Diálogos em Docência n 1

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Diálogos em Docência Revista Diálogos em Docência   Ano 1   No. 1

Setembro-Dezembro 2017


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Diálogos em Docência Revista Diálogos

em Docência

Ano 1   Edição 1   No. 1

Setembro-Dezembro 2017

Prezados e prezadas profissionais da educação macaense, “Caro Berti, (...) uma das atividades mais importantes, creio eu, a ser feita pelo corpo docente seria a de registrar, desenvolver e coordenar as experiências e as observações pedagógicas e didáticas; somente desse constante trabalho pode nascer o tipo de escola e o tipo de professor que o ambiente requer. Que livro bonito e útil poderia assim resultar a partir dessas experiências! (...) Penso que a genialidade deve ser jogada na ‘sarjeta’ e se deva, ao contrário, aplicar o método das experiências mais minuciosas e da autocrítica mais fria e objetiva.” (Gramsci apud Nosella, 1992, p. 71)

De acordo com o projeto do Centro de Formação Professora Carolina Garcia - o CFCG - são várias as atividades de formação continuada a serem desenvolvidas com os profissionais da educação macaense: cursos de curta duração, palestras, seminários, congressos, documentar a história da educação macaense, desenvolver pesquisa e divulgação pedagógica e científica. A divulgação pedagógica e científica do CFCG ocorrerá, fundamentalmente, por meio de sua revista pedagógica on-line, a Diálogos em Docência. Na Diálogos em Docência publicaremos trabalhos dos profissionais da rede de ensino de Macaé; degravações das conferências gravadas, com a devida autorização dos conferencistas; textos de autoria dos conferencistas, com as devidas autorizações, e outros textos (devidamente autorizados, quando for o caso) que a comissão editorial julgue contribuir para o diálogo entre os profissionais da educação, bem como a sua formação permanente.

Diálogos em Docência Setembro-Dezembro de 2017

NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. 149 p.


Sumário Em busca de âncora e vela em uma nau à deriva: um olhar sobre a docência em tempos distópicos.................................4 Luiz G. Gasparelli Junior

Autonomia e narrativas docentes em tempos sombrios.......................9 Everardo Paiva de Andrade

Política Pública de Formação Continuada da Docência: entre o debate e a construção de novos paradigmas...........................13 Cremilda Barreto Couto Maria Inês Barreto Netto

Outros Registros sobre o Simpósio: auditório e exposição de trabalhos das escolas ..................................................................................................18

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Em busca de âncora e vela em uma nau à deriva: um olhar sobre a docência em tempos distópicos Luiz G. Gasparelli Junior Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé (Fafima) e da Faculdade Professor Miguel Ângelo da Silva Santos (FeMASS).

Resumo: Este ensaio discorre sobre os atos de pensar, ler e fazer educação, através da minha experiência docente, como profissional de Letras, em cursos de Licenciatura. Através da Literatura, escrutino um singelo panorama da formação docente, dos debates atuais na área educacional e, principalmente, das crises existentes na sociedade brasileira, no que se refere à educação pública. Para isso, fomento os pensamentos com obras de arte que inspiram problematizar o mundo atual e as crises éticas, artísticas e educacionais: O Conto da Aia, de Margaret Atwood, e a autobiografia Pelas Paredes, de Marina Abramovic. Palavras-chave: O Conto da Aia. Educação. Marina Abramovic. Formação Docente. Pesquisa Como sabiam os arquitetos de Gilead, para instituir um sistema totalitarista eficaz ou, de fato, qualquer sistema, seja lá qual for, é preciso que se ofereça alguns benefícios e liberdades, pelo menos para uns poucos privilegiados, em troca daqueles que se retira. (Atwood, 2017, p. 362)

Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É Mestre em Ciência da Arte (UFF), possui graduação em Letras Clássicas e Vernáculas. Autor de A Estrada Autoficcional de Narciso: de Maria Antonieta a Madonna (2015).

O Conto da Aia, romance escrito pela canadense Margaret Atwood, que lida com um futuro próximo – até demais – do nosso é o primeiro içar de velas do que pretendo discorrer sobre a pesquisa em educação, principalmente a pública. Não apenas por ser um dos melhores livros que li nos últimos tempos, mas principalmente por refletir a função social do trabalho e a formação intelectual através da prática da descoberta empírica, além de apontar exatamente o oposto de tal função e formação, O Conto da Aia é uma narrativa sobre a falta do saber, sobre a negação do ato de ler e a manipulação de interesses sociais, sob um paradigma totalitário, abusivo e sexista. A palavra escrita é negada a quase todos os personagens da trama, apenas uma elite religiosa tem acesso aos livros no romance. As mulheres são subalternas e objetificadas, a arte não existe mais, qualquer pessoa que tenha alguma atitude crítica ou problematizadora é punida com a morte ou esquecimento, o que daria, aqui, no mesmo. Pois esse universo ficcional parece-me bastante realístico, quando o nosso contexto é também o de que a ciência e a arte são encaradas como um produto feito somente para agradar a sociedade, quando a reflexão e o potencial transformador da educação são subjugados, para que se atendam demandas outras, que atendem a grupos obscuros. Trago à tona este romance, como ponto de partida em meu ensaio, a fim de ilustrar a dis-

Texto apresentado na mesa-redonda intitulada A pesquisa no fazer docente: relação pesquisa-ensino no I Simpósio de Política Pública de Formação da Docência: a pesquisa como um caminho de formação, realizado em 20 de setembro de 2017, em Macaé, pelo Centro de Formação Professora Carolina Garcia.

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topia literária, estética que retrata os modelos totalitários, uma prospecção frustrante e caótica de futuro, na qual a humanidade fica à mercê de uma força invisível e avassaladora. Essa força é o próprio sistema, que se esconde, principalmente, na abolição do conhecimento e do senso crítico. A distopia é um modelo literário que nos serve de âncora e vela para sabermos onde estamos e para aonde vamos, sem as camadas lustrosas da cultura de massa, que nos entorpece. Vivemos num momento histórico que nos soa como distopia, quando os museus são fechados, os livros abolidos, as obras de arte rechaçadas, a educação devassada, e a pesquisa desvalorizada. Isso porque tanto a educação, quanto a pesquisa e a arte são exatamente o inverso do agrado, do que acomoda. Elas são as fronteiras sombrias que acompanham tanto a nossa existência, quanto a nossa construção social e nossas relações com o mundo,servem para incomodar a humanidade, produzir novos significados, reavaliar valores e estabelecer paradigmas que nos fazem melhores do que ontem, piores que amanhã. Nosso potencial de construção de novos saberes e desconstrução de antigos valores é o que nos faz demasiadamente humanos, para que estejamos sempre elaborando novos paradigmas e sofisticando nossas atividades, compartilhando os saberes e dando condições dignas àqueles que não as têm.

tivo através da linguagem verbal, sinto-me à vontade para lucubrar sobre a formação docente e a pesquisa através dela. Entendo que o que Margaret Atwood nos apresenta em seu O Conto da Aia é um espelho muitíssimo verossímil dos modelos e filosofias educacionais, da crise mundial em que vivemos, hoje: “Nós parecíamos capazes de escolher naquela época. Éramos uma sociedade que estava morrendo (...) de um excesso de escolhas” (Atwood, 2017, p. 37). Quando estamos apartados de informações, escassos de saberes e nulos de reflexão crítica. Mas ainda temos a educação como instrumento capaz de estabelecer novos caminhos, a fim de nos afastarmos da realidade de Aia. Trabalhando com o Ensino Superior há mais de uma década e formando professores de Letras, Pedagogia, História, Geografia e Matemática minhas experiências com pesquisa na área de licenciatura perpassam, via de regra, a formação do professor-leitor, seja este de qual área for. Isso porque a concepção de ensino atrelado à pesquisa, obrigatoriamente, é uma tarefa de ler, é um exercício contínuo de produzir, reproduzir, conduzir e reconduzir discursos para a elaboração de saberes. Concebo a educação como um instrumento para não nos tornarmos prisioneiros – de nós mesmos, do outro, dos outros – e a leitura sempre será o primeiro passo para o ato libertador. Dessa maneira, meu trabalho com licenciaturas é sempre o de buscar desenvolver não apenas o perfil crítico, que julgo ser basilar, mas principalmente formar professores capazes de ler. Não há conhecimento sem leitura, a atividade essencial da pesquisa é o ato de ler e a relação do

Vivemos num momento histórico que nos soa como distopia, quando os museus são fechados, os livros abolidos, as obras de arte rechaçadas, a educação devassada, e a pesquisa desvalorizada. Isso porque tanto a educação, quanto a pesquisa e a arte são exatamente o inverso do agrado, do que acomoda.

Como profissional de Letras, pesquiso Literatura e suas reverberações nos diversos campos das artes e do saber. Sendo essa linguagem da arte a que considero mais propensa à reflexão crítica, ao estímulo ao imaginário e desenvolvimento cogni-

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professor com o texto deve ser, via de regra, um ato de desvelamento, de exercício pessoal e de constante questionamento para com o mundo. Não há como produzir conhecimento sem, antes, questionar o conhecimento já existente. Não há maneira alguma de se formar professores pesquisadores sem ser através do questionamento crítico, embasado, de pesquisas já realizadas, que só são possíveis por meio da competência leitora. Mas voltemos à distopia que nos cabe: a prática da pesquisa deve começar nas primeiras classes de Educação Infantil, através de métodos exploratórios e empíricos, para que as crianças tenham suas leituras do mundo associadas às primeiras leituras das palavras escritas, que não fiquem subjugadas a fórmulas pré-prontas, sem qualquer instrumentalização. As crianças devem, sempre, elaborar, colaborar e explorar o novo. Nossos professores, aparentemente, têm dificuldades em realizar essa tarefa. Isso porque somos o resultado do projeto filosófico educacional que nos enquadrou, enquanto estudantes, na mesma fórmula que repetimos aos nossos alunos, o que faz ser dificílimo sairmos desse lugar do aprendido, para reformularmos o que vai ser ensinado. Associado a isso, há de pensarmos, também, e talvez, principalmente, na função social dos espaços de ensino, na forma com que o poder público compreende a formação de professores e, sobretudo, os aportes financeiros destinados à educação em nosso país. Sobre o que vislumbro a respeito da educação e das artes hoje, recorro a um texto que ilustra com propriedade nossa atual situação: Eu afirmo, senhores, que os cortes propostos para o orçamento especial das ciências, letras e artes são negativos por dois motivos. São insignificantes do ponto de vista financeiro e danosos sob todos os outros pontos de vista. Insignificantes do ponto de vista financeiro. Isto é evidente que me sinto constrangido ao submeter à assembleia o resultado de um cálculo proporcional que fiz (...) E qual é o momento escolhido? Aqui está, ao meu ver, o grave erro político do qual lhes falava no início. Qual é o momento escolhido para colocar em dúvida, de uma só vez, todas as instituições? O momento no qual elas são mais necessárias que nunca, o momento no qual, ao invés de limitálas, seria preciso ampliá-las e fazê-las crescer. (Ordine, 2017, p. 110-111) 6‌

Victor Hugo, em 1848, pronunciou esse eloquente discurso, acerca das objeções às propostas governamentais de cortar recursos destinados à cultura. Reduzir subsídios é assumir a falta de importância da educação em nossa sociedade. Estamos, infelizmente, à mercê de paradigmas bastante próximos daqueles do sistema citado por Victor Hugo. Tal realidade não apenas ofusca o potencial da educação e pesquisa, mas alquebra a estrutura educacional, deteriorando a infraestrutura escolar, desmantelando currículos, enfraquecendo o papel docente, transformando a escola em um conjunto sombrio de ações burocráticas, documentais, um misto de espaço carcerário, psicológico, de serviço social e, quando sobra algum tempo, educacional. Ao enfrentarmos o processo educativo além do que o sistema nos impõe, não negando os compromissos burocráticos, mas reconhecendo a preponderância do aperfeiçoamento constante que a prática educativa exige, geramos, consequentemente, a valorização da formação do professor. No entanto, reforço que é preciso ensinar os professores a refletirem, pois as teorias e práticas devem ser conjugadas. Ser professor é exercer atos reflexivos e toda reflexão é um ato político, e entendendo a pesquisa como centro da formação e da prática docente, os professores tornam-se consumidores mais críticos do saber e articuladores da atividade educativa. Nossa tarefa de formar professores pesquisadores é um exercício árduo, ou até mais do que isso; é uma ação quixotesca, ao lutarmos diariamente contra gigantes disfarçados de moinhos de vento. Como Odisseu, nosso navio vive à mercê dos mares regidos pelos deuses, no nosso caso, o sistema neoliberal. Ele nos imputa um plano ágil, colorido, dinâmico, cheio de informações para serem aplicadas simultaneamente, num espaço-tempo exíguo, sem a necessidade de problematizarmos, de analisarmos, muito menos, de termos competência leitora para o pleno exercício da função educadora, dentro do próprio sistema. Vistos como máquinas obsoletas defeituosas, somos produzidos no sistema neoliberal para ensinarmos de modo a não fazermos qualquer sentido ou utilidade para os estudantes, além de meios para responderem avaliações externas e processos seletivos. Os jovens, por sua vez, esperam encontrar uma escola tão diverti-

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da quanto os mundos virtuais dos jogos para cumprirem tais funções. Nessa dicotomia, somos, no olhar dos alunos, antigas enciclopédias mofadas, pois para eles bastaria escorregarmos os dedos em aplicativos, lermos 140 caracteres e já saberia tudo, todos seríamos os maiores conhecedores de todas as informações. Nessa perspectiva, tomamos como princípio educativo a base acadêmica, sua especificidade e condição para que a pesquisa seja um elo eficaz no exercício permanente na produção de conhecimento e no aprofundamento da análise de questões relevantes. Mas isso é processual, é um ato a ser elaborado. Nenhum professor amanhece pesquisador, assim como ninguém acorda professor. É necessária uma postura investigativa constante, na qual a teoria torna-se uma ação dinâmica, não basta somente falarmos que todos os professores são pesquisadores. Rememoro Marina Abramovic, performer iugoslava que considero a mais importante artista de nosso tempo, que trabalha com o corpo como suporte e instrumento na produção de saberes. Ela institucionalizou um método artístico conhecido com seu sobrenome, o Método Abramovic. Tal instrumentalização consiste em vários exercícios, extremamente disciplinados, para a construção de uma atitude cem por cento presente, tanto da mente, quanto do corpo. E o método não é apenas para artistas. É um exercício de pesquisa corporal e mental para, principalmente, as pessoas comuns, a fim de produzirem novas possibilidades de pensarem o mundo. Utilizando seu método, Marina desenvolveu uma performance intitulada A Artista está presente, que durou 736 horas, com um público de 850 mil pessoas. Era uma performance singela, e nas palavras de Marina, “as regras eram muito simples: cada pessoa podia sentar diante de mim pelo tempo, breve ou longo, que desejasse. Nós manteríamos contato pelo olhar. O público não deveria tocar em mim nem falar comigo” (Abramovic, 2017, p. 350). Imagino o potencial criativo de um ato tão delicado, com apenas três suportes: duas cadeiras e uma mesa. Mas a performance mobilizou, inclusive, neurocientistas, a fim de estudarem as ondas cerebrais da artista e dos participantes da performance, a natureza das fronteiras de nosso mundo interior. Mas qual relação entre uma performance realizada em um museu estadunidense e a formação docente?

Para mim, todas as relações possíveis. Inicialmente, porque o olhar, o aprimoramento do ver, associado ao sentir, é o primeiro passo para a construção do saber. E esse “olhar” não se dá apenas com o aparelho visual, mas com a conexão de todos os sentidos, na profusão de sensações que o outro nos desperta. Produzir saberes sempre vai passar pelo outro, pelo interlocutor, por aquele que sempre será capaz de acrescentar algo em nossa produção de conhecimento. Essa performance também é um exercício conjunto de empirismo e cognoscibilidade, de descoberta e despertar, ações intrínsecas do conhecimento. Para olhar o outro, era necessário olhar para si, estabelecer a conexão dos saberes e sentimentos internos para sentir o outro. Marina disse que saía, todos os dias, de-

O exercício de olhar, de se permitir conectar e vivenciar é o principal passo para a construção de saberes, para entender os processos necessários para a construção de uma educação efetiva, em que a formação não seja o mero exercício de informações absorvidas. pois de oito horas ininterruptas de performance, muitíssimo sensibilizada. Porque aprendia, porque conseguia produzir saberes que não seria capaz de fazer sozinha. Pois foi com o outro, os milhares de “outros” que se sentaram à frente dela, que aconteceu a produção de conhecimento. O Conto da Aia e A artista está presente são totalmente paradoxais entre si. Enquanto o romance anuncia o fim da liberdade através do fim da educação, a performance nos nutre com a possibilidade de sermos livres através do conhecimento e da arte. O exercício de olhar, de se permitir conectar e vivenciar é o principal passo para a construção de saberes, para entender os processos necessários para a construção de uma educação efetiva, em que a formação não seja o mero

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exercício de informações absorvidas. Ao contrário dos moldes de educação que nos enforma, Marina ensinou, através da performance, que somos seres capazes de produzir conhecimento até no silêncio. E então o que acontece com nossos alunos? O que acontece conosco, que não conseguimos, aos esgoelarmos em sala, produzir conhecimento? Para onde olhamos, para onde dirigimos os olhos discentes? Finalizo, assim, este ensaio, proclamando que a educação seja, sim, um processo pessoal, para que a formação docente, através da pesquisa, seja um ato cotidiano, baseado não apenas nos métodos científicos, mas principalmente, no exercício diário de pesquisar-se, através de mecanismos mais abrangentes, instintivos, holísticos, em que a percepção seja valorizada. Que ancoremos em mares profundíssimos, que de acordo com a qualidade, com a quantidade de leituras transformadas em saber, que sejamos professores melhores, a fim de sermos vela a outras naus, de termos novos pesquisadores formados através de nossa prática. E principalmente, ao olharmos nos olhos de nossos alunos, assim como Marina exercitou sua presença silenciosa, possamos exercitar e aprimorar nossa formação contínua de educadores, de pesquisadores, mesmo que os deuses influenciem nossas marés e tentem nos levar ao encalhe em ilhas da infecunda e real distopia. Referências ABRAMOVIC, Marina. Pelas Paredes. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017. ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. ORDINE, Nuccio. A Utilidade do Inútil. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

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Autonomia e narrativas docentes em tempos sombrios Everardo Paiva de Andrade Professor do PPGE/FEUFF e do PROFHISTÓRIA everardo_andrade@uol.com.br

Ver bem ao longe, querido amigo, é uma das grandes qualidades da memória, não se trata só de ver para trás, mas também de ver ao fundo; a memória está mais ligada ao bom observador no espaço do que ao bom observador no tempo. Gonçalo M. Tavares. Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, p. 32.

Agradeço o convite para participar do I Simpósio de Política Pública de Formação da Docência “A pesquisa como um caminho de formação”, organizado pelo Centro de Formação Professora Carolina Garcia, vinculado à Secretaria Municipal de Educação de Macaé – RJ. É sempre forte e esperançoso o sentimento de iniciar nossas melhores tradições: que venha, então, desde já, os frutos do primeiro e os planos do segundo simpósio. Especialmente desafiador é o tema proposto ao debate – A pesquisa no fazer docente: relação pesquisa-ensino –, em si mesmo um convite ao diálogo entre as práticas e os saberes da universidade, representada pelos convidados à mesa, e da escola, representada pela própria organização do evento e talvez a totalidade dos presentes. Mas ao mesmo tempo não deixa de nos desafiar, também, em nossas velhas idiossincrasias: afinal, é quase um lugar-comum supor que a primeira é o lugar da pesquisa e a segunda do ensino, ou que, na relação entre ensino e pesquisa, a ocorrência de uma elide o aparecimento do outro e vice-versa.

O presente texto, trazendo muito evidentemente as marcas da oralidade e da conversa, emerge daquele contexto, procurando olhar de novo, para trás e no fundo, tudo quanto tratamos. Minha intervenção, expressando trajetórias pessoais e profissionais, pretendeu desenvolver o seguinte argumento: a narrativa de vida é uma tática de resistência poderosa em favor da autonomia docente, sobretudo em tempos sombrios. Procurou seguir três eixos principais de raciocínio: (1) qualificar o que chamamos tempos sombrios, (2) problematizar e potencializar a ideia de autonomia docente e (3) discutir a noção de aprendizagem narrativa.

Considerações iniciais O objetivo explícito do simpósio foi discutir o conhecimento produzido na pesquisa como indicador para a formulação de políticas públicas endereçadas à formação docente. Gostaria de iniciar problematizando este objetivo geral: a palavra que aparece duas vezes no título do evento é formação, logo posso supor que é este seu alvo estratégico – a formação (continuada) de professores. O modo, ou as ações táticas pelas quais se pretendeu atingir o alvo, parece articular três elementos principais: as práticas profissionais docentes (o fazer pedagógico na sala de aula, já

Texto apresentado na mesa-redonda intitulada A pesquisa no fazer docente: relação pesquisa-ensino no I Simpósio de Política Pública de Formação da Docência: a pesquisa como um caminho de formação, realizado em 20 de setembro de 2017, em Macaé, pelo Centro de Formação Professora Carolina Garcia.

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que professoras e professores da Educação Básica eram o público-alvo do evento), a política pública (sobretudo no âmbito da formação continuada) e a pesquisa educacional (isto é, o pensar com cientificidade sobre a educação). A propósito, não há como não lembrar de uma conhecida entrevista concedida pelo educador português António Nóvoa à Revista Educação & Realidade, em 2011, tratando exatamente deste tema e abordando questões que estão diretamente relacionadas com a abordagem proposta: “Pesquisa em Educação como Processo Dinâmico, Aberto e Imaginativo” (Nóvoa, 2011). A certa altura, para concluir uma série de argumentos anteriores, Nóvoa afirma que: O lugar da pesquisa em educação é na proximidade e na distância com as práticas profissionais e com as decisões políticas. Julgo que devemos abandonar os velhos modelos de disseminação da pesquisa, substituindo-os por uma reflexão e apropriação críticas. E devemos abandonar as culturas de salvação, substituindo-as pelo esforço intelectual de compreender e de agir criticamente. (Nóvoa, 2011, p. 541)

Pois bem, começaria dizendo, a partir do que afirma Nóvoa, primeiro, que estávamos ou deveríamos estar, talvez, atentos às nossas diferenças de lugares (a universidade ali, a formulação de políticas aqui e a escola pública acolá); segundo, que a pesquisa não pode prometer um discurso de salvação nem arvorar-se à condição de avalista do que quer que se entenda por qualidade em educação; e que, portanto, terceiro, não trazemos nenhuma verdade científica a ser prescrita aos professores da rede com garantia líquida e certa de sucesso. Se estávamos ali, no entanto, é porque acreditávamos no diálogo, na conversa, na possibilidade de refletir e compartilhar criticamente nossas compreensões e nossas experiências. E que esse compartilhamento contribui, de parte a parte, para o fortalecimento de nossas respectivas missões. Que tempos são esses de que se diz sombrios

Temos nos referido a esse momento histórico que experimentamos como tempos sombrios: tudo ao redor parece confuso e ameaçador, um presente inseguro, um futuro de grande incerteza e um passado que insiste em não passar; a

irrupção permanente e abusiva do mundo lá fora aqui dentro da intimidade de nossas vidas, através das redes sociais, por exemplo. Mas, afinal, o que é isso que chamamos tempos sombrios? A expressão apareceu, com esse sentido, originalmente em 1938, no poema “Aos que virão depois de nós”, de Bertolt Brecht: Realmente, vivemos tempos muito sombrios! (...) Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. (...) Ah, os que quisemos preparar terreno para a bondade não pudemos ser bons. (Tradução de Manuel Bandeira.) A expressão, apropriada entre os anos 1950/60 pela filósofa alemã Hannah Arendt (1987), sugere que tempos sombrios não são novos nem raros na história. Isso significa que será necessário especificar em qual sentido se diz que são sombrios determinados tempos históricos. Para a filósofa, as sombras surgem quando o mundo – isto é, o espaço público situado entre as pessoas que nele habitam –, que deve iluminar os assuntos dos homens e fornecer-lhes as orientações necessárias para a vida, perde esse poder pela camuflagem que emana do “sistema”, por força de “fossas de credibilidade”, de “governos invisíveis” e de um “discurso que não revela o que é”, além do impacto esmagador da “simples fala” (Heidegger) do cotidiano comum. Em sentido próximo, Zygmunt Bauman (2000) fala de uma corrosiva desesperança existencial, referindo-se ao tempo presente. Assim, o mundo público aqui entre nós – atravessado por tecnologias e saturado da informação que circula nas mídias, que avança pela onipresença das redes sociais e do Google – encontra-se atravessado pela desconfiança e pela palavra de muitas “línguas”, logo aparece confuso, desorientador, incompreensível, sombrio. Particularmente entre nós, professores, cujo ofício depende sobretudo da conversa e da confiança, circulam perguntas de difícil resposta: afinal, no que acreditar? Em quem confiar? O que ensinar? Como educar? Com pouca visibilidade e poucas saídas, se diz, então, que vivemos em tempos sombrios!

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Formar professores com e para a autonomia

Como formar professores nesse contexto, entre sombras e esperanças? Na Universidade, experimentando referenciais teóricos que buscam alternativas, reencontramos a ideia de autonomia docente, investindo em relações horizontais que articulam a universidade e a escola sem subordinações e hierarquias. Nesse sentido, a autonomia de professores é vista como espaço compreendido entre estratégias de regulação (da burocracia, da pesquisa e do mercado) e táticas de enfrentamento e resistência. A questão remete a uma diferenciação entre o que estrategicamente impõe, obriga e regula e o que amplia taticamente os espaços de resistência e negociação no exercício cotidiano da profissão. Desse modo, as referências estratégicas de regulação da autonomia docente incluem (i) o Estado, a burocracia estatal e as políticas públicas educacionais; (ii) o mercado, a lógica mercantil e privatista em educação e a indústria cultural, especialmente o setor de produção didático-pedagógica; (iii) a pesquisa acadêmica compreendida em uma perspectiva prescritiva, que toma a educação, a escola e a profissão docente não pelo que efetivamente são, mas pelo que deveriam ser ou pelo que lhes falta; (iv) questões de natureza ético-profissional oriundas do movimento social dos professores e de iniciativas de organização e mobilização sindical; (v) o currículo e a própria estrutura disciplinar do trabalho docente. A pesquisa de Carlos Alberto Costa ilustra uma estratégia de regulação do trabalho docente via política pública. De acordo com o autor (2017, p. 89): A redução do currículo, por meio da seleção de conteúdos considerados Mínimos pela Secretaria de Educação, direcionou por meio de um forte aparato regulatório, o trabalho docente para a aplicação do Currículo Mínimo, (...) atrelado às avaliações do Saerj e Saerjinho (...). Ademais, outros mecanismos de controle do trabalho docente, tais como: GIDE, IGT’s, Plano de Metas, Conexão Professor, Sistema de Bonificação, apresentaram melhores resultados estatísticos divulgados pela

mídia e pelo secretário de educação como base de concepção de qualidade educacional. Na outra extremidade situam-se as referências táticas de modulação da autonomia docente: a história de vida, numa perspectiva próxima àquela adotada por Ivor Goodson (2006); os laços profissionais locais, cotidianamente construídos nos ambientes e coletivos profissionais; os pactos consubstanciados em projetos de gestão da unidade escolar por conquista eletiva etc.

Do ponto de vista do diálogo entre universidade e escola, falar de autonomia docente significa reconhecer que há algo na identidade do professor que não podemos compreender desde o mirante da universidade: talvez aquele “terceiro nome que só o gato conhece”, pessoal e intransferível, de que fala Néstor García Canclini. Afinal, como afirma Canclini (2009, p. 179): A aceitação de que há coisas do outro que não se pode compreender dá, ao mesmo tempo, permanência e igualdade na relação. A autonomia supõe conexão e, simultaneamente, alteridade, intimidade e anonimato.

Formação de professores e aprendizagem narrativa A aproximação teórica com a obra do pesquisador inglês Ivor F. Goodson, sobretudo em seus trabalhos mais recentes, descreve a ambivalência entre a promessa inclusiva de atendimento às demandas pela educação, por um lado, e, por outro, o longo percurso de exclusão na história da escolarização e do currículo pela inserção de um dispositivo disciplinar seletivo. Daí a produção de sentido para o que denomina “currículo narrativo” e “aprendizado narrativo” ou, melhor dizendo, o currículo como aprendizado narrativo, com ênfase na história de vida do sujeito que aprende. Goodson interessa-se fundamentalmente por uma abordagem narrativa articulada aos processos do aprendizado de adultos. Na perspectiva do autor, são “vidas que aprendem”, e não apenas cérebros. Nesse sentido, ressalta “a impor-

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tância do emprego da narrativa nos estudos que visam a compreender o currículo, a escola, a atuação profissional do docente”. Também Nóvoa sugere a necessidade de reforçar a “dimensão pessoal e a presença pública dos professores” rumo a uma teoria da pessoalidade, inscrita em uma teoria da profissionalidade, na qual se reconheça “o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica” (Nóvoa, 2011, p. 536). Evidentemente, essa teoria da pessoalidade deverá incorporar não só interesses, propósitos e experiências, crenças e missões pessoais, paixões, sonhos, compromissos e propósitos dos professores, como também suas marcas de classe, gênero, raça e orientação sexual, as marcas das lutas sociais e políticas das quais participam, como foi dito acima, enfim, tudo aquilo que faz de cada um de nós uma “pessoa comum”. Partindo do pressuposto de que “a história de uma vida pode explicar as reações de aprendizagem de uma pessoa”, Goodson define aprendizado narrativo como aquele “que ocorre durante a elaboração e a manutenção contínua de uma narrativa de vida ou identidade”, isto é, de uma “missão de vida” ou de um enredamento com sentido para quem vive. O aprendizado narrativo é, por fim, uma reação a transições e experiências existenciais críticas, que podem ser incidentais (doenças, desemprego ou crise doméstica, por exemplo) ou estruturadas (credenciamento, aposentadoria etc.).

Epílogo Não creio que nada do que aqui se diz deva simplesmente ser agregado à inteligência ou à memória dos professores. Antes, poderá ir ao encontro de vidas vivendo e aprendendo ao viver, envolvidas no modo como vivem e aprendem, num diálogo ao mesmo tempo pessoal e público, interno e externo. 12‌ Revista Diálogos em Docência, ano 1, n. 1, setembro-dezembro 2017


Política Pública de Formação Continuada da Docência: entre o debate e a construção de novos paradigmas Cremilda Barreto Couto

Maria Inês Barreto Netto

Centro de Formação Professora Carolina Garcia (CFCG/Gpdoc)/ Faculdade Professor Miguel Ângelo da Silva Santos (FeMASS)/ Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé (Fafima)

Centro de Formação Professora Carolina Garcia (CFCG/Gpdoc)

Devemos ainda nos perguntar: saber a favor do quê é, portanto, saber contra o quê; saber em prol de quem e saber contra quem. Essas são as perguntas que devemos nos fazer como educadores. Devemos também saber que é sempre a educação que nos leva à confirmação de outro fato óbvio que é a natureza política da educação. (Paulo Freire) Introdução O presente texto nasce das pesquisas que são realizadas no Grupo de Estudo de Política de Formação Continuada da Docência – Gpdoc. As reflexões realizadas pelo Gpdoc são parte das ações desenvolvidas pelo Centro de Formação Professora Carolina Garcia – CFCG – locus institucional de encaminhamento da política de formação continuada dos profissionais de educação da Secretaria Municipal de Educação de Macaé – Semed. Como o CFCG vem construindo uma perspectiva de formação continuada que vê na pesquisa um possível elemento desencadeador de formulação de Política Pública, o Gpdoc tem desempenhado um papel provocativo nesta construção. Além de ter também a pesquisa como ferramenta de formação das próprias pesquisadoras que o

compõe, as atividades desenvolvidas contam ainda com a parceria de Instituição de Ensino Superior - IES, por meio de pesquisadores do Curso de Graduação em Matemática. Atualmente, o CFCG oferece cursos de curta e média duração, Programas do Governo Federal e outras atividades formativas como as Rodas de Conversa, que trazem temáticas atuais, de interesse da comunidade educacional, promovendo a interação Centro de Formação-Universidade-Escola. Entretanto, nasce nas discussões no interior do Centro a ideia de que além da oferta de cursos, as pesquisas podem também dar o tom de cientificidade para as questões que permeiam o cotidiano escolar e estas podem ser geradoras de Políticas Públicas. Neste contexto, trazemos para debate algumas questões: de que forma a pesquisa da formação docente pode contribuir com a formulação de Políticas Públicas? Como as pesquisas podem contribuir com a colocação da Política de Formação Continuada da Docência na agenda de governo? Os teóricos que utilizaremos para esta discussão serão Bourdieu (2004), para com a ideia de Campo, conceituar o “Campo Político” e o “Campo Educacional”, que são fundamentados por Sechhi (2016 e 2012). Além de Freire (1998), Fusari (2010), Tardif (2002) e Nóvoa (2017) para estruturar a concepção de formação continuada.

Texto apresentado na mesa-redonda intitulada A pesquisa no fazer docente: relação pesquisa-ensino no I Simpósio de Política Pública de Formação da Docência: a pesquisa como um caminho de formação, realizado em 20 de setembro de 2017, em Macaé, pelo Centro de Formação Professora Carolina Garcia.

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1 Formação Continuada 1.1 Apontamentos legais

A ideia de formação continuada entrou em evidência no Brasil, principalmente, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 que, na orientação de uma política para o magistério, busca a valorização do profissional da educação escolar (Gatti, 2008). A LDB 9394/96 Título IX, Art. 87, Inciso III, aponta para o compromisso com a capacitação dos professores. E no art. 63, inciso III, define que as instituições formativas deverão manter “programas de formação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis”, além de estabelecer no inciso II, art. 67, “que os sistemas de ensino deverão promover aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim”. Por sua vez, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Resolução nº 03/97, definiu, no artigo 5º, que os sistemas de ensino “envidarão esforços para implementar programas de desenvolvimento profissional dos docentes em exercício, incluída a formação em nível superior em instituições credenciadas, bem como, em programas de aperfeiçoamento em serviço”. Desse modo, os planos de carreira devem incentivar a progressão, por meio da qualificação inicial e continuada dos trabalhadores da educação. O atual Plano Nacional de Educação (PNE 20142024), em sua meta 16 prevê a garantia de que todos os professores e professoras da educação básica tenham acesso a cursos de formação continuada em sua área de atuação. Todavia, tal aporte legal tem também relações políticas com os acontecimentos das décadas de 80 e 90 do século passado, principalmente. Tais acontecimentos são referentes tanto aos organismos financeiros internacionais como aos movimentos sociais pela educação no Brasil. São décadas de políticas de investimento econômico internacional (Bird, Banco Mundial e outros) em nosso país com a contrapartida da reformulação dos cursos de formação inicial da docência, instaurando e/ou reforçando o processo de mercantilização da formação continuada (Charlot, 2013). De outro lado, são décadas de atuação da sociedade civil na luta pela democrati-

zação da educação e melhoria de sua qualidade nos processos de ensino e aprendizagem dos conhecimentos social e historicamente construídos. 1.2 Campo de pesquisa

Compreendendo o conceito de campo como foi desenvolvido por Pierre Bourdieu, Diniz-Pereira (2013) informa-nos que a comunidade internacional ocidental de pesquisadores em educação (e, mais especificamente, em ensino) passou a considerar o lançamento em 1973 de uma revisão da literatura especializada, realizada por Robert F. Peck e James A. Tucker, do Handbook of Research on Teaching (Peck; Tucker, 1973)1, como marco da institucionalização da linha de pesquisa em formação de professores. Tal institucionalização seguiu e segue pelos meandros da atividade de estudo com cientificidade desse campo da produção humana. No Brasil, tal campo de pesquisa tem uma constituição ainda mais recente. Diniz-Pereira (2013) sugeriu uma interessante síntese sobre esse campo entre nós nas três últimas décadas do Séulo XX, com as respectivas ênfases na produção acadêmica sobre formação de professores: • Década de 1970: treinamento do técnico em educação; • Década de 1980: a formação do educador; • Década de 1990: a formação do professor-pesquisador. Vamos aqui apresentar apenas a literatura especializada sobre o assunto neste século. O Estado da Arte, realizado por Maia e Hobol (2014) faz um balanço das produções sobre as pesquisas de formação e do trabalho docente, apresentadas no Grupo de Trabalho da Psicologia da Educação (GT 20), da Anped, nos últimos doze anos (2000/2011). Embasaram teoricamente esta investigação os seguintes autores: André (2006 e 2001), André e Ens (2005), Antunes (2008) e Schlindwein (2011). Entre os 165 trabalhos apresentados neste GT, em doze anos, nove trabalhos foram selecionados em virtude de discutir os aspectos relacionados à formação e ao trabalho dos professores. 1

PECK, Robert; TUCKER, James. Research on teacher education. In: TRAVERS, Robert. (Org.). Handbook of research on teaching. 2th ed. Chicago: Rand MacNally, 1973. P. 940-978.

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Romanowski (2013) menciona estudos sobre trabalhos em eventos que incluem a formação de professores tais como as reuniões da Anped e do Endipe, como os de Brzezinski (2002, 2009) sobre o GT Formação; Jardilino (2010) que examina o trabalho sobre formação nos diferentes Gts da Anped; Terrazzan e Gama (2007) que se detiveram sobre as pesquisas em formação continuada de professores. Por outro lado, nós professores, passamos nossa vida dentro da escola em dois campos diferentes: estudante e mestre. São atividades que nos constituem subjetivamente com habitus próprios (Bordieu, ?). Na complexidade dessa formação subjetiva, ainda podemos acrescentar a discussão anteriormente realizada sobre as relações entre formação inicial e formação continuada. E com Tardif, acrestamos mais um argumento à discussão: Muitas pesquisas mostram que esse saber herdado da experiência escolar anterior é muito forte, que ele persiste através do tempo e que a formação universitária não consegue transformá-lo nem muito menos abalá-lo. (Tardif, 2002, p. 20). E sabemos, com Paulo Freire (1998), que formação continuada, sobretudo, é aquela “que se funda na análise crítica de sua prática” (p. 28) – a própria praxis. A materialização desta proposição freiriana requer a apropriação de conhecimentos científicos, entre outros, das diversas áreas constituintes tanto dos processos de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes como dos processos educativos e pedagógicos por parte dos sujeitos envolvidos no trabalho pedagógico com tais estudantes. Requer, enfim, a compreensão de que o ato educativo comporta uma rede de conhecimentos. Esse processo de reformulação da formação docente, portanto, não é somente uma questão de qualificação da professora e do professor, mas de criar circunstâncias para inseri-los numa condição de desenvolvimento tal que essa formação continuada, ainda que em longo prazo, seja revertida numa profissionalização. Devemos tomar, então, nossa prática pedagógica e educativa na sala de aula como objeto de estudo e pesquisa, teorizando, criando conhecimento com cientificidade. Aqui, todavia, se interpõem duas questões principais:

• A relação entre os agentes de produção desse conhecimento (a Universidade, por exemplo) e a educação básica; • A própria educação básica como produtora desse conhecimento com cientificidade. A literatura especializada já bem mostrou as dificuldades de relacionamento entre a divulgação dos conhecimentos produzidos pela universidade e a escola básica. Quanto à produção de conhecimento sobre a sua própria prática pedagógica, professores vivem o dilema de pertencer a um locus que, por sua natureza instituinte, não contribui com a atividade de pesquisa com cientificidade. Atuar com cientificidade sobre a própria prática pedagógica, produzindo e divulgando conhecimento, pode-se dizer, é quase um ato de resistência ao sistema. Antonio Nóvoa em palestra na UFRJ Campus Macaé (2017), mais uma vez, em nosso ponto de vista, articula estas duas questões acima delineadas no propósito de transformá-las. Referenciando-nos neste professor, afirmamos que a relação de pesquisa entre a Universidade e a escola básica precisa basear-se na atividade dialética de pesquisa. Ou seja, Universidade e escola básica, juntas, realizam a pesquisa sobre o cotidiano escolar, transformando a escola e as licenciaturas. O projeto do CFCG, atualmente, pretende ser uma possibilidade de materialização desta articulação. Entre os referenciais de sua institucionalização ativa e processual, tal possibilidade tem sido um dos pilares, por meio do: • Cursos de curta duração: com os parceiros, cada vez mais, analisando e propondo; • Gpdoc: atuando em pesquisa nos cursos de curta duração, criando conhecimentos que podem gerar políticas públicas; • Rodas de Conversa: na circularidade da Roda, professores universitários e professores da educação básica estão lado a lado em diálogo sobre os saberes das ciências da educação e os saberes de experiência feito (Paulo Freire, 1998); • Simpósio e Seminário: atividades da esfera da produção e divulgação de conhecimentos das ciências da educação e da prática pedagógica.

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2 Política Pública de Formação da Docência

Considerando que existem produções simbólicas que se dão nas estruturas sociais, que sustentam os sistemas e que estes estão cada vez mais diferenciados e complexos, Bourdieu (2004, p. 93) passa a utilizar o termo Campo como “mundos” relativamente autônomos, com necessidades particulares. Tal perspectiva contribui, tendo em vista que, neste caso em particular, o conceito de Campo nos auxilia na demarcação do “Campo das Políticas Públicas” e do “Campo da Educação”, por fazermos parte dele e compreendermos suas complexidades, particularidades, possibilidades e também limitações. “O interesse ligado ao fato de se pertencer a um campo está associado a uma forma de conhecimento prático, interessada, que aquele que não faz parte do campo não possui” (Bourdieu, 2004, p. 110). Compreendemos que o campo é um produto social, que por ele permeiam relações de poder, de interesses e que estes irão definir os avanços e perspectivas do campo. Portanto nossas reflexões e construções vão em direção a elaboração de estratégias para o Campo Educacional, dando a formação continuada do professor centralidade. A complexidade que envolve o termo “Política” e as variadas significações que foram se desenhando ao longo da história, nos leva a entender a abrangência que a ideia de Política Pública também ganha. Para Santos (2014, p. 4) “as Políticas Públicas são, em geral, elementos de enorme importância para a configuração das políticas educacionais”. Esta ideia nos auxilia, pois ocupamos o lugar de onde falamos e de onde acreditamos podermos criar alternativas para os problemas que vivenciamos na formação docente. Assim, buscando criar arcabouços teóricos que sustentem nossa discussão nos apoiamos em Secchi (2016, p. 5) que “ao referir-se ao campo da Política Pública considera relevante compreender dois conceitos: o problema público e a política pública. O primeiro trata do fim ou da intenção de resolução. O segundo trata do meio ou mecanismo para levar a tal intenção”. Partimos do processo de elaboração de Políticas Públicas ou Ciclo de Políticas Públicas, proposto por Secchi (2012, p. 33), buscando contribuir com a formulação de Política Pública de Formação da Docência. O autor pensa o modelo a partir de sete fases principais: 1) identificação do problema 2) formação da agenda 3) formulação de alternativas 4) tomada de decisão 5) implementação 6) avaliação 7) extinção.

Isto nos ajuda a colocarmos o problema da formação docente como um elemento de Política Pública, uma vez que temos ocupado o lugar dos que identificam e analisam o problema público. Uma vez identificado, é necessário que o problema da formação continuada ocupe lugar na agenda de governo, pois uma vez identificado o problema, torna-se merecedor de intervenção por parte dos que analisam a política pública. Não basta apenas implementarmos formação continuada para os professores, mas pensarmos possibilidades que realmente atendam às necessidades, conflitos e inquietações que ocupam o espaço da sala de aula, e isto, não pode ser pensado sem os agentes, os professores. Assim, ao olharmos a formação, pensamos alternativas e temos visto na pesquisa a possibilidade de criarmos outros mecanismos que levem a elaboração de políticas mais permanentes e com maior resultado. Valorizar o saber do professor, favorecer o acesso à cientificidade desses saberes, criar espaços de reflexão e promover permanente diálogo entre a teoria e a prática dos professores, de forma que estas sejam resultado da elaboração individual, autônoma, mas também coletiva dos professores, podem possibilidades na criação de novos paradigmas de formação. 3 Considerações finais

Acreditamos que a aproximação do universo acadêmico com a escola, a aproximação da teoria com os conflitos e as particularidades inerentes ao cotidiano escolar, a valorização do saber do professor, na proposição aqui elaborada, podem criar condições favoráveis à utilização de pesquisas que desencadeiem processos de formulação de política pública de formação continuada. A quem cabe dizer o que o professor precisa em sua formação? Que lugares possibilitam a formação do professor? Cabem ainda outras reflexões: por que o que é discutido nos espaços de formação não têm alterado as práticas pedagógicas? Destacamos, ainda, ser imprescindível compreendermos que formular políticas é diferente da formulação de programas de governo. Ações de curto, médio e longo prazo, que efetivamente melhorem a qualidade do ensino, numa perspectiva de inclusão social e, não apenas, de resultados medidos numericamente é o grande desafio dos que ocupam postos de tomada de decisão.

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Referências BRASIL. Lei n. 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, 23 dez. 1996. p. 27833. Disponível em: <http:// www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action? id=75723>. Consultado em 14 de setembro de 2017. CHARLOT, Bernard. Da Relação com o Saber às Práticas Educativas. [livro eletrônico]. 1a ed. São Paulo: Cortez, 2014. (Coleção docência em formação: saberes pedagógicos). DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio. A Construção do Campo da Pesquisa sobre Formação de Professores. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 40, p. 145-154, jul/dez 2013. FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água, 1998. FUSARI, José Cerchi. Formação Continuada de Professores no Cotidiano da Escola Fundamental. São Paulo: FDE, 1992, p. 25-33. [on-line] Disponível na internet via www. Url: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ ideias_12_p025034_c.pdf. Consultado em 1 de dezembro de 2010. GATTI, Bernadete A. Análise das Políticas Públicas para Formação Continuada no Brasil, na última década. Revista Brasileira de Educação. Autores Associados, n. 37, jan/ abr, p. 57-70, 2008. MAIA, Tatiane Cristina dos Santos da; HOBOL, Marcia de Souza. Estado da arte sobre formação de rofessores e trabalho docente. Revista Psicologia da Educação. São Paulo: n. 39, 2º sem., p. 3-14, 2014. Orientações gerais. Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica. Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação. Catálogo, 2006 ROMANOWSKI, Joana Paulin. Tendências da Pesquisa em Formação de Professores. Atos de pesquisa em educação. PPGE, v. 8, n. 2, p. 479-499, mai/ago, 2013. SANTOS, Edilamar Oliveira dos. Políticas de Formação Continuada para os professores da Educação Básica. 2011. Disponível em www.anpae.org.br/…etos/comunicacoesRelatos. Consultado em 14 de setembro de 2017. SANTOS, Pablo Silva Machado Bispo dos. Guia Prático da Política Educacional no Brasil – Ações, Planos, Programas, Impactos. São Paulo: Cengage Learning, 2014. SECCHI, Leonardo. Análise de Políticas Públicas – Diagnóstico de problemas, Recomendação de Soluções. São Paulo: Cengage Learning, 2016.

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Abertura do I Simpósio de Política Pública de Formação da Docência: a pesquisa como um caminho da formação. Da esquerda para a direita: Regina Célia Santos Nascimento, Coordenadora do CFCG; Carlos Augusto Garcia, Secretário de Educação; Leandra Lopes, Secretária Adjunta de Qualificação Profissional e Ensino Médio; e Flaviá Picon, Subsecretária Adjunta de Qualificação Profissional e Ensino Médio.

Mesa 1 - Pesquisa-Ação-Reflexão-Resposta na Formação Continuada Docente. Da esquerda para a direita: Prof. Me. Rodrigo Alípio, Profa. Ma. Lucy Teixeira, Prof. Dr. Luiz Guaracy e Profa. Dra. Cremilda Barreto Couto e Profa. Ma. Maria Inês Barreto Netto.

Equipe do CFCG.

Mesa 2 - A pesquisa no fazer docente: relação pesquisa-ensino. Da esquerda para a direita: Prof. Dr. Daniel Arruda Nascimento, Profa. Dra. Cremilda Barreto Couto, Profa. Dra. Claudia Cristina dos Santos Andrade e Prof. Dr. Everardo Paiva de Andrade.

Recepção dos profissionais e estudantes inscritos.

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Banners das escolas durante o I Simpósio de Política Pública de Formação da Docência

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Revista

Diálogos em Docência Revista Diálogos em Docência    Ano 1   No. 1

Setembro-Dezembro 2017

Secretaria Municipal de Educação Guto Garcia Secretaria Municipal Adjunta de Qualificação Profissional e Ensino Médio Leandra Lopes Vieira Centro de Formação Professora Carolina Garcia Regina Célia Nascimento

Revista Diálogos em Docência Centro de Formação Professora Carolina Garcia Rua Francisco Portela, 410 - 4º andar Centro - Macaé - RJ CEP: 27910-200 ISSN

On-line www. www.formacaomacae.wixsite.com/formacao dialogosemdocencia@gmail.com Coordenação Editorial Cremilda Barreto Couto Flaviá Picon Pereira Maria Inês Barreto Netto Regina Célia Nascimento Revisão Luiz G. Gasparelli Junior Projeto Gráfico e Diagramação Maria Inês Barreto Netto

Arte da capa

FREIRE, Paulo e MYLES, Horton. O caminho se faz caminhando. Petrópolis: Vozes, 2003. A revista pedagógica Diálogos em Docência é uma publicação semestral do Centro de Formação Professora Carolina Garcia. A Diálogos em Docência não se responsabiliza pelas ideias e pelos conceitos expressos nos artigos assinados, que trazem somente o pensamento dos autores e não representam necessariamente a opinião da revista. É permitida a reprodução total ou parcial de suas publicações, com as devidas citações referenciais.


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