APRESENTA
O ANJO DA MORTE Uma novela de
Gian Danton
Copyright © Gian Danton, 2002. Capa: Cerito 1ª edição dezembro, 2002 Tiragem: 100 exemplares
Edição: Hiperespaço Rua dos Vianas, 500/71, São Bernardo do Campo/SP - 09760-000
Prefácio
noveleta que pode ser lida nas próximas páginas não é um trabalho absolutamente inédito, pois foi recentemente publicado no segundo número do fanzine de FC&F Scarium. Então, por que ela está sendo republicada neste momento? Trata-se de uma dequelas cadeias de acontecimentos fortuitos, mas não acidentais, que as vezes ocorrem. O Hiperespaço, selo que está assinando esta edição, é um outro fanzine de FC&F que publica uma série de livros de bolso, a Nova Coleção Fantástica, na qual o autor deste volume, Gian Danton, teve uma edição, a noveleta de ficção espacial Spaceballs, em 2000. Convidado para uma nova edição, o autor animou-se em publicar justamente esta peça, mas devido ao fato da noveleta em ques-
A
tão ser curta (cerca de 5 mil palavras) para o formato dos volumes da Nova Coleção Fantástica (que publica trabalhos de no mínimo 12 mil palavras), decidimos em comum acordo publicar este volume em separado, uma espécie de edição especial que tanto pode ser encarada como uma publicação isolada quanto como um volume suplementar na Coleção. Além do mais, O anjo da morte é um trabalho repleto de significados, com vários níveis de interpretação possíveis. A fantasia tradicional, em trajes contemporâneos, aproveita ao máximo os elementos mágicos e aventurescos das história para jovens e, simultaneamente, oferece um subtexto maduro e perturbador. Tanto que, já de saída, deixamos para o leitor a decisão se O anjo da morte é uma história de horror, de ficção científica ou de fantasia. Boa leitura. Cesar Silva
O ANJO DA MORTE Gian Danton
TOMO I
“Às vezes parecia que, de tanto acreditar Em tudo que achávamos tão certo, Teríamos o mundo inteiro e até um pouco Mais: Faríamos florestas no deserto E diamantes de pedaços de vidro.” Legião Urbana – Andrea Doria
Nunca houve época como aquela. Eu vivia com Camila em uma casinha entranhada no meio do bosque. Era uma casinha rústica, mas bonita. Eu plantava flores em canteiros ao redor da casa. Assim, quando acordávamos éramos recepcionados por um arco-íris vegetal.
Eu então lavava meu rosto no riacho e levava água para que Camila fizesse o café. Enquanto ela cantava e eu a observava:
No mundo não me sei parelha, Enquanto me fora vida como me vai, ca já morro por vos — e ai mia senhora branca e vermelha, queredes que vos retrate quando vos eu vi em saia! Maldito dia que me levantei, que vos então nom te vi feia! Como era linda! Ela tinha cabelos ruivos, cacheados e longos, que desciam em cascata por suas costas. Um ou outro cacho caía, distraído sobre os olhos azuis ou os lábios muito vermelhos e carnudos. Talvez eu não tivesse razão para isso, mas o fato é que eu sempre me surpreendia com a beleza de Camila, com seus gestos delicados, com a doçura de sua voz. Desde que chegamos ali a beleza de Camila não se alterara minimamente. Isso não deve-
ria ser motivo de espanto, mas eu, acostumado ao nosso passado, mal conseguia acreditar em meus olhos. E, no entanto, lá estava ela: linda, suave como a brisa de verão, aconchegante como uma lareira no inverno. Não havia uma única ruga em seus olhos, uma única mancha em seu corpo, apenas maravilhosas sardas que lhe tomavam o peito. Eu jamais me cansava de admirá-la e me admirar com o milagre de beleza tão duradoura. Quando, enfim, ela terminava, nós tomávamos café olhando nos olhos um do outro e trocando sorrisos. Depois saíamos para passear pelos bosques. Ficávamos lá em cima, de mãos dadas, no meio das flores, observando o bosque abaixo de nós... Éramos felizes em nossa quieta solidão. Devo admitir, no entanto, que gostávamos de visitas, tão raro era recebê-las. Foi o que aconteceu certa tarde. Eu estava cortando madeira quando ouvi atrás de mim o trote de um cavalo. Um ho-
mem vestido de preto, usando um grande chapéu da mesma cor vinha em minha direção, montado em um majestoso corcel negro. Larguei o machado e me aproximei dele. Foi meu primeiro erro. Eu deveria ter aproveitado a chance para cortá-lo ao meio. Mas eu não sabia... Seja bem vindo, forasteiro! Ele apeou, tirou o chapéu e se persignou. — Sou um pobre alquimista que busca refúgio dos perigos da noite, meu senhor. — Minha casa é humilde, mas aqui você encontrará pousada. – respondi. Qual é o seu nome? — Flogisto. É como sou chamado. — Flogisto... — É o elemento universal responsável pela queima de todas as coisas... Nisso Camila apareceu à porta. Ela pousou a mão no batente e inclinou a cabeça, deixando que seus cabelos caíssem ao longo de seu corpo, como uma cachoeira rubra. — É sua esposa? – indagou o forasteiro, olhando pelo canto do olho. — Sim, esta é Camila.
— É demasiado bela! O alquimista se aproximou de Camila e, pegando-lhe a mão, beijou-a. — Sua beleza brilha como um farol nessa terra perdida. Camila sorriu um sorriso constrangido e convidou-o a entrar. Logo chegou a noite. Eu acendi a lareira enquanto Camila preparava uma sopa. — Há quanto tempo estão aqui? – perguntou o forasteiro. — Não faço idéia. – respondi. Não sei de quanto tempo se passou lá fora. Aqui o tempo é pontuado por nossa felicidade. — São felizes, então? — Jamais fomos tão felizes. – respondeu Camila. — A felicidade é isso? Viver entocada num bosque, longe de tudo e de todos? Em outros locais você poderia ser uma princesa... — Uma princesa tem medo. Uma princesa corre perigo. Uma princesa tem obrigações. Aqui somos só eu e meu amado. Ninguém se importa conosco.
— Todos corremos algum tipo de perigo. – tornou o forasteiro. Eu olhei para ele com olhos de chama. Não estava gostando do rumo da conversa. Parecia que eu sentia que algo terrível iria acontecer. Mas ele não notou meu descontentamento. Seus olhos estavam fitos em Camila. — Carlos me protege. Eu não tenho medo. O estrangeiro inclinou-se, aparentemente resignado. — A senhora me convenceu. Camila serviu a sopa, que comemos com delicioso pão caseiro. No final o estrangeiro abriu o alforje e tirou de lá uma caixa preta. Não quero partir sem antes dar-lhe um presente, minha senhora. Camila pegou a caixa. Eu tentei lembrá-la que abrir presentes era perigoso, mas já era tarde demais. Ela abriu a tampa e saiu de lá um mosaico maravilhoso de luzes coloridas. Elas se elevaram no ar e começaram a explodir como fogos de artifício. Camila olhava para o espetáculo, totalmente maravilhada.
Depois disso não houve qualquer incidente. Terminamos de comer, Camila arrumou o quarto de hóspedes e fomos dormir. Mas aquele presente misterioso não saía de minha cabeça. Naquela noite tive um pesadelo. Sonhei que Camila envelhecia progressivamente até que eu não pudesse mais reconhecê-la no meio das rugas. E ia diminuindo de tamanho, até que não sobrasse mais nada dela. Quando acordei, olhei para o lado e não encontrei minha amada. Saí desesperado pela casa, mas não a encontrei. Lembrei-me, então, do forasteiro. Ele também não estava em seu quarto. A compreensão me veio como uma relâmpago. Nosso visitante era um anjo da morte. Eu ouvira falar deles. Eles andavam pelos campos, pelas cidades, ceifando vidas. Ninguém sabia como escolhiam suas vítimas e talvez por isso fossem ainda mais temidos, pois aparentemente não seguiam nenhuma lógica. Peguei o machado, um capote e me pus a persegui-lo. Apesar de estar a pé, eu não po-
deria deixá-lo sair do bosque, ou talvez nunca mais o encontrasse. Caminhei horas e horas pela floresta iluminada apenas pela luz da lua. Meus pés já não agüentavam mais. Por fim desisti e sentei sobre o tronco de uma árvore caída e chorei. À medida que as lagrimas caíam de meus olhos, a realidade ia se dissolvendo, como uma pintura sobre a qual se joga água. O bosque, a montanha, a casa, tudo desaparecia gradualmente. A ilusão estava desfeita. Eu mentira para o forasteiro. Eu me lembrava muito bem há quanto tempo estava ali. Eram décadas. E, embora durante todo esse tempo eu tenha lutado para me esquecer, a verdade é que acabei me lembrando rapidamente: o bosque, a casinha, o canteiro de flores, a beleza de Camila, tudo era falso. Camila e eu nos casamos jovem, em uma metrópole. Não tivemos filho. Talvez por isso a velhice tenha nos pesado tanto. Quando ficou claro que nossos corpos morreriam em breve, fizemos o que todas as
pessoas de nossa idade (e até outras mais jovens) estavam fazendo: transferimos nossa consciência para a rede de computadores. Nossos corpos morreram poucos meses depois. Mas pouco nos importava. Estávamos em outro mundo, em uma realidade idílica. Escolhemos viver em uma época antiga, com mais ingenuidade e mais felicidade. A doença e a velhice já não eram fantasmas pairando sobre nós. Voltamos a ser belos e jovens. Nunca fomos tão felizes. Com o tempo recebíamos visitas que nos traziam as novidades: a cada ano aumentava a quantidade de pessoas que abandonavam o corpo para viver uma vida virtual. Afinal, quem não gostaria de viver no paraíso? Mas em todo paraíso há sempre o mal. O mal era personificado pelos exterminadores de consciência. No século XX eles seriam chamados de hacker, mas nós os chamávamos simplesmente de anjos da morte. Eles entravam em uma determinada realidade, escolhiam uma pessoa e a infectavam com um vírus, fazendo com que sua consciência fosse deletada.
Teoricamente havia uma maneira de resgatar a pessoa. O vírus nunca a deletava completamente. Sua consciência ficava presa em algum ponto da rede. Talvez houvesse uma maneira de salvar Camila, mas era muito remota. Cobri meu rosto com as mãos e chorei, em meio à imensidão virtual.
“Quase acreditei na sua promessa E o que vejo é fome e destruição Perdi a minha sela e a minha espada Perdi o meu castelo e a minha princesa” Legião Urbana
TOMO II Tão logo compreendi a verdade insofismável de que Camila estava virtualmente morta, mergulhei em profundo estado de melancolia. Deixei que minha consciência flutuasse pelo ciberespaço como uma nau sem rumo. Estava totalmente desgostoso de tudo.
Em todos aqueles anos em que vivemos juntos, estivemos sós, isolados do mundo. Conhecíamos muito pouco do ciberespaço para empreender a caçada. Por fim um pensamento foi se firmando. Uma lembrança. Um de nossos amigos nos visitara certa vez e nos dissera que estava vivendo em uma comunidade hippie. Talvez ele pudesse me ajudar. Empreendi a minha busca e me chegaram quatro opções, das quais eliminei três sem dificuldade. De fato, minha escolha foi acertada. Assim que entrei por um portal de flores, encontrei meu amigo esperando por mim. — Recebi sua mensagem. – disse ele, abraçando-me. Raul usava cabelos e barbas longos. Sua vestimenta era uma espécie de roupão branco, completado por sandálias de couro. — É realmente um prazer tê-lo aqui! Seu rosto exalava serenidade e paz. — Vejo que está feliz. — Feliz? Morrer fisicamente foi a melhor coisa que poderia me acontecer. Quando
morávamos no mundo real, você bem se lembra, eu era presidente de uma multinacional... e não tinha um único instante de sossego. Preocupações, prazos a serem cumpridos.. metas a serem atingidas. Eu não tinha paz nem mesmo quando estava de férias. Minha vida era um eterno inferno. Eu tinha muito dinheiro, mas pouca paz. Mas estou falando demais... Fale de você. Sua mensagem não dizia a razão de sua visita... Como está Camila? — Ela... ela... Não consegui continuar. Irrompi em um choro convulso. Raul passou a mão sobre meu ombro, na tentativa de me consolar. Outras pessoas se aproximaram e me olharam com curiosidade. — O que aconteceu com Camila? – perguntou Raul, por fim. — Um anjo da morte me tomou Camila. – respondi, segurando o choro. — Um anjo da morte? Houve uma comoção geral. Um burburinho começou a se espalhar pela turba. — Sim, um homem vestido de preto, com um grande chapéu e capa. Ele pediu pousa-
da em nossa casa e ofereceu um presente a Camila. Raul parecia estarrecido. — Qual era o seu nome? — Flogisto. Era assim que ele se chamava. Meu amigo abaixou a cabeça e ficou em silêncio, ruminando seus pensamentos. — Peçam para que Flor do Sol venha até aqui. O burburinho aumentou. Depois a massa de pessoas se abriu para a passagem de uma mulher. Ela trajava um vestido longo e colorido, tinha cabelos compridos, muito bonitos. Mas eu não conseguia distinguir seu rosto. No final, acabei percebendo que se tratava de uma máscara. Ela se aproximou e parou à minha frente. Raul nos apresentou: Esta é Flor do Sol. Este é Dom Carlos Wherter. A mulher dele foi deletada por Flogisto. Flor do sol balançou a cabeça tristemente. — Você também o conheceu? – perguntei. Houve silêncio. Ela passou um longo tempo lá, parada, decidindo se respondia ou não.
— Infelizmente. – foi a resposta abafada que ouvi depois de alguns minutos. A moça tirou a máscara. No começo não identifiquei nada. Era como uma imagem em baixa resolução. Depois percebi uma grande ferida que lhe tomava quase todo o rosto. Ela abriu o vestido: a ferida tomava quase todo o seu corpo! — Ele tentou me deletar. Eu sobrevivi, mas fiquei assim. Flor de Sol começou a chorar. Levou a mão ao rosto, tentando esconder a deformidade. Algumas pessoas se aproximaram para ajudála a esconder o corpo. Toda ela se agitava no choro que parecia não acabar mais. — Eu não compreendo... – disse ela, entre soluços.... eu não compreendo. Aqui poderíamos fazer o mundo que quiséssemos. Poderíamos ser felizes como jamais fomos em nossas vidas reais. Nada de doenças, nada de guerras, nada de morte. Viemos de um mundo em que militares matam índios, em que religiosos organizam guerras... Poderíamos construir um paraíso terreno... Eu não com-
preendo porque alguém usa isso para destruir, matar, aleijar, ferir... — Talvez a maldade esteja no âmago de algumas pessoas... – disse eu. Ficamos em silêncio. — Preciso ir. – disse ela, por fim. Algumas pessoas a ajudaram a caminhar para uma cabana. Raul olhou para mim. — Imagino que queira trazer sua mulher de volta. — Preciso encontrar Flogisto. Meu amigo balançou a cabeça afirmativamente. — Sim. Conheço algumas pessoas que talvez possam ajudá-lo. Há uma comunidade ciberpunk. Eles talvez consigam rastrear esse anjo da morte... Raul continuou falando, dando as orientações para que eu encontrasse o local. Eu fazia um grande esforço para compreendêlo. A imagem de Flor do Sol não saía de minha cabeça...
TOMO III
“Viajamos sete léguas Por entre abismos e florestas Por Deus nunca me vi tão só É a própria fé o que destrói. Esses são dias desleais” Legião Urbana
Pairei por entre mundos e realidades. Viajei por locais que não eram locais. Visitei instâncias como impulsos elétricos que percorrem um fio telefônico. Finalmente, depois de grande busca, cheguei ao lugar indicado. Era um grande prédio sofisticado. Ao entrar por ele, tive grande surpresa ao ouvir uma voz que me falava de lugar algum: — Entre, Dom Werther. Nós o estávamos esperando. Use o elevador. Penetrei no recinto, que foi acionado automaticamente. Logo parou e abriu suas portas. Uma ampla sala se descortinou diante de meus olhos. Um homem calvo, de barba, esperava por mim, um sorriso nos lábios.
— Eu sou Flávio. Seja bem vindo à nossa fortaleza... — Como sabia de mim? – balbuciei, saindo do elevador e desatando minha capa. — As informações voam, meu caro. Elas voam. Venha, quero que conheça o lugar... Ele colocou uma mão em meu ombro e indicou o caminho com a outra. — Aqui se reúnem pessoas das mais variadas especialidades. São pesquisadores anarquistas, cientistas revolucionários no sentido de Khun. Há pessoas pesquisando sublimares, teoria do caos, psicologia junguiana, cibernética... Enquanto falávamos, percorríamos corredores tomados por computadores. Aqui e ali havia grupos de pessoas conversando ou discutindo diante de uma tela. — O senhor certamente já ouviu falar de Norbert Wiener... o criador da cibernética. Claude Shannon asssistiu suas aulas e criou a teoria da informação. A cibernética está intimamente ligada a uma tentativa de reunir todas as ciências em torno de um objetivo comum. Wiener estava preocupado com a
compartimentação do saber científico. Nas reuniões que deram origem à cibernética estavam presentes matemáticos, físicos, psicólogos, biólogos... O ponto de vista cibernético era inovador e profético em alguns sentidos. Wiener queria humanizar as máquinas e se preocupava muito com a mecanização do ser humano. Para ele, uma sociedade humana jamais poderia ser modelada à maneira das formigas, pois as formigas só são como são por falta de inteligência. Ao contrário de nós, elas não têm aparato fisiológico para aprender, por isso se organizam em uma sociedade estática e uniformizada. Nós, ao contrário, passamos a maior parte de nossa vida aprendendo. Ao contrário dos outros animais, demoramos a ficar adultos. Nossa infância dura tanto tempo para que possamos reformular os conhecimentos da geração anterior... Passamos por um grupo que discutia filosofia aristotélica. Havia pessoas de todo tipo ali: homens, mulheres e até crianças. Não havia nenhuma uniformização em suas vestimentas. Uns usavam terno, outros camiseta e bermuda.
— Para Wiener, a sociedade da informação só poderia existir sob a condição da troca sem barreiras. Ela é, por definição, incompatível com o embargo, com a prática do segredo, as desigualdades de acesso à informação e sua transformação em mercadoria. A entropia é identificada com a falta de informação. E o avanço da entropia é diretamente proporcional ao recuo do progresso. — Sim, compreendo suas razões. Compreendo o que estão fazendo aqui. Mas o que isso tem a ver comigo? — Com você necessariamente nada, mas com alguém que você está procurando. Aquele que você chama de Flogisto. Anjos da Morte. Se nós somos a sinergia do sistema, eles são a entropia, espalhando o caos pelo ciberespaço. A informação não deve ser usada para destruir, por isso nós temos procurado descobrir esses focos de entropia. Talvez possamos ajudá-lo. Flávio parou em frente a um computador. — Estamos monitorando as atividades desses indivíduos que se autodenominam anjos da morte. Talvez você consiga nos ajudar a pegar ao menos um deles.
— Não tenho muitas informações. – respondi. — Quais informações tem? — Recebemos a visita de uma homem chamado Flogisto. Ele deu um presente à minha esposa, ela o abriu, saíram fogos. Na mesma noite tanto ela quanto ele haviam desaparecido... Flávio olhou para um rapaz ao lado. — Ele usou o vírus presente de boas-vindas. – disse o rapaz. Temos detectado esse vírus também em comunicações... — É mortal? — Não, talvez haja a possibilidade de fazermos um back-up, mas ainda não sabemos como. Até hoje não consegui ressuscitar ninguém... — Se há uma maneira... —... Flogisto sabe. – cortou Flávio. — Precisamos achá-lo. — Como? — Ele se identiticava como Flogisto? Vamos tentar rastreá-lo. – disse o rapaz. Seus dedos correram pelo teclado, enquanto sua testa enrugava. Ele, de tempos em tempos, balançava a cabeça negativamente.
— Não. Ele não está no sistema com o nick de Flogisto. Isso significa que ele veio de fora, do mundo real. Ele entra com um nome e muda já dentro do sistema. Flávio coçou o queixo. — Flogisto... Os químicos anteriores a Lavoisier usavam a palavra para descrever uma substância misteriosa que seria responsável pela queima de todos os materiais. Para eles isso explicava porque algumas substâncias queimam mais facilmente: quanto maior a quantidade de flogisto, maior a possibilidade da matéria se inflamar. A descoberta do oxigênio, por Lavoisier, demonstrou que o Flogisto era uma falácia. As substâncias queimam em contato com o oxigênio. Por isso não há fogo no vácuo. O filósofo Thomas Khun usou o caso como exemplo da emergência de novos paradigmas no livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”... — Poderíamos tentar a chave paradigma. – sugeriu o rapaz. — Não, não. Nosso inimigo está pouco interessado em revoluções científicas. Ele ficou fascinado com a idéia de uma substância
que queima tudo, uma fonte universal de entropia... Ele pretende se identificar como uma força da natureza, que leva todas as coisas em direção ao caos... Tente entropia. O rapaz voltou ao teclado e digitou a palavra entropia. Novamente a busca se revelou infrutífera. O mesmo foi feito com caos, mas sem resultado. — Estamos indo por um caminho errado, ou seguindo uma pista falsa.— raciocinou Flávio. De que outra forma poderíamos identificá-lo? — Ele usava um colar com um medalhão no qual uma cobra engolia o próprio rabo. – lembrei-me. — Talvez seja isso. Uma cobra engolindo o próprio rabo forma um círculo. Na simbologia esotérica o circulo é particularmente importante. Os magos protegem-se de maus espíritos alojando—se no interior de um círculo mágico traçado no solo. Freqüentemente são traçados dois círculo. Um menor dentro do maior. No espaço entre os dois são escritos os diversos nomes e atributos da divindade que se pretende evo-
car. O círculo representa a perfeição, a unidade, a interação de todas as coisas. Ele lembra o modelo universal usado pela natureza na produção de uma série de coisas: árvores, planetas, conchas, olhos. Aristóteles transformou o movimento circular em dogma astronômico. — Para ele, a Terra encontrava-se imóvel no centro do universo, rodeada por nove esferas concêntricas e transparentes. Na primeira camada ficaria a Lua, seguida pela camada de planetas e assim sucessivamente, até a última camada, Deus, o motor de todas as coisas. — Mesmo após a teoria heliocêntrica, que tirava a Terra do centro do Universo, o círculo continuou sendo usado pelos astrônomos para descrever o movimento dos planetas. – ajuntou o rapaz. — Isso porque o círculo era considerado a figura perfeita... Tente círculo. O rapaz voltou ao teclado. Entretanto, mais uma vez sua busca se revelou infrutífera. Flávio coçou novamente o queixo. E franziu o cenho.
— Lembro-me de algo a respeito de uma cobra engolindo o próprio rabo... Algo a ver com o sonho... Ah, claro. É química. O químico alemão Firedrich Kekulé estava tentando descobrir como os seis átomos do benzeno se ligavam. Todas as suas tentativas se revelavam infrutíferas. Ele dormiu e sonhou com uma cobra engolindo o próprio rabo. Era a resposta: os átomos se ligavam em círculo. Tente benzeno. O rapaz rastreou novamente o sistema, agora com a chave benzeno. — Aqui está ele. Nós o achamos!
TOMO IV Assim que abri a porta, deparei-me com um espetáculo fantástico: o bar era uma miríade de épocas, gostos e imaginações. Era como se o tempo tivesse enlouquecido e todas as eras se reunissem em um único lugar.
Uma egípcia passou por mim, sua peruca negra ondulando suavemente. A um canto, um grupo de legionários bebia e soltava gargalhadas estrondosas. Um casal inca bebia aiuasca e conversava. Prostitutas gregas ofereciam-se por uma caneca de vinho. No palco, um grupo formado exclusivamente por mulheres tocava música tecno. A vocalista era linda. A bota e a saia de couro negro contrastavam com a pele alva. Tinha lábios negros e sensuais pintados de preto. O cabelo era negro e liso e os olhos azuis me fizeram lembrar Camila. Ela pulava no palco, enraivecida e sensual, enquanto luzes explodiam atrás dela. Eu o encontrei sentado em uma mesa afastada, olhando como que hipnotizado para a cantora. Estava vestido de negro como antes, com um medalhão sobre o peito. Flogisto me olhou brevemente quando me sentei à sua mesa, depois tornou os olhos para o palco. — Então é aqui que você encontra suas vítimas?
— Venho aqui para me divertir. – respondeu ele, sem me olhar. — Onde está Camila? — Morta. Houve um longo e doloroso silêncio. — O vírus não era mortal. – eu disse. — Talvez não. Pela primeira vez ele me olhou de frente, exibindo um sorriso irônico. Não me agüentei. Pulei sobre ele e cravei meus dedos em sua garganta. Um grupo de vikings se levantou para olhar, mas logo voltou a seus canecos de cerveja. — Quero saber onde ela está! Ele tentou sorrir, mas a pressão de meus dedos fez com que mudasse de idéia. — Onde ela está? — No convento... no convento de Loudun... – balbuciou ele. Era um local de tortura de grupos religiosos fanáticos. Hoje é um convento de freiras. Eu a emparedei no porão. A revelação me atingiu como um choque. Imaginei Camila entre duas paredes, no escuro, o ar acabando aos poucos, mas ela nunca morrendo...
Soltei-o, fazendo com que desabasse sobre o chão. — Eu vou buscá-la... e então voltarei para pegar você.
TOMO V Mais uma vez, mergulhei no emaranhado caótico de informações. Em meu espírito misturavam-se a raiva e a ansiedade de encontrar minha amada. Meu coração pulsava como um louco quando me deparei com um convento medieval. Atravessei uma ponte sobre o poço que contornava a construção. Lá embaixo, animais estranhos e vermes se contorciam. Segurei uma argola de ferro e bati várias vezes. Uma freira abriu a grande porta de carvalho. — Você estava sendo esperado. – disse ela. Em seguida virou-se e começou a andar.
Eu a segui. Nós percorremos corredores escuros, subimos escadas e paramos em um amplo salão. Havia freiras enfileiradas dos dois lados, em perfeita simetria. Ao centro, uma mulher, a parte de cima de seu corpo nu e os braços presos a uma espécie de cruz. Estava sendo flagelada por uma monja. Seus gritos enchiam o local e voltavam em eco. Ao fim de algum tempo, quando suas costas já estavam rubras, uma das freiras se aproximou, soltou seus braços e a cobriu com um pano negro. A prioresa se levantou e aproximou-se de mim. — Às vezes, quando o desejo da carne é forte demais, é necessário aplacá-lo com a dor. Fiz que sim com a cabeça e afastei-me para dar-lhe passagem. — Flogisto, ou qualquer que seja seu nome... para mim ele se identificou como Grandier... ele esteve aqui. Maldito. Ela ficou em silêncio, trincando os dentes. Eu não sabia se era a dor do flagelo ou a dor das lembranças que a atormentavam.
— A propósito, meu nome é Joana dos Anjos. Ela tropeçou, como se não conseguisse suportar o peso de seu próprio corpo, mas foi amparada por outra feira. Seu rosto era anguloso, mas belo. Tinha olhos enormes e negros. Seus lábios eram finos e brancos. — Grandier trouxe uma mulher para cá. – ela disse, recompondo-se. Eu achava que estivesse interessado em mim, mas ele só parecia ter olhos para a câmara de torturas. Enquanto falava, ela descia as escadas. Estávamos indo para o porão. — Ele a torturou por um longo tempo. Esticou-a, arrancou suas unhas, tirou pedaços de sua pele e cobriu as feridas com chumbo derretido. Eu não imaginava o que Grandier queria dela. Ingênua, eu imaginava que ele estivesse simplesmente brincando com ela, como um garoto malvado que se diverte arrancando as pernas e braços da boneca da irmã. Eu estava apaixonada por ele... No local mais baixo da escada, penetramos em um recinto escuro. Uma das freiras acen-
deu uma tocha e depois outra e outra.O local foi tomado por uma luz vermelha e bruxuleante. A câmara era repleta de instrumentos de tortura. Só ali, em meio aos instrumentos que haviam maculado Camila, é que fui tomado de ódio e pavor. Até então era como se falassem de outra pessoa. Mas ali era impossível não sentir em minha própria pele o sofrimento de minha amada. Percorri instrumentos, tocando-os com os dedos. Havia uma cadeira, aos pés da qual estavam depositados dois sapatos de madeira. Havia manivelas, que apertavam os dois lados do sapato até que os ossos se quebrassem. Havia funis, feitos para obrigar a vítima a engolir água até que seu estômago estourasse. Havia... fechei os olhos, incapaz de continuar olhando. Fiz isso a tempo de ouvir Joana. — Ele a torturou por um longo tempo... e depois a emparedou aqui. Abri os olhos e olhei o lugar em que ela apontava. Peguei uma marreta e comecei a destruir os tijolos, enquanto Joana gritava: — Não! Pare!
O ódio me fazia surdo. Continuei golpeando até que a parede estivesse totalmente destruída. Camila não estava lá.
TOMO VI Eu estava de volta o bar, mas não me preocupava com a mistura de tempos e épocas. Minha mente tinha um único pensamento, um único objetivo: encontrar Flogisto. Eu o encontrei na mesma mesa, no mesmo local, sorvendo calmamente um copo de cerveja. Tive o impulso de pular sobre ele e matalo ali mesmo. Mas me detive. Eu necessitava encontrar Camila. — Você me enganou. – eu disse, sentando ao seu lado. Ela não estava lá. — Não. Ela não está mais lá. – retrucou ele, e tomou um gole de cerveja.
No palco a cantora continuava a cantar e dançar sensualmente. Flogisto olhou para ela por longo tempo antes de voltar a falar. — Eu realmente a prendi entre quatro paredes. Antes disso eu a torturei até que não houvesse diferença entre Camila e a dor que ela sentia. Ela ficou presa entre duas paredes por quatro dias. Ao final desse tempo eu lhe fiz uma proposta. Uma proposta?
— Ela ficou realmente agradecida por eu tê-la livrado do sofrimento e da solidão. Eu ousaria dizer que seu agradecimento não poderia ser distinguido do amor. — Amor? Onde ela está? Onde está Camila? Eu estava gritando, mas parei quando o palco se tornou silencioso. Todo bar ficou escuro e somente uma luz se acendeu sobre a cantora, que permanecia imóvel, a cabeça baixa. Um leve som de liras surgiu ao fundo. Ela levantou a cabeça e começou a cantar. Sua voz era como o marejar suave de um riacho límpido:
No mundo não me sei parelha, Enquanto me fora vida como me vai, ca já morro por vos — e ai mia senhora branca e vermelha, queredes que vos retrate quando vos eu vi em saia! Maldito dia que me levantei, que vos então nom te vi feia! Flogisto olhou para mim e começou a rir: — Penso de fato que o agradecimento a transformou... e transformou seu amor.
Postscriptum
os dias atuais não é de bom tom um autor explicar sua história. A idéia é que cada leitor faça sua própria interpretação. E espero sinceramente que seja isso que aconteça. Entretanto, em uma novela como O Anjo da Morte, uma palavra ou outra sobre as referências talvez ajudem a uma melhor compreensão da obra. A idéia para a história surgiu em Manaus, no ano de 2000, durante o XXIII Congresso Intercom de Ciências da Comunicação. Na época eu estava assistindo uma apresentação do quadrinista Edgar Franco, que falava sobre a relação entre os quadrinhos e as novas tecnologias. Como é característico desse brilhante conterrâneo, ele antes fez uma ótima introdução sobre como as novas tecnologias
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estavam mudando nossa relação com o mundo. Lá pelas tantas ele se referiu a autores que consideram um futuro no qual a diferença entre classes será entre os que têm próteses cibernéticas e os que não as têm. Outros acreditam que, ao invés de transportar o computador para nosso corpo, talvez o ideal seja transportar nossa consciência para a web. Seria uma forma de imortalidade. Para os que ficaram curiosos, o texto completo pode ser lido no banco de papers do Intercom: http:/ /www.intercom.org.br/papers/xxiii-ci/gt24/ art-gt24.html. A idéia de pessoas convivendo em uma ambiente totalmente virtual era tentadora, e, na época, comecei a pensar em escrever algo levando em consideração essa abordagem. Uma influência não tão óbvia, mas que permeia todo o texto é o escritor norte-americano Edgar Alan Poe. Um dos maiores gênios do século XIX, ele criou a novela policial, lançou as bases do romance científico, fez as primeiras análises da sociedade de massa (no conto “O Homem das Multidões”), e foi provavelmente o primeiro escritor popular a
escrever sobre cibernética e semiótica (em uma época em que essas disciplinas ainda não existiam). Edgar Alan Poe, ao lado de Monteiro Lobato, George Orwell, Isaac Asimov e Ray Bradbury, é a minha influência literária mais duradoura. Além dos aspectos relacionados anteriormente, há uma característica nos escritos de Poe que o fazem especial para mim: o clima romântico e ao mesmo tempo científico de suas histórias. Influenciado por Poe, eu só poderia começar minha história em um clima romântico. Lá estão Camila e Carlos Werther (o sobrenome é referência a um dos principais livros do romantismo, Os Sofrimentos de Werther) em sua casinha, felizes como todos nós gostaríamos de ser. Uma aluna escreveu em seu blogg que se pode tirar várias conclusões de O Anjo da Morte, mas que a dela era de que, não importa em que mundo ou realidade você viva, sempre haverá alguém para tentar roubar nossa sonhada paz e felicidade. Na vida real, os vilões que nos tiram a paz e a felicidade não são bem vindos, mas na li-
teratura não se pode viver sem eles. Uma história sem conflitos é simplesmente uma história entediante. Assim surgiu Flogisto. Quando pensei a história, imaginei as pessoas como programas de computador. Que tipo de perigo enfrenta um programa? Um vírus, claro. A descrição do vírus, inclusive, lembra o Happy New Year. Aliás, o conselho sobre ter cuidado com presentes é uma analogia direta com o cuidado que devemos ter com arquivos atachados, mas estou certo de que meus leitores perceberam isso, de modo que falaremos de Flogisto. O nome surgiu do livro de Thomas S. Kuhn A Estrutura das Revoluções Científicas. Essa foi uma das minhas principais leituras à época do mestrado e talvez a revolução química efetuada por Lavoisier tenha sido a que mais me marcou, até porque a idéia de um elemento universal responsável pela queima de todas as coisas é tão equivocada quanto interessante. Também digno de notas é o convento em que Flogisto prende Camila. Em 1693, a madre superiora do convento de Loudun, na
França, apaixonou-se pelo padre Confessor, um tal de Grandier. Este, que já tinha uma amante, desprezou-a. Como resultado, a Madre Superiora passou a fingir que estava possuída por demônios e acusou o padre de tê-la enfeitiçado. Logo todas as freiras estavam envolvidas em sessões públicas de exorcismos que incluíam até a aplicação de enemas. Adous Huxley escreveu um livro sobre o assunto, Os Demônios de Loudun. Lendo o livro, percebemos que o demônio está onde querem que ele esteja. Curiosamente, só há pessoas endemoniadas em religiões e seitas que dão mais ênfase ao poder do demônio que ao amor de Deus. Em todo caso, o convento de Loudun e a madre superiora apaixonada e histérica eram o cenário ideal para a parte final de minha história. A música cantada por Camila é a chave para a compreensão da história. Essa música é de autoria de um poeta português da Idade Média. Encontrei-a vasculhando na internet e, tempos depois, quando voltei a busca-la para anotar o link, este havia desaparecido.
De modo que fico em débito com essa referência. Para terminar, uma dica: o final é um caso óbvio de Síndrome de Estocolmo. Confesso que cheguei a pensar em chamar a história de Síndrome de Estocolmo, mas isso, além de eliminar a possibilidade de um título romântico, tirava boa parte do suspense. Gian Danton
O autor
ian Danton é Ivan Carlo Andrade de Oliveira, mestre em Comunicação Científica e Tecnológica pela Universidade Metodista de São Paulo. É autor dos livros Manual de Redação Científica (CEAP, 2001), Manual de Redação Jornalística (Faculdade Seama, 2001) e Cultura Pop (Faculdade Seama, 2002) e organizou a coletânea Agulha Hipodérmica - o poder e os efeitos dos meios de comunicação de massa. Tem lançado diversos livros eletrônicos pela editora Virtual Books (www.terra.com.br/ virtualbooks). Um deles, A Divulgação Científica nos Quadrinhos, foi indicado como livro do mês pela revista Mídia e Educação da Rede Brasil (http://www.tvebrasil.com.br/ educacao/biblioteca/default_1.htm).
G
Em 1999 recebeu o Prêmio Especial NovaSBAF por uma de suas histórias, ilustrada por Antonio Eder e Jefferson Arantes, publicada na revista Manticore Especial (Ed. Monalisa). É colunista do Digestivo Cultural (www.digestivocultural.com) e colabora frequentemente com diversos fanzines e publicações alternativas literárias e de quadrinhos. Atualmente é professor universitário em Macapá/AP.