Edições Especiais
APRESENTA:
O incubado Rogério Amaral de Vasconcellos
São Bernardo do Campo, SP 2003
nº 3 - 2ª série setembro/2003 Publicação independente e não-profissional de ficção científica, fantasia e horror filiada à SBAF - Sociedade Brasileira de Arte Fantástica. Editor: Cesar Silva ceritosilva@yahoo.com.br São Bernardo do Campo - SP - 09760-000 Capa: Cerito Os textos e ilustrações presentes nesta edição são de propriedade e responsabilidade dos respectivos autores. São proibidas reproduções, no todo ou em parte, sem autorização dos mesmos. Edições anteriores da Nova Coleção Fantástica: 1- O camarada O'Brien, Roberval Barcellos (FC) 2 - A Esfinge Negra, Miguel Carqueija (FC)
Filiada à
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Apresentação
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sta edição da Nova Coleção Fantástica inaugura um novo modelo para as capas, sem o predomínio do título da Coleção, que agora dão destaque ao que merece ser destacado: o nome do trabalho publicado e de seu autor. Desse modo, os autores certamente ficarão mais satisfeitos com a repercussão de seus trabalhos, e os leitores identificarão melhor cada volume. Portanto, já está bem claro para o leitor que neste número apresentamos a noveleta inédita "O incubado", do jovem escritor carioca Rogério Amaral de Vasconcellos. Esta noveleta conta uma movimentada aventura de FC com toques de terror, na qual os seres humanos enfrentam uma situação inesperada durante uma colonização planetária aparentemente tranqüila, que poderá levar a toda a civilização humana um perigo tão antigo quanto horrível. Uma boa história de ação e mistério, com horror em dose suficiente para arrepiar os cabelos. Rogério Amaral de Vasconcellos é formado em Física pela Faculdade de Humanidades Pedro II (Fahupe). Participou de vários concursos literários com boa classificação. Em 1999 teve publicado o e-book Campus de guerra, pela editora Writers. Muito ativo no ambiente 5
dos fãs, é organizador de uma oficina literária na internet, a SLEV, já em sua terceira edição anual, pela qual organizou em 2001 a antologia Idade da decadência: Inferno em Khallah, publicada por demanda. Colaborou com diversos fanzines brasileiros e é editor do fanzine Scarium. Não perca mais tempo, embarque com estes colonos do futuro em direção a aventura de suas vidas. Boa leitura. O editor
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O incubado RogĂŠrio Amaral de Vasconcellos
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1 Seus passos não eram ouvidos. O batimento cardíaco tão forte que a tudo suplantava. Para piorar, o chão era duro e seu desespero tendia ao infinito. Deixava também um rastro sangrento, minando em placas que caíam diretamente do vértice de suas coxas. Como corria por sua vida, da mesma forma a hemorragia era a vida correndo dela. Mas não tinha alternativa. Se queria um destino, melhor seria este, do que as mandíbulas de seus perseguidores. As mandíbulas que, reconhecia a contragosto, viriam depois da curra... Aquilo fez com que tropeçasse ao olhar para trás, coisa que nunca deveria ter feito, já que lá estavam eles, mais de oitenta, gritando, diminuindo terreno. * Perceberam que não lidavam com um bando de silvícolas vulgares por não conseguirem, na abordagem usual, se fazer enxergar como deuses-astronautas. Haveria alguma inteligência ali? Decidiram por pouco provável. “Ignóbeis em excesso” para ganharem tal rótulo, foi o veredicto da Corporação, e assim se mantinha. 9
Era também uma raça pragmática que os aceitou no mundo deles sem as questiúnculas costumeiras, contudo alijados ao extremo. Cada um em seu terreno e o mínimo de interação entre eles fôra a chave do sucesso até então. Um ‘sucesso’ absolutamente relativo, em vista do que vinha acontecendo... A humanidade, vendo os pêlos ruivo, azul e dourado (não importava a combinação dessas cores), desnudos de indumentária, bem que tentara vesti-los; a hipocrisia de sempre cobrando sua decência, como se fossem os aborígenes da velha pátria original, perdida no tempo e no espaço. Esconder aqueles penduricalhos, badalos oscilantes e cavalares, que os machos desfilavam sem qualquer vislumbre de pudor, tornou-se a missão do 2o comando de desembarque. Tiveram tanto ‘êxito’ na catequese que a mesma repercutiu nos 82 anos seguintes: instruir os nativos se tornou idêntico a ensinar um macaco surdo a continuar qualquer das sinfonias inacabadas de Schumman... Melhor resultado teve a divisão mecanizada ao preparar 600 km2 de terreno e fazer dali um entreposto e uma cidade, adaptados, com algumas comodidades, para quem fixasse residência. Ainda assim o tempo provou que o esforço pioneiro estava fadado à extinção. Porém uma coisa ajudou bastante na escolha daquele mundo: Milhões de créditos poupados, pois nem precisaram consolidar um campo de pouso para as na10
ves cargueiras que o futuro previa, já que em Trion – um mundo 20% maior que a Terra e massas continentais bem mais vastas, sem aumento significativo na gravidade –, como relíquia explícita de uma civilização não mais existente, havia um espaçoporto abandonado que só tiveram o trabalho de demarcar e carpir. Para uma empresa relativamente endividada, em comparação com um mercado sempre competitivo e há mais tempo constituído, a Antuérpia Empreendimentos Espaciais achava que tirara a sorte grande ao arrematar uma carta de navegação no mercado negro, onde o investimento em Trion prometia retorno em menos de um século de exploração. O resto foi fácil, já que escoar humanos nunca fôra empecilho. As matrizes, que a coelheira da pátria ancestral vinha cedendo à galáxia, acabaram sendo úteis para alguma coisa afinal! Com promessas tão tentadoras, não havia como recusar. Quatro mil colonos-meeiros, antes de se tornarem efetivamente donos e tomar posse, seguiram para lá. Porém não foi tão fácil assim. Apesar da indiferença aparente dos nativos de estatura elevada, a pachorra deles não convencia ninguém. Devia existir algo atrás disso. Sinais não faltavam. Há coisa de uns doze anos, a população humana vinha sendo, aos poucos, misteriosamente sangrada. Meeiros tiveram de abandonar suas fazendolas e buscar refúgio na única cidade construída. Mesmo assim 11
nada parecia adiantar. Nos gráficos de desbravamento de novas terras, o fator de risco/óbito, nos estágios iniciais, não propiciava pânico, isto porquê geralmente as causas costumavam aparecer. No caso de Trion, onde a inconstância podia significar um modus operandi, não. Os colonos, filhos de filhos duma linhagem de colonos, gente dura, o arcabouço da humanidade, que tinham como missão peitar qualquer desafio, pois estava no sangue deles fazê-lo, começavam a fraquejar. * Foi na oitava expedição que a exobióloga Joana Blair desembarcou no planeta. Vinha cheia de expectativas, sonhos acadêmicos de, em uma década, voltar para casa e usufruir de riquezas, com uma cátedra numa tranqüila cosmoescola; pronta para ser adulada por seus iguais, causando espanto com seus vastos conhecimentos de campo, a despeito de sua pouca idade. Tudo em vão. O futuro mostraria isso, pois não só não lograria êxito em sua empreitada, como os nativos (a base de sua estada ali, ainda que apenas indireta) se encarregariam de mostrar a ela o contrário. Quanto mais se aproximava desse dia, mais ela pensava que deveria ter confiado em seu instinto, no arrepio da nuca, quando desembarcara de um leva-traz naquela manhã cinzenta. A visão da cidadela encarapitada na encosta, dos guardas armados perambulando 12
em grupos, da população encolhida, com os olhos pesados, insones, arrastando-se sob as luzes, fugindo das sombras, não ajudaram a melhorar essa impressão inicial. No entanto deixou o Cargueiro despejar sua carga de víveres, correspondências, ‘artigos de luxo’ e colonos, lutando contra o vento que tentava arrancar seu capote institucional, cedido pela Corporação que explorava Trion, no aglomerado Krotalus. Só quando estava no alto de uma ‘mula’ – veículo abarrotado de volumes e rebocando alguns contâineres –, foi que conseguiu dedicar maior atenção ao fim de mundo aonde viera dar. Perséfone, a cidade que tinha fama de devoradora de homens. A única no planeta, estigmatizada como sendo uma espécie de poço sem fundo para a espécie humana se desenvolver. Porém uma cidade limpa em outros sentidos mais tangíveis, saneada por robôs, com poucos e grandes prédios piramidais, cinturões de residências-padrão, se revezando com parques mantendo a flora adaptada de diversos mundos colonizados pelo Homem; as áreas industriais na periferia e o comércio na parte central, onde, assim parecia, todos estavam provisoriamente alojados. Quando a mula prosseguiu no trilho condutor, deixando Joana numa estação de triagem, ela imaginava se realmente haveria algum fundamento atrás daquelas histórias de meter medo em gente grande... 13
Estudando um enorme mapa na gare, que apesar de ser dia estava quase deserta, enquanto não chegava seu comboio, Joana procurou adquirir um ‘folheto turístico’ e um panfleto reacionário pouco entusiasmador. Ótima chance de comparar com o pouco que sabia sobre o lugar. As expedições colonizatórias cumpriram a parte delas despejando pouco mais de quinze mil cidadãos do governo terrestre, sorridentes e orgulhosos de seus certificados de posse compulsória. Contudo seria difícil, naquele exato instante, encontrar um único naquele contingente anterior que mantivesse a expectativa inicial. Nem era o mundo em si, pois mostrou-se, em média, bem adequado à variedade de gostos dos colonos, a maior parte deles ‘profissionais do ramo’. Bastava olhar para o cemitério, se queriam refrescar a memória, e ninguém nunca precisou desse estímulo tétrico. Permanecia um cemitério com poucos corpos, mais lápides e ‘in memorians’ que covas, talvez um dos únicos no universo com esta característica. Estavam cientes de que a morte se alastrava com uma velocidade alarmante, a tal ponto que uma família sem pelo menos uma vítima desse mal misterioso seria uma coisa rara de se encontrar... Já que óbito não se destacava como palavra ideal, na medida em que nunca conseguiram encontrar um único corpo inteiro, só vestígios de entranhas e sangue em abundância (exames apontando as vítimas, uma 14
vez que todos tinham bancos de dados bem pormenorizados ), ainda se procurava uma forma de melhor explicar tudo isso, pois a ação de um carniceiro assim não podia ficar impune. Daquela vez calhou de não serem vírus complexos ou o planeta lutando com seu invisível exército bacteriano. Nem havia necessariamente algo lá fora, aguardando para entrar, já que nenhum lar era inexpugnável o bastante para deter os desaparecimentos. O local era indiferente, pois o mal invisível não encontrava barreiras em nenhum lugar. Continuar em Trion se tornara uma loteria mortal. Quem ficava, depois de investir o sangue através do suor do seu trabalho, acabaria por verter o mesmo sangue de outra forma. Estavam cônscios que pouco faltava para um levante popular e um êxodo generalizado. Foi esse mundo que Joana viu, com exíguas 13.285 almas corroídas pelo medo, se misturando, juntamente com o contingente de pouco mais de trezentos novos gatos pingados. Com a Corporação trabalhando duro, dando cotas maiores, promessas de isenção de impostos de sucessão, para somente ocupar 1/10 da capacidade total de um único pequeno cargueiro. Outra nave assim, exceto as de menor calado ou de ‘tara morta’, só em quatro anos padrão, salvo, em ultíssimo caso, uma intervenção terrestre, que não estava de todo descartada... 15
“Onde vim parar...”, pensou, hesitando um pouco, antes de se acomodar no comboio em uma nova conexão. Seus sonhos de glória estavam prestes a ser confrontados, já ameaçados no nascedouro. Mas, nesta altura, uns poucos anos antes, só conhecia uma fração da ‘verdade’ e não tinha a menor noção do que a aguardava. Assim era a vida. Sem garantias. Bastava trepar numa pluma e o furacão se encarregava do resto. 2 O velho mas resistente piso do espaçoporto não tinha arrefecido, refletindo os efeitos de um dia inteiro sob o sol geminado e seu irmão mais próximo (embora não tão massivo) que constavam nos mapas divulgados como Kaluzian-Bezniec, quando ela, os pés queimados na longa travessia, atingiu a cerca de contenção. Desde o início a fugitiva fora alçada à função de pesquisadora de seu povo e, ultimamente, de ‘relações públicas’. Contudo, como o desespero dá asas, não encontrou dificuldade para driblar ou trepar monturos e assim vencer a pequena montanha de escombros que um dia formaram uma parede sólida, encimada por outra muralha energética, da qual não havia mais vestígios. Não só atingiu como ultrapassou os obstáculos que se espraiavam a frente. Foi quando começou a 16
ouvir, a audição aguçada como nunca, o eco das passadas de seus perseguidores. Um som de afugentar o sangue de qualquer rosto, deixando o músculo cardíaco paralisado entre um tumtamtum e outro, embora só não fizesse deter a hemorragia que, tudo indicava, atiçava os nativos em sua caçada implacável. Apesar de bem formados, estes conseguiam ser mais alienígenas do que muitas espécies sem o carbono como base orgânica vital. Ela, que um dia chegara a aventar teses mirabolantes sobre eles, fôra obrigada pelos fatos a enxergar que nada conseguia ser tão mirabolante como a realidade. Destacavam-se como tão broncos que via dificuldade em imaginar como alguma cultura poderia ser associada àquelas bestas, dando-lhes uma demão de tinta civilizada. Mas era apenas sua mente tentando culpar alguém, quando a ‘culpa’, se tal cabia, se situava na órbita da arrogância, em disponibilizar um planeta sem um meticuloso exame preliminar... A fuga continuava, alternando impressões com momentos em que sua mente trazia a tona tanto vácuo que corria o risco de uma descompressão explosiva. Por isso tentou manter os pés no caminho e sua cabeça no inferno chamado recordação. Combustível para a sobrevivência. Arfava ao embrenhar-se pela floresta de arbustos longilíneos, não querendo trocar um pânico por outro, sendo porém difícil pois percebera que a vegeta17
ção estava sensível à sua presença, oscilando e lançando tentáculos-cipós em sua direção. Numa clareira, em um trecho menos tateante e fora do alcance dos cipós, curvou-se e vomitou aquilo que não tinha, o gosto acre se misturando com o cheiro pungente do sangue e o apunhalar de mil sensações, nenhuma delas agradáveis. Ainda assim anteviu o rumo, esperando atingir o objetivo até o começo da noite. Se não conseguisse êxito na tarefa sobre-humana, nem valia mais a pena continuar tentando. A noite daquele planeta podia trazer um céu esplendoroso, uma caixa de jóias onde se destacavam oito luas como adornos orbitais, disputando o espaço com as estrelas daquele setor oriental da galáxia. Mas, nem mesmo os fenômenos estupefacientes da alta atmosfera despertavam nela qualquer coisa além da agonia, frente ao indizível espetáculo mortal de que participava ali embaixo. Na noite os desejos canibais sublimavam-se. Nenhuma entidade biológica nativa permanecia inerte... O sangue derramado só intensificava seu pesadelo. Não podia fazer nada quando ela própria era a isca. * — Tem certeza que nunca fez isso antes, hein, hummm... delícia! — dissera o gordo representante da 18
corporação, apesar de saber que não seria entendido, entre desconfiado e num crescendo orgástico, privilegiando o segundo sentido. A nativa, de estatura bastante elevada, uma préadolescente se comparada aos padrões humanos, afastou a crina dos grandes olhos enviesados. O apanhado cabelo-face-corpo podia despertar opiniões variadas, mas havia um equilíbrio estranho que atiçavam o homem para o conjunto exótico. Muitos afirmavam que era o ‘feitiço da selva’. O gordo, que nunca tivera inclinação misógina, preferia falar menos e usufruir mais. A gemedeira dele sublimava isso. A responsável por tanta barulheira cumpria as ordens do homem como se captasse cada vontade oculta e confessada; com diligência invulgar fazia o pau dele surgir e desaparecer novamente, encapsulado por sua boca larga. O movimento era vertiginoso, apesar de inconstante, alternando mordiscadas com lambidas; a língua dela, fina e com uns 20cm de comprimento além da boca, era dotada de movimentos que nem a mais destra concubina humana conseguiria imitar. Juntando-se a isso os finíssimos bigodes da nativa, um ronronar e unhas retraídas – ainda assim afiadas –, e Bartholomei Montroia Sanches se entregava cada vez mais ao felatio que a alienígena lhe propiciava. Apesar de sua elevada posição no escritório local da Corporação no sistema K-B, o posto de Bart era absolutamente decorativo. O pai tentava fazê-lo en19
xergar o comércio como algo feito de corpo & alma, um sacerdócio no monastério empresarial, mas o filho preferia dar atenção somente à carne, agigantando-se em quilos e investindo no prazer, através de ‘sexo underground’. Nos quase dois anos ali, ele brincava com o poder, já que sabia que seu co-diretor, “o melhor de toda corporação”, segundo o pai, era quem fazia o trabalho, sendo competente o suficiente para acumular funções, entre elas trocar as fraldas do meninão e zelar para que este se mantivesse inofensivo. Só que o gordo filho-herdeiro preferia sempre dar trabalho ao melhor dos homens. Fazer as merdas e contar com um lixeiro assim era, realmente, providencial! Esqueceu todo problema, como sempre. Estava drogado e prosseguiu naquilo que fazia de melhor, tornando seu ócio criativo. Apesar de repetidamente advertido. Finalmente seus guarda-costas conseguiram capturar a segunda fêmea. Após uma semana de preparação no cativeiro, ganhando confiança e ampliando suas expectativas, tentava sexo com aquelas falsas tigresas, gozando por cada maldito segundo naquele miserável planeta!! Era como se fodesse com o pai e todos os lacaios dele, e isso só aumentava o prazer. Considerando-se um cara esperto, mantinha silêncio sobre alguns truques que aprendera na eterna farra que fora sua juventude. Esperava que aquela nova nativa lhe desse muito mais prazer do que a primeira, que comete20
ra suicídio. Transara com ela mesmo depois de morta, para fazer valer todo o seu esforço. A garantia de que a atual tigresa faria o ‘dever oral’ com perfeição estava embutida sob sua pele. Descobrira que adestrar nativos era um prazer quase tão bom quanto o sexo gratuito, e Bartholomei já batia no próprio peito ao se achar, ele sim, o mais completo dos homens. Só que precisou rever essa opinião. Mas percebeu ser um pouco tarde demais para isso... Um mordiscar mais afiado embotou o prazer. Achou que tinha sido um pequeno descuido. Como se acreditava adestrador de feras, talvez fosse o momento do ‘truque da jaula’ e resolveu punir a má atuação. Premiu o lábio inferior, conforme o subornado e ameaçado nanotécnico o instruíra, já visando os sensíveis mamilos da nativa, onde a rede neural fora instalada em sintonia com seu dispositivo indutor. Porém aquilo que emergiu de seu colo não foi a dor lancinante da fêmea sendo punida por ele, ganindo pelo formidável choque recebido. Não quisera esmerilhar ou mesmo fazer desaparecer a contundente arcada dela por achar que seu controle era total e o prazer podia ser melhor direcionado. Pagou o caro preço da estupidez, com os dentes pontiagudos dela continuando a passear livremente da base do pênis até a topo, fazendo o caminho de volta ser mais doloroso ainda. 21
— Vaca! O que está... fazendo? Não, isso é... imposs... aiii! Novo suplício. Já podia sentir – e ver – o sangue fluir daquele feixe de músculos que permanecia tracionado, mantendo-se hirto, a despeito do desprazer, da dor que sentia. A menina, expondo veias e corpos cavernosos, descascando a banana de carne sem propriamente largar o pau dele, levantou a camisa que o homem não tivera a preocupação de tirar-lhe, transando com ela na cobertura do prédio central de Perséfone. Quando a malha grosseira foi transformada em tiras pela outra garra, os olhos dele se arregalaram desmesuradamente, pois entre suas pernas banhudas entrevia os dois pares de seios totalmente mutilados, tornando-a imprestável, infértil. Condenando-a a permanecer fora de qualquer bando, todavia rompendo o controle modal que Bartholomei vinha fazendo desde sua instalação, não havendo mecanismo algum que a mantivesse longe dele. Os papéis se inverteram. O subjugado acabou sendo ele... O pau, se antes vinha sendo meticulosamente lanhado, foi surpreendido com uma única dentada em seu cimo, mas a potencial mordida não ocorreu. Ela se levantou, toda no controle, a vítima submissa, ajeitou suas ancas ainda imaturas, expondo o púbis esponjoso, ressaltado, oloroso, sentando-se com violência no membro dilacerado dele. 22
Nem houve tempo para o gordo relaxar, embora a ardência do muco da nativa em contato com sua carne viva não apontasse para isso. Mas, diferente da outra vez, quando se enfiara em carnes mortas, algo aconteceu. Desconhecidos dentes vaginais se encarregaram, numa última flexão dela, erguendo o tronco, de decepar a glande dele, causando-lhe, de imediato, uma queimadura estanque, detendo o esguicho naquilo que sobrara. Com agilidade voltou à posição original, abocanhando-o, retendo ainda parte daquele órgão em seu interior e distribuindo algumas bofetadas para ele despertar do desmaio traumático. Concomitantemente ao processo mutilador, na base do escroto uma longa unha encurvada pareceu desalojar-se do ânus também ensangüentado e fazia uma pressão ‘amorosa’ de baixo pra cima. O berro num crescendo, misturando lágrimas com o mau cheiro de um intestino esvaziado, não foi ouvido fora daquelas paredes com isolamento acústico. Estavam na privacidade, como o homem assim determinara, e a fêmea não tinha pressa alguma. Concluíase que chegara a vez dela de gozar. Pouco a pouco a bolsa escrotal começou a revelar seu conteúdo e dentro dela dois dedos começaram a tatear, fazendo os testículos dançarem um minueto antes de ganharem vida extra e intracorpórea. Com lambidas e cuspidas, um de cada vez, foram enfiados na goela daquele que agonizava, empurrados até o limite 23
da glote, provocando uma asfixia que uma punção na traquéia facilmente resolveu. Apesar do suplício em regra, ela ainda não concluíra seu trabalho perfeccionista... Bart estava mais morto que vivo, o enorme ventre exposto sobre a mesa e vísceras sendo sugadas como espaguete; já que o desmaio definitivo não vinha, nem a morte, sua ansiada vizinha, por puro desespero, procurou mover as manoplas peludas no intuito de afundar o crânio da carniceira com aquilo que estivesse mais próximo. No caso um obelisco feito de puro optimmun – prova cabal que o planeta era viável e vital para a Corporação – seria usado na tarefa. Novamente não foi feliz. Só acrescentou mais cor (e dor) à agonia. Garras distendidas ao máximo e agindo com rapidez retalharam-lhe o corpo todo, fazendo a pele e a gordura caírem em postas, como se fossem bifes prontos para grelhar. Alguma coisa segregada pelas cânulas nas unhas mantinha a vítima desperta e testemunha ocular de seu próprio fim. Uma morte que não ocorreria ali. Uma morte igual a todas as outras, pois ainda sobrara muita coisa para ser usada. 3 Muito pouco tempo para o pôr do sol Bezniec, sempre a primeira das duas estrelas a sumir. 24
A abóbada roxa em seu arco decrescente já roçava o alto das Colinas da Fome, uma muralha imensa, irregular, onde alguns aventureiros tinham perecido de inanição, demarcando o final do continente setentrional, represando um oceano e seu atol de ilhas paradisíacas. Ao desaparecer, a luz já decaída além da metade, no fim do equinócio, a fugitiva só teria um par de horas até Kaluzian, o sol geminado, maior, porém mais distante – o que acabava tornando-o menor –, apostar sua corrida na direção oposta, no movimento retrógrado que lhe era peculiar. O planeta estava a caminho de ser jogado na mais completa escuridão, antes da chegada do bando de luas, em grupos e deslocamentos distintos, se revezando e brilhando por toda noite. Haveria luz mas não o suficiente pra espantar a penumbra reinante. Antecipando-se a isso, ela perdeu a conta de quantas vezes tropeçou e caiu. Por seu turno, os perseguidores reduziam a distância, todavia não tanto quanto seria fácil conseguir; a brincadeira de praxe entre felino e roedor. A caça estava sendo paulatinamente esvaziada de seu desejo de viver, o que alimentava os caçadores à distância. Podia ouvir que a floresta, pela qual acabara de passar, não sem sua cota de ferimentos, estava sendo alvo das longas hastes cortantes do chamado povotigre; a vegetação se ressentia dos diversas capões 25
em ação, provavelmente providenciando uma jaula para ela ou outro ritual secreto de fertilização. O pensamento acabou por distraí-la, e rolou ribanceira abaixo enquanto Bezniec dardejava seus últimos raios. Imóvel, porém arfante, percebeu que a contínua hemorragia cobrava maior atenção, pois pontinhos coloridos começavam a dançar diante dos olhos. Como vira os nativos fazer, nunca pensando ter de passar por isso, ela catou uma erva específica que brotava de algumas cavidades úmidas, esperando fervorosamente que fosse a planta medicinal correta, o canjuk. Mesmo que a quantidade não parecesse adequada (reviu a cena coletiva no passado e seu estômago fez algumas piruetas), melhor assim que nada. Tentando esquecer o asco, a vertigem ajudando nisso, acocorou-se no montinho que fizera dentro duma depressão, quebrando ramos de canjuks e forçando sua urina a se misturar com a seiva de aspecto doentio que a planta eliminava através dos diversos talos rompidos. Pegou a massa pegajosa, principalmente sangrenta, e, ainda com as mãos, fez pressão, tentou homogeneizar e modelar, até o emplasto vegetal ficar na configuração correta: pelo contato com o ar, endurecido pelo lado de fora e totalmente encharcado pelo de dentro. 26
De posse daquele petardo de grosso calibre, foi gradativamente empurrando vagina adentro, girando sempre num efeito saca-rolha, até praticamente, apesar das dores atrozes, não deixar nada de fora. Continuou seu caminho, mais rápido ainda, estranhamente empalada pelo chumaço de ervas que aos poucos, esperava, se desfaria dentro de seu organismo, providenciando a cicatrização de um dos ovários puncionados, onde estava outra coisa que o remédio, nem de longe, poderia ajudar. * O homem com idade indefinida, embora maduro, compleição forte, cabelos rentes à militar, saltou de sua moto-robô, uma hunter, ainda em movimento, sabendo que esta se incumbiria de estacionar e ficar ao seu dispor para quando precisasse. Tinha chegado ao S.A.IV no final do dia, na frágil esperança de encontrar uma determinada pessoa, já que não pudera recebê-la como convinha, na qualidade de co-diretor da corporação (ele que já fora a figura máxima e tivera que acatar uma imposição ditada pela inconveniência de algum figurão e não por vontade própria). Sua desculpa não costumava variar muito, sendo, naquele caso, absolutamente verdadeira: Estivera envolvido numa série de problemas, entre os quais a questão da produção, transporte e logística do afretamento, noutra parte do planeta. Só não justificava que a espera tivesse se alongado por dias a fio... 27
Sem o seu controle pessoal, gerenciando servomecanismos e cobrando dos capatazes a necessária precisão e controle de qualidade no refino dos produtos, não podia ter a certeza de cumprir os requisitos que a corporação exigia para a entrada de Trion, finalmente, na Zona Franca de Livre Comércio do Governo Terrestre. Aquilo significava tudo pelo que lutara desde seu assentamento, e mais que isso, a esperança de prosperidade e dias melhores para muita gente; marcava o retorno do capital investido nos setenta anos preparatórios e nos quase trinta de formação da indústria de base. Facilmente podia culminar numa nova rota comercial, logo, aumentando a freqüência de pousos e injetando vida no planeta. Contudo Mário Coutinho acusara outros contratempos. Sua idéia preliminar era quando chegasse a Perséfone , após uma passagem na sauna pública, finalmente acertar alguns detalhes com o substituto do finado responsável pelos sítios arqueológicos do Vale das Trevas, que possuíam números romanos de I a VII, sendo SAIV, o que se encontrava mais distante da capital, servindo de núcleo de operações, como dizia o relatório do novo pesquisador. Todavia foi preciso postergar esse encontro. Topara com indícios de que o babaca, filho do diretor, uma fonte constante de problemas, tinha desaparecido, no que parecia ser o ‘sistema clássico’ das abduções. Mais doze horas de investiga28
ção, buscas infrutíferas, nervos esticados, o roteiro se repetindo. Como não poderia fazer mais nada, a não ser lavrar outro processo de corpo ausente, enviando uma embaraçosa carta-rádio para o chefão tomar ciência de que seu filho caíra vítima do flagelo trionês, tentara desanuviar a cabeça pegando a estrada e, sem querer, reatara com seus planos iniciais. Sem constatar indício algum daquele que procurava, Mario, investindo sua curiosidade nas ‘choupanas’ feitas duma cerâmica que a própria ciência humana desconhecia, sentiu como se atravessasse uma espessa e escura barreira de gelo gasoso ao entrar nelas, depois do vapor quente que fazia lá fora. Nunca procurara saber com exatidão o que esse tipo de coisa significava e agora pagava seu preço. Em todo caso prosseguiu, tremendo de frio, até sair tateando de duas, três, cinco choupanas, todas elas interligadas num sistema de colméias, com só uma porta específica voltada para o exterior. Todas as construções estavam aparentemente intactas e livres de qualquer mobiliário que a pouquíssima luz ainda permitia enxergar; nas superfícies internas, convexas, havia diversos ícones e imagens que ele nem tentou olhar com mais atenção, já que não dispunha dos óculos especiais deixados na moto. Certamente resquícios de uma civilização que abandonara sua cidade, mas ainda assim parecia presente, poden29
do voltar a qualquer instante para reaver aquilo que deixara. Procurou se distrair com outros pensamentos, torcendo para que suas defesas orgânicas agüentassem toda aquela variação climática. Se não fosse o desaparecimento do idiota a quem Mário tivera de se reportar, usando toda manhã e tarde para fazer relatórios e comunicar a desagradável notícia para um dos executivos da Corporação Antuérpia, teria cumprido o combinado com o pesquisador adjunto que assessorava a doutora... “como é mesmo o nome dela... Blair. Sim, Joana Blair!!”. “Dane-se”, voltou a pensar, já cansado do entrasai por habitações que se comunicavam mas não tinham a mesma decência de traduzir isso para ele. Foi nesse instante que sentiu, na base da nuca, o toque dum objeto contundente. A comunicação acontecera sim, embora não da forma como imaginara. * — Vire-se. Devagar. Conheço sua laia, ladrão de sepulturas!! – veio a voz que não conseguia ser tão fria quanto o ambiente, porém não ficava longe, com a arma que mudara de lugar para seu plexo solar. Mário só pôde vislumbrar um vulto trajando um pesado jaleco climatizado, fazendo com que o frio lhe voltasse à mente. Trêmulo, em mangas de camisa, forçou nele uma reação mais calorosa: 30
— Se não quer me transformar num picolé... é melhor decidir o que fazer comigo... O facho estreito duma lanterna cegou-o. Só quando a luz ampliou seu foco, exibindo-lhe o uniforme de serviço sujo de poeira, sua atitude neutra, foi que responderam, revelando algum ódio explícito: — Não sei como a guarda robô falhou, mas o Sítio não admite invasores de espécie alguma, principalmente num horário tão suspeito e em atitude furtiva... – ainda sob o facho da lanterna, aparentemente num momento de distração, conseguiu notar que a arma nada mais era que um ‘explorador de seixos’, mesmo assim Mário manteve-se imóvel tanto quanto a tremedeira o permitia, ouvindo novamente a voz, parecendo um pouco menos agressiva e sensivelmente mais curiosa: — Afinal, quem é você? — Poderia fazer... a mesma... pergunta, mas... como pareço o errado... aqui... posso passar minha... identificação...? A luz se agitou, mostrando que o portador acenava com um sim. Mesmo quando a lanterna abandonou-o, ficando no lugar um triplo pontinho vermelho dançando em seu peito – indicativo duma arma mais fatal que o explorador de seixos –, por via das dúvidas, Mário permaneceu com o braço estendido, literalmente congelado. Pelo timbre da voz, abafada por uma máscara de trabalho, ficava difícil identificar o interpelador. Foi 31
com absoluta surpresa, ao ser rebocado em silêncio para fora da frígida e escura habitação alienígena, que reparou naquela que se despia a sua frente, na noite iniciada, sob os holofotes que acendiam automaticamente. * A primeira coisa a cair foi o capuz-lanterna, o jaleco seguindo-lhe o curso, escorrendo molemente até o chão de pedra vitrificada. Não havia dúvida alguma, uma mulher!, que, de costas para ele, livrava se das botas, luvas e se despia do resto, inclusive desfazendo-se duma fina camiseta que ia até bem acima do joelho, ficando com um exíguo top de duas peças. Quando o gorro colado ao crânio, ressaltando um grande volume, saiu com certa dificuldade, e a máscara especial acoplada também, os cabelos cinzentos, grafite, desabaram em cascata até a cintura. O vento que começara a soprar com alguma fúria, ‘efeito especial’ cíclico da lua mais excêntrica de Trion, ajudou a deixar o diretor estupefato com os cabelos que chicoteavam o ar. Ao curvar-se para pegar aquilo que caíra e tendia a se afastar no efêmero tufão, a visão duma bunda tão perfeita acentuou a cupidez de Mário, para quem dificilmente algo poderia suplantá-la em beleza. Ainda assim estava enganado ou fora inconcluso em seus pensamentos. A bunda foi apenas o aperitivo, um delicioso luar de carnes firmes e torneadas que rivalizava 32
com o iminente ‘rasante’ do primeiro satélites triônico, trazendo de roldão seus quatro companheiros lunares. * Feitas as apresentações e desfeito o mal-entendido, Joana Blair alojou o diretor em seu gabinete itinerante. Como detestava o serviço de robôs – até mesmo os escavadores, que por mais delicados que fossem não tinham sensibilidade para discernir uma rocha de uma escultura –, ela própria fazia mescafé, colocando uma xícara fumegante para o inesperado visitante noturno. — Sei que podemos recomeçar de uma forma mais civilizada, Diretor. — Ficaria mais fácil se não me chamasse pelo posto... Joana. — Como quiser, mas é melhor se apressar com suas falas, amigo — sentou-se, envergando um negligê ao qual Mário não sabia se ia conseguir resistir, obrigando-a a pigarrear antes de concluir: — Entenda. A disciplina aqui é rígida. Não sou arqueóloga, porém o sítio obriga a certas atitudes reservadas; tento manter o sistema de meu predecessor, que, segundo fui informada, desapareceu sem qualquer vestígio. Será que poderia ser sucinto, Mário, já que um banho urgente é necessário e preciso concluir um relatório também? A forma seca como disse aquilo começou a afastálo, mas, na verdade, ela tinha todos os motivos para isso. Partira preliminarmente dele o pouco caso que 33
fizera para recepcioná-la. Não ia fazer daquilo uma batalha de mau humor. Principalmente depois do impacto que Joana causara nele. Teve vontade de dizer que esperaria o banho terminar e poderia até ajudá-la nas parte mais delicadas, explorando dobrinhas, contudo achou preferível anuir, tentando manter a coisa descontraída, porém profissional. E tentar não queria dizer que ia conseguir. — Minha brevidade, se me permitir explicar, só dependerá do seu retorno a algumas questões fundamentais que estou disposto a não mais negligenciar e, inclusive, gostaria de contar com a divulgação de sua análise para o bem de nossa comunidade. O cenho franzido dela deu subsídio para que continuasse, rolando um cubo de memória multisensorial sobre a mesa: — Remeti, em ocasiões distintas, três requerimentos de análise para o conteúdo desse bloc — fez o cubo deslizar na direção dela. — Nenhuma de minhas incursões eletrônicas foram respondidas. Como sei que sua área de atuação é a exobiologia, conforme consta no currículo que o governo terrestre remeteu junto com sua nomeação, e o assunto aborda integralmente esse tema... Os olhos dela se arregalaram ao levantar-se, indo até o multiversátil, checando a veracidade e conteúdo da informação. Quando voltou, era uma jovem total34
mente diferente, menos ‘educadamente arrogante’, deslocando a cadeira para uma posição próxima ao diretor, que, pela primeira vez, sentiu o toque da pele da jovem, o calor da coxa irradiando-se através do tecido de seu uniforme. — Estou desconcertada... Acabei de comprovar seus requerimentos e questionários de medidas de segurança e, por favor, acredite, só agora estou tomando conhecimento disso! A expressão dela, seu abalo físico, a mudança radical de comportamento, mostrou que Joana, apesar das recomendações exaltadas que vinham junto ao currículo virtual amplamente aplaudível, estava longe de ter a experiência necessária para colocar-se à testa dum projeto como aquele. Já devia suspeitar que a matriz colonizatória, em déficit de pessoal qualificado, atendera aos apelos da jovem colônia com a habitual deferência, ou seja, praticamente nenhuma. As palavras que se seguiram comprovaram isso e também mostraram outra coisa mais encorajadora: longe de ser um catedrático cheio de manias e exigências, ela era uma tela em branco querendo ser preenchida. Supria a qualidade da informação com boa vontade, dinamismo e uma predisposição ao aprendizado, que a deixava numa posição bastante mais favorável. Passara dias mergulhada em textos técnicos, aprendendo disciplinas que, muitas delas, estavam longe de sua formação acadêmica. Por todo esse período de 35
mais de dez dias desde sua chegada, vivera à base de estimulantes e implantes de memória. Estes apresentavam como contra-indicação uma certa tendência à irritabilidade. Somando se a isso, os efeitos finais da Quarentena Móvel – o sistema que adaptava os organismos em trânsito para viverem num determinado local sem a necessidade dum ‘isolamento técnico’. A nanocultura manipulativa, sendo reconhecida por seu organismo, tornou-se a vilã, responsável pelas enxaquecas e, em alguns casos, ‘febre de astronauta’. Daí Joana encontrar tão pouco tempo para ser ela mesma. * Se o diretor já gostava do que via, não queria nem imaginar o resto... — Então, estamos empatados, não é? — Não. Estamos comprometidos. Estou mais do que inclinada a avaliar esse arquivo. A única coisa que encontrei, desde que assumi o posto, foram escombros, análises técnicas de artefatos alienígenas, a maioria deles só vestigiais, reconstruções semânticas, sem esbarrar, uma única vez, com qualquer imolação, sepultura, o mínimo vestígio dos donos disso tudo. Se há uma chance de investigar os nativos, que os relatórios indicam como sendo bastantes arredios, SIM, Mário, quero tomar parte disso!!! Ele sorriu. Sabia que a isca era de bom tamanho. Agora poderiam evoluir. Mas antes precisava desmoronar a última barreira: 36
— E quanto a tal da brevidade, hein? A pressão e o contato com a coxa intensificou-se. — Você conhece aquela palavra... — e fez com que lesse ‘foda-se’ nos lábios dela, como se temesse a censura de algum lugar. — Portanto, faz favor, por gentileza, quer inserir isso no decodificador? O escritório-dormitório transformou-se numa sala de projeção, as imagens digitalizadas de alta resolução, pós-virtual, sendo exibidas numa parede. Várias horas de um filme que Joana desconhecia, mas aguardara por isso toda a sua vida. Foram somente necessárias umas poucas interfaces e lá estava: Como as sondas, responsáveis pela base de dados, usavam a tecnologia sensorial de praxe, nem foi preciso mais de cento e oitenta minutos para tomarem ciência do conteúdo geral. O diretor, cônscio do esgotamento da pesquisadora, sem mencionar o seu próprio, com perícia, transformou a imagem plana numa série de portais, por onde guiou a mulher num universo que mantinha todas as dimensões e sensações intactas (exceto o tato), com a grande vantagem de não poderem ser rastreados ou perturbados em sua pesquisa. * Lá estavam eles! Uma verdadeira comunidade do povo-tigre, embora na aparência nada indicasse que fossem homens ou 37
felinos de algum tipo. A associação nascia por serem bípedes humanóides com lábios leporinos, pêlos rajados recobrindo a maior parte do corpo e pelo formato dos olhos. Mas o conjunto era absurdamente harmonioso e, como em toda parte do universo, adaptado ao ambiente. Joana só não entendia porque, à noite, se entocavam em cavernas já que sua configuração tipológica era voltada ao ar livre, como grandes corredores, avessos a ambientes fechados na maior parte do tempo. Outra disparidade, que Mário também observava silenciosamente ao seu lado, enquanto seus olhos eram os das sondas, estava na ‘segregação’ que alguns espécimes experimentavam. Não parecia ser coisa de bando, porém, em se tratando duma exocultura, tudo era possível. A pesquisadora, devidamente instruída pela Academia, não queria prejulgar e formular suspeitas em sua coleta de dados, mas isso não a impedia de levantar algumas questões: — Quem diria!... são sexualmente MUITO ativos, e vivem de ritos, a maior parte destes ligados à fertilidade. Isto é, esses totens que veneram, como a deusa repleta de orifícios, onde os machos inserem seus membros, aponta para isso — enquanto falava com entusiasmo, farejava o ar, pois a simulação multisensorial das sondas era no órgão correspondente. — Não estou sentindo nada diferente, nem incenso alucinógeno ou indicação de esporos... 38
Fez a leitura dos instrumentos, bastando apenas tocar no ‘ar’ e absorver a leitura num comprimento de onda adequado. Seu acompanhante chamou a atenção dela para um grupo de trioneses que acabava de sair da mata. Eram muito obesos, disformes, mas isso não os impedira de entrar numa dança que levava o povo-tigre ao delírio, tirando-os pouco a pouco de seus afazeres. — Joana, não consigo ouvir nenhum instrumento tocando, nem o movimento deles indica um ritmo a ser seguido. O que pode ser isso? — A música atua de forma diferente nos diversos organismos. Não acredito ser um atavismo coletivo, que nunca ficou provado que exista. É principalmente um estímulo sensorial interagindo com outras coisas. Aquilo que os move parece vir de dentro, cada um no seu ritmo, porém todos afetados, girando em volta dos totens... Mais uma vez consultou os bancos de dados das sondas, comprovando que o grupo de duzentos e oito nativos, machos e fêmeas de todas as faixas etárias, continuariam sob julgo daquela dança infernal por ¼ de um dia local. Como o tempo de Trion excedia o da Terra em cerca de noventa minutos, isso significava perto de 6:30h de puro desvario! A última coisa que registrou, quando Mário a conduziu de volta, após terem discutido sobre outros aspectos morfológicos além de sua compreensão, foi a 39
maneira como alguns trioneses desprendiam um material, uma esteatorréia estranha, que aos poucos se soltava de onde os pêlos se concentravam, descolandose com mais intensidade do peito e da face. Por isso descartara a idéia da ‘caspa’. É claro que aquilo devia ser uma leitura equivocada das sondas que podiam ter sofrido alguma perturbação de ordem eletromagnética; não queria crer quer alguns daqueles nativos estivessem mudando de pele... Sem querer – entusiasmada com todo o resto e já pensando em fazer um dossiê sobre os nativos, esperando o dia que em encontraria um espécime para autopsiar – Joana Blair deixou, por não querer comparar demais, de perceber algumas características simbiontes no povo-tigre. 4 Não estava pronta para o que viu, sentiu, participou. Se não ficara louca, isso não queria dizer que muitas coisas permaneceriam como antes. Um fato sobressaía: Nunca mais seria a mesma... Principalmente, se não enlouquecera, não restava dúvida, fôra devido a sua formação científica, tentando entender pela ciência aquilo que o psiquismo negava. Novamente buscou forças nessa seara pouco usual, ansiando construir algo para seus pés se firmarem, ainda que incertos nos primeiros passos. 40
A resposta surgiu na forma dum relatório mental sobre ‘os verdadeiros senhores’ dali e o que se escondia por trás dos desaparecimentos. Havia momentos em que sua mente parecia indicar outra criatura além daquela que estava em seu âmago, por isso coisas óbvias acabavam não sendo e vice-versa. Já estava farta, mas sabia que nada poderia mudar isso. Portanto deixou a coisa fluir: Em primeiro lugar, e ponto pacífico da elucubração, não existia uma só raça ali. O que descobrira dificilmente se limitava ao saber empírico. Por isso classificou o raça dominada como nativos daquele planeta, originados e gerados nessa mesmíssima biosfera; na maioria fêmeas e alguns elementos masculinos como que bestificados, incluindo vetores dominantes na forma de parasitas aracnídeos, com cefalotórax de ossatura extremamente dura e opistosoma dotados de fibrilos com terminações sensitivas. Sua forma tarantulóide, sugerido pela mente difusa, embora também radicalmente divergente em alguns aspectos evolutivos, via de regra se hospedava em outros indivíduos machos devidamente manipulados. Estes eram mantidos em estado operante só no aspecto motor, servindo de elo para várias ‘fecundações’, quando um novo parasita, bissexuado, era maturado nas entranhas dum outro hospedeiro, daí a necessidade urgente de corpos. 41
Sentiu um frio na espinha ao recordar os rituais, através dos quais parte do conhecimento chegara até ela. Se não estivesse tão atônita, se o alienígena que encubava não transitasse também em sua mente congestionada para aplacar sua intransigência, nunca teria sobrevivido ao holocausto sexual. Aquilo se repetia. Fora um erro achar que seria preservada e seus muitos talentos respeitados. Se fosse inclinada à espiritualidade – e não queria ser hipócrita e se transformar justo agora – chamaria a desova de festim infernal. Só que aquela também era uma expressão da natureza. Vencia o mais apto na sobrevivência por quaisquer meios. O que sublimava a revolta, mantendo a luta constante. Um fiapo de esperança. Só que um fiapo bastante tênue. Pelo menos tinha uns poucos dados para julgar, faltando apenas algumas peças para montar o enorme e hediondo quebra-cabeças, fazendo o passado encontrar significado no presente. Só podia tomar como verdadeiro na medida em que o ser provava isso dentro dela, embora aparentasse letargia absoluta depois de ‘brincar’ com seu ovário esquerdo. Como aquilo, o conhecimento, podia significar a chave para se livrar do parasita, e ao mesmo tempo deixá-lo alerta, voltou às questões práticas com muito cuidado. “Insisto, o que você VIU? Pense, pense, pense...”, lá estava o pensamento outra vez. 42
Como não queria lutar, ela pensou, ou pensou que fez isso, mergulhando num passado recente. Mesmo sem querer, viajou de uma célula cerebral a outra em busca da origem do estímulo cognitivo. E encontrou! O parasita-tarântula, por enquanto satisfeito, numa fração de segundo dividira seu íntimo com ela. Macróbion, depois de todo esse tempo incógnito, foi como percebeu que se chamava, mas se não pudesse ter nome, melhor seria. Quanto mais impessoal menos terrível. Só que isso era impossível, visto já estar em suas entranhas, quem sabe se preparando para um novo banquete, mordidas lentas, devagar e sempre, tirando pedaços, experimentando, até não restar nada além de um saco de pele vazio. A questão era exatamente a inversa: definitiva e indubitavelmente pessoal!!! * Por conta de qualquer motivo além da sua percepção, nunca soube exatamente quando as coisas começaram a mudar naquele mundo longínquo. Inevitável foi imaginar como aquilo se iniciara, primeiro, quase seis semanas socada numa nave espacial com escalas em apenas três lugares tão infernais quanto as espartanas condições de bordo. Logo, como o luxo da hibernação e unidades recreativas se situava além daquilo que o governo terrestre achava indispensável nos afretamentos às suas expensas, enquanto o 43
vôo êxtasedimensional se sucedia no espaço corrente, Joana tivera muito tempo para colocar seu corpo em forma e pensar naquilo que iria encontrar pela frente. Trion tinha aquela qualidade rara de entranhar nas pessoas. Sob muitos aspectos já se sentia ambientada, e nem achava difícil de aturar as rápidas variações climáticas que acompanhavam a lua Dançaria, por vezes a mais próxima do planeta, em seu atípico formato de rosca. Podia não parecer, mas já fazia quatro anos que estava ali. Suas pesquisas em alguns momentos indicavam avanços extraordinários, a um passo de destrinchar o mistério das cidades abandonadas, para no instante seguinte ficarem pior que antes, de cara num novo beco sem saída. A cosmo-antropologia, mesmo não sendo uma disciplina recente, precisava ser reavaliada naquele mundo. Algo de muito errado deixava nela uma impressão imorredoura de incompetência, apesar de ter avançado muito mais naqueles anos do que seu predecessor, Prof. Jabul Ahmed ibn Karrara, fizera em mais de duas décadas e meia. Como em qualquer parte do universo formal, tudo era relativo. A lei do obtuso, a teimosia sem fim, funcionava em mão-dupla. Uma coisa podia assinalar: não acreditava que o acaso fosse o autor de tanta disparidade... Virou-se na cama espaçosa, uma aquisição recente e necessária, e tateou na penumbra à procura de coisas 44
mais palpáveis, somente encontrando seda sintética, sem nenhum vestígio do calor do homem que se deitara com ela. Nua, fazendo um muxoxo, ia ensejar alguns murros contra o coitado do travesseiro; este ainda apresentava vestígios do gozo da longa noite e traços da loção anticapilar dele, porém acabou mesmo é se atracando com a fronha e por muito pouco o descanso pneumático não sentiu nova onda de prazer. “Que é isso, mulher! Não é possível que se deseje uma única pessoa em tempo integral com toda essa veemência...”, acatou o freio mental, levantando-se muito a contragosto, pronta (ou quase) para mais um dia de labuta e, quem sabe, algumas descobertas Somente quando passou na frente do multiversátil pela terceira vez, já totalmente vestida e com seu vício – um caneco de mescafé –, foi que notou que havia uma mensagem para ela relampeando no escaninho eletrônico devido. Depois da confusão de alguns anos atrás, nunca mais deixara uma mensagem sem sua atenção pessoal. E aquela, em especial, trouxe-lhe muito prazer: Ju, O comitê da Festa do Século é um pé no saco!! Tenho de abandonar o conforto de sua companhia, essa for45
nalha que têm no meio dessas fantásticas pernas – E LÁ TAMBÉM –, para me dedicar a esses chatos e os preparativos para a chegada, você sabe, do maior contingente de colonos da história de Trion. Não sei se vou agüentar ficar longe. Nem holomensagens me satisfazem. O que colocou naquele primeiro Mescafé? Mulher, o que fez comigo? !!! Já fui bem mais profissional. E racional. Beijos, Você Sabe Quem Em Tempo: Seu gosto ainda está em minha boca. Não usei dental free. E com certeza meu hálito nunca esteve melhor!
“Homens e peixes, estrebucham sempre quando são fisgados...” Mordiscando o lábio, lendo naquilo que os velhos e novos magos diziam ser ‘altas esferas’, Joana sabia que seu dia seria feliz. Pena que o destino fosse analfabeto... Mas ela perseverava. Acreditava que Mário, corpo@mente, estava apaixonado também. Uma mulher sempre sabe essas coisas quando já trilhou um 46
bocado de chão na vida, o que não tinha necessariamente nenhuma relação com a idade da pessoa. Por mais que o amante dissesse que “já foi mais profissional”, saltar da cama em plena madrugada e movimentar as engrenagens do poder estava na veia dele. Olhando para si mesma, claro que não podia censurá-lo por isso. Afinal, desde que os desaparecimentos cessaram, Trion experimentava um novo boom de entusiasmo; toda comunidade humana não fazia outra coisa senão comemorar, e isto significava muitas coisas. Nascimentos ocorriam em toda parte, a cidade crescia na direção natural de sua fundação, ocupando alguns quarteirões dos espaços planejados, sendo enfeitada por holos de boas-vindas, com shows a céu aberto, diminuindo a aparência fantasmagórica. Até Nísia, Hécate e Elêusis, aldeias abandonadas pelos colonos no auge dos desaparecimentos, voltavam a despontar para a vida. O plano de expansão da Corporação contaminava a imaginação de todos. Um mundo prestes a acolher, ao mesmo tempo, uma fantástica frota constituída de quatro cargueiros e um punhado de iates solares, os últimos trazendo a primeira leva oficial de turistas. Os cerca de treze mil novos colonos fariam a população praticamente dobrar, o que fez com que Joana lamentasse, comentando consigo mesma, já prestes a sair: 47
— Xô sossego, amiga! Em quinze dias chegarão novos habitantes e, junto com eles, a pior raça do universo. Estava falando dos turistas, o terror de sua profissão, o que a fez lembrar de usar sua influência com o ‘chefe’ para interceder na substituição dos caquéticos guardas robôs por uma guarnição permanente de boinas azuis; uma vez aquartelados na cidadela, desde que os distúrbios cessaram num passe de mágica, exceto as arruaças típicas dum mundo de fronteira, seria uma maneira de coçarem o saco de forma produtiva. Todos gostariam disso! Tinha acabado de dar o último gole na bebida estimulante, desistindo de comunicar-se com a copa, onde seu assistente já deveria ter concluído o lanche matinal reforçado. Teriam jornada dupla nos sítios II e VI, onde sauróides e um povo alado deviam ter vivido. Seu novo assistente Timothy Hanks O’Shea, o jovem lingüista da exígua equipe formada por onze atribulados especialistas, ficara de preparar e trazer o desjejum de Joana e alertá-la dos últimos preparativos. Não fizera nenhuma das duas coisas, o que era bastante estranho no diligente metalingüista. Com a eclusa do alojamento se cerrando com o chiado característico, concentrada em seu trabalho, deixando para trás a parte doméstica de sua vida, ela evitou por um triz de se chocar com um vulto que investia como um vitelo assustado. 48
Esbaforido, segurando numa das colunas de apoio do alojamento, o rapaz não conseguiu dizer uma única palavra. As roupas dele – ainda de pijama – apresentavam algumas manchas escuras que, preocupada, pensou ser sangue. Uma verificação bastou para comprovar que ao menos não era dele, fosse aquilo o que fosse. — Timmy, o que está havendo? A cor ainda ausente no rosto sardento, recém-saído da puberdade e da única faculdade profissionalizante de Trion, ele só conseguiu fazer uma pantomima indicando o galpão de ferramentas. Agora que o vento mudara, ela podia ouvir uma série de urros vindos de lá. Deduzindo que algum animal, talvez um temível pumon, um predador das estepes, estivesse preso ali, voltou de seu alojamento com um rifle desintegrador e um escudo energético na eventualidade da arma de ataque falhar. — Vamos!! Tim corria ao lado sem nada dizer, porém insistindo com suas pantomimas que já a enervavam, balançando a cabeça como se negasse algo. Só quando, cautelosamente, olhou pelo vidro blindado do galpão é que percebeu o que o assistente queria dizer: um nativo acocorado sobre uma poça daquilo que estava impregnado no pijama do lingüista... Depois de mandar o ajudante atrás de um robôenfermeiro e uma unidade de primeiros socorros, ela, com os olhos brilhando, pensando na tal felicidade 49
que previra, via surgir do nada a oportunidade que sempre quis. Tendo conseguido despachar o lingüista reteve um sorriso frouxo nos lábios. Bastaria o comunicador para convocar o robô (qualquer um); este se encarregaria de trazer todo material de apoio médico que pedisse. Tirá-lo dali, já que não podia ajudar com aquele medopânico todo, melhorava sua ínfima possibilidade de sucesso com o alienígena. Destemida pelo desejo, tomada por um inelutável impulso aventureiro e científico, resolveu invadir o galpão. * Farto de ser assediado por um exército de funcionários administrativos, abordado por inúmeros comitês, agendando quermesses, gincanas, saraus com música de câmara e outras coisas do passado, Mário achou que era o momento para se ausentar um pouco dessa balbúrdia rotineira. Deixando secretárias e robôs de protocolo com ordens específicas de que fôra almoçar (o que acabaria fazendo, pois o horário já estava bastante adiantado para isso), pegou sua hunter antigrav. Com o corpo recurvado contra o assédio do vento, abandonou o perímetro da cidade, subindo o desfiladeiro, mantendo uniformes os 30cm de solo abaixo da moto, sem se preocupar em reduzir a velocidade em momento algum. * 50
Na cidadela, construída no exato local onde o primeiro acampamento formal fora armado, o movimento já não era tão frenético, embora mantivesse uma ordem marcial constante, pelo menos isso devendo ocorrer. Um holorádio alertou o tenente-coronel Udgar Frisco da aproximação do amigo com quem servira antes do mesmo dar baixa honrosa dos boinas azuis. Aquela era a tropa de choque da humanidade e pau pra toda obra em cada oportunidade em que o Homem colocava o desafio a frente da cautela. Nunca entendera direito como alguém como Mário ‘Quebra-Queixo’ Coutinho, com uma folha de serviço exemplar e afinidades marciais até a raiz do cabelo, podendo chegar a marechal em menos de doze anos, se deixara seduzir por um cargo (mesmo sendo de alto executivo) numa corporação tão medíocre como a Antuérpia. Já num dos pátios externos da cúpula blindada, o militar procurou esquecer os motivos que moviam aquele estranho homem, estreitando-o num abraço que, se ambos não possuíssem estrutura para isso, fatalmente terminaria com um saldo de costelas partidas. — Alguma emergência que possa distrair meus azulões? — sentaram no monotrilho e foram conversando no curto trajeto até o centro de operações da base. — Eles estão se sentindo babás de bêbados pois acabam não fazendo outra coisa, afora, claro, manter essa base tão limpa quanto a casinha da mamãe deles. 51
— Ud, sabe perfeitamente que se houvesse emergência de tal ordem você já estaria perfilado na minha mesa, armado até os dentes, exigindo de mim retaliação total... O riso terminou quando o monotrilho travou em seu destino. O lugar sempre entusiasmara Mário, com monitores especiais em cada metro quadrado, as paredes levemente abauladas abarrotadas deles do chão ao teto, retratando no alto da cúpula uma imagem fiel de Trion orbitando o sol central, todos os corpos espaciais seguindo o movimento que a magia eletrônica possibilitava. Exceto pela companhia de Joana, onde estivesse, aquele se destacava como seu local predileto, pois sentia que o planeta, o sistema inteiro, estava na sua mão, percebendo imagens que nunca deixavam de ser atualizadas. Porém, por mais que ‘estar em toda parte’ pudesse ter suas vantagens, as imagens, em termos quantitativos, eram apenas 5% daquilo que deveriam ser, se Trion fosse uma megalópole espacial e não uma reles província de fronteira. Nem todo aquele aparato, o único investimento do governo terrestre, fora suficiente para desvendar o mistério dos antigos sumiços, cessados três anos antes e que haviam escrito um dos mais tristes capítulos da colonização humana, com perto de dois mil mortos 52
em potencial e ainda nenhuma pista para elucidar o mistério. Como empreendimento corporativo, baseado apenas na estatística, Trion praticamente se tornara um fiasco. Só mesmo a política, nunca o descaso, explicava porquê o planeta não sofrera intervenção governamental. Enquanto se dirigiam para o coração da sala de controle – uma cabine isolada que podia, pós-virtualmente, holoprojetar até dez passageiros na direção de qualquer um dos seiscentos pontos controlados pelas câmeras (e isso também não incluía os domínios do povo-tigre, visitado esporadicamente pelas custosas sondas) –, o diretor, por um golpe de vista, percebeu uma imagem que obrigou-o a parar. — Que foi? Parece que viu um fantasma... — Só uma coisa que não deveria estar aqui — com Udgar mantendo-se junto a ele, gozando de livre acesso a qualquer daqueles instrumentos, Mário sentou num console vago e, após uma breve varredura, achou o que procurava. O comandante, com seu sistema de rastreamento de confusão ligado, não lhe faltando instinto bélico para isso e intuindo a chance de alguma ação, fez um sinal silencioso para o ordenança, o que equivalia a acionar o alerta intermediário. Sem que Mário obstasse, entrou com ele no holoprojetor devidamente programado pelo diretor, assumindo um lugar ao lado dele. * 53
Estavam numa parte de Perséfone bastante agitada. A despeito da contagiante movimentação do centro da cidade – minishopings abrindo suas portas e praças de alimentação com promessas de rodízios de pratos exóticos em vista da iminente chegada de novos estoques de ‘artigos de luxo’ –, no parque em frente à catedral ecumênica um vulto permanecia prostrado, sentado na ponta dum banco de pedra lavrada. Quando a aura azulada do holoprojetor foi percebida por Tim, este, que já estava propenso ao desastre, esteve inclinado à fuga, porém acabou reconhecendo Mário, com quem já jogara pôquer estelar e acabara fazendo algumas confidências para tentar entender um pouco as mulheres. “Ninguém entende as mulheres, nem elas próprias”, sendo esta a resposta-padrão que o diretor dera na ocasião, tendo dificuldades para compreender a nova verborragia do rapaz, que deixara o banco e correra em direção ao foco holoprojetado. — Calma, do princípio, conte tudo novamente... — pediu, encontrando igual apreensão no militar, que reportava tudo à sala de controle da cidadela. O ajudante de Joana explicou, tartamudeando, o que estava fazendo longe de suas atribuições normais, detalhando o encontro com o trionês, havendo a exobióloga lhe dado uma licença-prêmio, enquanto, apesar de advertida, seguia para os domínios do povo-tigre. Ficara ao encargo dela entrar em 54
contato com Mário para deixar o atendente mais tranqüilo. — Que merda!! — exclamou o diretor que, claro, nem de longe fôra consultado e, se fosse, diria não àquela leviandade. Palavra errada. Leviandade, não. Pura loucura. Não ficando só nisso: Que ela era turrona, obstinada e brilhante, já sabia. Transformar tudo isso em caos foi uma alquimia que deixou Mário sem ação. Mas o militar, sabendo do envolvimento emocional do amigo, não sofreu idêntica comoção. Desativou o holoprojetor e, infelizmente, ganhou aquilo que procurava de brincadeira. Uma emergência. Talvez a pior delas, pois, concomitantemente ao ‘seu retorno’, uma série de eventos disparou o alerta vermelho da base. * Saiu da gaiola distribuindo ordens e crivando todos que encontrava de perguntas. Só não foi preciso gritar(,) para seu ordenança colocá-lo a par da situação, pois as notícias se faziam naquele mesmo momento: — Senhor, ataques no perímetro sul, leste e oeste. O entorno da zona espaçoportuária está sendo bombardeado por naves sem qualquer identificação. Só um instante... — permaneceu atento a um fonoauricular, repassando o que ouvia, ou melhor, o que deixara de escutar: — Perdemos contato com o pessoal aquartelado por lá... 55
Checando os monitores, muitos deles apagados, o ajudante-de-ordens passara a ficar atento às informações da insensível central positrônica, dando uma última contribuição para os olhares faiscantes do comandante e do diretor da corporação: — Perséfone, nossas oito fazendas comunitárias e as três aldeias-satélites também estão sendo alvo de bombardeio, somente não foi relatado qualquer dano estrutural mais grave. Exceto que... O silêncio deu a resposta. Os monitores foram se apagando um após o outro, a ação conjunta provando determinismo no isolamento da cidadela, indicando que os desaparecimentos voltavam a ocorrer, só que duma forma mais ostensiva. Em vista da situação hostil, de cunho inteiramente militar, Udgar sabia que a prerrogativa de comando era toda dele. Tudo ficava sob sua alçada. Depois de ordenar a evacuação da cidade e das aldeias, mandando patrulhas de resgate para colher o restante da população espalhada pelo planeta, tinha ciência de que não podia reter o amigo por muito mais tempo. — Estou colocando minha guarda de elite às suas ordens. Sei que vai fazer uma loucura daquelas, mesmo assim prefiro que faça isso com alguma segurança. — Fale a verdade — Mário encarou-o, recebendo um pesado desintegrador e a indicação de onde encontrar o comando de resgate, e aquecendo os motores de um dos três semidestróieres que a guarnição 56
possuía, — Você sabe muito bem que o desaparecimento de Joana e todo o resto foi muito precipitado. Se os nativos estão envolvidos nisso já é hora de alguém descobrir. E se posso silenciá-los, tanto melhor. Deixando o aperto de mão para quando voltassem, cada qual seguiu com seu dever. * Ao comprovar que o veículo ligeiro fora lançado, menos de quinze minutos decorridos desde o início da confusão, falou para o ordenança, sempre grudado nele: — Tenente Boomer, mensagem para o governo terrestre, com cópia sem anexo para as coordenadas dos cargueiros que se destinam à Trion. Prioridade máxima: Estamos sendo atacados. Situação controlada, porém ainda indefinida. Perdas de contingente civil e militar computadas. Imagens e arquivos anexos para o seu conhecimento. Sugiro interditar o planeta e implementar ação de re... Antes de concluir a mensagem e o ajudante-deordens providenciar o abastecimento do mecanismo apropriado, uma explosão sacudiu a cidadela, que, como medida de segurança máxima, trouxe a luz de emergência para todos os seus andares subterrâneos. A primeira preocupação de Udgar foi checar se os elevadores antigravitacionais ainda funcionavam e se a população continuava a fluir pelos dutos dentro da encosta, previstos para atuar em emergências como 57
aquela, ligando o sistema metroviário de Perséfone com a cidadela. Por uma lado ficou tranqüilizado, pois as centenas de assustados colonos que chegavam estavam bem e o campo defensivo da base nada sofrera. Seu desespero só aumentou quando finalmente descobriu a origem daquela explosão: a única estação de gigarádio do planeta, situada junto ao desfiladeiro, não existia mais. 5 Já estivera ali antes, por isso reconheceu a passagem que levava à salvação, ciente de que estava sendo observada de toda parte. Uma vez que somente tinha um limitado tempo de luz natural para atingir o alvo, permanecia em marcha, apesar de suas pernas darem poucos sinais de vida ao restante do corpo, num ritmo espasmódico, atípico, desesperado, embora olímpico. A Garganta, repleta de aflorações cristalinas, restos de lava e convulsões metamórficas de origem bastante remota, finalmente terminara. Estava estarrecida por ainda não ter sido detida. Saiu do desfiladeiro para descobrir, mais a frente, uma cratera, ainda fumegante daquilo que um dia fora o rádio-farol. O único que existia naquele mundo, quase atingindo um ponto onde o objetivo podia ser visível. Se por um lado sabia que estava próxima do destino, por outro tinha certeza de que as malditas tarântulas tinham 58
partido para a ofensiva, despertando nela outras ondas de recordações, sentindo uma facilidade que desconhecia para lidar com a morfologia dos opressores. Voltou ao sistema de relatório, não dando trégua para que a mente se abatesse. Descobrira não possuírem órgão fonador propriamente dito; com as excrescências que se projetavam do pedúnculo promoviam fricções bem complexas. Mantinkore Burilax krau D’rut era como percebia o longo nome do lugar. Nem um planeta típico ou um sistema básico. Só um ponto no meio do nada, uma nuvem de corpos cavernosos em que, talvez por um capricho da natureza, em imensas galerias no interior daqueles rochedos espaciais, se formara uma certa atmosfera, houvera centelhas criadoras e a raça de Macróbion, o ser que encubava, se originara milhões de anos atrás. Seres cegos, porém dotados de outros órgãos sensoriais, que acabaram se tornando soberanos na batalha evolutiva contra os diversos espécimes daquele hábitat. Ela nunca soube – o elo mental não dava qualquer resposta, por isso especulava – como eles migraram para um outro mundo, subjugando sua população, fazendo a mesma coisa em toda parte, escravizando seus hospedeiros, levando-os a agir em conformidade com seu modo de vida. Comer, procriar e hibernar tinha sido o tripé inicial, porém, ao longo 59
da evolução, aquilo sofrera mudanças naturais e até radicais. Criou-se espaço para outra atividade: a conquista; fazendo com que a população aracnídea dividisse tarefas e possibilitando sua própria sofisticação social, que antes era preponderantemente instintiva. Os espécimes que chegaram até ali, numa época bastante remota (conforme a proliferação de cidades abandonadas e culturas mortas atestavam – já que o espaçoporto acabara funcionando como teia das tarântulas) tinham logrado êxito na ocupação. Macróbion revelava (talvez com intuito de enfraquecêla mais ainda, demonstrando a dimensão de seu poder coletivo) que os nativos, então uma orgulhosa raça espacial, eram os reais construtores do espaçoporto. Antes de lançá-los na barbárie, exterminando suas colônias para que as predadores não temessem um ataque inesperado, fizeram esses autóctones ampliar o campo de pouso, mantendo a cidade original deles, próxima ao maior dos lagos, tornando as demais povoações totalmente irreconhecíveis. Ela aceitava aquilo como base de seu conhecimento pois tinha outras fontes em que se basear... Uma civilização não-tecnológica, os predadores percebiam a ciência como um artifício para expandir seus domínios e passavam a parasitar até isso. Ordenaram aos seres que ora dominavam para, tal como no seu mundo de origem, prepararem centenas de 60
asteróides escavados e assim criaram um sistema que, esperavam, conquistaria o universo. Tudo indicava que, há centenas de milhares de ciclos orbitais no berço do tempo, os mesmo hospedeiros do início da expansão aracnídea, talvez como último ato antes de também saírem de cena, vítimas da extinção, montaram esse sistema de casulos, dentro de algumas rochas, que foram catapultadas (ou semeadas) em várias direções. Por mais que a hibernação fosse mantida dentro das naves de rocha, esperavam colocar em qualquer mundo seres com a pretensão total de se tornarem seus dominadores, despertados do longuíssimo jejum. Isso só ocorreria à passagem da alta atmosfera, na fricção resultante, indicando um lugar com algum tipo de ecossistema. Se não houvesse tal fricção o comando suicida se esbateria contra o obstáculo e toda colônia no meteoro sucumbiria ou, não atingindo nada, continuaria errando pelo universo até algo assim acontecer. Havendo tal ecossistema, e como os seres toleravam uma banda larga de misturas gasosas, possuindo pulmões foliares e filotraquéias – não preponderando a amônia, o enxofre e outros elementos que ela não pudera captar do intruso que ‘hospedava’, sempre as tarântulas podiam chegar a algum lugar. O casulo, equipado para essa última tarefa, des61
pertava a colônia e lançava os indivíduos em microplanadores pouco antes do meteoro se chocar. Como o sentido de agregação era fantástico, as unidades sobreviventes procuravam praticar a redundância: sobreviver. Isso significava predar outros organismos, rompendo o jejum e, principalmente, neles se reproduzindo. A cabeça dela girava. O cérebro chacoalhava. Já perdera toda identidade, não sabendo se as imagens que ‘via’ ao compor seu relatório mental eram uma projeção de sua alucinação, especulação fantasiosa ou se já articulava pensamentos exclusivamente alienígenas. Provavelmente uma mistura de tudo. E não só as aranhas partilhavam seu ser; existiam outros sentidos também, que por vezes faziam com que ela fosse outra pessoa e percebesse coisas sob um contexto totalmente diverso... Uma fisgada explorativa no rim mostrou a ela que o ser voltara à atividade; mesmo que sucumbisse de novas hemorragias, tinha que tentar chegar ao âmago daquele pesadelo! Como tal criatura se alimentava só de líquidos, ou seja, cuspia, exsudava ou injetava sucos digestivos em sua presa (segmentos do rim), a fugitiva sabia que somente muito tempo depois Macróbion sorveria o caldo resultante. Apesar das provações e da corrida desesperada, continuava sendo uma pesquisadora, embora, no momento, irônica e tragicamen62
te – já não podia precisar desde quando – transformada em cobaia, um teste de campo; a primeira a ser usada fora do cativeiro, dessa forma mostrando se o espécime tinha vantagens em relação aos anteriores, levando em seu próprio bojo, como seus pais, uma entidade com uma outra configuração. Se pudesse tirar algum proveito disso – e uma série de picadas internas demarcando área digestiva minavam sua esperança –, tentaria vencer o último e acidentado percurso até o objetivo, alimentando-se, ela também, do máximo de informações que pudesse. Isso significava somente uma coisa: visitar o passado e expor o restante de sua mente à insanidade. * Buscou lá no fundo a lembrança de quando fora ‘aliciada’ no sítio arqueológico pelo nativo ferido, os pés ensangüentados de tanto dançar, conforme identificara nas imagens das sondas. Mesmo usando luvas e sabendo que uma aproximação direta de uma espécie basicamente desconhecida era coisa de uma ficção-científica barata, ela fizera justamente isso. Movida, quem sabe pelo fascínio do pênis que se avolumava e erguia-se túrgido, exibindo toda a pujança em sua direção, como uma tromba esguichando um líquido azulado que, a despeito de seus ótimos reflexos, atingiu-lhe o rosto desprotegido. Depois disso, acometida por uma cegueira temporária, só se lembrava duma 63
euforia incendiando seu corpo, de vagamente haver dispensado o lingüista, sendo guiada pelo trionês, dançando com ele para além dos limites do Sítio, onde acabara por perder a consciência. Despertou ouvindo um gotejar enervante. Estava tão escuro que nem podia reconhecer seu próprio corpo. Tateando, descobriu uma fenda na rocha por onde o ‘ping-ping’ se infiltrava. Por mais que a garganta estivesse sedenta decidiu não arriscar. Também havia uma pressão enorme na cabeça, como se um liquidificador tivesse sido ligado dentro dela, inclusive tendo dificuldade para formar pensamentos. — Onde fui me meter... O eco da própria voz se perdendo ampliou um pouco sua reduzida idéia de onde se localizava, provando que devia ser uma galeria imensa, provavelmente no subterrâneo ou no interior de qualquer montanha. Procurando sempre mais, concluiu que não estava amarrada nem apresentava qualquer ferimento palpável, continuando apenas a repercutir aquela brutal dor de cabeça e a desorientação. Mantendo as mãos na rocha tentou avançar, lutando contra a sensação que cairia num abismo na próxima passada. Não sabia precisar quanto tempo permanecera nessa jornada invisível, mas soube perfeitamente quando esta terminou... A despeito de seus gritos histéricos, Joana sentiu dedos sobre sua pele, dedos que se tornaram em tena64
zes ou mãos, que esfregavam uma verga de carne e músculo, dura, procurando se alojar em algo que ela, instintivamente, tentou negar. Nesse instante, pela primeira vez, percebeu que estava nua, mas, felizmente o estupro não ocorreu, embora tenha sido arrastada com brutalidade para uma luz distante, que foi ficando mais e mais próxima, até que deixou de perceber qualquer coisa ao desmaiar pela segunda vez. * Mário desembarcou no centro da principal aldeia do povo-tigre. E só fizera isso por um bom motivo: esta parecia abandonada. Como o mini-destróier possuía um pequeno esquadrão de planadores e robôs patrulheiros em quantidade, resolveu arriscar e montou cinco expedições de caça, ele próprio seguindo com uma delas. Cavernas e pedreiras foram vasculhadas, florestas, pântanos, riachos e lagos percorridos. Quase no meio da tarde, tendo recebido da cidadela o informe de que as hostilidades principais tinham cessado e mais de quatrocentos colonos encontravamse desaparecidos – inclusive alguns, a despeito de toda proteção, continuavam a sumir dentro da própria base, onde começavam a ser relatados casos de doenças estranhas –, o diretor, confrontando todas as informações colhidas, descobriu que uma das expedições não retornara ao ponto combinado. Pior que isso, permanecia incomunicável. 65
— Temos sinal? — Mário pressionou o rádio-operador, com o veículo pronto para a decolagem. — Impulso muito fraco e confuso, senhor. Mas consegui reduzir a interferência e creio ser possível localizá-lo no quadrante sul. Sem outra opção senão averiguar, visto não querer desistir, com outros três acampamentos do povo-tigre aparentando idêntico abandono, Mário passou os próximos minutos aguardando por algo que nunca imaginara em cogitar: um milagre. * Agora a imagem era outra. E não vinha de um único lugar. Se pudesse escolher teria preferido a inconsciência. No atual estágio talvez mesmo a morte fosse uma alternativa a ser cogitada... Seu conhecimento de biologia, referendado em qualquer parte dos mundos catalogados, indicava que nenhum predador era eterno, sendo sucedido ao longo da existência sem perda significativa de poder. O que verificava, contudo, é que encontrara um espécime raro, polivalente como nenhum outro. Tudo porque foi impossível deixar de reparar nas tarântulas e intuir até onde ramificava-se o poder delas. Paralisada, sua melhor reação ao despertar, ela viu quando um bando delas, enormes, brancas, doentias, passaram por cima de seu corpo, tocaram em algumas partes, experimentaram cavidades, e se perderam mais a frente. 66
O véu finalmente caíra, mas isso, antes de alardear a satisfação por descortinar uma coisa própria, porém negada até então, trazia a tragédia à galope, pois vieram outros suplícios... Joana já tinha sido manuseada, tendo línguas imensas, ásperas, passeando por toda parte; seu asco estava vencendo a porção cientista nela, permanecendo numa arena com vários machos urinando nela, e ainda felicitando-se por isso. Descobrira outras coisas bem piores. Porém a provação não se manteve constante, eles iam e vinham, urinavam e alguns até defecavam em seu corpo, atiravam coisas, chutavam, faziam miséria. Em certo momento uma nativa se acercou dela, destoando da ignomínia até ali verificada, tirando-a de uma nuvem de fragmentos de toda sorte, percebendo a humana num estado febril indevidamente tratado e delirando. Seu cativeiro, ao pestanejar e recuar vendo a nativa se aproximando, não se alterara. Ainda no mesmo monte de erva mijada, uma sucessão de espirros e cheiros desagradáveis provava que aquilo estava distante de qualquer sonho. — Beba isso. Ficará melhor — sussurrou a nativa, com movimentos delicados passando para ela uma cuia, contendo algo que reconheceu como água, que tomou com avidez, sem que sentisse que estava fazendo algo errado. 67
Joana, ainda mantendo alguma letargia, como se estivesse drogada há bastante tempo, demorou para notar que a trionesa se expressara em universom, a linguagem comercial da galáxia. A partir dela, sem explicação alguma de onde surgira aquela habilidade lingüística, recebera uma enxurrada de outras informações. Por exemplo, a revelação de que os machos do povo-tigre costumavam urinar DENTRO de suas fêmeas para demarcar território, mostrando que aquilo que suportara fora bastante preferível. Mas, nem bem foram citados, lá vinham os tais machos novamente! Joana assumiu uma posição de defesa, todavia não ocorreu o assédio de antes; mantinham uma posição que permitia a observação por entre as pernas deles (o que facultava a observação de outras coisas também), onde um grande borrão luminoso indicava a saída da caverna e outros detalhes que preferiria não ter visto. Foi nesse ponto que voltou ao início, sobre a possibilidade de cometer suicídio. A nativa tinha sumido como se nunca tivesse estado lá, talvez uma alucinação, e ela nada pôde fazer ao ser agarrada pelos longos cabelos – uma característica que tinha em comum com as fêmeas daquele povo –, sendo novamente tocada de várias formas, carregando-a justamente para onde não queria ir, estando já precariamente ‘batizada’ pelos machos. 68
Passou pela porta e seus olhos foram apunhalados pela claridade. O lugar era uma enorme fortaleza natural feita de rocha curvada por todos os lados; um dos sóis, difícil dizer qual, aparecia a supino no alto da chaminé rochosa, com centenas de cavernas desembocando onde ela estava, revelando nativos numa profusão que nunca poderia imaginar. Só um detalhe fez com que permanecesse ajoelhada, prostrada: o lugar, além de parecer um enorme bacanal, não tinha somente exemplares do povo-tigre... A imagem que apareceu em sua mente era a de um zoológico sem grades, uma reserva, talvez uma dispensa a céu aberto, qualquer sinônimo servindo, na hora de buscar correlações para entender a multiplicidade de seres que possuíam a indolência em comum, divergindo muito no quesito físico. Fechou os olhos mas a vertigem não a abandonou. A nativa ou sonho que intercedera em seu favor, trazendo água, parecendo nada boçal, estava inteiramente correta no muito que confidenciara, antes da exobióloga ser agredida porta afora. Instintivamente procurou pela atípica trionesa e não a encontrou. Sua cabeça ainda doía miseravelmente, dando a impressão de que havia um buraco dentro dela, como se algo tivesse saído e deixado um ouriço no lugar. Apesar das dores, percebia que podia se mover sem que ninguém a chutasse, como vinham fazendo há algum tempo; só não fazia qualquer movi69
mento porquê chamar atenção era a última coisa que queria. Com o corpo ainda encharcado pela urina abundante, sentindo frio, medo e revolta, a mulher estava encurvada em meio a tantas culturas (ex-culturas) e, se pudesse, abriria mão disso com prazer, vendendo a própria alma se precisasse. Aos poucos o coração foi reduzindo os batimentos acelerados, a imagem de Mário projetada em sua mente, acalentando-o como um quadro vivo, que esperava voltar a acariciar e não sair de perto dele enquanto vivesse! * — Destroços a frente — alertou a piloto, indicando um planador destruído numa clareira, colocando na tela um close que não poupava a visão de um tripulante degolado junto à fuselagem destroçada, mostrando um rastro sangrento que se embrenhava na mata. O decodificador comprovou que o tipo sangüíneo conferia com o do cabo Papandriou, o único dos tripulantes do planador ainda não encontrado. Despachando batedores-robôs, a floresta bastante silenciosa, porém arfando a volta deles, um pelotão de boinas azuis seguia em formação de combate. Não foi preciso esperar muito. — Senhor! Voltando para a nave, deixando os enfermeiros reunindo o corpo degolado, Mário atendeu ao chamado do comunicador. 70
— Acho que devia ver isso... Aquele ‘devia’, percebera, embutia uma dose grande de amargura e raiva. Foi com apreensão que viu surgir na tela a imagem do corpo esquartejado daquele que um dia tinha sido o cabo Guadalupe Papandriou. Já vira coisa semelhante em documentários, quando a maioria das batalhas eram travadas corpo-a-corpo. Não podia negar que havia um certo fator de guerra psicológica ali. Porém tudo ainda estava muito confuso, já que o entreposto e Perséfone haviam sido atacados por veículos espaciais e armas ultra-modernas, enquanto atos de guerrilha e utensílios primitivos estavam sendo usados sem qualquer precisão cirúrgica, para retalhar corpos, pintando um quadro dantesco com bastante propriedade. Quem, afinal, era o inimigo ... Com esse pensamento, foi forçado a reconhecer que não lidavam com nada muito usual. Nenhum documentário o ajudaria nesse caso. Só teria chance de encontrar Joana se chegasse a capturar ao menos um exemplar nativo. Por outro lado, perdera dois ótimos soldados e as vidas ceifadas deles também contavam. Estava dando muito mais do que recebia. Numa batalha isso era sintoma de derrota. E ele detestava perder! Com a imagem do picadinho humano ainda escaneada na tela, e dos boinas azuis sem saber o que fazer, reparou que um deles tropeçava em alguma coisa. Era 71
algo mole, deforme, e só quando o soldado ergueu aquilo, segurando com as luvas de proteção, foi que notou que, distendido, lembrava um formato humanóide. Algo que sua querida Joana tinha contado certa vez, na cama, foi responsável por mandar suas mazelas para a puta que pariu... Naquele momento deixou de ser o Diretor. Disposto a tudo para não entrar no jogo do inimigo, que já começava a se esboçar, abandonou de vez o prisma diplomático e abraçou a causa de Marte, a primitiva sede de vingança precisando ser aplacada. — Recolha a tropa, tenente Frida. E vamos, rápido, ampliar a órbita — ordenou ao piloto, voltando-se para o artilheiro: — Faça uma leitura térmica e se notar alguma concentração de calor de qualquer espécie, abra fogo imediato com tudo que tiver. Vendo que o artilheiro não captara a gravidade da coisa ou se mostrava relutante, concluiu: — Será que não têm testemunhas suficientes para confirmar meu pedido, cabo? O aceno grave da tenente, comandante e piloto do veículo, liquidou o assunto. A única preocupação dele era com Joana, ou qualquer outro grupo humano, que correriam risco de morte com isso. Porém risco maior era não fazer nada. E ele estava disposto a fazer tudo. * Joana Blair começava a encontrar tempo para imaginar uma maneira de se safar. Isso só podia ocorrer se 72
analisasse todo aquele cabedal incrível de alucinações no mundo real. Sabia que, além do povo-tigre, outras doze raças deambulavam por ali, sendo todas as sete principais – inclusive os nativos –, donos presuntivos dos ‘sítios arqueológicos’. Mas havia outras também, que deviam ter participado do esforço conjunto na exploração de Trion. Todos descendentes de outros descendentes, e ela não estranhou que a barbárie fosse o fundo do poço comum a eles. Em determinada altura, com o coração palpitando, chegou a notar alguns humanos saindo de um grupo de cavernas distantes, mas estavam acorrentados e sendo empurrados para outras cavernas, desaparecendo de suas vistas. Com ânimo renovado e um objetivo fervendo em sua cabeça, tentou fortalecer o espírito para suas próximas observações, pois já sabia quem ou o que era o algoz de tudo isso, o predador inicial, o parasita que enganara a todos com a mesma facilidade com que chocava seus ovos. Já podia identificar os sinais principais, as modificações nos diversos metabolismos, a injúria mental que aplicavam sem qualquer parcimônia, absurdamente democráticos nisso. Juntando-se àquilo que a fêmea dissera, sua análise fria – buscada não sabia com que forças – ampliara seus horizontes: desvendara a raça aracnídea, a 13a espécie, encubada em alguns daqueles exemplares multirraciais, que pro73
moviam a ecdise (mudança de pele) e, por serem cegos (a nativa lhe informara e os poucos exemplares que vira pareciam confirmar isso), cultivavam o hábito por cavernas, como terrícolas. Vamos, Joana, você consegue muito mais do que isso! Ouvindo seu pobre apelo mental, tentou executálo da melhor forma. Os predadores eram seres bissexuais, assemelhados às tarântulas, porém com algumas significativas modificações: na localização dos variados segmentos (palpos, garras e articulações em geral), eles diferiam por possuírem uma ciliação medusiforrme, com exceção dos esporões, por onde o veneno era injetado nas vítimas. As ciliações (lembrava ainda do que sussurrara a nativa) cumpriam a função de cingir o órgão predado, estando a mandíbula situada no esterno, na parte ventral da ‘aranha’. Também secretavam seus filhos pelas glândulas fiandeiras, como os exemplares que se encontravam na Terra. Seriam as matrizes daquilo que devia ter chegado ao seu planeta natal por meios insuspeitos, porém degeneradas de alguma forma, transmudadas naquilo que se conhecia? Agora não importava traçar paralelos de uma evolução talvez de mais de um milhão de anos, e sim ter em mente que as habilidades de interface com as vítimas, na eventualidade de não estarem encubados, podiam ser somadas à eliminação 74
de pêlos urticantes, daí que precisava se precaver de toda forma. A hemolinfa, o sangue incolor das tarântulas, tendia nessa variante a se misturar com alguns de seus hospedeiros, levando traços de veneno em seu retículo, podendo provocar na vítima desde taquicardia, distúrbios de equilíbrio, dilatação ou contrição das artérias, até um aumento significativo duma euforia esfuziante. A hemolinfa também os contaminava com hormônios especiais, quer lhes aumentando a força, quer promovendo alterações profundas em seu metabolismo, como, por exemplo, a troca de pele, coisa que já constatara. Que mais? Preciso de mais. Algo que me ajude na fuga... Tentou manter os nativos como foco de abordagem, achando ótimo que ninguém se preocupasse com ela, esperando descobrir uma coerência (e uma saída) naquilo tudo. Resolvera atacar finalmente a parte espinhosa: Nem todos do povo-tigre (na verdade só uma parcela deles eram hospedeiros em tempo integral) apresentavam mudanças significativas em seus corpos. Mas podiam ser afetados, temporariamente, até na ingestão de veneno diluído, por meio dos ‘ferrões’ masculinos (o pênis), através da felação. Era um hábito que ela via acontecer bem ao seu lado, tendo experimentado algo assim naquela manhã no Sítio, que já parecia perdida na eternidade. 75
Outra coisa que percebia como característica curiosa, situava-se na capacidade da fêmea trionesa de discernir sexo puro, da reprodução, aracnídea ou não. No segundo caso o membro masculino era, uma vez introduzido no orifício apropriado, decepado em sua base, carregando os anterozóides em estado latente, migrados das três bolsas escrotais para um compartimento intermediário, misturador, que era o membro propriamente dito. Desse pênis ceifado (se não fosse alienígena) a fêmea faria ‘sexo uterino’, mantendo-o reservado até seus óvulos maturarem, para garantir uma ninhada maior, havendo ainda uma grande quantidade de abortos entre eles. Joana, cuidado!!! Os dias contemplativos dela pareciam terminados. Sem que esperasse, foi segura na altura do quadril, pregando-a no lugar. Por mais que trancasse a boca, mãos-garras fizeram com que a mantivesse escancarada, um macho se introduzindo com habilidade, forçando nela um sufocamento. Contudo uma substância lubrificante no membro, como num antigo exame de endoscopia digestiva, dilatou-lhe toda cavidade laringotraqueal, enquanto, inerte, aguardou até que o nativo gozasse abundantemente nela, transbordando por sua boca, escorrendo pelo peito arfante. Bem que tentou vomitar a maior parte do gozo, mas sem que pudesse atuar voluntariamente suas pernas 76
começaram a tremer, depois foram os braços e quando menos esperava já estava se erguendo como um marionete desconjuntado, em consonância com os demais dançarinos, sentindo um torpor trazer alívio para suas dores de cabeça. Outro fato curioso — Joana, apesar de drogada, dançando como uma ensandecida, tivera tempo para registrar isto –, é que alguns pênis decepados (no caso dos hospedeiros) cresciam quase que imediatamente, atingindo envergadura máxima menos de uma hora após o coito reprodutor. Um lento e progressivo estado de priapismo se configurava e logo o hospedeiro estava pronto para injetar novo conjunto de células aracnídeas onde quer que fosse. Pena que as sondas, as poucas que tiveram algum êxito em espreitá-los, não conseguiram vislumbrar esse processo restaurador (normal) que só ocorreria após três meses de privação total de qualquer ordem. Os não-encubados, machos em estado semivegetativo, ficavam imprestáveis para qualquer tarefa durante esse período, apresentando também grande mortandade. A droga introduzida nela fazia com que percebesse numa visão caleidoscópica, girando, girando, girando, chocando-se com vários corpos, e girando e girando, até quase perder o sentido quadrimensional. Devia ter ficado assim até o começo da tarde, o segundo sol passando pelo zênite e desaparecendo na direção oposta ao movimento natural do planeta. 77
Enquanto girava, sua consciência também experimentava um obscurecimento, a mente analítica tentando, por todas as formas, ater-se a um observar frio, mas estava difícil. Ainda assim tentou... Seus captores eram estritamente ritualísticos, sazonais, tinham uma cultura hermética ao cubo, estanque em relação a qualquer intervenção externa. Por um motivo maior isso se mantinha. Buscava dentro dela outras imagens, como se sua mente abrisse percepções que experimentava pela primeira vez. Os hormônios daquela droga gosmenta, empurrada goela abaixo, deviam estar agindo para fazer eclodir tudo isso. E nesse frigir avassalador via o planeta e sua paisagem exuberante, os diversos ‘sítios arqueológicos’, situados no contorno do espaçoporto, com várias jazidas importantes e sinais promissores de veios de optimmunC62 – a base duma liga usada na engenharia astronáutica e toda indústria espacial –, acenando pistas do futuro turístico-exploracional daquela colônia. De uma vez por todas saiu de cena a pesquisadora fria, com uma visão privilegiada da ‘verdade’, e entrou a mulher mortalmente aterrorizada, vítima em todos sentidos. Agora sentia dores atrozes por todo corpo, o que por outro lado significava estar voltando a perceber e controlar seu organismo. Só quando seu abdômen se contorceu de forma violenta, fazendo-a cair em con78
vulsões, foi que enxergou algo em que não reparara quando o trionês empurrara o membro cavalar em sua goela. A cena pareceu como que congelada, avançando quadro-a-quadro, até que notou que o pênis dele não estava íntegro como entrara... Faltava um pedaço, na verdade um terço dele, uma seção de 15cm... Enlouquecida ante esta possibilidade contra qual a sua mente se insurgia, ela gritou e levantou-se, correndo sobre corpos tombados, cega pelo terror; correndo como se as pernas fossem a única parte de seu corpo que respondia, desaparecendo numa caverna, gritando ainda , sem que ninguém pudesse detê-la. * A nave, saiu de uma vertiginosa queda vertical, sobrevoou o desfiladeiro e o cabo Saito K. Larson, o artilheiro do destróier, já não mais contrariado, fez o que lhe fora mandado algumas horas antes, seguindo um exaustivo rastreamento. Ao descobrir a série de alvos suspeitos, correndo na escuridão para o vulto de uma mulher nua, não titubeou. Abriu fogo cerrado e conseguiu muitos óbitos num único disparo. Matar não era difícil; contar os corpos é que se tornava problemático, quando um desruptor nave-nave transformava entidades biológicas em íons dispersos. O que não conseguiu foi evitar que alguns dos sobreviventes do contingente inicial de 80 nativos revidassem na única direção que não deviam: atirando 79
as longa hastes, espécie de lanças, algumas delas alvejando a mulher que por pouco não atingira a zona limítrofe da cidadela. Mário, vendo o corpo tombar, os longos cabelos espalhados, teve uma súbita intuição, só conseguindo colocar uma palavra em seu grito: — Joana!! 6 As hastes tinham atravessado seu corpo em dois lugares, porém não seria isso que a mataria, ao menos não antes de concluir aquilo a que se propusera. Sabia que não precisava temer que seus perseguidores acabassem o que tinham iniciado. A nave terrestre se incumbia desse detalhe. Mas chegara tarde para fazer algum coisa por ela, talvez obtendo um resultado exatamente oposto... A pesquisadora levou as garras na direção torácica, arrancando a 1a haste, trazendo junto alguma cartilagem. Com a outra atravessada na grossa coxa foi bem mais fácil. O urro, mal contido pelo firme cerrar dos lábios leporinos, foi seguido de golfadas de sangue acobreado. As coisas podiam parecer lentas mas aconteciam com uma velocidade assombrosa, deixando Dannak lambendo suas feridas, lamentando apenas que a Criatura não tivesse perecido no alvo de alguma daquelas lanças. 80
Como tudo estava mesmo muito célere, as batidas dos dois corações sincronizados podendo ser percebidas com uma lentidão enervante, Dannak pode rever tudo o que fizera para merecer esse fim: Era uma Tgatas de nascimento, porém há mais de dez ciclos, cerca de trezentas revoluções solares locais, seus antepassados faziam parte dos poucos sobreviventes de uma nave de gerações que vinha de longa missão à galáxia vizinha, voltando à Tgat – que os humanos chamavam de outra forma, no idioma que fora forçada à aprender – mas não foram recepcionados como convinha pelos parentes distantes. Desde antes de aportarem no planeta estranharam esse silêncio, uma característica estranha para um povo tão comunicativo e civilizado. A nativa ferida arrastou-se para a beira de um penhasco. Suas lembranças foram junto, tão frescas como nunca, mantendo a tradição oral de sua família, vitimada por uma raça invasora, porém mantida reservada para alguns serviços tecnológicos que os imbecilizados sucedâneos do seu povo não sabiam executar. Tarefas vigiadas das entranhas, pois serviam de hospedeiros para uma nova variante aracnídea que não crescia, manipulados geneticamente para não causar dano irreversível nem mudança significativa no metabolismo dos hospedeiros. Porém, mesmo levando em consideração o melhor controle do universo, mecanismos artificiais e naturais de pro81
longar a vida, a apatia e longa escravização acabaram por dizimar todos seus familiares. Portanto Dannak, forçada a nascer nos últimos anos de vida de seu povo, era a última descendente do império daqueles nativos degenerados. Fora ela que, instigada e controlada por Macóbion, se deixara capturar e cometera todas aquelas atrocidades com o diretor chamado Bartholomei Sanches, antes de entregá-lo para a desova, procurando uma unidade estética e reparando o grande estrago que fizera em suas mamas, ao arrancar de lá a unidade controladora do humano. O sistema, de que nunca nenhum dos novos colonos suspeitara, era bastante simples, para que os idiotizados nativos pudessem operar. Ela queria entregar aquele conhecimento. Já participara daquilo por tempo demais. Sabia que várias equipes seguiam para os arredores onde tencionavam atacar, subtraindo espécimes para o Dispensário. Cada uma delas, geralmente, se constituía de três indivíduos. Enquanto um fazia contato com a vítima (projetado por portais portáteis – um equipamento que uns dos primeiros povos colonizadores tinham ‘ensinado’ a operar), procurava meios de emitir um sinal de baixa freqüência, captado pelo segundo membro da equipe, voltando a projetar o portal; através dele a vítima (ou vítimas) era capturada, emitindo um novo sinal sônico para o último membro da equipe, que, em local 82
seguro, reunia o grupo e levava a ‘colheita’ para o usufruto dos predadores. A última manipulação da jovem pesquisadora, que quase nunca podia fazer nada para evitar seu envolvimento, fora usar a nave de seus antepassados (guardada com outras tantas num estaleiro sub-oceânico, juntamente com vários veículos auxiliares, teledirigidos para bombardear as aglomerações humanas em Tga), para destruir o rádio-farol, o mesmo que já deixara para trás. Ao sentir Macróbion se revoltar, expandindo seus tentáculos para se apossar dela, teve uma idéia. Já que tudo não passara de brincadeira para a criatura encubada, desde que encontrara com a terrestre no criadouro e tentara partilhar com ela algum conhecimento – enquanto promovia exatamente o oposto, comprovando se os implantes de memória humana eram compatíveis –, Dannak fizera a fuga valer a pena para Macróbion. Como levava dentro dela uma parcela das células cerebrais da mulher chamada Joana, era uma forma do encubado traduzir melhor a informação, percebendo que a invasão podia começar, deixando Tgat vazio para a chegada de novas vítimas. Sob o cintilar do campo defensivo do objetivo perdido a noite não ficava tão escura. Arrastou-se pela distância que faltava para chegar ao precipício. 83
Quando o humano se aproximou dela, crescendo na direção do céu, fez apenas um gesto para que não avançasse mais. Por dentro, provando de seus pensamentos, a criatura percebera suas intenções e notara que não teria tempo de assumir o controle antes de Dannak se projetar nas rochas pontiagudas que cresciam logo abaixo. Ficou estático. Exatamente o que lhe custou a vida. O momento chegara! * Se no lado de fora a confusão de Mário atingia o ápice, tentando entender o que fazia aquela alienígena – que presumira ser Joana –, preparando-se para saltar no despenhadeiro, dentro da base o cenário não era menos mortal. Doenças se alastravam por todos os onze andares da cidadela, e um quadro clínico gravíssimo, de tão generalizado e epidêmico, não encontrava espaço para ser tratado na grande enfermaria. Até Udgar, desde o início ouvindo buzinarem em seu ouvido terminologias médicas, sabia estar sofrendo com sua parcela de mialgia, prurido cutâneo e nasal intenso, tosse, dispnéia e, a coisa mais inconsistente de todas, encontrava-se acometido de priapismo... Apesar de haver muitos casos terminais, não fora registrada nenhuma morte. Desde que um trionês tinha sido descoberto e liquidado, ao aparecer, fantasmagoricamente, no setor onde os colonos se amonto84
avam, nenhum outro caso de desaparecimento ocorrera. Novamente não fôra difícil correlacionar as duas coisas, ficando alertados para novas aparições, porém a maior parte da operação de segurança encontrava-se mantida por autômatos. A despeito da coleção de dores, contraturas musculares graves e cãimbras tomando-o de assalto em qualquer lugar, ainda estava melhor que muita gente. Foi checando o funcionamento do campo defensivo e ouvindo o show de gemidos do ordenança (que além de broncoespasmos, apresentava febre alta, icterícia e insuficiência renal aguda), que o comandante descobriu, para sua nova surpresa, uma certa movimentação no perímetro exterior! Deslocando-se com dificuldade, tentou alcançar o comunicador, reconhecendo o chamado do minidestróier que pedia permissão para pouso. — Im-impossível... — tentava buscar ar em pequenas inalações, para responder: — Situa... ção crítica. Infecções... generalizadas. Todos... contamina-dos. Médicos... neutraliza-dos. Isolamento... necessário. Contudo foi a voz de Mário ‘Quebra-Queixo’ que ouviu, associada com um pequeno holo a um palmo de seu nariz. Prostrado, sem forças para qualquer movimento, pelo menos ainda mantinha a audição intacta: — Temos registros médicos do que possa ter acontecido com vocês, Ud. O tratamento está a caminho; pode ser demorado mas é eficaz. Mande a senha que 85
passarei os dados diretamente para o circuito médico e tentaremos, por aqui, reprogramar os robôs-enfermeiros — a voz do diretor modificou-se, ao concluir para a imagem do homem que parecia um espantalho mais do que surrado. — Estou partindo para uma última missão, amigo. O pessoal do destróier saberá colocá-lo a par de todos detalhes, mas não podem desativar o campo defensivo sem a sua colaboração... Bem que gostaria de ter indagado que misteriosa missão seria aquela, porém Udgar preferiu usar o pouco de ânimo que lhe restava para cumprir os desejos do diretor, franqueando a base para a entrada do vaso de guerra e a esperança de vida e alento que o mesmo parecia trazer. * Acordou, descobrindo, por toda parte, que ninguém deixara de ser atendido. O pessoal do destróier se desdobrava para levar conforto e cura em todos os níveis da cidadela. Podia sentir que estava medicado, grogue pelas drogas agindo em seu corpo. Dos enfermeiros e atendentes que andavam próximo, ouvia o papo médico costumeiro, na falta do que fazer já se habituando a isso. Do pouco que conseguiu ‘traduzir’ percebia que a base fora atacada pelo sistema de ventilação, que deixara de cumprir seu papel filtrante; algo como irradiações maciças de ‘pêlos urticantes’ e veneno gaseificado, de origem aracnídea(?), tinham sido dissemina86
dos por comandos de nativos projetados para dentro da base por intermédio, a se acreditar nos comentários, de portais dimensionais, porém todos os operadores já tinham sido devidamente silenciados pela elite dos boinas azuis. Se a parte que entendera já era bastante difícil de compreender, quando a conversa versou sobre uma chuva de terminologias tais como: ‘analgesia por lidocaínicos não vasoconstritores, choque neurogênico, impedimento cutâneovisceral, uso de relaxantes musculares à base de benzodiazepínicos combinado com glucanato de cálcio e pomadas de corticosteróides...’ – que no caso dele, suspeitava, vindo em boa hora –, capitulou, mas não antes de assinalar a presença da comandante do destróier recém-chegado. — Deveria estar descansando, senhor. Seu quadro ainda inspira cuidados... — Foda-se, Frida. Estou cansado de ficar nessa merda de poltrona reclinável — e, apesar dos espasmos ainda provocarem um pouco de dor, abriu um sorriso para ela. — Quer servir de muleta para um velho ou prefere vê-lo agonizar? Contendo um suspiro de contrariedade, a experiente militar sabia da inutilidade de bater de frente com o superior, mesmo avariado. Levando-o para sua posição predileta junto aos controles, ia sendo sabatinada a medida que avançavam: — ... se entendi direito fomos invadidos por... aranhas? 87
— De certa forma é isso que elas são, só que bem mais sofisticadas; um tipo de predador que se aloja dentro de alguns nativos, tornando-os uma espécie de extensão humanóide, que agia em nosso meio sem que tomássemos conhecimento. — Isso já compreendi... Só quero que me poupe da longa história triste de como fizeram para chegar até aqui — por enquanto — e me explique o que diabo aquele idiota do diretor foi fazer com um planador?! Engolindo em seco, preferindo contornar o assunto e acomodar o comandante na imensa poltrona de controle, ela finalmente desmoronou ante a insistência do olhar do outro. — O Sr. Coutinho voltou com o planador para resgatar a mulher dele... — ELEOQUE!?! Se não conseguiu com um veículo maior e totalmente equipado. Se você mesma afirmou que existe uma raça de superaranhas a solta por aí, porra, que demônio fez com que voltasse lá sozinho... — Eu não disse que voltou... sozinho, senhor... — passou a língua nos lábios, preferindo mil batalhas a ter de manter aquela conversa. Encurralada, concluiu: — Voltou junto com uma das hospedeiras das aranhas. * Mário, depois de ficar estarrecido ao ver a alienígena se deslocando para se lançar no abismo, ficou mais 88
aterrado ainda quando esta, num movimento ágil e definitivo, pegou uma das lanças que estavam próximas e enfiou em seu ventre, trespassando-o. O berro que ouviu não foi o único, pois na outra extremidade da haste, projetada rente ao quadril, estava um exemplar daquelas famigeradas ‘tarântulas’, seus 22cm estertorando até molemente pender e exalar um cheio desagradável. Sem saber, testemunhara Macróbion bater as botas... Apesar da dor, seria possível visualizar algo que parecia ser um sorriso naquele rosto extraterrestre? Ele nunca pôde perguntar nem a trionesa quis responder. Não podia negar que se sentia fascinado por ela. Apesar das privações que deveria ter passado, a quantidade de ferimentos – o último parecendo mortal, com o predador arrancado, agarrado ainda a um dos corações erguendo uns 30cm acima de sua cabeça, ela calmamente passava para ele, em universom, todas as informações pertinentes para contra-atacar o inimigo comum, tornando essa admiração em algo maior. Porém, ao pensar em Joana, sentou-se numa rocha, abatido. Os ‘azulões’ de Udgar corriam em todas as direções para resguardar a base de qualquer nova investida. — Sei onde está... sua mulher — disse Dannak, a alienígena. — Como? — forçou-se a voltar à realidade, sem lágrimas para chorar por alguém que imaginava já não 89
existir, embora estivesse abatido demais para entender o que a nativa falava. Só que isso mudou. — Sei onde está... Joana — apontava a cabeça, mantendo pressionado o maior dos ferimentos, aceitando a camisa do terrestre e algumas suturas como bandagem provisória. — Carrego sua imagem em meu íntimo, já que fui submetida a um implante superficial de memória extraída dela, e sua fêmea retém a lembrança de você em toda parte. Não queria saber como aquilo se dera. Com a esperança renascida, entrou em contato com a base, cumprindo uma rápida intervenção e partindo em seguida com o planador. A única dificuldade fôra acomodar Dannak dentro do compacto veículo. Tendo a alienígena arquejando no banco traseiro, na posição de artilheiro e percebendo a que tranqüilidade com que enfrentava a morte, não perdeu segundos preciosos em qualquer tipo de hesitação. Fez o veículo saltar pela força do empuxo, partindo como uma flecha para as coordenadas recebidas. Tudo dependia de instinto e improvisação. O resto só o tempo diria. * O planador pousou num local bastante ermo, praticamente no meio do continente. Nunca teria imaginado procurar tão longe. 90
O deserto era de cor ocre, com uma vegetação raquítica lutando por se manter viva junto às rochas aglutinadas em pequenos monturos. Fendas se abriam em toda parte, resquícios de alguma violenta atividade sísmica do passado. Foi numa dessas fendas que Dannak indicou o caminho, uma longa escadaria talhada, que se perdia rumo às profundezas do lugar. A noite, se era gloriosa lá fora, o céu cintilante, luas passando em seu delicado bailado orbital, deixava de ser apreciável; a medida em que avançavam a escuridão se intensificava, a nativa mantendo-se na frente, enxergando como um gato. Mário só sentia o confortável contato com o ombro recurvado da guia. Depois dela tê-lo advertido para uma coisa óbvia: o sangue que minava podia fazêlo escorregar, o avanço se tornou bem mais lento, porém livre de contratempos. Só soube que chegara ao final quando a guia mergulhou na direção das trevas. Percebeu sinais de luta e resolveu que era o momento de espantar a escuridão. Cegos pelo sol artificial que o homem fizera acender, lá estavam cinco nativos. Outros quatro jaziam mortos junto à fêmea, engalfinhada, rolando no chão para evitar as lanças de outros soldados. — Não, ela já teve experiências com armas demais para o meu gosto! — gritou o diretor, dando uma morte tecnológica para todos os nativos que tentavam fugir. 91
Amparando Dannak, que insistia em seguir com ele, já que não podia achar Joana de outra forma, desistiram de invadir as cavernas subterrâneas sem alardear sua presença. Onde havia possibilidade de avançar sem entrar em contato com os nativos, isto foi feito, contudo nem sempre foi possível. Sentia que as forças da alienígena se perdiam, o que tornava seu progresso mais desesperado. Somente após ter colocado abaixo uma parede de rocha – que acabou se revelando como uma porta – foi que, finalmente, chegaram ao Dispensário. A visão era a mais hedionda que Mário já tinha visto, tornando obsoleta qualquer explicação que a agonizante companheira quisesse dar. Eram seres nas mais diversas fases de encubação, mantidos vivos por uma casta de aranhas especialistas, esgueirando-se no frio ambiente com a tranqüilidade de não temer qualquer inimigo. Só que aquilo ia mudar! Uma série de tiros acabou com a vida de inúmeros aracnídeos. Rapidamente, os demais espécimes, contidos nos corpos que pendiam de casulos em nichos nas paredes, percebendo o perigo, tentavam abrir caminho das entranhas das presas para buscar abrigo em outro lugar. Só que não houve OUTRO LUGAR. Mário se encarregou disso, esperando que os hospedeiros, que 92
não podiam mais ser salvos, pudessem ter a morte que mereciam, desde o início daquele suplício que se mantinha sabe-se lá há quanto tempo. * O pandemônio foi generalizado. No meio daquela confusão ainda sentiu uma das mãosgarras em sua túnica e percebeu que Dannak não poderia dar mais nem um passo. Entretanto continuava a parecer serena, numa paz que, a se acreditar nas confissões dela, não lhe podia mais ser tomada. — Vá — disse, indicando um caminho. — O local dos prisioneiros... onde testam as várias armas... onde, se acredita que irá encontrar, está sua fêmea... Estas acabaram sendo suas últimas palavras. Mário, tentando dosar o ódio pelas famigeradas aranhas com o exemplo dado pela nativa, invadiu o último reduto daquela colônia. Graças à confusão reinante, ele pôde continuar, chocando-se com inúmeros seres, a maioria em pânico tal que não permitia qualquer reação, exceto a fuga desordenada. Parecia haver também um levante interno, pois encontrou diversos humanos, provavelmente do contingente dos últimos desaparecidos, lutando lado-alado com uns poucos descendentes dos antigos colonos de Trion. Conseguiu, com dificuldade, organizar uma espécie de batalhão. Como carregava um arsenal, não pou93
pou armamento a ninguém, e viu dedos, garras e tentáculos procurando manejar aquilo que distribuía com prazer. A ordem era fácil de ser cumprida por humanos e seus aliados: escoltar os sobreviventes para fora daquele labirinto e liquidar todas as aranhas que encontrassem no caminho. Se havia dúvida de quem podia ser encubado ou não, um velho preceito entraria em ação. Atirar primeiro, checar depois (ou nunca mais). * Joana percebera que alguma coisa diferente estava acontecendo quando percebeu que seus guardas foram minguando, até só restar um. Desde que tentara a fuga e acabara invadindo um dos berçários – onde se fazia a seleção de casta dos aracnídeos –, liquidando alguns ovos antes de ser contida, que não a deixavam sozinha, mantendo pelo menos cinco nativos servindo de guarda. Desconhecendo o porquê de sua importância para eles, quando o mais fácil seria abatê-la sem piedade, Joana Blair, isolada por uma teia forte, estava disposta a vender caro sua vida. Já imaginando uma forma de se livrar desse último algoz, teve sua oportunidade quando o outro recuou em relação à entrada da caverna, chegando ao alcance das longas pernas da mulher, que só tinha os braços imobilizados. Todavia, antes que pudesse agir, um feixe de raios concentrados acabou com a necessidade disso. 94
Não era um príncipe que entrava, mas um homem ensangüentado, sujo, roupas em farrapos, olhar criminoso e uma arma tremendo em cada mão. Não era um príncipe, era muitas vezes melhor do que isso. Alguém tão abalado quanto ela, vencendo enormes obstáculos para libertá-la. O que valia mais do que um cetro ou dúzias de coroas. * Mário tinha dificuldade para enxergar as coisas de forma normal. Uma barreira vermelha descera na frente dos seus olhos e acabou por notar que as palavras doces que ouvira, agindo em seu inconsciente, foram o que realmente evitara que atirasse naquela a quem viera salvar... Joana, nua, uma lástima, ainda assim belíssima, olhava confiante para ele. Sabia que ela percebera sua ‘possessão’, pois tivera de passar por um dilúvio de corpos que caíam sobre ele para, talvez por milagre, chegar até ali. Finalmente reconhecia que isso só podia ser o amor verdadeiro, e não aquela coisa carnal, simbólica, porém também isso, e muito mais. Guardou o soluço, qualquer reminiscência, confissões ou um demorado beijo para quando houvesse tempo para usufruir de tudo. O homem voltou a vestir a carapaça de herói, libertando a mulher. Com cuidado redobrado, empreenderam o longo caminho de volta. 95
Muitas coisas ficaram para trás e muitas mais encontrariam pela frente. A vida é assim mesmo. Um aprendizado. Uma sucessão de mortes e vidas, passadas e futuras. Mário e Joana eram um só, dispostos a não entregar aquilo que o destino colocara em seu caminho. Por isso pareciam inumanos, sobre-humanos, conquistando a liberdade palmo-a-palmo, até não deixar muito trabalho para o esquadrão de resgate que chegara, liderado pelo próprio comandante dos boinas azuis, para conduzi-los por aqueles corredores que tinham se transformado num apanhado de corpos em acelerada decomposição. O ‘esconderijo das tarântulas’ não existia mais, quando o casal caiu desfalecido naquele deserto onde dois sóis se elevavam de direções e arcos diversos. Mais um mundo que precisou ser vencido a custa de muito sofrimento. Final O filho deles nascera no verão seguinte. Era uma criança forte, bonito como a mãe e determinado como o pai. Só uma coisa enervava os dois: A habilidade dele em subir pelas paredes... Rogério Amaral de Vasconcellos 96
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