1989). In PHETERSON, Gail (ed.), Vindication of the Rights of the Whores. Seattle: Seal Press.

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Pode, no entanto, o trabalho sexual ser considerado igual aos outros? Evidentemente que não, pois nenhum outro trabalho é tão estigmatizado como a prostituição.


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Estado, ao negar-lhes a dignificação através do reconhecimento do seu trabalho e consequente proteção social, fá-lo sistematicamente17. O reconhecimento do trabalho sexual é, nesse sentido, a resposta mais justa para a vida concreta destas mulheres. Pode, no entanto, o trabalho sexual ser considerado igual aos outros? Evidentemente que não, pois nenhum outro trabalho é tão estigmatizado como a prostituição. Uma das questões que alguns setores do feminismo e da esquerda colocam é que reconhecendo direitos laborais às prostitutas está-se implicitamente a reconhecer a sua atividade como legítima, quando o que se pretende é questionar o sistema patriarcal. No entanto, aquilo que se pretende legitimar são as mulheres, até agora deslegitimadas pelo trabalho que exercem, e não o patriarcado. A prostituição confronta também a organização social que prescreve comportamentos e protagonistas diferenciados para as esferas pública e privada (sinalizada como fonte de opressões várias18). A sexualidade feminina é, sem dúvida, um assunto da esfera privada, do trabalho reprodutivo. Ora, se olharmos a prostituição sob o ponto de vista das prostitutas e não dos seus clientes percebemos que elas rompem essa

fronteira: o sexo saiu do espaço privado da intimidade e invadiu o espaço público e o mercado. A consideração de que esta é uma atividade indigna só se compreende por sobre ela recair uma moralidade autoproclamada superior. Este escrutínio sobre a indignidade ou dignidade da profissão exercida só acontece com a prostituição. O facto de ela ser maioritariamente exercida por mulheres e representar uma vivência e experiência sexuais que escapam aos cânones do moralmente lícito não será, naturalmente, despiciendo. Se a crescente sexualização da vida e da cultura parecem anunciar uma maior liberdade de costumes das atuais sociedades, paradoxalmente, os discursos e os posicionamentos sobre a prostituição parecem anunciar precisamente o contrário. Lutar contra o estigma que a sociedade impõe às trabalhadoras sexuais, reconhecendo e legalizando a sua atividade, é, em última análise, desestabilizar a teoria: a ideia de que existem boas e más mulheres consoante a forma como manifestam a sua autonomia, seja ela sexual ou profissional. É tempo de parar de «joga[r] pedra[s] na Geni» porque ela não só não é «feita para apanhar» como também não é «boa de cuspir»19.

17 - MACHADO, Helena (2007). Moralizar para Identificar. Cenários da Investigação Judicial da Paternidade. Porto: Edições Afrontamento. Neste livro, a autora conclui que a investigação judicial da paternidade «constitui uma inter-relação complexa, híbrida e difusa entre o sistema de patriarcado, o poder judicial e o poder científico» (p. 223). Os processos judiciais são expressão de um direito absolutamente masculinizado e reafirmam desigualdades de género ao operarem pela desqualificação/dominação ou supressão do feminino, em particular quando estão envolvidas mulheres cujos comportamentos sexuais e reprodutivos não obedecem à configuração jurídica e social ideal das mulheres (que deverão ser fiéis, castas e confinar a sua atuação ao espaço privado). 18 - Cf. FRASER, Nancy (1992). “Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy”, In CALHOUN, Craig (ed.), Habermas and the Public Sphere, Londres: MIT Press. 19 - BUARQUE, Chico (1979). “Geni e o Zepelim”. In Ópera do Malandro.

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Auditoria ao centro do neoliberalismo «6. Lembra que todos os Estados têm a responsabilidade fundamental de promover o desenvolvimento económico, social e cultural do seu povo e, para tal fim, tem o direito e o dever de escolher os seus meios e metas de desenvolvimento, não devendo estar sujeitos a prescrições externas específicas de política económica»1. Na sua já clássica exploração da fase neoliberal do capitalismo contemporâneo, David

Harvey afirma que «mesmo dentro da conceção liberal, tal como exposta na Declaração das Nações Unidas, existem direitos derivativos, como liberdades de expressão, direito à educação e à segurança económica, o direito à constituição de sindicatos e outros. Proteger e obrigar ao cumprimento destes direitos teria constituido um sério desafio ao neoliberalismo. Transformar estes direitos derivativos em direitos fundamentais e os direitos fundamentais à propriedade privada e à remuneração

1 - Resolução adotada pela 20ª Sessão do Conselho das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 18/07/2012.

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luís bernardo


do capital em direitos derivativos significaria uma revolução de significado tremendo para as práticas políticas e económicas»2. Na fase atual do regime de acumulação neoliberal, a expropriação e confisco de direitos fundamentais, adquiridos no seguimento de séculos de combate, material e discursivo, por uma distribuição justa da riqueza e pela dignidade dos ocupantes das regiões ocultas do mundo social, está normalizada. É um fenómeno consolidado e possuidor de legitimidade automática, como a generalidade dos constructos que informam a semântica neoliberal. Difusa e traiçoeira, essa semântica não esconde, contudo, o caráter fulcral da dívida enquanto instrumento preferencial de expropriação e confisco. Atualmente, com a exposição da União Europeia, uma das chamadas zonas ótimas neoliberais, à crise do regime de acumulação, essa centralidade parece cada vez mais evidente. Nos anos 1970 e 1980,

que já mostrou, na sua fase degenerativa, ser incapaz de iludir o problema através de uma ênfase suspeita na responsabilidade individual. O problema é sistémico e torna-se razoavelmente claro que não poderá solucionar-se no mesmo quadro em que a dívida continua a desempenhar o papel extrativo e expropriador, ao serviço de instituições e investidores cobertos de anonimato. Esta questão desafia a manutenção da organização capitalista contemporânea, na medida em que, após a vaporização da AIG3 e as consequentes réplicas sísmicas verificadas nos sistemas de acumulação de dívida dentro da União Económica e Monetária, começou a clarificar-se o caráter extrativo e parasitário da maior parte das instituições de suporte ao sistema financeiro. Com a emergência, já em 2012, do escândalo LIBOR4, associado a uma investigação em curso sobre a taxa análoga EURIBOR, essas réplicas sísmicas parecem mostrar

As auditorias cidadãs são processos que pretendem contrariar a lógica destruidora dos direitos adquiridos ao longo dos dois séculos precedentes. com a multiplicação das crises da dívida no Sul global, o discurso hegemónico apagava o problema da circulação de capitais e a emergência da financeirização como processos originários dessas crises; em retrospetiva, as justificações apresentadas parecem ser tão apropriadas como as invetivas lançadas de think-tanks situados em Bruxelas à produtividade do sul da Europa. Mais uma vez, o problema centra-se na etiologia e dinâmica da dívida, pública e privada, central ao regime de acumulação neoliberal,

que o regime de acumulação capitalista está em entropização acelerada e a única solução avançada pelas elites produtoras de hegemonia é a destruição das democracias, a bem do pagamento de títulos cuja contratualização é suspeita e potencialmente ilegítima.

Contrariar a hegemonia e recriar solidariedades As auditorias cidadãs são processos que pretendem contrariar a lógica destruidora dos di-

2 - HARVEY, David (2005). A Brief History of Neoliberalism. Nova Iorque: Oxford University Press, p. 182. 3 - Em setembro de 2008, a American International Group, o maior grupo segurador do mundo, entrou em falência e a Reserva Federal Americana criou um veículo de 122 biliões de dólares para salvar o grupo. A exposição do Governo americano à AIG chegou a ter o valor de 152 biliões de dólares. 4 - Em junho de 2012, o Barclays Bank foi multado pela CFTC (Commodities and Futures Trading Commission) americana e pela Financial Services Authority britânica (os equivalentes da CMVM) devido à manipulação da taxa LIBOR – London Interbank Offering Rate. A LIBOR é calculada diariamente pela Thomson Reuters com base na estimativa (feita por um painel de bancos) dos custos de empréstimo interbancário. Devido à forma de cálculo da taxa, é impossível haver menos de quatro bancos envolvidos em manipulação do mercado.

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Uma ameaça à hegemonia liberal Ao recusar a ideia de que a gestão do crédito público é um ato puramente técnico que sustenta, desde a fundação da moeda única, a proliferação de agências de gestão da dívida soberana, a auditoria cidadã recusa, igualmente, a ideia de que, por exigir recursos técnicos relativamente extensos, a monitorização, por cidadãs e cidadãos do processo de endividamento é impossível. Nesse sentido, as auditorias cidadãs também constituem uma ameaça à legitimidade das atuais democracias tecnocráticas, centrada nas disparidades existentes entre eleitores e eleitos. Na medida em que as democracias liberais assentam na apologia da representação como democratização e igualitarização, também defendem, por inerência, a ideia de que o representante eleito agrega capacidades e potencialidades que o separam, pelo menos tangencialmente, da República. As auditorias cidadãs recusam liminarmente esta proposição. Nesse sentido, não radicalizam apenas a democratização, mas também a republicanização da vida política: intensificam a noção de bem comum, exigem acesso alargado e não privilegiado aos meandros das estruturas de poder e desvelam as correlações de forças que subjazem aos processos de endividamento. Tendo isto em conta, uma auditoria cidadã é um processo essencialmente político que emerge num contexto de tecnocratização das democracias; a sua dimensão técnica é uma resposta preventiva à crítica reacionária e relativamente primitiva de que uma avaliação cidadã não é suficientemente rigorosa para poder ser tida em conta nos processos de produção de políticas públicas. Contudo, e porque as auditorias cidadãs resultam de um processo de mobili-

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reitos adquiridos ao longo dos dois séculos precedentes. Embora se denominem auditorias, sublinhando um importante caráter técnico e empírico, estes processos, que têm dois dos seus exemplos de maior sucesso no Equador e no Brasil e já se alargaram à Europa do sul, além de iniciativas na República da Irlanda e em França, não são especificamente técnicos. Éric Toussaint, do Comité pela Anulação da Dívida no Terceiro Mundo e um dos proponentes mais importantes destas iniciativas, sublinha, aliás, o caráter político, mobilizador e especificamente democrático de uma auditoria cidadã. Costas Lapavitsas, da School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres e coordenador do grupo de investigação Research on Money and Finance, de que fazem parte os economistas portugueses Nuno Teles e Eugénia Pires, refere também a necessidade de proceder a auditorias democráticas e cidadãs para recuperar a soberania. Ou seja, a verificação da validade de um conjunto de dados financeiros, com recurso, se necessário, a técnicas de contabilidade forense, transformase num processo político de mobilização cívica que ameaça o motor do capitalismo contemporâneo, a dívida, e o combustível desse motor, a opacidade. Sem recurso a uma auditoria cidadã, o escopo das decisões democráticas e soberanas ficará limitado a um conjunto de escolhas definido pelo discurso neoliberal punitivo. Com os resultados da mobilização e da investigação inerentes a uma auditoria cidadã, os países atualmente sob protetorado do trio institucional austeritário - Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu - terão mais um instrumento para concertar ações, redefinir os equilíbrios geopolíticos da União Europeia e atuar no sentido de refundar uma Europa em erosão acelerada.


greenelent / FLICKR

zação com transversalidade social variável (se compararmos os vários casos existentes), também horizontalizam as relações de poder que, algumas vezes, atrofiam a capacidade dos movimentos sociais. Colocam num mesmo campo cidadãs e cidadãos com recursos cognitivos específicos e direcionados para o cumprimento de uma auditoria tradicional e cidadãs e cidadãos no cumprimento dos seus direitos e deveres enquanto membros de uma república e de uma democracia que pretendem de alta densidade e intensidade. Reconhecendo os contributos diferenciados e os conflitos que podem advir dessa divisão do trabalho, as auditorias cidadãs têm feito um trabalho meritório de recriação desse imaginário igualitário e solidário. Nada disto é incompatível com as trajetórias potenciais destas iniciativas, que podem tornar-se órgãos logisticamente apoiados por governos, como no Equador, ou podem manter-se enquanto organizações da sociedade civil, como no Brasil. 86

Um processo plural, debatido e dinâmico A mobilização alargada para um tema complexo de economia financeira e política, a identificação da dívida como fulcro da acumulação capitalista contemporânea e a necessidade de compreender a sua origem e evolução constituem apenas três dos passos fundamentais. Existem outros. Um deles centra-se no debate em torno da necessidade real de uma auditoria. Em Portugal, existem latu sensu três posições. Uma delas defende o repúdio imediato de toda a dívida contratualizada pelo Estado, recusando a necessidade de uma auditoria para efeitos políticos; neste caso, a auditoria assume um papel demonstrativo e revelador da iniquidade da acumulação capitalista por meio da extração ascendente de riqueza. Assumindo outro ponto de vista, tem sido defendida a estipulação, como passo precedente a qualquer auditoria, de uma moratória sobre o pagamento da dívida. A justificação é clara: só é possível verificar a validade dos dados disponibilizados e a impu-


tação do caráter ilegítimo ou odioso à dívida após a suspensão de todos os pagamentos. A terceira posição centra-se, acima de tudo, na auditoria enquanto processo e assume uma posição diferente perante o desafio da moratória. Neste caso, a auditoria constitui o passo essencial na construção de uma alternativa mobilizadora e democrática. No contexto atual de hegemonia conservadora, de acordo com este posicionamento, uma tomada de posição soberana e unilateral sobre o serviço da dívida, tal como requerido para a declaração de nãopagamento, revela-se praticamente impossível. Pressionar as instituições no sentido de resgatar a soberania inerente ao controlo sobre o modo de financiamento da atividade pública implicaria outra correlação de forças. Portan-

Qualquer uma das três perspetivas partilha de dois princípios fundamentais. Em primeiro lugar, o nível de endividamento é insustentável do ponto de vista da justiça social e utilizado como instrumento de chantagem sobre as cidadãs e cidadãos. Em segundo lugar, o sistema de endividamento institucionalizado, dominado pelos mesmos bancos de investimento em toda a Europa, deve ser totalmente reformulado ao longo de diretrizes democráticas e respeitadoras das Constituições e múltiplos pactos, geralmente do sistema das Nações Unidas, assinados pelos países cujos governos, nos últimos anos, têm intensificado o seu caráter dissociativo: um governo hobbesiano e autoritário para as classes trabalhadoras e um governo gentil e silencioso para as classes rentistas.

to, é preferível uma concentração absoluta na demonstração empírica, sustentada por argumentos técnicos e políticos, da existência de um sistema de endividamento institucionalizado e da classificação de uma percentagem ainda indeterminada do stock de dívida como ilegal, ilegítimo, imoral ou odioso. Na posse desses resultados, a auditoria reconfigurar-se-á num processo de mobilização pela quebra unilateral dos contratos e empréstimos classificados como impagáveis. Esta perspetiva mantém, ainda, a posição de que a dívida pública é um instrumento fundamental de financiamento e deve ser mantido ao abrigo da especulação em mercado aberto. Nesse sentido, não fará sentido repudiar a dívida enquanto tal, mas a sua perversão em instrumento de extração rentista.

As auditorias têm enfrentado dificuldades múltiplas. Apesar de várias disposições jurídicas que protegem o acesso à informação pela comunidade cidadã, o aparato institucional dificulta, frequentemente, o acesso a informação privilegiada que permitirá a reconstrução do processo de génese e evolução da dívida. Isto tem ocorrido em Portugal e noutros contextos burocráticos, especialmente de herança napoleónica, onde o domínio da informação ainda persiste numa lógica feudal e secretista, que as auditorias também querem combater. A existência de clusters de opacidade é uma das indicações mais relevantes de que o processo de endividamento pode estar ferido de ilegalidades e de ilegitimidade democrática. E a demonstração da existência de conflitos de interesse que permeiam, por exemplo, as Parce87

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A dívida pública é um instrumento fundamental de financiamento e deve ser mantido ao abrigo da especulação em mercado aberto. Nesse sentido, não fará sentido repudiar a dívida enquanto tal, mas a sua perversão em instrumento de extração rentista.


rias Público-Privadas, as transferências para fundações e as entidades reguladoras, três domínios relacionados com a evolução da dívida, é também uma das funções essenciais da auditoria: iluminar estruturas de poder opacas, perversas e classistas.

Um movimento internacional As múltiplas similitudes entre as várias iniciativas cidadãs já deram origem a uma rede, por ora europeia, denominada ICAN – International Citizens Audit Network, em que participam ativistas de todos os países onde já operam auditorias cidadãs. Os movimentos de auditoria estão em contacto com as várias redes globais que trabalham sobre a temática do endividamento, dado que este processo também está no cerne da dominação neocolonial e a sociedade civil, no Sul global, tem um capital cognitivo acumu-

lado que tem sido crescentemente partilhado. Também neste respeito, as auditorias cidadãs marcam uma nova forma de fazer ativismo: o Norte global recebe conhecimento do Sul global, acabando por elidir a fronteira Norte-Sul e criar novas redes de solidariedade. Porque o objetivo é comum: demonstrar o caráter perverso dos sistemas institucionalizados de endividamento e destroçar os argumentos reacionários que pretendem eternizar o regime austeritário a pretexto de uma moralidade bafienta. As auditorias demonstram que há alternativas e que os movimentos sociais europeus e globais estão prestes a adquirir massa crítica suficiente para ameaçar o domínio dos credores sobre os devedores. Com isso em vista, o trabalho de desconstrução da opacidade em torno da dívida e do regime de acumulação neoliberal continuará, sejam quais forem as dificuldades.

A as auditorias cidadãs marcam uma nova forma de fazer ativismo: o Norte global recebe conhecimento do Sul global, acabando por elidir a fronteira Norte-Sul e criar novas redes de solidariedade.

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PPP: uma via verde para o enriquecimento ilícito Segundo o último relatório da Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) de 2012, publicado em agosto do ano corrente, existiam à data 35 contratos de PPP em vários setores de atividade, representando um total de Encargos do Estado, até 2050, no valor global de 40 000 milhões de euros, a preços constantes de 2012, um valor equivalente a 21% do total de toda a dívida pública registada este ano. Esta “enorme” dívida, que já tinha sido denunciada nos últimos três anos (2009-2010-2011) pelo Bloco de Esquerda em diversas ocasiões, nomeadamente na Assembleia da República, configura a maior drenagem líquida de recursos públicos para o capital que se prolongará de forma contínua até

ao ano 2050, se entretanto não se puser cobro a este verdadeiro roubo planeado e organizado. Uma mudança radical na orientação das políticas de investimento público será a única forma de travar o empobrecimento de todos para benefício de alguns. Este artigo pretende esclarecer algumas questões que têm ficado enubladas na discussão das PPP e demonstrar porque é que não há, do ponto de vista da democracia, outra alternativa para as PPP senão acabar com elas.

PPP: uma história de 30 anos A história recente das Parcerias PúblicoPrivado (PPP) remonta ao final dos anos 1980, no Reino Unido, ainda sob a direção do gover89

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heitor de sousa


no Thatcher, eleita primeiraministra em 1979. Desde então, Thatcher desenvolveu uma política orientada para a privatização dos serviços públicos. Essa privatização fazia parte de uma estratégia que visava um alargamento da lei dos mercados às áreas de atividade preenchidas até então pelo Estado, seja sob a forma de empresas, seja sob a forma de prestação de serviços públicos. Na época, o Estado Social tinha-se desenvolvido fortemente na sequência de nacionalizações que muitos países (Reino Unido, França, Alemanha, etc.) se viram obrigados a fazer para acelerar a reconstrução e o crescimento económico do pós-Guerra. Tal processo veio a dar origem ao nascimento e desenvolvimento de muitas empresas públicas que, em muitos casos,

bloqueado, a estagflação tinha produzido uma nova recessão em 1981-19821, e, nesse contexto, o endividamento público tinha começado a crescer, em função do socorro de muitas empresas privadas em dificuldades. A abertura do Estado ao setor privado por parte do governo de Margaret Thatcher inaugura um novo modelo de gestão da “coisa pública”. Novos mercados eram “oferecidos” aos privados para desbloquear o processo de acumulação capitalista com uma grande vantagem, imperdível: tratava-se, regra geral, de “mercados protegidos”, leia-se monopólios naturais, ao abrigo da concorrência. Por isso é que a primeira pedra desse grande edifício que vieram a ser as PPP foi a privatização (primeiro parcial e depois total) da British Airways (BA) e

A abertura do Estado ao setor privado por parte do governo de Margaret Thatcher inaugura um novo modelo de gestão da “coisa pública”. Novos mercados eram “oferecidos” aos privados para desbloquear o processo de acumulação capitalista. se constituíram como autênticos monopólios estatais assegurando a provisão de inúmeros de bens e serviços públicos. Terminada a era do crescimento “dourado” do capitalismo do pós-Guerra, no início dos anos 1970, com o primeiro choque petrolífero de 1974-75, o sistema capitalista sofreu nessa altura uma forte contração e, em seguida, entrou num período prolongado de estagnação acompanhado de um forte surto inflacionista (que se designou de estagflação), até meados da década de 1980. O grande capital parecia

1 - Foi nessa altura que o FMI entrou em Portugal, pela segunda vez.

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da Britsh Airports Authority (BAA), em 1987, no valor de 180 milhões de euros, equivalendo a 40% do capital total destas duas empresas. Desde então, as PPP tornaram-se uma peça essencial da estratégia de acumulação capitalista no Reino Unido e, posteriormente, em toda a Europa. O “campeonato” particular entre os tories e os labours (conservadores e trabalhistas, em Inglaterra) para ver quem mais favorecia o desenvolvimento de PPP tinha começado e os anos seguintes resolveram a questão do vencedor. E o “vencedor” foi Tony Blair do Partido


crates, depois, (com um intervalo de três anos de Durão Barroso e Santana Lopes) conseguiram, só à sua conta, fechar 13 contratos de PPP rodoviárias, nove na saúde, duas na ferrovia e uma na segurança, não contabilizando os contratos de concessão no setor da energia e água que o GASEPC4 não considera, erradamente5, como PPP. Os resultados da governação PS em matéria de PPP falam por si: inundaram todos os setores onde antes se prestava um serviço público com contratos de PPP sob as mais diversas formas, qual deles o mais ruinoso para os cofres públicos. Há, porém, duas grandes diferenças entre o PS português e o PT inglês: - a primeira é do domínio do exagero absoluto: diferentemente do que se passou com Tony Blair no Reino Unido, em Portugal o PS foi capaz de, por via do endividamento criado pelas PPP, “provocar” um acréscimo de encargos públicos para um valor global equivalente a cerca de 25% do PIB6, números astronómicos quando comparados com o que o governo de Blair fez no Reino Unido; a este nível, Portugal tornou-se o país da Europa com mais PPP, tendo em conta o valor do PIB; - a segunda é que o PS não foi a tempo de

2 - Citado por Patrick Butler, The Guardian, 25/06/2001. 3 - Classificamos de “nova geração” porque há modalidades das atuais PPP que já existiam nos séculos XIX e XX. Por exemplo, os transportes em Lisboa estavam concessionados a uma empresa inglesa desde 1870, a Lisbon Electric Tramways Ltd. Só que, na época, o Estado entregava as concessões a empresas privadas que já preexistiam; presentemente, as concessões são feitas em setores de atividade que estavam nas mãos do Estado (ver caixa). 4 - GASEPC – Gabinete de Acompanhamento do Setor Empresarial do Estado, Parcerias e Concessões, 3º T 2010. 5 - Ver caixa. 6 - Preços constantes de 2010.

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Trabalhista (PT), o grande impulsionador do florescimento das PPP no Reino Unido, batendo claramente o seu antecessor John Major em matéria de quantidade de casos e de valores envolvidos. Em 1997, Tony Blair afirmava claramente: «Precisamos de acabar definitivamente com a tradição monolítica de ser o setor público a conduzir os serviços públicos. Precisamos de mobilizar pequenos batalhões e dar-lhes a liberdade para inovar e mudar. Quero ver gestores locais e profissionais a ser empreendedores.»2 Em Portugal, o processo foi muito semelhante, quer nos agentes políticos que o promoveram, quer no seu desenvolvimento. A primeira experiência de PPP “de nova geração”3 foi fechada pelo governo de Cavaco Silva para a construção da Ponte Vasco da Gama. A modalidade de PPP escolhida foi a BOT (Build Operation Transfer) e a atual concessão da exploração da ponte Vasco da Gama por 30 anos terminará a 24 de março de 1930. Tal como na Inglaterra de Thatcher, também aqui foram os sucessivos governos PS que se revelaram os maiores “vendedores” da ideia de que as PPP eram “a solução” para todos os problemas do investimento público. Guterres, primeiro, e Só-


avançar com as privatizações que o atual governo PSD/CDS está a concretizar; mas quase todas as privatizações que estão agora apontadas para os próximos tempos já o eram nos governos de Sócrates, especialmente a partir de 2009. Por aqui se percebe que a fama de “bom aluno” relativamente às “diretivas da Comissão Europeia” não é de agora, vem já de longe.

O negócio das PPP O valor do negócio das PPP pode ser avaliado pela simples comparação do gráfico seguinte7:

Duas constatações óbvias resultam do gráfico anterior: • A primeira é que, para valores totais de investimento de 18 000€, o Estado compromete-se com um total de encargos que é 2,2 vezes superior ao valor do investimento, constituindo-se como uma espécie de rendas perpétuas pagas aos consórcios privados, até cerca de 3040 anos de distância; • A segunda é que, analisando a repartição setorial dos encargos face ao respetivo investimento, a relação encargos/investimento nas

concessões rodoviárias é de 2,2 mas na saúde é 9,8 (!) e na segurança é de 3,8. Em Portugal, tal como já acontecera no Reino Unido nos anos 1990, as PPP no setor da saúde são, de longe, as mais “rentáveis” para o capital. E não se fala delas… Comparando, por exemplo, com o esquema de financiamento privado envolvido na aquisição de uma habitação, que se enquadra na categoria de créditos a muito longo prazo dos bancos em Portugal, encontram-se esquemas de pagamentos de empréstimos, a 20 anos, com um rendimento bruto para os bancos de cerca de 40% sobre o valor inicial do crédito, admitindo-se que as taxas de juro de referência se mantêm constantes. Nos exemplos de PPP referidos, a “valorização bruta” do capital inicial é de 5 a 10 vezes mais! No conjunto, para um investimento de 18 000 milhões de euros, o total de encargos estão estimados em 40 000 milhões de euros, ou seja, um valor 2,2 vezes superior ao investimento inicial. Mas este valor, incluído no último relatório da DGTF, não reflete todas as contas das PPP em curso. Falta ainda contabilizar as PPP no subsetor energético, no subsetor classificado de “ambiental” (águas, saneamento e resíduos) e ainda no subsetor portuário. Nestes casos, trata-se de concessões para a produção de energia a partir dos recursos hídricos, a produção e distribuição de energia e gás, as concessões para a distribuição e gestão de águas, saneamento e resíduos em baixa e ainda as concessões portuárias8 nos cinco principais portos de mar existentes (Douro e Leixões, Aveiro, Lisboa, Setúbal e Sines). Nestes casos, por falta de informação dispo-

7 - No gráfico seguinte existe um dado “estranho” que não pode deixar de ser realçado: trata-se do facto do investimento ferroviário ser aparentemente superior ao valor dos encargos públicos com as duas PPP em causa. Esta discrepância explica-se pelo facto do valor dos encargos com a construção da linha férrea entre Campolide e Setúbal ter sido integralmente assumida pelo Estado. O que está no gráfico são apenas os valores das transferências líquidas do Estado para os parceiros privados, a partir de 2010. 8 - No caso das concessões portuárias, refira-se que desapareceram dos relatórios da DGTF os valores das concessões e dos investimentos realizados ou a realizar no âmbito destes contratos de PPP, sob a forma de concessões do investimento e gestão de infraestruturas e equipamentos que, em regra, continua a ser pública.

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Este gráfico permite perceber a dimensão setorial do investimento nos principais setores de atividade económica que, há menos de uma década, eram integralmente públicos. O valor do investimento corresponde a um total de 34,4 mil milhões de euros (a preços atuais), ou seja, praticamente o dobro do valor de investimento que normalmente têm estado sob os holofotes da comunicação social (e que corresponde ao gráfico anterior – 18 000 milhões de euros). De notar que o investimento nas PPP rodoviárias representa 46% do total concessionado. Portanto, quando se proclama que “cortando” no investimento no subsetor rodoviário se irá “resolver” o problema do sobre-endividamento do Estado com as PPP, os dados recolhidos provam que isso não passa de mais uma

das muitas pantominices em que este Governo se especializou. É verdade que os encargos totais de todas as PPP não são completamente conhecidos. Até porque por detrás do ecrã das PPP rodoviárias, ferroviárias, de saúde e segurança estão dezenas de outras concessões cujo encargo completo ainda está por descobrir. Por exemplo, as “ameaças” que, regularmente, a chamada ERSE (Entidade Reguladora do Setor Elétrico) faz a respeito do “défice tarifário” na determinação dos preços de energia a pagar pelos consumidores no ano seguinte9 e que, segundo as últimas estimativas10, se cifra em 2900 milhões de euros mais não é do que a diferença da renda que o Estado tem de entregar ao quasi-monopólio de produção e distribuição de energia que é a EDP e o rendimento que esta retira da cobrança dos valores de venda da energia aos consumidores. Atendendo aos 7,2 milhões de prédios urbanos que existem no país, os anunciados 2900 milhões de euros acumulados nos seis anos desde o início da concessão (2006-2012) representariam, no entender da ERSE, uma espécie de “desconto tarifário” mensal médio de cerca de 5,6€ por consumidor (empresas+famílias). Mas, considerando que a concessão da distribuição de eletricidade foi aprovada, em 2006, por 35 anos, que o universo dos prédios urbanos existentes no país é de 7,2 milhões e ainda que cerca de 10% da fatura da eletricidade mensal poderá ser considerada “excessiva” , a estimativa da renda anual que deveria acrescer à conta atual de cada consumidor em Portugal poderá atingir um valor de cerca de 850 milhões de euros12. Este “encargo”, trans-

9 - Para 2013, mais uma vez, depois de três anos de congelamento de salários, mais um aumento na eletricidade, desta vez de 2,8%. Portanto, continuamos a pagar o tal “défice tarifário” que mais não é do que mais uma renda agiota que os sucessivos governos se comprometeram para “pagar” a privatização da EDP. 10 - Segundo o Expresso de 13/10/12, o “défice tarifário”, sem os alegados cortes nos custos do setor, promovidos pelo atual governo poderiam atingir 8000 milhões de euros em 2020. 11 - A DECO tem estimado que o valor da eletricidade que cada consumidor doméstico paga em “excesso” na sua fatura energética mensal é de cerca de 10% do valor total. 12 - A estimativa não é difícil de se fazer. Admitindo que cada consumidor (famílias e empresas) poderá suportar um encargo médio mensal em excesso de 5 €, junto com os tais 5,6 € de “défice tarifário”/mês, podemos admitir um valor total de 10 € de encargo por consumidor “dedicado” ao pagamento do custo da PPP na área da distribuição e consumo da energia. Nestes termos, o encargo anual com os 7,2 milhões de prédios urbanos rondará, a preços constantes, os 864 milhões de euros.

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nível, não podemos apurar o total de encargos públicos com as concessões em todos estes setores. Apenas se conseguiu apurar os valores previstos de investimento, tentando perceberse a dimensão do valor do investimento abrangido por estas concessões. O gráfico seguinte mostra a repartição por setores do valor do investimento previsto.


posto para o horizonte de concessão de 35 anos, equivale, a preços constantes, a 30 240 milhões de euros, ou seja, apenas 23,6% inferior ao valor dos encargos que, até 2050, se prevê para os encargos das PPP rodoviárias. Ora, de acordo com os mapas de investimento apurados, o setor energético representa 23% do total dos investimentos contabilizados. Por sua vez, o setor das águas, também já concessionado, representa 21,5% do investimento total. Desconhece-se qual o valor exato dos encargos totais que o equivalente a 21,5% do investimento total em PPP (=7395 milhões de euros) poderá implicar para o Estado. Se houvesse uma regra de proporcionalidade direta, poderíamos estar a falar de 28 000 milhões de euros, mas, como é óbvio, as características de cada setor determinam certas regras técnicas de realização de investimentos e de gestão que são específicas de cada um e, portanto, não comparáveis mutuamente. Seja como for, nesta questão das PPP, tal como já o governo de Sócrates e o ex-SEOP13 o faziam, o atual governo continua adepto da “arte” da mentira e da ilusão, para que o povo aceite “tomar a nuvem por Juno”, e acredite que, por 13 - Secretário de Estado das Obras Públicas (SEOP).

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exemplo, o PSD/CDS só aterraram neste país em 2011… Como interpretar então a propalada “redução” dos encargos públicos com as PPP que este governo, de tempos a tempos, vem dizer que conseguiu ou que vai conseguir? Ver-se-á a seguir o que significam na prática essas “reduções de encargos”.

A técnica dos ecrãs para esconder a “nuvem” Até final de setembro, houve dois anúncios de “vitórias” do governo na propalada necessidade de “redução de encargos nas PPP”: um primeiro, em maio, que equivaleu, segundo o Governo, a uma redução no valor dos encargos públicos com a energia no valor de 1800 milhões de euros; um segundo, em setembro, de cerca de 900 milhões de euros nas PPP rodoviárias, ao longo dos próximos 30 anos. Somando estes valores, estamos a falar de cerca de 2700 milhões de euros, ou seja, 6,8% do total dos encargos apurados atrás com todas as PPP. Esta é a verdadeira dimensão do “troféu” do ministro Álvaro: uma gota de água! Mesmo assim, quem for impressionável com


o número de 2700 milhões de euros pode até pensar que o governo está no bom caminho para acabar com o escândalo das PPP. Mas não está. É que essas renegociações não significaram, em nenhum caso, uma redução da verdadeira agiotagem dos acionistas privados com as PPP, que lhes é assegurada por contratos verdadeiramente leoninos. Na realidade, essa “poupança” limita-se, no caso das rodoviárias, a reduzir a dimensão dos contratos. Por exemplo, no caso da concessão Pinhal Interior/Ascendi, em vez de ser o consórcio a ficar com a responsabilidade das obras de manutenção das vias rodoviárias em causa, essa incumbência regressou à Estradas de Portugal, de onde nunca devia ter saído. E porquê? Pela simples razão que o objeto da empresa Estradas de Portugal, entre outros, deveria ser precisamente o de assegurar a manutenção da

pelos grandes “peritos” espalhados pelos bancos financiadores das operações e pelos gabinetes jurídicos que “aconselham” tudo e todos a preceito previram, há alguns anos, que isto de tráfego nas AE é sempre a subir até à eternidade, e que a economia real é coisa que nunca anda para trás, que não há crises ou recessões ou desvios de tráfego (especialmente quando se constrói uma AE ao lado de outra). E agora que os tráfegos nas AE concessionadas estão 2/3 abaixo do previsto, e que nas AE subconcessionadas (ex-SCUT) estão com o mesmo ou mais tráfego do que o esperado, vêm alguns órgãos de comunicação social tentar convencer-nos em “tomar a nuvem por Juno” e dizer que a culpa é da «recessão económica»15. Também é, mas não é só. É que a política de transportes que, desde Cavaco Silva, tem sido prosseguida sistemati-

rede rodoviária nacional. De resto, a subconcessão desses trabalhos no âmbito dos vários contratos de PPP já tinha sido um “empurrãozão” que Sócrates, António Mendonça e Paulo Campos tinham dado aos “desgraçados” dos bancos e empresários, que ainda por cima estavam a “assumir” a responsabilidade de construir e gerir autoestradas (AE), onde todo o risco repousa nas costas do Estado. Mesmo assim, uma das notícias mais recentes14 sobre cinco dos consórcios concessionários de AE com portagem dava conta que estes estavam prestes a entrar em falência. Tudo porque as previsões de tráfego que foram feitas

camente pelos sucessivos governos PS/PSD/ CDS, com base na orientação de realizar “custe o que custar” o Plano Rodoviário Nacional (PRN), remetendo todos os outros modos de transporte para o seu definhamento e morte, está profundamente errada, implica o aumento exponencial de todos os fatores de insustentabilidade na mobilidade (ambientais, dependência externa, aumento exponencial dos custos de transporte e da sinistralidade, redução da produtividade social, etc.) e conduz à multiplicação do desperdício, do endividamento público e da própria crise. Os project finance que serviram de base à “demonstração” da viabilidade das no-

14 - «Três concessionárias das AE lideradas ou participadas pela Brisa, duas geridas pela Ascendi (controlada pela Mota-Engil e pelo BES) e uma pela Somague entraram, ou estão prestes a entrar, em estado de falência técnica». Cf. Semanário Económico, 11/11/12. 15 - Cf. Semanário Económico, 11/09/12.

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Uma das notícias mais recentes sobre cinco dos consórcios concessionários de AE com portagem dava conta que estes estavam prestes a entrar em falência.


vas estradas, como está hoje claro, estavam pensados para um país virtual, com uma população e um rendimento três vezes superior ao que existe na realidade. Se a isto se juntar o “argumento” invocado pelo ex-SEOP Paulo Campos, de que Portugal era o 5º país da União Europeia com mais km de AE por km2 de superfície, percebe-se bem a dimensão da grande mentira “trágicocómica” que tem sido a política de transportes e de mobilidade neste país. E, para além desta “mentira de base”, juntam-se as outras mais recentes, que até parecem “brincadeiras” quando comparadas com as primeiras: a redução dos encargos com as PPP rodoviárias, que o governo e o seu “agente especial 000”16 estariam a conseguir. De acordo com as revisões das PPP rodoviárias anunciadas pelo governo, a “poupança” já teria alcançado o valor de 1100 milhões de euros, esperando-se que, em 2013, a redução de encargos brutos seja da ordem dos 250 milhões de euros. Os números até podem bater certo, mas será isto uma verdadeira poupança? Sabendo como é que essas “poupanças” foram alcançadas percebe-se a marosca da chapelada: o que o governo fez foi reduzir o alcance dos contratos e, em vez de se construir, por exemplo, 100 km de estrada nova, vão-se fazer apenas 50; em vez do consórcio assegurar a manutenção das vias adjacentes às novas AE, passou-se isso para a EP, e com isso reduziu-se o valor dos encargos do Estado com tal ou tal PPP rodoviária. Mas no coração das PPP, isso o governo não mexeu. E que “coração” é esse? É a rentabilidade, a chamada taxa interna de rentabilidade de cada projeto, a taxa de lucro,

ou dito de forma mais “moderna”, a remuneração dos acionistas por euro investido. Os “acionistas” são as empresas e os seus donos, os bancos e os seus acionistas, mais a corte de parasitas que gravitam à volta destes “negócios da China”. A remuneração destes contratos, por sua vez, está realmente blindada contra qualquer mudança interna ou externa. Qualquer mudança implica, nos termos dos contratos em vigor, aquilo que os acionistas tanto invocam: “a reposição do equilíbrio económico-financeiro” de cada concessão. Veja-se um excerto de uma das cláusulas da minuta do contrato de concessão utilizado pelo MOPTC17 nos contratos das PPP rodoviárias18: «88.5 A reposição do equilíbrio económicofianceiro da subconcessão (…) deverá ter lugar quando (…) se verifique: a) A redução da TIR Acionista em mais de 0,01 pontos percentuais face ao que se encontra previsto no Caso Base». Trocando por miúdos: basta qualquer acontecimento, externo ou interno, à subconcessão que implique uma alteração de 1% (!) no cenário traçado no Caso Base para justificar a tal “reposição do equilíbrio”, o mesmo é dizer uma indemnização financeira ao concessionário. Portanto, a famosa proposta que o PS se lembrou e que consistia em lançar uma sobretaxa sobre as rendas pagas às concessionárias teria como consequência obrigatória, à luz dos contratos em vigor, a “reposição do equilíbrio financeiro”! Seria mais ou menos como a história da introdução de portagens nas ex-SCUT, decidida ainda pelo governo Sócrates: a decisão de introduzir portagens nessas AE implicou uma

16 - Este papel de “agente especial” tem sido assumido por vários personagens. No passado “socratiano” foi-o por Paulo Campos; presentemente é o António (na terminologia do Ministro da Tutela) que carrega a pasta. 17 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (MOPTC). 18 - A minuta que aqui é referida diz respeito a um Caderno de Encargos-tipo das Estradas de Portugal que foi definido para as subconcessionárias das AE em regime de SCUT.

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nessas AE, quando ainda não havia portagens, nunca atingiu, em todas elas, esses valores diários e, na sua maioria, nem metade desse valor, está-se mesmo a ver quem é que tem de pagar “o risco” do valor do intervalo anterior não ser atingido: o Estado. Com a introdução de portagens a coisa agravou-se para o dobro. Esta é a famosa herança das PPP que o anterior governo PS deixou às gerações futuras e que este governo PSD/CDS, apesar das ilusões que insiste em propagandear, não estará disposto a romper. Até porque, como é público e notório, o próprio FMI já veio avisar: “nada de mexer nos contratos que foram assinados”. E o António, nos seis meses que esteve à frente do FMI na Europa, até deve ter tido tempo de aprender o que a casa gasta.

O enriquecimento ilícito pelas PPP O esquema que acabou de ser ilustrado, e que faz parte de todos os contratos que foram estabelecidos segundo o mesmo normativo aplicado às PPP, tem sempre por base o mesmo fio condutor – assegurar uma renda anual “bastante generosa” ao capital à custa de um verdadeiro processo de agiotagem sobre os recursos públicos para os transferir para bolsos privados (empresas e bancos). Em diversos contratos de PPP (rodoviárias e ferroviárias) que foi possível conhecer, a TIR Acionista garantida varia entre os 11% e

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“compensação financeira” pelas previsíveis perdas de tráfego pelas concessionárias; por outro lado, como as perdas de tráfego foram muito superiores às que estavam previstas (na ordem de menos 50 a 60%), isso acarretou por sua vez um sobre-encargo do Estado, o qual, tudo somado, acabou por ser superior ao que existia anteriormente quando ainda eram SCUT. Aliás, a quebra “enorme” que houve no TMDA (Tráfego Médio Diário Anual) de toda a RAE (Rede de Autoestradas) já levou o porta-voz dos concessionários (a Brisa) a dizer que vai reclamar um novo “reequilíbrio financeiro” em algumas das suas concessões. Depois, a segunda dimensão da blindagem tem a ver com as condições definidas no Caso Base. Nesta minuta-tipo que temos vindo a citar, um dos pagamentos definidos às concessionárias refere-se aos pagamentos por “serviço prestado”. Esse pagamento é assim uma espécie de anexo financeiro à remuneração normal de um investimento apenas para garantir taxas de rentabilidade “atrativa” para os “acionistas”. Esse pagamento depende da previsão do tráfego que deverá passar na AE. E o valor mínimo a que deve corresponder essa previsão de tráfego (que entra para os cálculos na construção do Cenário Base) não deve andar longe do volume necessário para o equilíbrio da exploração de uma AE em condições normais, ou seja, 12 000 a 15 000 TMDA19. Como o fluxo de tráfego

O esquema que acabou de ser ilustrado, e que faz parte de todos os contratos que foram estabelecidos segundo o mesmo normativo aplicado às PPP, tem sempre por base o mesmo fio condutor – assegurar uma renda anual “bastante generosa” ao capital à custa de um verdadeiro processo de agiotagem sobre os recursos públicos para os transferir para bolsos privados (empresas e bancos).

19 - TMDA – Tráfego Médio Diário Anual. Trata-se de uma medida muito comum em estudos de transportes, que representa uma média ponderada do tráfego anual numa determinada estrada, calculada para um dia-padrão.

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os 14%, segundo o que já foi apurado por auditorias do Tribunal de Contas (TC)20. Ora, um rendimento anual desta ordem, ainda por cima garantido por uma blindagem cuidadosa dos contratos, que não deixa margem a uma renegociação substantiva, é, nas condições que o país atravessou em 2009-2010-2011, e que se prevê continue a atravessar nos próximos anos, um rendimento verdadeiramente pornográfico e constitui uma autêntica via verde para o enriquecimento ilícito. Acresce que, como também o TC já assinalou em vários relatórios, em nenhum contrato de PPP foi aplicada a metodologia do “comparador público”, o que deveria ter implicado a ilegalidade da grande maioria dos contratos. Esta questão, em diversos países com experiências de PPP, sempre foi encarada com mais seriedade que em Portugal. Em Inglaterra, o princípio do comparador público nunca deixou de ser respeitado. Foi essa circunstância que levou a que fosse demonstrado21 que as PPP no setor da saúde eram ruinosas para o interesse público, pois o custo para o Estado para assegurar o value for money dos projetos, na construção de novos hospitais ou escolas, era bastante superior à alternativa de contratação pública tradicional por concurso de empreitadas. O mesmo se concluiu em estudos realizados na Austrália e na Nova Zelândia, tendo o Tesouro da Nova Zelândia concluido, em 2009, que «há uma fraca evidência empírica relativamente aos custos e benefícios de um esquema de PPP» e que as alegadas «vantagens das PPP deverão ser compaginadas com a complexidade e a rigidez dos contratos que implica». Este conjunto de dimensões de análise sobre as PPP e os custos incorridos por parte dos Estados em dezenas de esquemas de PPP que foram implementados nos mais diversos países

e setores parece colocar na primeira página da análise a questão da solução para o problema do endividamento «enorme»22 criado pelo uso e abuso das PPP: e não se devia revogá-las? Com o impacto do surgimento da crise económica e financeira de 2008 na União Europeia, o resultado imediato foi o encerramento abruto de 40% das PPP em vigor. Por outro lado, o esquema associado às PPP que garante rendas de tipo monopolista, quase perpétuas, ao setor privado, empresarial e financeiro parece ser de tal forma ilegítimo que o jornal Expresso noticiava recentemente que o próprio CDS estaria a colocar a hipótese de “nacionalização” das PPP rodoviárias23. Certamente que essa expressão não deve ter passado de um simples desabafo individual, até porque já se sabe que o CDS votará ao lado do PSD o Orçamento do Estado para 2013. Mas, considerando as diversas dimensões da natureza das PPP que se procurou escalpelizar ao longo deste artigo, somos tentados a escrever que, pelos vistos, alguém anda a “falar direito” num partido com militantes “entortados”. De facto, a defesa do interesse público e a sua total incompatibilidade com o esquema em vigor nas PPP, de transferência ilegítima de recursos do setor público para o privado, acrescido da convicção de que o esquema de rentabilização das PPP, tal como se demonstrou, é irreformável e incompatível com um corte na rentabilidade, por exemplo, da ordem dos 5060%, para que a implementação de um outro esquema financeiro fosse mais razoável, parece ser de concluir que o único caminho para a acabar com a via verde para o enriquecimento ilícito do setor privado à custa do cidadãocontribuinte aponta para a revogação desses esquemas ou, na expressão de outrem, para a sua nacionalização.

20 - Relatório de Auditoria nº 15/2012, Auditoria ao Modelo de Gestão, Financiamento e Regulação do Setor Rodoviário. 21 - “PFI more expensives than public funding”. In The Guardian, 11/10/02. 22 - Expressão popularizada pelo Ministro das Finanças Vítor Gaspar. 23 - Cf. Expresso, 22/09/12.

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A difusão das PPP, seguida no exemplo inglês, e mais tarde retomada pela União Europeia, «assentava em três tipos de categorias de PPP: a) a posse total ou parcial de empresas públicas; b) a provisão de serviços públicos através de concessões; c) a privatização de serviços públicos». A Comissão Europeia, no seu Guia para o Sucesso das PPP, retoma o exemplo inglês e alarga o seu âmbito. São quatro as categorias segundo as quais se podem estruturar as PPP: a concessão, a BOT, a DBFO e a BOO. O regime de concessão pode assumir várias cambiantes mas, no essencial, trata-se de entregar ao setor privado a responsabilidade de assegurar a gestão e o provimento de um determinado serviço ou bem público que, anteriormente, já existia e se encontrava sob a responsabilidade do Estado. A este tipo de contratação está normalmente associado o recebimento, pelo concessionário, de um conjunto de receitas “previstas” para assegurar a “rentabilidade” da operação e, em contrapartida, o pagamento de uma renda pelo concessionário ao concedente em determinadas condições. O “problema” é que raramente se observa a segunda parte do contrato e, amiúde, o concedente (ou seja, o Estado) tem de indemnizar o concessionário pelo “desvio” nas receitas previstas, a qual se encontra normalmente garantida. Neste regime a propriedade é mantida no setor público. A BOT é uma “solução” baseada na contratação das atividades de construção (Build), operação (Operation) e transferência (Transfer). Trata-se de construir um projeto que, em princípio, devia ser de responsabilidade pública (portanto, em nome do Estado), assegurando parcialmente o seu financiamento, depois garantir a sua exploração por um período contratual mais ou menos longo sob a forma de uma concessão (20-30 anos) e, no final, transferir para o Estado a gestão do projeto. O grande exemplo a nível internacional deste tipo de PPP é a Ponte Vasco da Gama (1998). Em regra, o contrato é feito apenas sobre um projeto para um único concessionário, verticalizado, mesmo que formalmente seja constituído por várias empresas pertencentes ao mesmo grupo empresarial. A DBFO (Design, Build, Finance, Operate) é uma “alternativa” que se distingue da anterior pelo facto de o parceiro que garante o financiamento do projeto ser assegurado pelos privados (embora garantido pelo Estado), constituindo-se num Agrupamento Complementar de Empresas (ACE), onde cabem empresas de desenho de projeto, de construção e obras públicas, de financiamento e de operação, não pertencendo necessariamente ao mesmo grupo empresarial. São deste tipo a esmagadora maioria dos contratos de concessões e subconcessões rodoviárias existentes em Portugal. Por último, a BOO é uma designação muito british para dizer simplesmente privatizações. Ao contrário das formas de PPP anteriores, em que formalmente a propriedade dos bens ou serviços fornecidos permanece nas mãos do setor público (central, regional ou local), o processo de BOO – Build-Own-Operate (Construção, Posse e Operação) - implica transferência de propriedade e incide sobre a privatização das empresas públicas, total ou parcial. Nestes casos, o Estado assume o papel de “regulador”, o que, na prática, funciona como um escudo protetor dos interesses privados que, em geral, ficam “assegurados” nos processos de privatização. Presentemente, todos os países que “vivem” sob sequestro do FMI (como Portugal, Grécia e Irlanda) enfrentam processos generalizados de privatização.


A crise e o pensamento crítico no campo cultural 1 rui matoso Será a evidência de um período de crise, crucial decisivo na vida da civilização ocidental, o fim de uma era, a eliminação progressiva de algumas das características básicas do capitalismo, especialmente a sua variante liberal pós-moderna? Se este for o caso, então a questão não é apenas como a cultura vai sobreviver ao período de transição, mas saber se a cultura é um ator nessas transformações históricas. Péter Inkei, The Budapest Observatory A crise que estamos atravessando é fundamentalmente uma crise gratuita: não é necessário que soframos tanto nem destruir a vida de tanta gente.2 Paul Krugman 1 - Publicado inicialmente em http://programacaoegestaocultural.wordpress.com/ 2 - http://www.publico.es/culturas/435387/krugman-la-salida-de-la-crisis-esta-bloqueada-por-la-falta-de-lucidez-y-de-voluntad-politica

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Na sequência da leitura do paper3 redigido por Lluís Bonet e Fabio Donato, sobre o impacto da crise financeira nos modelos de governança e gestão do setor cultural, publicado no Journal of Cultural Management and Policy nº1 (ENCATC), decidi escrever este artigo, tendo em consideração o apelo dos autores à promoção de um debate crítico.

1 - O dois em um: crise estrutural e relevante oportunidade?! Uma das principais discordâncias que mantenho com os autores do texto diz respeito à assunção da “crise” como sendo uma «crise estrutural», noção que, lamentavelmente, os autores não explicitam, quando afirmam (p. 6): «Esta não é uma crise temporária, mas sim uma crise económica estrutural que provavelmente vai afetar não apenas o sistema económico atual, mas também os sistemas políticos e sociais ». Por um lado, a postulação da “crise”5 como

bem conhecidos pelas trágicas consequências. Poderíamos eventualmente aceitar essa designação caso estivesse em análise a “crise civilizacional”, onde caberiam as dimensões ambientais, humanitárias, governativas, distribuição da riqueza, etc. Mas isso é uma tarefa que requer um outro fulgor hermenêutico. Para explicitar melhor o que se entenderia por «crise estrutural» haveria que distinguir as abordagens estruturalistas e pós-estruturalistas, contudo, e porque não temos espaço nem tempo para tal, talvez seja possível, através do campo da sociologia, atalhar o caminho. De acordo com Giddens5, a «estrutura» não tem uma existência independente dos sistemas sociais, preferindo o sociólogo, em substituição, usar o conceito «propriedades estruturantes», as quais são compostas por regras e recursos, implicados essencialmente na reprodução dos sistemas sociais. Deste modo, para afirmar que se vive uma “crise estrutural” seria necessário aceitar uma disrupção/interrupção na função

sendo estrutural integra o conjunto de opiniões e discursos que visam de algum modo a naturalização da “crise”, tida como um efeito “natural” e transcendente para o qual não existem políticas e medidas discutíveis e alternativas, mas apenas o “pensamento único” da visão neoliberal reinante, baseada num ciclo de austeridade e depressão económica, e cujos resultados são

de reprodução social, o que de facto não me parece de todo evidente, antes pelo contrário, parece acentuar-se a reprodução social das desigualdades (acumulação de capital vs. aumento do desemprego e perda de poder de compra) e por conseguinte a reprodução (reforço) dos mecanismos de dominação, que na esfera cultural age por via das assimetrias no acesso e

3 - http://programacaoegestaocultural.wordpress.com/2012/05/25/o-impacto-da-crise-financeira-no-setor-cultural-europeu/ 4 - Uso aspas na palavra “crise” porque não defendo a ideia de “crise estrutural”, prefiro designar como um desvio sistemático e organizado do valor do trabalho para o capital financeiro, em grande medida deslocalizado para off-shores, apoiando-me nas leituras críticas que leem a situação social e económica atual como resultado da intencionalidade de políticas e medidas que desde os anos 1980 são sistematicamente aplicadas e determinadas em diversos países, vulgarmente designadas como neoliberalismo. 5 - GIDDENS, Anthony (2000). Dualidade da Estrutura. Oeiras: Celta Editora.

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Para explicitar melhor o que se entenderia por «crise estrutural» haveria que distinguir as abordagens estruturalistas e pós-estruturalistas, contudo, e porque não temos espaço nem tempo para tal, talvez seja possível, através do campo da sociologia, atalhar o caminho.


acumulação de capital simbólico/capital cultural – concretamente, através da eliminação dos subsídios públicos às artes e pela subjugação da produção cultural ao «fanatismo do livre mercado» (Soros), eliminando assim a criação artística de características experimentais e de vanguarda, sem a qual não há inovação cultural e artística ou o pensamento crítico requerido para o debate pelos autores. Uma outra hipótese que Bonet e Donato poderiam ter percorrido seria dizer simplesmente que se trata de mais uma das crises cíclicas do funcionamento do capitalismo financeiro, que ao longo da história alterna em períodos de expansão e retração. Mas talvez esta opção não fosse tão politicamente correta e alinhada com o ideário vigente. Ainda assim, os autores reconhecem a origem financeira da “crise” (2008) e descrevem alguns dos episódios políticos gerados como efeitos de uma causa, afinal bem identificada (p. 5): bolha imobiliária (wrong mortgage strategy), subprimes, ativos tóxicos, contaminação do sistema bancário, injeção de capitais públicos no sistema bancário, aumento do défice e da dívida pública, emissões de dívida com taxas de juro excessivas (especulação), recurso ao fundos de resgate (FMI/UE), austeridade, cortes nos apoios sociais, cortes nos apoios à cultura, desemprego, depressão económica. Efeitos cuja retroatividade tendem a reproduzir-se em círculo vicioso, criando assim um sistema que acaba sempre por ter de ser alimentado exteriormente com empréstimos, taxas de juro, portanto, mais dívida e mais défice... Uma terceira via de análise é entender que a atual “crise” insere-se perfeitamente no padrão das crises ligadas às bolhas especulativas,

com contornos mais graves e complexos, cuja anterior foi bastante divulgada e analisada, tendo ficado conhecida como “bolha da Internet” (dotcom bubble), cujo estoiro se deu em 2001, ano aliás trágico para os Estados Unidos (Twin Towers). Daqui se depreenderá, com suficiente clareza, que a origem da “crise” financeira e das repercussões sociais e económicas se deveu fundamentalmente à continuada desregulação do sistema financeiro, permitida (conscientemente) por governos, bancos centrais e demais entidades regulatórias ao longo das últimas décadas. Portanto, antes de ser “estrutural”, a “crise” é resultado de formas concretas de governo e de ausências de medidas de governança premeditadas, e não de qualquer influência de entidades alienígenas. Com Nietzsche, podemos afinal dizer que esta “crise” é humana, demasiado humana. George Soros atribui estas “crises” aos «fanáticos do livre mercado que acreditam que os mercados tendem a um equilíbrio natural e que os interesses de uma sociedade serão alcançados se cada indivíduo puder buscar livremente seus próprios interesses. Essa é uma conceção obviamente errónea porque foi precisamente a intervenção nos mercados (liquidez introduzida pelos governos), e não a ação livre dos mercados, que evitou que os sistemas financeiros entrassem em colapso. Não obstante, o fundamentalismo do livre mercado emergiu como a ideologia económica dominante na década de 1980, quando os mercados financeiros começaram a ser globalizados, e os Estados Unidos passaram a ter um défice em contacorrente»6.É preciso não esquecer, e até salientar, que foi a intervenção dos governos (com o

6 - SOROS, George. “The worst market crisis in 60 years”. In Financial Times, 23 de janeiro de 2008.

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cial e decisivo na vida da civilização ocidental, o fim de uma era, a eliminação progressiva de algumas das características básicas do capitalismo, especialmente a sua variante liberal pósmoderna? Se este for o caso, então a questão não é apenas como a cultura vai sobreviver ao período de transição, mas saber se a cultura é um ator nessas transformações históricas.» Aquela que parece ser a atitude e o posicionamento de Bonet e Donato é a de aceitação acrítica e automática da génese da “crise”, reconhecendo assim que os processos políticos entretanto adotados, e que iriam presumivelmente resolver a situação, são inquestionáveis e que nada se pode alterar ou repensar ao nível do sistema político. Entretanto, desde 2008, já passaram quatro anos e todos vimos o que se passou na União Europeia: suspensão da democracia e pressão externa em momentos chave (Grécia), imposição de um diretório não previsto nos tratados europeus - refiram-se as cimeiras Merkel-Sarkozy, agravamento da recessão económica, aumento do défice, aumento da dívida pública, aumento do desemprego, perda acentuada do poder de compra, cortes nos apoios sociais, reformas estruturais em setores-chave nem sempre claras, privatizações apressadas, etc. Isto por um lado, por ou-

7 - Texto disponível em http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/cwe/Effects_Inkei_EN.pdf

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paulete matos

dinheiro dos contribuintes), através de nacionalizações ou injeções de capital, que salvou a banca do seu próprio “fanatismo”, gerando assim enormes défices e dívidas que agora os mesmos contribuintes voltam a ter de pagar, através das medidas de austeridade em curso. Todavia, para além dos nomes e adjetivos que se dê à “crise” (esta é uma delas), importa saber qual a atitude e as respostas face aos acontecimentos recentes, proceder a uma análise crítica e retirar as devidas conclusões, de modo a perceber quais as perspetivas existentes e quais são aquelas que melhor protegem as sociedades e defendem o bem público (res-publica), num horizonte democrático e sustentável. Os agentes culturais não são meros recetores passivos do ambiente simbólico-ideológicopolítico-social-cultural em que estão imersos, não são simples peixes num aquário de água cultural, a sua função é precisamente operar criativa e criticamente nesse ambiente, e notese que a etimologia das palavras é a mesma, por isso é que a criatividade deve ser cogerada com a dimensão crítica do pensamento, sem a qual pode ser apenas uma ilusão egocêntrica. Péter Inkei7, investigador do The Budapest Observatory, descreve assim a sua inquietação: «Será a evidência de um período de crise, cru-


tro o conhecimento público de diversos crimes económicos e corrupção que lesam os cofres do Estado (em Portugal8) e, por conseguinte, delapidam a aplicação do dinheiro dos contribuintes de forma catastrófica9. Sob este pano de fundo de corrupção, de gestão pública danosa, de influências poderosas do poder financeiro sobre o poder político, Bonet e Donato – tal como muitas outras vozes públicas com o mesmo posicionamento políticoideológico – veem nesta “crise” uma relevante oportunidade (p. 6): «Esta situação é percebida como uma ameaça para o desenvolvimento da Europa. Mas pelo contrário, nós defendemos que deve ser interpretada como uma relevante oportunidade, já que apenas em períodos de crise geral estrutural as mudanças são possíveis. »

no setor cultural mantêm o mesmo discurso fatalista afirmando ser previsível a continuidade da redução das contribuições públicas ao setor cultural (p. 7): «Todavia, é previsível que o grau de contribuições públicas possam diminuir significativamente nos próximos anos, devido ao aprofundamento da crise e seu impacto sobre os orçamentos públicos». Sem explicitar e desenvolver qual o racional por detrás desta posição, e apenas com uso de uma espécie de intuição visionária, é justo dizer que tanto aquela opinião com a contrária são válidas (o investimento público em cultura voltará a ter uma expressão minimamente digna nos orçamentos do Estado). Sem posicionamento crítico acerca desses mesmos cortes nos apoios públicos à cultura, pode dizer-se que Bonet e

30% dos espanhóis questionados acreditam que o financiamento às artes deve ser exclusiva ou principalmente público. Um dos exemplos políticos desta «relevante oportunidade», dizem Bonet e Donato (p.7), é a alteração das Constituições no sentido da criação de regras mandatórias (Pact for budget discipline10) ao nível fiscal europeu, com a introdução e obrigatoriedade constitucional de limites do défice orçamental em cada país. Eis um péssimo exemplo oriundo de uma das medidas avulsas política e legalmente dúbias a que a dupla Merkel-Sarkozy deu origem. Este é, a nosso ver, um mau exemplo e um débil entendimento acerca do famoso mantra das oportunidades. 2 – O impacto da “crise” no setor cultural Quando os autores se referem ao impacto

Donato subscrevem a retórica da “subsidiodependência” tão vulgarizada entre os atuais governantes europeus? Afirmam igualmente que apenas uma minoria da população acredita no valor estratégico da cultura como fator de desenvolvimento social e que parte da opinião pública questiona o valor do financiamento público à cultura (p.7), mas, uma vez mais, ficamos sem saber qual será a fonte estatística para tal interpretação. Do conhecimento que dispomos, este género de inquéritos é bastante raro na Europa, no entanto, um estudo de Arthur C. Brooks, Public Opinion and the Role of Government Arts Funding in Spain11, mostra que 30% dos espanhóis questionados acreditam que o financiamento

8 - Sobre a Dívida em Portugal, consultar http://auditoriacidada.info/ 9 - Neste sentido, o documentário Catastroika é absolutamente esclarecedor. Disponível em http://indignadoslisboa.net/documentarios/catastroika/ 10 - Cf. http://www.reuters.com/article/2012/03/02/us-eu-fiscal-idUSTRE8210GP20120302 11 - In Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice 5: 29–38, 2003.

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os orçamentos para outros setores do Estado, veja-se, por exemplo, o histórico de Portugal entre 1998 e 2011 para percebermos que estamos a falar de uma média de 0,5%:

Orçamento da União Europeia para a Cultura, em % e milhões Euros, 1998-2011

(Fonte: Compendium, OAC)15

O orçamento da União Europeia para a cultura, afirma Philippe Kern (KEA), representa menos de 0,1% do seu orçamento global16. Ora, quando se perde tempo a discutir se estas “migalhas” devem ser mantidas ou diminuídas enquanto financiamento público à cultura, é sinal que chegámos a um grau zero da política cultural. Porque, de facto, existem inúmeras questões bem mais importantes para discutir e medidas para implementar, designadamente os modelos de financiamento público europeu,

12 - Handbook of the Economics of Art and Culture, Volume 1 . Edited by Victor A. Ginsburgh and David Throsby. 2006 Elsevier B.V. 13 - BILLE, T.H., HJORTH-ADERSEN, Chr., GREGERSEN, M. (2003). “A tale of tables. On cultural public expenditures”. 14 - Para consultar comparações com orçamentos da U.E., cf. FINANCING THE ARTS AND CULTURE IN THE EUROPEAN UNION (2006) . http://www.culturalpolicies.net/web/files/134/en/Financing_the_Arts_and_Culture_in_the_EU.pdf 15 - Cf. in http://www.oac.pt/pdfs/CompendiumPT2011.pdf). 16 - Cf. in http://www.keablog.com/2010/10/final-cuts-for-the-arts-and-culture-in-the-eu-budget.html

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às artes deve ser exclusiva ou principalmente público. Por outro lado, Frederick Van Der Ploeg (European University Institute), no seu ensaio intitulado The Making of Cultural Policy: A European Perspective12, e a partir de um estudo realizado por Bille13, refere que «o público dinamarquês está disposto a pagar pelo menos tanto como o Teatro Real de Copenhaga recebe em subsídios públicos, embora os visitantes correspondam apenas a 7% da população, os mais ricos e os mais instruídos. Isto sugere que muitas pessoas estão felizes em apoiar as artes, mesmo que não usufruam diretamente». (sublinhado nosso). É óbvio que a “felicidade” da população dinamarquesa não nos deve deixar tranquilos porque uma das principais contrapartidas do financiamento público deve ser a preocupação com o aumento dos públicos, dos consumos e da participação cultural, com especial preocupação para o alargamento da sua base social, isto é, para além da elite que figura insistente e quase exclusivamente nas estatísticas. Ainda acerca do reconhecimento da opinião pública sobre o financiamento público às artes e à cultura, parece-nos ser uma questão equiparável ao que acontece nos setores da saúde e educação, ou seja, ainda que algumas pessoas não frequentem hospitais ou escolas públicos não é por isso que discordam do seu financiamento público, pois reconhecem que esse financiamento e a existência de serviços públicos na cultura, na saúde ou na educação geram externalidades económicas e sociais positivas que os serviços privados tendem a não gerar. Como é facilmente verificável pelo recurso à informação existente, os orçamentos dos governos centrais (na Europa14) para a cultura representam “peanuts”, se comparados com


nacional, regional ou local, as políticas de democracia e descentralização cultural, o efetivo funcionamento e regulamento das redes culturais ou a exibição de cinema digital europeu, por exemplo. As atuais políticas de austeridade seguidas em toda a Europa impuseram graves prejuízos sociais e económicos a países como Portugal, Espanha e Grécia e, como é sabido, pouco ou nada resolveram dos ditos “problemas estruturais”, antes pelo contrário, a dívida pública e o défice orçamental do Estado não pararam de aumentar. Inúmeros críticos destas “políticas austeritárias” têm feito alertas públicos esclarecedores, o mais notório tem sido o Nobel da Economia Paul Krugman, que recentemente

ter um tremendo impacto negativo em todo o setor cultural, e os seus efeitos pérfidos junto das populações sentir-se-ão em todo o país, representa um enorme retrocesso na qualidade de vida das cidades e dos cidadãos, bem como a (de)negação de direitos consagrados na Constituição. Em suma, escrever sobre o “impacto da crise financeira no setor cultural” é idêntico a escrever uma certidão de óbito coletiva, uma espécie de genocídio espiritual e um tema demasiado lúgubre e revoltante ao mesmo tempo. Ainda assim, para quem esteja interessado em conhecer aprofundadamente pelo menos sete argumentos convincentes a favor do financiamento público à cultura, bem como ou-

Escrever sobre o “impacto da crise financeira no setor cultural” é idêntico a escrever uma certidão de óbito coletiva, uma espécie de genocídio espiritual e um tema demasiado lúgubre e revoltante ao mesmo tempo. afirmou que «A saída da crise está bloqueada pela falta de clareza e vontade política. (...) A crise que estamos enfrentando é basicamente desnecessária: não há necessidade de sofrer tanto e destruir as vidas de muitas pessoas»17. No seu mais recente livro End This Depression Now!18, Krugman desmonta as falácias, mitos e dogmas neoliberais, salientando que essas manipulações existem para evitar o surgimento de alternativas possíveis e soluções mais justas e democráticas. A certeza, porém, é que a redução brusca que atualmente se tem verificado - e que em Portugal atingiu os 100%, ou seja, uma redução total nos apoios públicos às artes vai

tros tantos argumentos falaciosos, deverá consultar o já citado texto de Frederick van der Ploeg19. 3 – Perspetivas e desafios Numa terceira parte do texto (p. 8), os autores Lluís Bonet e Fabio Donato dizem, com um certo tom paternalista, que a nossa sociedade ainda não está completamente consciente das implicações da crise económica no seu futuro. Isto levar-nos-ia a pensar que o povo, que elegeu os governantes que por sua vez aplicaram as medidas de austeridade em voga, é mentalmente diminuído e não deu por lhe terem sido

17 - Cf. in http://www.publico.es/culturas/435387/krugman-la-salida-de-la-crisis-esta-bloqueada-por-la-falta-de-lucidez-y-de-voluntad-politica 18 - W. W. Norton & Company. 1st edition (April 30, 2012). 19 - Disponível aqui: http://www.cesifo-group.de/portal/pls/portal/docs/1/1188586.PDF

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é muito esclarecedor: «O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo»22. E, note-se, isto não são meros conceitos teóricos que fica sempre bem referir, são situações concretas e conhecidas ao longo da história, designadamente do séc. XX, veja-se a este propósito a conversa Free Exchange entre o sociológo Pierre Bourdieu e o artista Hans Haacke23. Portanto, se o campo cultural for atravessado pelas tais enunciações que fazem ver e fazem crer que a «crise é estrutural» ou que «a crise é uma oportunidade relevante» ou ainda que «a sociedade não está consciente», é porque estamos em presença de uma retórica que pretende impor-se como violência simbólica, em sintonia com as formas de governação atualmente dominantes, escondendo outras possibilidades e discursos críticos, como, por exemplo, o do filósofo Slavoj Žižek24 acerca da qualidade da democracia versus força dos mercados, na Grécia. Não se trata aqui de defender um ponto de vista crítico ou político-ideológico em particular, seja o de Slavoj Žižek ou de outro qualquer vulto intelectual, mas somente defender que no campo cultural não se pode agir sem analisar as ações e os discursos que visam a construção da realidade social e o estabelecimento de uma ordem gnoseológica adequada. Dito de outra maneira, a Europa precisa de uma cultura que defenda os direitos humanos e a democracia, e este é um dos princípios defendidos pelo Culture Watch Europe 2011 Think tank - Cultural Governance, do Conselho da Europa25. Avançando nos seus enunciados, os autores apontam agora o dedo aos agentes culturais,

20 - CRANE, Diane (1992). The Production of Culture. Londres: Sage Publications. 21 - Como qualquer outro campo, o campo artístico ou, mais genericamente, “campo da produção cultural” (Bourdieu, 1993) é antes do mais um campo de forças, isto é, uma rede de determinações objetivas que pesam sobre todos os que agem no seu interior. 22 - Pierre Bourdieu (1989). O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, p. 14. 23 - Disponível em http://pt.scribd.com/doc/45211491/Pierre-Bourdieu-Hans-Haacke 24 - Cf. http://www.outraspalavras.net/2012/05/29/democracia-o-novo-fantasma-dos-mercados/ 25 - Culture Watch Europe, Bled, Eslovénia, 12 de novembro de 2011. http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/cwe/thinktank_EN.asp

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cortados salários, diminuído os serviços públicos na saúde, educação, transportes públicos e cultura, aumentado impostos e taxas, etc. Nada mais falso! A “nossa sociedade” está completamente consciente do seu miserável e hipotecado futuro, mas não sabe como reagir e está sob influência de um poder mediático que faz uso de técnicas sofisticadas para prevenir que perspetivas alternativas/opostas ganhem reconhecimento público. Segundo Diana Crane20, estas técnicas passam por: i) salientar a importância do indivíduo, particularmente o indivíduo como um consumidor passivo; ii) mascarando ou escondendo a verdadeira natureza das relações entre as classes sociais em termos do grau em que a classe dominante explora outras classes sociais; iii) enfatizando o nível individual em vez de soluções coletivas para os problemas sociais; assimilando os pontos de vista opostos ou divergentes para assim desativá-las; iv) proporcionando uma ilusão de coesão social, escondendo as verdadeiras relações entre as classes sociais. A insistência na apologia e num discurso acrítico das condições políticas e sociais atuais, sem apelo à reflexividade social ou à confrontação ideológica, é algo que se me afigura constrangedor, pois sempre tive como regra básica que para se agir no campo cultural (como artista, crítico, gestor, programador, formador, etc.) é obrigatória uma atitude crítica e uma vigilância acima da média, não fossem os “campo cultural” e “campo artístico”21 uma teia complexa de relações entre instituições e agentes por onde circulam os poderes económicos, políticos e culturais, e onde obviamente se exerce o poder simbólico, muitas vezes sob a forma de violência simbólica (dominação). Sobre o que é o poder simbólico, Bourdieu


afirmando que estes esperam pelo fim da crise para voltar aos níveis prévios de financiamento público (p.8), como se isso fosse algum dislate ou forma de masoquismo, ou como se esses níveis fossem superiores a 1% do PIB. No entender de Bonnet e Donato é claro que os agentes culturais estão errados, pois a «crise é estrutural», repetem para que fique assim bem inculcada a ideia, e por isso o financiamento público nunca mais será o mesmo. Ainda acerca dos agentes culturais, afirmam que «Alguns diretores artísticos, curadores e produtores não levam em grande consideração as necessidades e os pedidos da comunidade quando decidem os programas de sua cultura» (p.8). Neste ponto estamos de acordo, mas, para quem é minimamente conhecedor do meio

o marketing territorial das suas cidades-marca. Por outro lado, antes de se criticar os programadores culturais, é preciso analisar o contexto das políticas culturais enquanto conjunto de condições e definições estruturantes das práticas culturais, e é nesse sentido que a Agenda 21 da Cultura27 (2004), quatro anos antes do inicio desta “crise”, preconiza uma transformação das políticas culturais de âmbito local, no seguimento das convenções da UNESCO, com vista a incluir a dimensão cultural num novo paradigma de desenvolvimento humano sustentável28. Ainda a UNESCO, no documento Towards a new cultural policy profile – A UNESCO conceptual and operational framework29, propõe um novo debate que visa conceitos inovadores e abordagens flexíveis

A as auditorias cidadãs marcam uma nova forma de fazer ativismo: o Norte global recebe conhecimento do Sul global, acabando por elidir a fronteira Norte-Sul e criar novas redes de solidariedade. cultural, sabe que esta “verdade” é muito relativa. Claro que existem alguns programadores culturais que ainda exercem o seu ofício do alto da torre de marfim dos gostos pessoais e escolhas prediletas, mas existem muitos que não e que, pelo contrário, estão implicados num trabalho contínuo com as comunidades, com a diversidade cultural, com os direitos culturais, com a democracia e a cidadania culturais. Aliás, é bom de ver que esta é uma questão bastante discutida no campo cultural, leia-se, por exemplo, o livro de Toni Puig Se Acabó la Diversión26, onde o gestor cultural catalão dirige uma extensa e fundamentada crítica à elite cultural ensimesmada e focada apenas nas estrelas artísticas e no prestígio que daí poderia advir para esse sistema fechado, e quando muito para

para proporcionar novas orientações no campo da formulação de políticas públicas para o desenvolvimento humano sustentável. Portanto, até aqui nada de novo. Como o artigo de Bonet e Donato é sobre Cultural Management, não podiam faltar as questões relacionadas com a medição das externalidades económicas ou sociais das organizações culturais. No entanto, ainda que os autores afirmem que «em geral, as organizações culturais não desenvolveram sistemas avançados de medição do desempenho» (p.8), querem, com essa afirmação, culpabilizar os agentes culturais. E, mais uma vez, entramos em território viscoso, porque poderíamos igualmente afirmar que nunca como hoje foi produzido tanto conhecimento e tantos debates em torno

26 - Paidós (2004). 27 - Cf. http://www.culturaviva.com.pt/textos/rui%20matoso/Agenda%2021%20da%20Cultura_Breve%20Estudo.pdf 28 - Cf. http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso/Books/1156480/Cultura_e_Desenvolvimento_Humano_Sustentavel 29 - Disponível em: http://www.policyforculture.org/texts/UNESCO_Concept_Note_Profile_eng.pdf

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perar com sucesso as crises são: a) construção de processos de tomada de decisões que devem ser fluentes, não burocráticos e participativos e, ao mesmo tempo, combinar responsabilidade e autonomia; b) avançar para uma abordagem estratégica que define a política a longo prazo e prioridades organizacionais». Novamente perguntamos, mas não são já estas duas dimensões (decisional e estratégica) suficientemente conhecidas e aplicadas pelos gestores das organizações culturais? Talvez não... mas será a “crise” a motivação certa ou o momento oportuno para tais reconfigurações? Será num momento de cortes financeiros, de aumento do desemprego, de grande instabilidade que os gestores se vão tornar mais democráticos e abertos à participação da sociedade civil? Talvez... mas para que isso aconteça é necessário um posicionamento crítico suficientemente profundo para concluir que é também nas épocas de “crise” que a qualidade da democracia e a qualidade da gestão se depreciam, que as organizações culturais perdem a confiança, que os públicos se desmobilizam e os valores culturais se degradam. Especificamente no caso das subvenções públicas, é preciso ter em consideração que são os próprios governos que não cumprem os seus compromissos e os contratos previamente estabelecidos com as organizações culturais. Portanto, seria mais correto perceber que as transformações na gestão e governança das organizações da sociedade civil só terão eficácia estruturante se previamente se promoverem mudanças estruturais ao nível superior hierárquico das políticas culturais públicas. Uma das mudanças fundamentais, que parece ser consensual hoje em dia, é a necessidade de adotar em todos os países europeus o princípio do arms lenght, tal como como existe na Dinamarca34, permitindo o financiamento público com total

30 - Disponível em: http://www.femp.es/files/566-762-archivo/Gu%C3%ADa_indicadores%20final.pdf 31 - Disponível em: http://www.ifacca.org/media/files/statisticalindicatorsforartspolicy.pdf 32 - Disponível em: http://www.unesco.org/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/creativity/pdf/culture_and_development_indicators/C+D%20 Indicator%20Bibliography.pdf 33 - Disponível em: http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/culture/resources/Publications/InFromTheMargins_EN.pdf

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dos sistemas de medição, dos indicadores e da estatística cultural, nas mais diversas instituições e níveis de gestão cultural. E os case studies são tantos e tão diversamente ricos que é difícil eleger exemplos, mas vejamos alguns: • Guía para la evaluación de las políticas culturales locales - Sistema de indicadores para la evaluación de las políticas culturales locales en el marco de la Agenda 21 de la cultura30 • Statistical Indicators for Arts Policy31 • Towards a UNESCO culture and development indicators suite (Bibliografia exclusivamente dedicada aos indicadores culturais)32 Poderíamos ainda mencionar o trabalho exaustivo dos observatórios culturais já existentes em muitos países europeus para se perceber que a função analítica na gestão cultural não é um entrave ao desenvolvimento e , como se pode concluir, é uma preocupação constante dos gestores, cuja formação académica tem evoluído sistematicamente nas últimas décadas. Isto não quer dizer que não persistam ainda más práticas de gestão, mas essas não podem servir como álibi para quem pretenda afirmar que a “crise estrutural” é uma oportunidade única (qual varinha mágica) para transformar os modelos de gestão e governança cultural. Porque na verdade essa transformação vem sendo feita há décadas na Europa, tendo um dos seus grande momentos na publicação da obra In From the Margins (Conselho da Europa, 1997)33. Assim, quando os autores prescrevem (p.8) que «A crise só poderá ser superada através de uma mudança radical nos modelos atuais de governança e gestão» é razão para questionálos acerca de quais são esses novos modelos que não estejam ainda identificados, assimilados e praticados. Segundo Bonet e Donato, a resposta é (p.9) que «os fatores-chave para su-


independência face aos poderes políticos e a fim de garantir a liberdade de expressão na arte e na cultura. Todavia, a ênfase no discurso de alguns governantes, nomeadamente em Portugal, concentra-se em explorar o tema da “subsidiodepedência” como se se tratasse de uma heresia, em vez de adotar o princípio acima referido para evaporar a retórica da dependência ideológica/ simbólica do setor cultural face aos poderes instituídos. Outra proposta ainda mais fundamental prende-se com a exigência de efetivas e concretas políticas culturais ao nível municipal, cujas medidas e princípios sejam baseados nas melhores práticas conhecidas: democracia participativa, diversidade cultural, diálogo intercultural, inclusão social, sustentabilidade, enfim, tudo aquilo que a Agenda 21 da Cultura advoga desde 2004. Na Europa, desde a Convenção Cultural Europeia, assinada em Paris no dia 19 de dezembro de 1954, o debate em torno do desenvolvimento cultural36 tem sido suficientemente profícuo para que não restem dúvidas acerca daquilo que deve ser posto em prática ao nível da governança e da gestão cultural pública. No entanto, tal como acontece noutros setores da atividade política, os interesses e as motivações dos eleitos parecem ser outros, nomeadamente quando a dimensão cultural é instrumentalizada a favor de um «acréscimo da legitimação do poder político que se apresenta e representa através das mediações simbólicas: panis et circenses, “pão e circo” - visibilidade, espetáculo, festa, arena, entretenimento das massas, alienação das mesmas...»37, ou, dito de outro modo, «quando o poder local reproduz as lógicas de funcionamento do poder central, designadamente ao valorizar quase exclusiva-

mente a vertente da democracia representativa em detrimento da dimensão participativa, a pessoalização do poder acentua-se, agindo os eleitos em função de lógicas carismático-demagógicas, clientelares e partidárias e prevalecendo, por isso, uma visão paternalista»38. Assim, facilmente se conclui que as transformações necessárias devem ocorrer primordialmente no contexto governativo, à escala europeia, nacional, regional e local. Ainda no contexto dos “novos” desafios à gestão cultural, Bonet e Donato declaram (p. 9) a necessidade de «uma abordagem multiescala capaz de combinar o nível “micro” e “meso”. Isso significaria que redes e sistemas cooperativos devem ser promovidos (...)». Contudo, ao nível europeu e em cada país, a cooperação cultural e as redes de programação e coprodução são já uma realidade em funcionamento há muito. O problema é que estas redes para funcionarem e terem efeitos ao nível da economia de escala têm de ter recursos e orçamentos suficientes. Ora, como se sabe, em Portugal o caso paradigmático da ARTEMREDE39 está à beira da rutura devido a problemas de financiamento e à desvinculação de diversos municípios, colocando assim em risco uma boa ideia em termos de cooperação e coprodução artística e cultural. Um outro exemplo de boas práticas de cooperativismo estratégico em rede pode ser encontrado na Croácia, onde várias instituições culturais independentes, artistas e investigadores vêm aprofundando o debate e a construção de políticas públicas de cultura. Para maior detalhe, recomendo a consulta do texto de Katarina Pavić40 apresentado no think thank Culture Watch Europe. Enfim, muitos outros “casos de sucesso” de cooperação

34 - Cf. http://kum.dk/english/Cultural-Policy1/Independence-and-the-arms-length-principle/ 35 - Disponível em: http://agenda21culture.net/ 36 - Cf. Cap. 1. MATOSO, Rui (2010). “Cultura e Desenvolvimento Humano Sustentável”. Disponível em http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso/Books/1156480/Cultura_e_Desenvolvimento_Humano_Sustentavel 37 - LOPES, João Teixeira (2003). Escola, território e políticas culturais. Porto: Campo das Letras, p. 8. 38 - SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.) (1998). As Políticas Culturais em Portugal: Relatório Nacional. Lisboa: Observatório das Atividades Culturais, p. 346. 39 - «A Artemrede é, fundamentalmente, um projeto de qualificação e descentralização cultural que tem como missão promover a qualificação e desenvolvimento da atividade cultural dos seus membros, nomeadamente através da coordenação da respetiva atuação no domínio da gestão e programação de teatros, cineteatros e outros espaços de apresentação pública de espetáculo.» http://www.artemrede.pt/ 40 - Disponível em: http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/cwe/CWE-TP-Pavic_en.pdf

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não-burocráticas e mecanismos participativos, para construir um sistema de gestão em torno do conhecimento, transparência e competências, e em adotar o pensamento estratégico de longo prazo», sobre a qual já nos pronunciámos (acima) nos detalhes de cada item. Todavia, repetimos, não foi devido a esses fatores “humanos” da gestão cultural que o setor entrou em crise, pois, também já o afirmámos, esses fatores vêm sendo debatidos, aprofundados e aplicados ao longo das últimas décadas, e não podemos fazer tábua-rasa disso. Aliás, o ENCATC - European Network of Cultural Administration Training Centres é, desde 1992, prova dessa preocupação em torno da gestão cultural. Concluindo, diga-se de passagem que fica sempre bem apelar publicamente, pela enésima vez, à necessidade de alterar hábitos de gestão e implementar inovações conceptuais e boas práticas no campo da gestão, e de facto estamos sempre a aprender, mas que isso não nos faça esquecer as outras tensões existentes na esfera pública cultural, nomeadamente aquelas que resultam do confronto com o poder político e económicofinanceiro. A propósito de dicotomias, e da intensa absorção da produção cultural pelo sistema económico e industrial de massas, Umberto Eco sugere uma outra clivagem entre visões opostas (e complementares) no campo cultural. Procuremos então no seu livro Apocalíticos e Integrados47 o que, para além dos modelos de gestão, pode estar em confronto ainda hoje no contexto social em que vivemos. Aqui fica a sugestão.

41 - Cf. http://ec.europa.eu/culture/our-programmes-and-actions/culture-programme%282007-2013%29_en.htm 42 - Cf. http://www.cultureactioneurope.org/ 43 - Cf. http://www.wearemore.eu/ 44 - «Fortalecer o reconhecimento do papel das artes e da cultura no desenvolvimento das nossas sociedades europeias, aumentando o apoio à cultura no próximo orçamento da UE.» (vide Manifesto). 45 - Cf. http://register.consilium.europa.eu/pdf/en/12/st09/st09097.en12.pdf 46 - Acerca desta problemática, cf. o meu texto “Europa e cultura ou quando a criatividade matou o gato”. Disponível em: http://grupolusofona. academia.edu/ruimatoso/Papers/1253193/Europa_e_cultura_ou_quando_a_criatividade_matou_o_gato 47 - (1964). Apocalittici e Integrati. Editoriale Fabbri.

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europeia e internacional em rede seriam possíveis de elencar, não fosse esse aliás um dos méritos do Programa Cultura41, promovido, desde o ano 2000, pela Comissão Europeia. Ao nível Europeu, a rede Culture Action Europe42 criou, em outubro de 2010, a campanha We are more – act for culture in Europe43, e, ao contrário do que pretendem induzir os autores (p. 7), dando a entender a fraca contribuição desta ação face aos objetivos pretendidos44, esta campanha, na verdade, conseguiu que o Conselho Europeu de Ministros da Cultura (10 e 12 de maio de 2012)45 propusesse alterações no próximo programa de financiamento Creative Europe 2014-202046 mais favoráveis às exigências do setor cultural, designadamente diminuindo o excessivo enfoque no valor económico a favor de um maior reconhecimento do valor social e intrínseco das artes e da cultura. 4 – Conclusão (curta) Nas suas conclusões (pp. 9-10), Bonet e Donato retomam com redundância aquela que parece ser a mensagem chave do texto com o qual tentámos dialogar criticamente: «Estamos vivendo uma crise estrutural baseada na falta de fiabilidade dos atuais sistemas social, económico e político», para a seguir finalizarem o artigo com a dicotomia, já vulgarizada, entre as abordagens pessimistas e as otimistas. Ressalvo aqui a síntese da abordagem positiva (p.10): «Algumas modificações relevantes na abordagem da gestão são necessárias: para superar o tradicional egocentrismo, para implementar tomadas de decisão


Primavera Érable. História do movimento estudantil no Québec. rodrigo rivera e Marina Januário Silva O protesto popular que surgiu no Québec começou em Fevereiro deste ano. Inicialmente teve como protagonista o movimento estudantil, mas, por várias razões, depressa se propagou para a classe trabalhadora, tornando-se na maior mobilização popular desde o pós-guerra. A partir de então teve um efeito catalisador na multiplicação dos protestos por toda a província canadiana, tanto nas escolas e faculdades, como nas empresas, nas instituições públicas e sobretudo nas ruas. Esta série de manifestações de descontentamento começou a ganhar notoriedade internacional, sendo ape112

lidada de Primavera Érable1, em referência às revoltas no mundo árabe. Para termos uma ideia geral sobre as últimas mobilizações estudantis, convém olharmos para o contexto destes aumentos. Em 1990, acontece o primeiro grande aumento de propinas, de 500$ anuais, para 1600$. Apesar da grande contestação estudantil, o Governo não recua e o valor aumenta. Seis anos depois, em 1996, cerca de 100 mil estudantes iniciam uma greve quando Pauline Marois - Ministra da Educação na época, hoje recém-eleita Primeira-Ministra da província


- decreta um aumento de 30%. A mobilização massiva dos estudantes, sem cedências ou recuos, fez com que não só Marois desistisse do aumento, como decretou um congelamento do valor que acabou por se manter até 2007. Em 2005, o Governo do Partido Liberal reduz o orçamento da Acção Social Escolar em 103 milhões de dólares. A resposta estudantil traduziu-se em mais de 200 mil estudantes em greve. Algumas semanas mais tarde, o Governo recua. A génese desta mobilização social tem origem no ao anúncio feito por Jean Charest (Primeiro Ministro do Québec pelo Partido Liberal, no poder desde 2003) de um aumento de cerca 80% nas propinas do ensino universitário público nos próximos cinco anos. Após este ataque à educação, os estudantes reagiram, convocando, a 13 de Fevereiro deste ano, uma greve geral que se prolongou por vários meses. À semelhança do movimento estudantil chileno, os estudantes do Québec exigiam a com-

Para além do aumento das propinas, os estudantes, que usavam como símbolo um quadrado vermelho ao peito, contestavam contra o financiamento, cada vez maior, dado às universidades privadas em detrimento das universidades públicas, resultando em 150 mil estudantes em protesto nas ruas do Québec. Neste processo de mobilização estiveram envolvidas várias organizações estudantis e movimentos sociais, dos quais se destacam a CLASSE (representa cerca de 65 associações de estudantes de faculdades em toda a província, especialmente em Montréal), a FEUQ (Federação dos Estudantes Universitários do Québec) e a FECQ (Federação dos Estudantes Colegiais do Québec). Apesar da descredibilização do movimento estudantil por parte da comunicação social canadiana, assim como internacional, o movimento teve o apoio do Ocuppy Wall Street, dos estudantes da Universidade de Nova York, das restantes universidades canadianas e da Islândia, entre outros.

A génese desta mobilização social tem origem no ao anúncio feito por Jean Charest (Primeiro Ministro do Québec pelo Partido Liberal, no poder desde 2003) de um aumento de cerca 80% nas propinas do ensino universitário público nos próximos cinco anos pleta reformulação da política educativa, com o objetivo último de estabelecer uma educação pública gratuita e de qualidade. Os estudantes, que identificavam a sua posição política contra o aumento com um quadrado vermelho ao peito, também contestavam o sobre-financiamento das universidades privadas e o financiamento de projectos de investigação direccionados somente para aumentar o lucro de empresas. Esta contestação passou por uma manifestação de 200 mil pessoas em Montréal, no dia 22 de Março, e de mais de 300 mil estudantes em greve, no auge da contestação.

Importa-nos olhar com atenção particular uma das organizações envolvidas, pela sua análise mais aprofundada à política canadiana e sua crítica ao cariz neo-liberal da mudança de paradigma governamental do Québec nos últimos anos, a CLASSE. Esta Federação de Associações de Estudantes, foi formada a partir duma experiência de Greve Geral falhada. A ASSÉ (agora CLASSE2, por ser uma coligação alargada a associações não-federadas) formouse em 2001, a partir da base do movimento, no contacto directo com os estudantes das várias faculdades do Québec. Como ponto central da 113


sua acção está a solidariedade entre lutas e a rejeição duma agenda estudantil isolada, o que os levou a organizar protestos solidários com lutas laborais, defender o anti-racismo como base da sua acção, etc. Além disso, demonstram uma especial atenção à luta feminista, alertando para os problemas específicos das mulheres com o aumento das propinas, etc. Depois desta vitória, a CLASSE organizou já, dia 22 de Setembro, uma manifestação pela abolição das propinas que juntou milhares de pessoas. Com um argumentário e uma imagem muito bem trabalhada, esta federação prova que apesar de ter participado numa luta “reformista”, contra o aumento das propinas, está pronta para propor “um projecto de sociedade mais abrangente, economicamente possível e socialmente necessário”, através duma educação gratuita e universal. Segundo o porta-voz da CLASSE, Gabriel Nadeau-Dubois (que acaba por se demitir das suas funções em Agosto deste ano3), afirma que a instabilidade vivida no Québec prendese com a crise do sistema institucional na qual as instituições públicas sofreram uma mudança de paradigma que vê as pessoas como simples consumidores em vez de contribuintes. No seguimento desta declaração é impor-

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tante frisar que no Québec, até à década de 60, a Igreja católica, segundo a constituição provincial, monopolizava a educação devido à tradição católica e ultraconservadora da província, elitizando o acesso ao ensino universitário. Porém, o paradigma mudou a partir dos anos 60 com a chamada “Revolução Tranquila”, pelas mãos do Partido Liberal do Québec (PLQ), o qual implantou, entre outras medidas, a criação do Estado Providência, a criação do Ministério da Educação e investimentos massivos na educação que ficou, desta forma, a cargo do Estado provincial.4 Atualmente, com a viragem à direita do PLQ, o processo de investimento na Educação inverteu-se: em Março de 2011, o Ministro das Finanças do PLQ anunciou um aumento das propinas para Setembro 2012 que, dividido em cinco anos, faria os estudantes pagar mais 1625$ de propinas por ano, num total de 3793$ anuais em 2017. Face a este aumento abrupto dos custos que iriam recair sobre os estudantes, a luta contra a mercantilização da educação tornou-se o argumento chave da mobilização estudantil, para além do aumento exponencial de estudantes que desistiam da universidade ou daqueles vindos das escolas secundárias e dos CEGEP’s


(um acrónimo para Colégio de ensino Geral e Profissional, tem a duração de três anos e é um ensino pós-secundário equivalente, em Portugal, às escolas profissionais, podendo servir, igualmente, como um ensino preparatório préuniversitário) que nem chegavam a candidatarse. Como consequência destas medidas, a reação por parte dos estudantes materializou-se na aprovação duma duma Greve Geral “ilimitada” em centenas de faculdades. Com o intuito de perturbarem a economia do Québec e, consequentemente, dificultar ainda mais a vida do PLQ e do seu Governo, aprovam-se acções mais radicais nas assembleias de faculdade. Os estudantes bloqueiam a ponte Jacques-Cartier, um dos principais acessos à ilha de Montréal, capital económica do Québec. Um mês depois, voltam a bloquear uma ponte, desta vez a Champlin. Além disso, protestos diários são organizados durante vários meses, apesar da repressão brutal da polícia e da perseguição

estudantes ampliassem a sua base de apoio, mobilizando outros sectores da população. A solidariedade A solidariedade activa de outras camadas da população com o movimento grevista dos estudantes contra o Governo Charest foi crucial para o desenvolvimento das lutas anti-austeritárias, quando a Direita político-partidária se re-organizava para responder aos protestos. E no Québec, a solidariedade traduzia-se em espalhar por todo o lado o “quadrado vermelho”. O quadrado vermelho é considerado como o símbolo do movimento estudantil do Québec, sendo usado, ora preso à roupa, ora em materiais de mobilização, em sites, pintado na rua, etc. Começou a ser usado na greve de 2005, sendo um trocadilho visual inteligente (“carrément dans la rouge”, expressão popular, traduz-se para “completamente em dívida”) e uma referência à militância (cor vermelha associada à militância radical).

político-judicial dos dirigentes do movimento que se traduziu em 3 mil detidos. Na tentativa de travar esta medida, os estudantes entraram em negociações com o governo de Charest, o qual não aceitou a proposta de congelamento das propinas como um caminho para o ensino universitário progressivamente gratuito e propôs que o aumento ocorresse em sete anos em vez dos cinco inicialmente previstos. Perante a inflexibilidade das negociações, criou-se uma onda de contestação social contra o governo que fez com que as sondagens favoráveis a Charest caíssem a pique e que os

Mas não foi só o símbolo do movimento que os estudantes recuperaram da última greve. Também as estratégias para uma mobilização efectiva e democrática passaram de geração em geração de activistas estudantis, desde os anos 60 até os dias de hoje, traduzindo-se numa luta com base no activismo estudantil sindical e democrático, intrínsecamente ligado à classe trabalhadora e suas lutas. Lei 78- O primeiro passo para a queda do governo Liberal Face à intensificação dos protestos, em 115

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As estratégias para uma mobilização efectiva e democrática passaram de geração em geração de activistas estudantis, desde os anos 60 até os dias de hoje, traduzindo-se numa luta com base no activismo estudantil sindical e democrático, ligado à classe trabalhadora e suas lutas.


Maio, a Ministra da Educação, Michelle Courchesne, com o apoio do Primeiro-ministro, enviou uma proposta à Assembleia provincial. Essa proposta era a polémica Lei 78: tomada como uma medida de emergência, proibia que os estudantes organizassem manifestações perto de estabelecimentos de ensino e permitia à polícia proibir arbitrariamente manifestações. A lei proibia ainda que os estudantes ocultassem o rosto durante os protestos.Para além disso, esta medida também suspendeu as aulas em várias escolas secundárias e em onze universidades. Na tentativa de silenciar os estudantes, a Lei 78 incluía ainda pesadas multas para quem impedisse outros estudantes de romper com a greve, que iam até os 5 mil dólares para os manifestantes, entre 7 e 35 mil para os dirigentes das associações estudantis e 125 mil dólares para as próprias organizações. Porém, a estratégia seguida pelo governo, esperançada em que o movimento se desagregasse por si mesmo, não teve o efeito esperado. Bem pelo contrário. No dia seguinte à sua aprovação, mais de 200 mil pessoas saíram às ruas da cidade de Montréal, numa manifestação recorde para o Canadá, que se propagou por outras cidades do país exteriores ao Québec. Além disso, a população juntou-se aos protestos, saindo para a rua simbolicamente todos os dias às 20h, durante largas semanas. 116

Eleições antecipadas- Jean Charest sob pressão política Como consequência direta desta queda de popularidade do governo, o Primeiro-ministro, sob pressão, foi obrigado a dissolver a assembleia parlamentar e a marcar eleições antecipadas. Porém, as principais associações estudantis da província não viram esta antecipação com bons olhos, pois foi o mote para a desmobilização dos estudantes. No dia 4 de setembro, foi um dia decisivo para o movimento estudantil e para a restante mobilização social que se gerou a partir dos protestos. O anúncio de eleições antecipadas comprometeu a mobilização estudantil e fez com que muitos estudantes votassem contra a continuação da greve nas suas escolas e faculdades. Apesar desta corrente contraditória, as eleições tiveram o efeito esperado. O governo caiu, fazendo com que o Partido Liberal (31%, elegeu 49 deputados) perdesse as eleições com uma diferença irrisória em relação ao partido vencedor, o Partido Quebecois (32.1%, elegeu 55 deputados). É de notar que o Québec Solidaire (6%), - partido soberanista da esquerda radical e que esteve presente nos protestos, inclusive com o seu co-porta-voz a ser detido - subiu ligeiramente em relação às eleições de 2008, passando de 1 para 2 deputados, num sistema de círculos uninominais que dificulta


brutalmente a eleição para os partidos mais pequenos5 Mesmo com as desconfianças por parte dos estudantes em relação a Pauline Marois (ministra da Educação em 1996, responsável por uma proposta de aumento de propinas na época), o PQ, que após nove anos de sucessivos governos liberais volta ao poder, decidiu recuar com a medida imposta pelo Partido Liberal, congelando o aumento de propinas no ensino universitário. Depois de uma mobilização social desta escala, resta à esquerda refletir sobre as aprendizagens, as estratégias de mobilização e ação que observámos ao longo de vários meses no Québec e acima de tudo estabelecer um paralelismo com a Europa, especificamente com Portugal, percebendo de que forma podemos adaptar este exemplo aos ataques ao sistema de ensino público que enfrentamos atualmente. À semelhança do Québec, Portugal está também a sofrer as políticas de mercantilização

Mais uma vez, como em muitas outras, o movimento estudantil é o epicentro de uma mobilização social que se torna transversal a todos os outros sectores da sociedade. A luta deixa de ser apenas estudantil para passar a ser geral. É importante retermos destes sete meses de greve no Québec que a fórmula do sucesso desta mobilização não passou só pela coerência política e estratégica em todos os momentos. Também foi crucial a persistência e luta permanente por uma causa comum, acompanhada de um pensamento à esquerda, no qual cada vez mais pessoas se começaram a rever. Contrariando o discurso hegemónico neoliberal imposto pelas alegadas exigências da crise e na consequente deterioração das instituições públicas, as pessoas acordaram. Por cá, parece-nos essencial colocar em cima da mesa as lições que a luta no Québec nos traz para questionar a estratégia atual da esquerda nas escolas e faculdades e, conse-

do ensino público impostas pela direita, situação agravada com as medidas de austeridade e de autoritarismo do Ministro da Educação, Nuno Crato. A consequência direta é a redução do número de estudantes a candidatarem-se às universidades e politécnicos (45.383 candidatos na 1ªfase, um dos números mais baixos dos últimos anos)6. Além disso, nos últimos 3 anos, mais de 40 mil estudantes perderam o direito à bolsa, com milhares a desistir de concluir os estudos e muitos já com dívidas avultadas do programa de empréstimos por bancos privados.

quentemente, encontrar alternativas na luta por outra Educação. Sabemos que se o governo PSD-CDS fosse a eleições antecipadas não haveria alternativa nos partidos do centro relativamente às politicas de educação e do seu financiamento. Será que um movimento estudantil forte e organizado alteraria o estado das coisas? Abrir caminho para a derrota desta politica e a para a defesa de um ensino público, gratuito e de qualidade é a nossa prioridade, com todos e todas que se quiserem juntar à luta.

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À semelhança do Québec, Portugal está também a sofrer as políticas de mercantilização do ensino público impostas pela direita, situação agravada com as medidas de austeridade e de autoritarismo do Ministro da Educação, Nuno Crato.


ACONTECE POR NÁDIA CANTANHEDE

Liberdade 2012 Isabel pires

Mais um ano se passou e mais um acampamento de jovens do Bloco de Esquerda se realizou. Foi o 9º acampamento Liberdade, que acontece, desde há três anos, no Bioparque, em S. Pedro do Sul. Com a presença de mais de 200 pessoas, realizaram-se mais de 20 debates, todos eles bastante participados. Da crise da dívida à luta feminista, da luta LGBT aos direitos dos animais, da música às revoluções árabes, do ensino (secundário e superior) ao futebol, das drogas leves ao hacktivismo, passando por workshops de stencil, teatro do oprimido e massagens, juntando-lhe os filmes todas as noites, muito se passou neste acampamento. Este é, por isso, um sítio privilegiado pois consegue reunir ativistas (e não só), militantes do Bloco de Esquerda (e não só) para discutir ideias, fazer o balanço das atividades organizadas, elaborar propostas novas para mais um ano de luta política e, também, para conviver. É um espaço que se rege pela divisão de tarefas da melhor forma possível, incluindo todos e todas na organização e gestão do próprio acampamento. Como é óbvio, de ano para ano, continuamos a apontar falhas e corrigi-las no ano seguinte, e também por isso este é um espaço de aprendizagem sobre uma forma diferente de viver em sociedade, onde se ensaiam as mudanças 118

que queremos ver no resto do país e do mundo. Aqui não se debate apenas política pura e dura, mas também ideias de vivências e formas de estar no mundo variadas. Daí a riqueza deste espaço: juntar as mais variadas pessoas num local agradável, com um ambiente aberto e livre, onde cada um e cada uma se pode dar a conhecer e conhecer outras pessoas, bem como debater ideias, ações, modos de vida, política. E todos os anos é diferente: há coisas novas, preparam-se novas lutas, aprendemos e melhoramos mais um pouco aquele espaço que sentimos como nosso. Tentamos, todos os anos, fazer um balanço sério, que nos permita avançar e superar as lacunas sempre existentes, balanço este que tem sido sempre positivo. As perspetivas para o próximo acampamento constroem-se sobre a crítica do que funcionou pior, tentando resolver e melhorar, incluir mais temas de debate capazes de atrair um maior números de militantes e ativistas. Em 2013, no fim do mês de julho, voltaremos a S. Pedro do Sul e a mais uma semana de convívio, debate e aprendizagem, sempre com a perspetiva de ganhar força para as lutas que se nos impõe com cada vez mais urgência, rumo à liberdade e ao socialismo.


paulete matos

A construção do socialismo

Fórum de Ideias para a Esquerda. Sta. Maria da Feira. Setembro 2012 Um partido de esquerda bate-se pelo socialismo e o socialismo só o é se for democrático e combater o dogma, se descristalizar e dessacralizar. O socialismo privilegia o debate, o confronto de ideias, a democracia, a pluralidade, assim como a construção permanente do seu caminho, atento às condições materiais, sem nunca esquecer a importância do subjetivo. Qual silogismo lógico destas condições, assim se construiu o Socialismo – Fórum de Ideias para a Esquerda. Às portas de mais um ano de combate, o Bloco não poderia ser menos do que isto: a esperança e a força de renovar e de concretizar o socialismo, sem esquecer que no caminho há interesses de classe, há decisões a tomar e tomadas de lugar que não se podem adiar. O socialismo não exclui quem é excluído. Por isso não esquecemos o debate sobre o feminismo, o RSI, o movimento LGBT, o ambiente, os animais e os seus direitos, as drogas ou o aborto. O poder divide na base para poder ser o 1% que governa. Os socialistas sabem que é necessário unir para que a imensa maioria ganhe consciência de si e para si. Nenhuma luta está arredada da luta de classes. Onde existir opressão, aos socialistas cabe construir libertação. O socialismo exige redistribuição e resignificação do trabalho e do seu valor. Por isso contestamos o austeritarismo, o sado-monetarismo, o ascetismo profético do sacrifício, os memorandos e as troikas e baldroikas da banca. Exigimos

o fim da precariedade como modo de vida e a necessidade de revalorizar o trabalho e quem trabalha, a começar pelo seu salário, os seus direitos laborais e a sua estabilidade de vida. Não há socialismo sem uma economia que redistribua, que afronte a acumulação na pirâmide e que valorize quem trabalha e o fruto do seu trabalho. Em 2012, o Fórum de Ideias Socialismo foi em Santa Maria da Feira, Aveiro. Foi o mais participado de sempre. Participado ativamente: nos debates, na controvérsia, na socialização. Reflete a tendência cada vez mais palpável de que, a cada dia que passa, mais se juntam para construir o socialismo connosco, riscando a linha de separação da troika e da austeridade. Esse crescimento em torno da alternativa ao modelo económico-social também se viu a 15 de setembro e ver-se-á cada vez mais. No próximo ano, a vontade de debater, construir pensamento, participar das alternativas será maior, certamente. Interessa perceber e ensaiar modelos para que todas e todos possamos participar ainda mais neste Fórum de Ideias para a Esquerda: será alargando o tempo de debate? Será permitindo contributos escritos sobre os diversos temas em debate? Será publicando um caderno de resumo dos debates, participações e contributos? Ou outra solução que permita ampliar a participação, reforçar a democracia e a pluralidade desse socialismo que queremos. 119

ACONTECE

moisés ferreira


martins.nunomiguel / flickr

15 de Setembro: um milhão na rua. Unidos pela solidariedade ricardo martins

Tudo na vida tem um tempo, tudo na vida tem limites. Mesmo a pessoa mais paciente e tolerante atinge, a certo momento, um ponto de saturação. A situação era mais ou menos essa e atravessava e atravessa transversalmente a sociedade portuguesa cansada das sucessivas camadas de austeridade e sacrifícios impostos pelo Executivo de coligação entre PSD e CDS/ PP, liderado pelo Primeiro-ministro Passos Coelho. Não há estômago para mais sacrifícios. A receita austeritária da Troika vincula no Memorando, para além da coligação no Executivo, o Partido Socialista e o seu discurso 120

bipolar - que saltita entre a imagem de responsabilidade, dizem eles, para com os portugueses e os compromissos que pretendem honrar com aquela coisa estranha a que se chama Troika e que tem a missão de fazer em Portugal, e onde vai podendo por essa Europa, um colonialismo económico e instalador/ uniformizador de medidas comuns com vista à redução das despesas públicas e extinção da presença do aparelho de Estado na vida das pessoas. Passos Coelho revelou-se mais troikista que a Troika e levou ainda mais além a dureza das medidas programadas no Memorando Entendimento. O sucessivo anunciar de me-


didas foi acumulando nas costas de cada português um fardo cada vez mais pesado, até que se tornou insuportável. As pessoas foram obrigadas a vir para a rua. Foram obrigadas a largar o conforto de casa e a juntar-se, muitas delas pela primeira vez, a uma manifestação. Éramos muitos milhares. No Facebook, o número de aderentes era encorajador e deixava no ar a ideia que poderia tratar-se de um dia histórico. Os «vão» foram todos e levaram os amigos e a família. As ruas do país foram tomadas pela

para além da notória apreensão pelo estado e futuro do país, que levou todas aquelas pessoas à rua, um ambiente quase de alívio, uma espécie de alegria. Vi na cara das pessoas um misto de surpresa e alegria pela presença de tantas caras conhecidas, da sua rua, bairro e cidade. Gerou-se um clima de grande união com base nessa solidariedade que fez perceber que todos estamos a passar mal e que o sofrimento e as privações que vivemos em casa são, afinal, os mesmos que são sentidos pelos nossos vizinhos.

população descontente. Um milhão de descontentes nas ruas, diz-se. Que maior sinal democrático que este para se inverter o rumo das políticas? Decidi-me pela opção descentralizadora e fiquei em Coimbra. Por aqui, nunca uma manifestação tinha arrancado tantos de casa para as ruas desde o 1º de Maio de 1974. Falava-se em vinte mil. Munido de um cartaz, saí de casa decidido a dar voz às preocupações de todos, sem esquecer os motivos que me levaram a mim também a abraçar tamanha luta. Como eu, vi muitos amigos, uns da minha geração, outros de outras, vi vizinhos, colegas, famílias inteiras. Se calhar nem foi tanto contra a Troika que os portugueses saíram de casa e se calhar nem foi tanto contra as últimas medidas anunciadas como a TSU, mas pela sucessão de sacrifícios. Notei no ar,

Julgo ter sido esta a ideia mais forte que passou do 15 de Setembro para o coletivo. Estamos todos a sofrer com a permanente degradação das condições de vida. Como vamos agora suportar, em casa ou no lar, os nossos avós? É que a reforma deles não dá para nada. Como vamos pagar as contas da casa se os ordenados dos nossos pais já não cobrem tudo? Como vamos continuar a garantir que os meus irmãos frequentem o ensino superior? Não há dinheiro. Que futuro para mim? Tanto tempo a estudar e agora não há emprego nem para mim nem para os meus amigos… O mais difícil está feito, agora temos consciência que estamos todos mal e que queremos a mudança. Não estamos sozinhos e o sentimento é comum. Vamos mudar! 121

ACONTECE

Como eu, vi muitos amigos, uns da minha geração, outros de outras, vi vizinhos, colegas, famílias inteiras. Se calhar nem foi tanto contra a Troika que os portugueses saíram de casa e se calhar nem foi tanto contra as últimas medidas anunciadas como a TSU, mas pela sucessão de sacrifícios.


paulete matos

Vigília - 21 de Setembro marco marques

No dia anterior ao protesto de 15 de Setembro soube-se que o Presidente da República iria convocar um Conselho de Estado para o dia 21 de Setembro afim de analisar a crise política despoletada pelo anúncio do Primeiro-ministro e o silêncio comprometedor do Ministro Paulo Portas. O grupo que convocou a manifestação de 15 de setembro percebeu este anúncio como uma oportunidade para validar a coerência das afirmações que o Presidente da República tem vindo a fazer sobre o limite dos sacrifícios, e, convocou um novo protesto para o dia 21, frente ao Palácio de Belém. E novamente as ruas se encheram… mais de 15 000 pessoas se juntaram em frente ao Palácio de Belém com cartazes, faixas e vozes de protesto que se uniram em coro pedindo a demissão do Governo. Num comunicado distribuído pelos convocadores e convocadoras a todas as pessoas presentes no protesto podiam ler-se as duas ideias deste novo apelo: a reafirmação da necessidade de romper com a Troika e todos os troikistas porque a austeridade não resgata, só afunda, e o comprometimento dos cidadãos com um uma 122

mudança democrática. Em uníssono ouviu-se a Grândola e o poema Acordai!, de José Gomes Ferreira. Em uníssono ouviu-se a palavra Demissão! Após 8 horas de reunião, a conclusão do Conselho de Estado fez-se ouvir através da leitura de um comunicado que terá tido o acordo de todos os presentes. O comunicado foi apenas um pífio texto sobre a disponibilidade demonstrada pelo Governo para encontrar, junto dos parceiros sociais, alternativas à medida da TSU. Este comunicado teve já um efeito prático: o recuo das mudanças na TSU. Provou que a mobilização vale a pena e que tem consequências. Este efeito irá reforçar a luta social e trazer muito mais pessoas à rua para o combate às políticas de austeridade. Por outro lado, o Governo e o Conselho de Estado já falharam o alvo, porque o que o povo exigiu nas ruas não foi apenas uma alteração daquela medida, mas sim uma inversão completa deste ciclo político de austeridade, o fim das políticas da Troika e dos troikistas. O dia 21 de setembro marcou o dia em que o Presidente da República e os seus Conselheiros se desligaram do povo e encenaram um bluff político que não traz esperança ao país, mas apenas o compromisso de continuar a caminhar para o abismo.


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c) Revistas: Costa, Hermes Augusto (2009a). “A flexigurança em Portugal: Desafios e dilemas da sua aplicação”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 86, 123-144.

d) No caso de publicações electrónicas é necessário indicar também a data da última consulta à página e o respetivo URL. 8. Provas tipográficas: a revisão das provas tipográficas é da responsabilidade do Conselho de Redação, que garante a reprodução fidedigna e tipograficamente correta dos textos selecionados para publicação.

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