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Maria Palmeiro

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Joel Birman

Joel Birman

Olho retrospectivamente para o meu trabalho. Me pergunto se existe no conjunto uma tradução de origem desconhecida, uma tradução para um eu. Eu que gosto de pensar que é estranho, desconhecido, obscuro. Eu que não reconheço frontalmente. Eu feito de dobras e interstícios, no entanto, contínuo.

É em torno da forma contínua, da continuidade como forma, que meu trabalho tem evoluído. Por evolução entendo adaptação desprovida de sentido linear. Evolução no sentido detransformação. O sentido de transformação na continuidade que vou buscar aqui relacionar com o tema da tradução.

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Parte do meu trabalho pode ser considerado processual, ainda que eu opte por não usar a palavra processo, que marca uma separação entre o fazer e a obra. Se digo marcar, é pensando que essa separação pode ter a qualidade de vinco, de dobra.

O trabalho pode ser considerado processual na medida em que se detém em reflexões sobre o próprio fazer artístico. Chamo esse fazer, feito com repetições e métodos, de fazimento. O fazimento promove um encadeamento entre fazer, obra, vida e pensamento.

Um encadeamento que promove continuidade e transformação, que se traduzem em formas que, por sua vez, traduzem algo mais, que estou chamando de eu, estranho, desconhecido, obscuro. “Algo que viesse do não ser, da ocultação à plena luz da obra”1 .

Fazimento de origem e sentido indeterminado. Existiria uma dobra original?

Trabalho em uma investigação sobre a dobra há alguns anos. Literalmente, pelo gesto de dobrar superfícies variadas; conceitualmente, pelo desdobramento desse gesto em variados contextos.

A repetição do gesto da dobra e a ênfase no fazimento produzem um trabalho que não se funda em uma intenção. Variação após variação, uma após a outra, à revelia de uma ideia, a dobra torna-se suporte de acumulações, à qual aderem agenciamentos, motivações, sentidos, contingências e reflexões, no duplo sentido da palavra “refletir”, quando a dobra é um espelho. Tradução de origem desconhecida, obra de intenção indeterminada.

A série “Ciência Amadora” é composta de pinturas feitas a partir de um conjunto de regras como traduções para pesquisas científicas específicas. A regra era operar apenas por dobras e perfurações sobre papel manteiga e produzir, com esses poucos gestos e possibilidades infinitas, uma máscara que serviria de matriz para as pinturas.

1 AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte:

Autêntica, 2012, p. 118.

Um desdobramento desse trabalho é a especulação sobre a continuidade produzida pela estrutura do caleidoscópio — objeto óptico composto por um prisma de espelhos em sua face interior que multiplica uma imagem infinitamente, ilusoriamente.

O caleidoscópio, no entanto, enquanto metáfora de evolução, é limitado por ser meramente uma estrutura de autorreflexão; uma forma contínua de variáveis incontáveis, porém, sempre composta dos mesmos elementos.

Para a filósofa Catherine Malabou, existimos entre dois modos de dobra. Um modo, ela caracteriza como graça, no qual existe invenção; o outro, ela define como vício, no qual nos dobramos por obediência e alienação. Como evitar que o método da dobra se torne um jogo de espelhos?

Neste ponto, eu quero trazer à baila a ideia de espelho como tradução para produzir duas subversões desta ideia, pois não se pode tratar de tradução sem se tratar de alteridade. A primeira subversão é a explosão do prisma do caleidoscópio. A segunda, é fazer du outre o espelho.

Para isso, vou falar de uma experiência de uso livre da tradução que se deu no grupo de pesquisa e práticas coletivas Regrupo, que teve curso durante o isolamento social no segundo semestre de 2020. Em nossos encontros, se estabeleceu uma dinâmica em que cada integrante traria um material disparador para o qual produziríamos traduções individuais. As traduções se davam em diferentes mídias: fotografia, escrita, áudio, vídeo, pintura e escultura.

Os disparadores, objetos encontrados, vídeos e pinturas, eram postos em circulação para livre interpretação, assimilação, apropriação, recriação, combinação; estratégias cabidas no que chamamos de tradução dentro do grupo.

A dinâmica das traduções foi sobretudo um modo de retorno, um modo de feedback, de buscar, por meios não apenas verbais, comunicarmos o que o material nos fez agir, pensar e sentir.

Uma experimentação lúdica de prática e pensamento colaborativo em arte.

A tradução é pensada como um espelho, mas como um reflexo transfigurado que destaca percepções outras do original, uma face que não percebemos ou não enfatizamos, um ponto cego. Assim, dependendo do modo como u outre compõe situando um espelho no original, outra forma deste é percebida, uma nova forma é criada.

Após o convite para este ciclo, sugeri que nos reencontrássemos para construir um caleidoscópio virtual, tendo como referência o filme Art of mirrors, de Derek Jarman, que a tradutora e professora Dirce Waltrick do Amarante compara ao ato de traduzir. Para Amarante, que está lidando exclusivamente com a tradução literária, o exemplo serve como alegoria da tradução como espelho. Tradutor seria, então, aquele que traz a luz, direcionando-a com um espelho, podendo ofuscar u leitore com um erro de tradução.

Com nossos espelhos posicionados e um foco de luz, buscamos ofuscar as câmeras que traduzem a luz em linguagem numérica. Buscamos produzir uma continuidade absurda, uma construção virtual vertiginosa de reflexos.

Contemplo então duas experimentações de arte como tradução; em ambas há o desejo de transformação: a obra que traduz, no fazimento e nos processos de repetição, u outre em mim e outra que se dá frente ao olhar du outre ou na contemplação delu.

“Somos todos Narciso pelo prazer que nós experimentamos contemplando, ainda que contemplemos outra coisa que não nós mesmos”2 .

2 DELEUZE, Gilles apud DAVID-MÉNARD, Monique. Repetir e inventar segundo Deleuze e segundo Freud. Tradução de Luciano Laface de Almeida. Dossiê Filosofia e Psicanálise, n. 36, 2007, p. 22.

Na primeira experimentação, incorre-se no risco do vício, da não-invenção.

Na segunda, oferece-se uma tradução sempre transversal, que nunca ofusca, pois não existe erro de tradução se não se busca uma intenção original para uma obra e para uma existência3 .

3 Agradeceço ao Regrupo pelas imagens cedidas para a apresentação, em especial a Júlio Santa Cecília e Rodrigo Pinheiro pela formação do caleidoscópio virtual.

Maria Palmeiro é artista pesquisadora. Doutoranda no Programa de Estudos Contemporâneos das Artes da UFF, onde pesquisa/ produz o entrelaçamento entre pensamento, escrita e prática por meio de objetos, pinturas, performances e narrativas. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da ECO-UFRJ. Realizou residências artísticas em Barcelona (CanSerrat, 2017), Belo Horizonte (Espai, 2018), São Paulo (FAAP, 2019) e Rio de Janeiro (Refresco, 2020 e Silo, 2021).

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